quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Batista de Lima (Navegando num Mar de Poesias)


Pródigo

Sempre retorno para casa
não para a casa
para onde sempre retorno

Retorno para uma outra casa
que carrego aos ombros
para outra casa
que me carrega aos ombros

Sempre carrego essa casa do retorno
que cabe em qualquer casa
e não cabe em casa alguma

Não adiante a casa onde nasci
nem a casa onde todo dia nasço

A casa que carrego
não tem portas nem paredes
nem ocupa terreno algum

A casa que carrego
é apenas uma casa
uma profunda e vasta casa

A Casa de meu Avô

A casa de meu avô
tem histórias que o vento
esqueceu nas cumeeiras

Traços traçam
amarelo de tempo
nas pessoas dos retratos
No chapéu de meu avô
o peso do esperar
pendurou-se nas abas

O último cachorro
deixou seu jeito no canto da porta
seu grito no longe da serra
e no susto dos bichos

Nos varais as marcas dos panos
se envergonham de nudez
Nos baús o cheiro dos lençóis
espera a vida
que se esvaiu pelas frechas

A casa de meu avô
é uma dor sem jeito



O que faz mais dura a solidão
é tirar de mim o que me falta

O que faz doer a solidão
é sua sede
é ter que arrancar
destas entranhas
um oceano de podridade
de quem freqüentou a escola das facas
onde o que corta não é o gume
mas a falta da lâmina

O que fere não é a dor
é sua ausência assassina
pendurada nos cabides da alma

O que dói na solidão
é ter que amar
e amar é perder uma banda
é extrair um bonde de um homem
é extrair um bosque de uma mulher

O que mais fere na solidão
é sua inscrição cravada em brasa
no braço inútil do verso
uma família em torno da mesa
comendo pratos de silêncio

O que mais dói na solidão
é perder de mim
os outros que carrego
o segundo contra o primeiro
o terceiro que instiga
o quarto que dorme
o quinto que inicia
uma infinidade de outros

O que dói na solidão
é essa batalha que não acaba mais
entre guerreiros invisíveis
enquanto um boi passeia nas nuvens
e uma bicicleta muge
já que os verdes anos foram nulos
para quem nasceu maduro
para quem perdeu o ciso
na primeira dentição
e o cordão umbilical
nos bicos de um galo cego
Ia prás bandas da Cipaúba

Quanto dói
ver a velha mangueira se desfazendo
velha velha mangueira
por quanto tempo roerei
teus nós
por quanto tempo aguardarei
a manga que os passarinhos
bicam
no último dos galhos

O que dói na solidão
é o vira-lata sozinho
revirando o deserto
da cidade esquecida nas ruas
é ter um pai com muitas capas
todas com seus mistérios
se desfazendo em barro
por um caminho que m’espera

O que mais dói na solidão
é ter na mão uma chave
que nada abre
que nada abre
O que mais dói na solidão
é não se poderem conter
os fantasmas que teimam
em saltar das sombras
de cada canto
São essas cobras
passeando em nossa cabeça
serpentário infindável

Difícil conviver
com a inesgotável solidão
mais difícil mesmo
é compor o verso
sem a vaca no divã
triste luna
rodonoite
áspera/mente

Só mesmo a roda grande
s’escondendo em menor roda
Só mesmo a bicicleta
pendurada no trem noturno
Só mesmo a melancia
no rio em cheia
boiando
E os carneiros na mesa grande boiando
os teus olhos boiando na bandeja
os teus seios boiando no cuscus
os teus sais boiando nas iguarias
os teus ais boiando na rememória

O que mais dói
não é tua ausência
mas tua presença
estando longe
Lembra-te pois do açude
onde as águas ainda nos guardam
e os peixes nos carpem
em lágrimas de cumplicidade

Lembra-te da porta marcada
pelos mistérios de estar fechada
da casa retendo a mesa onde
saboreávamos os silêncios familiares
e escrevíamos a história da solidão
no livro branco do cotidiano

A solidão mora lá e é manca
e usa bengala preta
e óculos no nariz
e se veste de uma veste que nunca muda
e tem na mão fechada a chave da
nossa libertação

Solidão solidão
meu coração é uma cidade
entre muralhas
esperando tuas chaves

Solidão solidão
certa vez em Mombaça
pedia esmolas p'ra São Sebastião
e desenhei teu corpo num surrão de mangas
e em bandas de coité de brejo
Desenhei teu corpo
num portão de vidro
éramos dois
que não eram dois
Éramos dois e só um sol
a claridade e seu dorso
a clara idade e sua dor

Solidão solidão
estamos em pleno mar e não
há mar nenhum
Estamos em pleno sono
e não há qualquer sonho
só minha mão como um rosto
cortando em muitos
o luar de agosto

O que dói na solidão é ter
Ter é estar preso
pesar pesadamente fixo
Não ter
é poder voar
Leve
levo-me às alturas
lavo-me candura
com o vôo esculpido
no azul azul
o azul está no prato
servido e sorvido
seres vivos
estamos nele
e ele em nós
pasto de pasto
repasto
solitariamente circular
rodando em torno da roda
A solidão eixa e deseixa
em roda
quanto mais vemos
menos vivemos
coração coração

Tenho ossos e mais ossos
a rodear
Que tenho feito senão rodear
nunca quebrei o fêmur do que está posto
nem a tíbia das situações sem jeito
Rodear é fugir
Solidade
quando chegamos ao trem
não havia trilho
No açude não havia água
só a dor do pescador
dois meninos
engolindo uma duna
e uma duna engolindo um astro
uma foto de uma foto partida
onde o instante enterrou-se
A solidão é uma foto em que
se retorce
um inconformado instante

Solidão é desencontrar-se nos próprios passos
nos próprios ossos
perder o azul do firmamento
deixar de extrair gerânios
das pedras e de suas raízes
deixar de pentear os raios do sol
desarredondar a lua em luares
atravessados

Uma casa é uma caixa
de apenas portas
e abertas todas
uma casa é um avesso
um delírio espesso
vasto berro de barro
vagido e gozo
vôo espargido
de sonho e suspiro

Minha solidão é nódoa grudada
no ombro esquerdo do corpo
onde jaz a mala
das minhas desventuras

Minha mãe é a terra
e cumpro seu estatuto
em retomar ao seu ventre
meus filhos todos me seguirão
vastíssimos sonhos
de/verão

Tarde tarde
a solidão me salga as horas
a mulher que retém o homem
suas asas e águas
rio seco
areia de leito
íngua cortada
ferida tratada a urina
caborge
no meu pescoço levo teu pescoço
teus passos laçados
teu poder de vôo
teu grito guardado

Solidão é Laura de costas
Laura láurea loura
minha querida Laura
chorarei lágrimas douradas
quando tua nudez
se esculpir no relâmpago

Querida Laura
recupera aquele instante
em que nossos dedos se
tocaram
e nos perdemos

Recupera o instante anterior ao toque
quando a correnteza era mais forte em mim
o despencar mais vertical
retendo aqui esse abismo
que me engole

Recupera teu pai
e a cuia
que enchamos de esperanças
antes do leite

Recupera tua mãe
e a chuva fina
no telhado

Recupera as águas
que nos levaram
e lavaram
nossos sais
o céu azul
o curto mundo
onde só o coração era vasto

Recupera as curvas
dos caminhos

Recupera o fogo de
monturo em nós

Se não me queimo
não posso iluminar
se não te firo
não extraio de ti o coração
"rosa vermelha
do meu bem querer"

Na noite tarde
o que resta é meu corpo lá
e eu daqui
olhando sua/minha posição fetal
e essa angústia de perdê-lo de vista
Não sei quando perderei
essa dor
de perder a casca
a casa do ser não importa tanto
se tantas se erguem
Só o ser é uno
solitariamente nu
e eu molusco
a vida inteira tenho construído essa casca
que me expele e me retém
escravo da construção
construir é viver
terminar a casa é terminar-me
é expulsar-me da casca construída

Foi fácil colocar a flor
atrás da flor
e ficar de uma só flor
reinventando pomares

Foi fácil reverter a manhã
colocando alvoreceres
de sol a pino
Foi fácil engatinhar
pelas galáxias
semeando brancas nuvens

Houve no entanto
um difícil momento
mudar o destino da tarde

Solidão solidade
quando procurarei no bolso
o poema
encontrei aberta uma artéria
e teu rosto de fada
tua avó morrente
uma floresta escura

Quando procurei no bolso
o poema
encontrei um mistério esculpido
algumas lavadeiras
oito bicicletas
e uma tia puxando um terço
solitária

Quando procurei no bolso
o poema
te vi mais uma vez
prima/vera/ndo
Vi também uma dor sangrando
solitária

Nos nossos bolsos pulsam
os meninos que enxotam o demônio
escondido num cupim
e uma mulher de tarrafa
tentando pescar o mar
nas entranhas de um peixe

Nos nossos bolsos
pulsa o destino do poetar o
revirar cada coisa para
desvendar seus mistérios
enquanto meus mistérios
para trás vão ficando
cada vez mais distantes
cada vez mais distantes
-------------

Fonte:
Soares Feitosa. Jornal de Poesia.

Batista de Lima (O Insepulto)


Terêncio Espinheira passava em frente à capela de São Raimundo quando sentiu travar o coração. Tombou, arrastou-se e morreu babando no último banco da igreja. O sacristão comunicou ao padre Otávio e foi avisar à família: duas filhas que com Espinheira moravam lá pras bandas do motor do arroz.

As duas receberam com alegria, a notícia, e não foram à casa santa, ver o corpo do pai. Pe. Otávio pediu um caixão ao Major Apolônio que, como prefeito, enterrava os mortos da cidadezinha por conta dos dinheiros municipais. Mas não havia caixão para Espinheira, destratador de políticos e destruidor do patrimônio público. A saída foi o velho sacerdote providenciar uma rede para conduzir o morto, e o fez constrangido porque muitas vezes, Terêncio, embriagado, invadira a igreja durante a santa missa, montado no seu cavalo cardão.

As filhas não compareceram pois festejavam a morte do pai com muitas rodadas de cerveja quente num reservado do Bar da Bia. Nunca mais apanhariam no meio da rua, do pai feito fera, apesar das suas idades, com mais de trinta anos cada uma. À tarde Pe. Otávio utilizou o serviço de som da igreja e pediu ajuda aos cidadãos de Sipaúbas para o transporte do defunto até o cemitério, ninguém apareceu. Nem adiantava, pois Gervásio, o coveiro, já se havia negado a cavar a cova, depois de tanto sofrer nas mãos de Espinheira. O vigário teve a idéia de pagar com o pouco dinheiro da coleta da missa a um carroceiro para carregar o morto. O carroceiro veio mas o burro puxador da carroça assombrou-se ao ver o morto e disparou de rua afora de carroça seca. Espinheira anoiteceu insepulto.

Já exalando mau cheiro, era alta noite, quando Pe. Otávio teve a idéia de colocar o cadáver num carro de mão e empurrá-lo até os fundos da igreja onde um riacho caudaloso transbordava em cheias de abril. Jogou o corpo na correnteza e veio desinfetar a capela.

No dia seguinte por mais de uma légua de riacho abaixo apareceram centenas de piranhas mortas, e nos invernos dos anos seguintes nunca mais correu água no riacho das Guaribas.

Fonte:
Soares Feitosa e Nilto Maciel. Jornal do Conto.

Airton Monte (Ave Noturna)



– Seu doutor, o álcool comeu meu juízo. Daí cortei o pulso a gilete, engoli caco de vidro, bebi veneno de cobra e o veneno roeu minhas palavras. Desde então fiquei mudo, com medo das pessoas. Como falar com as pessoas? Como fazê-las entender meu mundo partido em dois, três, sei lá quantos pedaços? Não, eu não estou delirando agora. Consigo sentir-me por dentro de mim, domino meu próprio corpo. Sou eu quem fala agora. Não os outros que sobrevivem por baixo de minha pele.

– Seu doutor, me dê um cigarro, me faça carinho na cabeça como minha velha mãe fazia. Sim, agora eu me lembro como a casa era escura. De como o cheiro de mato verde espalhava-se de fora para dentro da casa nas tardes de sábado. Meu pai montava um cavalo preto e suas esporas de prata tilintavam. Eu desenhava na parede do porão figuras mágicas, meio gente, meio bicho, sempre com os dentes arreganhados. De noite elas saltavam das paredes e me mordiam os braços, as pernas, me puxavam da rede, não me deixavam dormir.

– Seu doutor, vamos brincar de ciranda? A vida não é uma ciranda? Se o senhor não sabe disso é porque está louco também. Quem somos, os loucos? Diante de vocês, separados de vocês pela tênue linha, duvido quem arrisque o salto. Nossos sonhos. Quem se importa com nossos sonhos? Quem nos penetra até o fundo do poço sem medo de não voltar? Quem?

– Seu doutor, o caso é simples. Me dê meu remédio que eu quero dormir. A porta está sempre fechada e permanecerá fechada entre nós. Qual de mim estará falando agora? Qual de você estará me ouvindo? Sou eu não sendo eu e minhas palavras voam soltas no ar. Enquanto isso eu permaneço preso como alguém que amarra uma pedra no pescoço e salta do alto de uma ponte. Lá embaixo, onde a água é mais escura, mais fria, mais suja, ele tenta voltar, mas os pulmões estouram e a morte é a única companheira.

– Seu doutor, me dê sua mão que eles vêm vindo de todos os lados. Meu nome é não ter nome. E o medo é um animal esquisito, gelado, com braços de polvo. Caminho em torno de você e o observo: a veste branca, a caneta entre os dedos como uma cobra. Do lado de fora, encostado à porta, o enfermeiro é uma estátua a ouvir. Por que você não o chama? Por que você não ordena que ele enfie-me no braço ou na bunda esta maldita seringa? Esse é o seu trabalho, doutor. O meu é lhe dar trabalho, esgotar sua paciência, acabar com seu fim de semana.

– Seu doutor, por que não morro? É tão difícil morrer. E se eu lambuzasse seu rosto com merda? O que você faria, doutor? E se eu xingasse sua doce mãezinha? O que você faria, doutor? É fácil ter medo quando o medo ajuda a viver. Junte o medo com o ódio e você terá uma bela receita de sobrevivência. Pelo menos para gente como nós, que vive num espaço vazio, sem raízes, como se pudesse existir uma árvore solta no espaço descrevendo sempre eternamente a mesma órbita, inútil órbita.

– Seu doutor, não se avexe. Mal comecei a falar. Se você reparar bem, verá que eu danço como se falasse com o corpo inteiro. Quer entrar na dança também? Os cães estão uivando pra lua. Mas a lua está longe demais para ouvi-los. Há sangue nos meus dedos. Meus olhos estão furados como os olhos de uma boneca. Amarraram cordéis em nossos membros. Não posso mover-me para muito longe nem para muito perto. Para longe deles, para perto de vocês. Já observou como as pedras jogadas às margens do rio são tristes, doutor? Sou uma dessas pedras, doutor. O tempo vai me cobrindo de tempo, lodo, tempo.

– Bobagem, doutor, essa sua mania de tentar me olhar através de mim como se eu fosse um espelho. Às vezes, tenho a impressão de que você está falando só com a minha roupa. Você se esconde por trás dos óculos como o avestruz enterra a cabeça na areia. Estamos um diante do outro e nada podemos fazer ou falar. As muralhas estão erguidas. As mãos não empunham martelos para derrubá-las.

– Que nada, doutor. Todos esses livros ao seu redor lhe fazem ficar pequeno como o diabo. Já não consigo suportá-lo, doutor. Somos inimigos. Só conseguimos nos olhar assim como estamos agora: você de um lado e eu do outro. Entre nós as muralhas.

Fontes:
Soares Feitosa e Nilto Maciel. Jornal do Conto.

Airton Monte (1949)


Airton Monte nasceu em Fortaleza (1949) e nunca dela se mudou.

Filho de Airton Teixeira Monte e Valdeci Machado Monte.

Médico psiquiatra formado pela Universidade Federal do Ceará, cronista do jornal O Povo, comentarista de rádio, redator de televisão, letrista, teatrólogo, é essencialmente poeta e contista.

Iniciou-se na revista O Saco, onde publicou contos.

Um dos fundadores do Grupo Siriará de Literatura.

Estreou, no gênero conto, com o volume O Grande Pânico (1979), seguido de Homem Não Chora (1981) e Alba Sangüínea (1983).

Tem no prelo Os Bailarinos. Participou de algumas antologias: Os Novos Poetas do Ceará III, Antologia da Novo Poesia Cearense, Verdeversos e 10 Contistas Cearenses.

Tem também um livro de poemas.

Dona Sônia, esposa de Airton Monte, diz que o marido nunca sabe cobrar pelos textos que lhe são encomendados. “Até mesmo os laudos periciais da psiquiatria, ele vem perguntar para mim quanto é que tem que cobrar”. “Você é minha ministra da Fazenda”, brinca Airton.

Falando do amigo Jorge Pieiro, que Airton considera um dos principais nomes da nova geração de escritores cearenses, Airton diz que Pieiro é o moderno da turma, o “cara que faz cabelo, coisa e tal”, é o “metrossexual”. “Mas como ele é muito baixinho, a gente chama ele de ‘meio metro sexual’”.

Já o escritor Pedro Salgueiro, Airton chama de Pedro Sangreiro, “porque ele mata tudo que é personagem”. “Enganchou num conto, ele mata os personagens todos”.

Bárbara, filha de Airton Monte, é quem coordena a página dedicada ao pai no orkut, site de relacionamentos da internet. “Uma vez ela ficou furiosa porque perguntaram a ela se ele batia em mim”, conta dona Sônia. “Minha filha não fique assim, diga que eu bato nela, bato em você, bato no Pablo (filho de Airton), bato no cachorro, em todo mundo”, conta Airton às gargalhadas.

Airton diz que tem três ou quatro livros de poesia prontos, além de um romance, uma novela sobre futebol, uma peça de teatro e um livro de contos “Os bailarinos”. “Há tanta coisa aí guardada”, conta. “Eu não publico porque desde que publiquei meu primeiro livro pela editora Moderna que decidi não publicar mais nenhum livro com o meu dinheiro. Afinal, o escritor já é o camelô de si mesmo, tem que escrever e sair vendendo o bicho de mão em mão, indo nos programas de rádio, etc”.

Segundo dona Sônia, quando está num restaurante, Airton repara se há algum casal conversando e fica imaginando o assunto para poder se inspirar em suas crônicas. “Ele me manda ao toalete para eu passar perto do casal e ouvir o que eles estão dizendo", revela.

Fontes:
Soares Feitosa e Nilto Maciel. Jornal do Conto.
Soares Feitosa. Jornal de Poesia.

Moacir Costa Lopes (O homem atrás do escritor, o escritor atrás do homem)


Desvendando o homem atrás do escritor e o escritor atrás do homem, hoje, em nossa quinta entrevista, o escritor cearense, radicado no Rio de Janeiro, Moacir Costa Lopes, que nasceu em 11 de junho de 1927, em Quixadá, Ceará. Criou seu próprio método de criação literária, do que resultou seu livro de ensaio/didático Guia prático de criação literária, editado em 2001. Marinheiro, na Segunda Guerra Mundial, Escreve sobre a vida dos marinheiros, sugestão do folclorista Luís da Câmara Cascudo , estreando com o romance Maria de Cada Porto. Colaborador de diversos jornais, obteve diversos premios. Vinte e um livros já editados, incluindo ensaios e literatura infantil.

Conte um pouco de sua trajetória de vida, onde nasceu, onde cresceu, o que estudou.

Nasci em Quixadá, Ceará, em 11 de junho de 1927, perdi meu pai aos 2 anos de idade, minha mãe aos 11, indo morar com um tio, fugi de casa no início de 1942 por maus tratos. Localizado por meu tio, regressei, mas logo tratei de entrar para a Marinha do Brasil, o que realizei em final de 1942, participando de inúmeras viagens em diversos navios durante toda a Segunda Guerra Mundial. Dei baixa da Marinha em 1950. Meus estudos foram muitas vezes interrompidos, e resolvi que não me interessavam estudos formais, passando a um autodidatismo focado exclusivamente nos estudos de literatura e da cultura geral. Assim, nenhum estímulo eu tive na minha infância. Desde criança tornei-me leitor compulsivo de literatura de cordel, com sua cultura medieval e de personagens típicos como cangaceiros, figuras messiânicas e folclore. Já como marinheiro foi que vim a ler o primeiro romance, O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, e não parei mais de ler os mestres da literatura universal, com o objetivo de estudar a visão-de-mundo de cada um e seu estilo literário, concluindo que se um dia pretendesse me tornar escritor, deveria começar por ser um grande leitor, decifrando a carpintaria literária dos mestres.

Quais livros foram marcantes antes de começar a escrever.

Foi um longo aprendizado literário, através da leitura, começando com os fran-ceses, Balzac, Gustave Flaubert, Stendhal, Anatole France, Guy de Maupassant, Victor Hugo, Marcel Proust, além de clássicos como Montesquieu, passando à literatura russa, tendo Dostoievski e Tolstoi, Gogol como os principais, depois a inglesa, com William Shakespeare, Charles Morgan, Charles Dickens, Emily Brontë, James Joyce, passando aos portugueses, em que pude destacar Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano e Eça de Queiroz. Além de obras imprescindíveis como as de Homero, Idíada e Odisséia, A Divina Comédia, de Dante Alighieri, Dom Quixote, de Cervantes. Finalmente, chegando à literatura brasileira, quando passei a estudar com mais afinco o estilo de cada autor, já lidando com nosso idioma. Foram muitos, sendo os principais Machado de Assis, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, Dalcídio Jurandir, Érico Veríssimo, Jorge Amado, e, finalmente, Graciliano Ramos, que passei a considerar o mais importante ficcionista brasileiro, dono de estilo impecável.

Fale um pouco sobre sua trajetória literária. Como começou a vida de escritor?

Ainda marinheiro, depois de muita leitura resolvi tornar-me escritor, organizan-do meu próprio método de criação literária, na busca de um estilo próprio. Como trabalhava na secretaria dos navios em que servia, tinha máquina de escrever a meu dispor, que utilizava durante os dias e noites de alto-mar . A par de obras literárias, lia muito sobre cultura geral, antropologia, filosofia, história das religi-ões, mitologia, história geral e do Brasil, folclore, enfim o de que necessitaria para suporte de minha literatura, inclusive lia dicionário, sobre concordância e regência, com exercícios de retenção de palavras essenciais.

Teve a influência de alguém para começar a escrever?

Começar a escrever foi opção sem influência de ninguém, a não ser das obras que lia. Hoje, depois de 21 livros publicados, com várias reedições, traduções em vários países e muitos estudos sobre eles, no Brasil e no estrangeiro, tenho minha home page – http://www.moacirclopes.com.br/ , e-mail – http.moacirclopes@gmail.com e uma comunidade de orkut, aberta por Marcos Vinícius Teixeira, professor mineiro, ficcionista e poeta. Viver de literatura é muito difícil no Brasil e por falta de consumidor de livros, com ínfima percentagem de leitores de ficção e poesia, que preferem na maioria obras de autoajuda, e não possuímos hoje um serviço mais atuante de informações sobre a verdadeira cultura brasileira, seus escritores, seus pintores, seus escultores, seus músicos de primeira linha, seus artistas em geral.

Como começou a tomar gosto pela escrita?

Desde minha juventude tive tendência para as fábulas, a literatura, a começar pelos livros de cordel e os folhetins com histórias em capítulos impressos, de escritores brasileiros e estrangeiros (semelhantes às novelas de Tv atuais), que chegavam a Quixadá. Comecei a tomar gosto mesmo pela escrita, como disse, em contato com os clássicos da literatura universal.

Qual a sua opinião a respeito da Internet? A seu ver, ela tem contribuído para a difusão do seu trabalho?

A Internet é um instrumento poderoso para a divulgação de cultura, mas apenas em escala mínima, mais para pesquisa limitada de temas, com a vantagem de remeter seus pesquisadores a obras mais substanciais, para pesquisa mais aprofundada, porque o livro é que é o instrumento essencial da cultura. Mas a Inter-net começou recentemente a contribuir na difusão de meu trabalho literário.

Tem prêmios literários? Quais e quantos?

Sim, tenho prêmios literários, sendo os principais o “Coelho Neto”, da Academia Brasileira de Letras, e o “Fábio Prado”, da União Brasileira de Escritores, São Paulo, por iniciativa de meus editores. Mas não acredito em prêmios literários, eles não alteram o valor intrínseco da obra literária, apenas ajudam na sua divulgação. No Brasil, entretanto, a concessão de grande parte dos prêmios literários é suspeita pelo notório apadrinhamento.

Livros publicados. Quais?

Como afirmei acima, publiquei até agora 21 obras, sendo 11 romances, outros de contos, infanto-juvenis e de ensaios, com várias reedições e traduções em vários países, com teses de mestrado e doutorado de professores brasileiros e estrangeiros, além de muitos estudos menores, sobre toda minha obra. Haveria que destacar o romance de estréia, Maria de cada porto, hoje em nona edição, e A ostra e o vento, em oitava edição, adaptado para o cinema em 1997, sob o mesmo título, que obteve muitos prêmios. Entre os livros de ensaio, destacaria Guia prático de criação literária, fruto de minhas pesquisas, e concentrando nele aulas que ministrei sobre criação literária, na UFRJ e na Faculdade Hélio Alonso, do Rio de Janeiro, e continuo utilizando em aulas, palestras e conferências, e A situação do escritor e do livro no Brasil, no qual apresento os principais problemas do escritor. Estou preparando outras obras, entre elas um romance e um livro de memórias, em dois volumes.

Seu romance que escreveu em 1944, mas não concluiu. Fale sobre ele. Sobre o que era? Porque iniciou e porque não concluiu?

O romance que escrevi em 1944, aos 17 anos, não possuía ainda as qualidades literárias que eu esperava. Nem recordo o assunto, mas não possuía a temática de mar, nem teve título e nem cheguei a concluir por não saber como terminá-lo. A solução foi destruí-lo.

Maria de Cada Porto, em 1959, foi então o seu primeiro romance concluido. que obteve premios na Academia Brasileira de Letras e União Brasileira de Escritores. Como foi este processo de criação deste livro? O senhor pretendia se lançar no mercado com ele, ou era apenas o prazer de escrever, não importando o que poderia obter depois?

Em 1946, em visita ao folclorista Luís da Câmara Cascudo, em Natal, RN, comecei a escrever o romance que viria a receber o título de Maria de cada porto, sobre a vida dos marinheiros, a bordo e em terra, suas aventuras, seus amores, e as operações da Marinha do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, usando como espinha dorsal o caso do naufrágio do cruzador Bahia, poucos dias depois de terminada a guerra, com tripulação de 380, da qual foram salvos com vida apenas 27 marinheiros, após 4 dias de sede, fome e loucura em 16 balsas. Só vim a publicá-lo em 1959, com grande repercussão de crítica e de público. Eu não contava com essa repercussão, a literatura era meu grande desafio, enfim me senti um pouco realizado, quando várias editoras me procuraram para a publicação de obras futuras, abrindo-me suas portas. Na verdade, eu pretendia construir uma obra literária.

Quem considera entre vivos e falecidos os maiores escritores do Brasil?

O Brasil já possui uma das melhores literaturas do mundo, embora pouco difun-dida aqui e lá fora. Um professor norte-americano, Leo Barrow, meu amigo, me afirmou que Machado de Assis poderia ser comparado a Shakespeare em valor literário. Eu destacaria, além dele, José de Alencar, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Jorge Amado, Lima Barreto, Euclides da Cunha, que, não sendo ficcionista, seu livro Os Sertões, influenciaria nossos ficcionistas, como também influenciaria o livro Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, Aluísio de Azevedo, Domingos Olímpio, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Dalcídio Jurandir, Herberto Sales, Campos de Carvalho, Rui Mourão, e alguns de minha geração para cá, que não menciono para não cometer injustiça a outros porventura não mencionados. E nossos importantes poetas, como Gonçalves Dias, Augusto dos Anjos, Castro Alves, Olavo Bilac, Jorge de Lima, Ma-nuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana.

Você precisa ter uma situação psicologicamente muito definida ou já chegou num ponto em que é só fazer um "clic" e a musa pinta de lá de dentro? Para se inspirar literariamente, precisa de algum ambiente especial ?

Não existe essa situação psicologicamente definida. Cada obra a escrever exige muito trabalho, muita pesquisa sobre o tema a ser abordado, a linguagem a ser usada, o tempo, os personagens, mesmo porque cada livro exige uma linguagem diferente, um estilo apropriado a essa história. E tudo é fruto de planejamento, de organicidade, não desprezando, contudo, a espontaneidade. Até a escolha dos nomes dos personagens é um desafio, se vou levar a história em narrativa feita na primeira pessoa ou na terceira, se no passado ou no presente. A inspiração surgirá no desenvolvimento do livro. Não tenho ambiente especial para criar, mas necessito de isolamento, embora muitas vezes eu escreva até com a televisão ligada ou com o barulho vindo da rua.

Como é que você concebe suas obras?

Para tornar-se escritor, não é apenas exercitar a escrita. Antes de mais nada, a vocação é essencial. Depois, vem a fase do aprendizado, da leitura dos mestres da literatura universal, a busca de um estilo próprio. O essencial não é apenas contar uma história, porque os meios de comunicação o fazem diariamente, nos jornais, em revistas, na rádio, na televisão, mas a forma como contar essa histó-ria, ou seja, o uso da linguagem, do estilo, das simbologias, das metáforas. Como disse anteriormente, gasto muito tempo planejando o livro a escrever. Levo uns dois anos até concluí-lo, depois de várias vezes que o reescrevo até encontrar a linguagem apropriada.

Mas existe uma constelação de escritores que nos é desconhecida. Para nós, chega apenas o que a mídia divulga?

Há uma constelação de escritores desconhecidos da maioria dos leitores. Se formos nos basear no que a mídia divulga diariamente, não passaremos de uma dúzia de best-sellers estrangeiros, a maioria deles sem importância literária. Existem conforme citado anteriormente vários nomes de escritores brasileiros pouco lembrados pelos leitores, e que não podem ser negligenciados pelos jovens candidatos a escritor.

Na sua opinião, que livro ou livros da literatura da língua portuguesa deveriam ser leitura obrigatória?

De escritores da língua portuguesa, eu destacaria os clássicos, como Alexandre Herculano, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Júlio Dantas, Bernardim Ribeiro, e os clássicos brasileiros citados acima. Além de importantes poetas portugueses, destacando-se Luís de Camões, Guerra Junqueira, Fernando Pessoa, Miguel Torga.

Qual o papel do escritor na sociedade?

O papel do escritor na sociedade é o que ele expõe nos textos que escreve. Há que se levar em conta que o livro é o mais fidedigno intérprete da cultura nacional, o escritor é esse mensageiro, individual e soberanamente, porque não se curva a injunções políticas, mesmo em períodos de ditadura. Ele não precisa ser engajado, e não deve, porque o engajamento restringe o valor da obra, sendo que sua mensagem é a permanência da sua obra.

O que lê hoje?

Hoje, sinto-me chocado com qualquer ato que fuja aos padrões da ética. Continuo sendo leitor compulsivo. Leio autores novos e releio os clássicos, não apenas obras de ficção e de poesia, como qualquer obra de cultura geral.

Qual é a sensação ao se conseguir um prêmio na Academia Brasileira de Letras?

Apesar de haver obtido um prêmio da Academia Brasileira de Letras pelo meu primeiro livro, enviado por editores a acadêmicos dos anos 60 do século passa-do, sou muito descrente de prêmios literários, qualquer seja a sua origem, inclu-sive os concedidos pela ABL.

E por ser convidado para ao lado de nomes do quilate de Machado de Assis, ser considerado Escritor Imortal?

A ABL possui métodos estranhos para a indicação de futuros membros, e não são os mais justos. Como exemplo, não poderia explicar como importantes escritores e poetas não conseguiram dela fazer parte, como Luís da Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Lima Barreto, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, bem mais importantes do que a maioria dos que por lá passaram ou permanecem.

Fale algum fato engraçado relativo a algum momento literário, ou sua criação.

Um dos fatos engraçados foi quando eu estava sozinho em casa, à noite, escrevendo uma parte do meu livro A ostra e o vento, focando o personagem Saulo, que não existe como pessoa física, mas é uma entidade criada pela mente da personagem Marcela e fica circulando a ilha, passageiro do vento. A cena que eu escrevia era a que ele, Saulo, vai penetrando na casa do farol para possuir Marcela. No auge da cena, começo a sentir que Saulo está atrás de mim. Parei de escrever, assustado, fechei o apartamento e corri para a rua.

Você possui algum projeto que pretende ainda desenvolver?

Tenho vários projetos, que ultrapassarão meu tempo de vida. A morte é mero detalhe de uma vida longa, que não deixa de ser uma longa viagem, e enquanto houver luz no mundo estarei acordado. A cultura popular é muito da alma de um povo e tem que ser preservada. A globalização veio como instrumento colonizador de países de cultura mais sólida contra países menos desenvolvidos culturalmente. Se não mantivermos vivos nosso folclore, nossos mitos, heróis e costumes, outros países quererão penetrar no vácuo cultural com seus heróis, folclore, mitos e costumes que nada têm a ver com nossa cultura.

No processo de formação do escritor é preciso que ele leia porcaria?

O aprendiz de escritor deve ler o que lhe caia às mãos. A “porcaria” literária é também útil para nos ensinar o quê e como não devemos escrever. Eu tenho na minha biblioteca uma pequena coleção desses livros, considerando que, como editor durante mais de 20 anos, fui obrigado a ler muitos livros que me chegavam, sem nenhuma qualidade literária, mas sempre úteis. Em verdade, não existe livro ruim, existe um grau de evolução de leitor, o livro “porcaria” pode ser o mais admirado por um leitor iniciante, de pouca cultura como leitor.

Que conselho daria a uma pessoa que começasse agora a escrever?

Meu único conselho a pessoas que começassem agora a escrever seria o de apenas ler os mestres da literatura para conhecer o que foi feito antes dele, e procurar a originalidade. Muitos analistas afirmam que não existe mais a possibilidade de se ser original, porque tudo já foi escrito. Têm razão em termos, mas cada escritor é um universo individual, daí sua originalidade.

O que é preciso para ser um bom escritor?

Para ser um bom escritor, é preciso lembrar que o talento não pode ser passado adiante, não é hereditário nem parte do inconsciente coletivo ou da memória genética, é uma qualidade individual.

Gostaria de acrescentar mais alguma coisa? Outros trabalhos culturais, opiniões, crítica, etc.

Nada a acrescentar, porque as perguntas foram abrangentes e me permitiram respostas abrangentes.

Se Deus parasse na tua frente e lhe concedesse três desejos, quais seriam?

Deus é uma figura emblemática. Digamos que fosse um gênio aprisionado nu-ma garrafa como aparece em um filme de As mil e uma noites: o primeiro desejo seria ensinar o brasileiro a escolher melhor seus governantes para evitar incompetentes na direção do país. O segundo seria varrer da política nacional esses corruptos que já ocupam os postos principais. O terceiro seria disseminar a cultura entre todos os habitantes, para que cada um passasse a entender de moral, ética, estética, com possibilidade de plena escolha das necessidades básicas, evitando a massificação da mediocridade, dominando as noções de nacionalismo, a prática da cidadania.

Rio de Janeiro, 13 de fevereiro, 2010.

Fonte:
Entrevista virtual concedida a José Feldman para o Pavilhão Literário Singrando Horizontes

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Aprendendo sobre Poesia (Parte I)

Pintura de J. P. Martins Barata
Conceituação de Literatura :

Deve-se aos filósofos gregos, conhecidos como sofistas, a primeira tentativa de conceituar literatura. Tomaram eles a palavra "literatura" em seu sentido mais amplo, já que consideravam obra literária qualquer obra escrita que obedecesse a certos preceitos:
– os da invenção: verdade e originalidade;
– os da disposição: variedade dentro da perfeita unidade de exposição;
– os da elocução: pureza da língua, correção gramatical, clareza e harmonia.

Para os sofistas, então, A Arte Literária consiste na realização dos preceitos estéticos da invenção, da disposição e da elocução.

O primeiro a estabelecer uma distinção entre literatura, em sentido restrito (obra estética) e literatura, em sentido amplo (qualquer obra escrita) foi Platão e depois Aristóteles. Para o último: Literatura é a imitação (mimese) da realidade.

Para o filósofo grego, só é obra literária a que imita ou "recria" a realidade. Não se trata, evidentemente, apenas de reprodução servil ou simples cópia da realidade. Trata-se, antes, de imitação, de representação construída pelo autor, de apresentação da realidade segundo a maneira de ver do autor. "O poeta imita, representa uma ação conforme à realidade ou à verdade, mas uma ação construída e arranjada por ele." Essa imitação não se estende, porém, à realidade ou à natureza exterior: ela tem por objeto a vida humana, o homem, seus costumes, seus estados de alma, suas paixões, suas ações. Além disso, realidade aqui tem sentido muito amplo: não apenas aquilo que é, mas também o que normalmente ou moralmente deveria ou poderia ser.

Assim sendo, um tratado de Anatomia, considerado pelos sofistas como obra literária, desde que obedecesse aos princípios já mencionados, não o seria para Aristóteles, pois num tratado dessa espécie não haveria "recriação" da realidade, isto é, a realidade não seria apresentada da maneira pela qual é vista pelo autor; haveria, antes, descrição da realidade tal qual é.

No século XIX, volta a predominar o conceito de literatura em sentido ainda mais amplo que o dos sofistas:

Literatura é um conjunto de produção escrita de um povo, de um indivíduo.

Atualmente podemos encontrar vários conceitos de literatura, em sentido restrito como, por exemplo, o de Fidelino de Figueiredo:

Arte literária é, verdadeiramente, a ficção, a criação duma supra-realidade, com os dados profundos, singulares e pessoais da intuição do artista.

Ou o de Massaud Moisés:

Literatura é a expressão dos conteúdos da ficção, ou da imaginação, por meio de palavras de sentido múltiplo e pessoal.

Observe-se que ambos os conceitos têm, em comum, o fato de considerarem como literatura apenas a ficção ou supra-realidade.

Partindo do pressuposto de que a Literatura - como a Filosofia e as Ciências - é forma de conhecimento, esclarecem-se os conceitos acima determinando-se o tipo de conhecimento usado na elaboração da obra literária, o que, inclusive, vai distinguir a literatura das outras formas de conhecimento.

Há dois tipos de conhecimento:

a- conhecimento conceptual: adquirido através do estudo, da reflexão, da lógica;

b- conhecimento intuitivo: "elaboração espontânea das impressão recebidas".

Para escrever uma obra científica ou filosófica, lançamos mão da realidade existente, do conhecimento conceptual ou adquirido e, às vezes, do conhecimento intuitivo (mas sempre em menor grau).

Evidentemente, não podemos descrever cientificamente uma árvore sem conhecimento de Botânica, conhecimento conceptual, adquirido através do estudo, da observação, da reflexão. Aplicado o conhecimento conceptual à realidade a ser descrita, tratar-se-á, é claro, da classificação da árvore, do tipo de suas folhas e raízes, de sua utilidade, etc. O que houver de intuitivo ou pessoal numa obra desse tipo não se relacionará com a matéria exposta, mas à preferência por determinada disposição da obra, pela escolha de determinada forma ou por certo torneio frasal. A matéria, a essência da obra, será tratada da maneira mais impessoal e científica possível.

Por outro lado, o conhecimento intuitivo permite-nos escrever sobre árvore sem que tenhamos noção alguma de Botânica. Nesse caso, não nos referimos a determinada classe ou a determinado tipo de árvore, mas à árvore em geral. A obra resultante será, então obra literária e não obra científica. Entrará em jogo a visão pessoal que o autor tem da realidade "árvore", visão essa que não necessita do conhecimento conceptual para existir. Este tipo de conhecimento entrará obra em grau muito menor, através, por exemplo, do conhecimento da língua, na capacidade de escolher palavras e coordená-las de modo a tornar inteligível a visão do autor.

Parece evidente também que, usando o conhecimento intuitivo, a realidade "árvore" não será a mesma para todos, pois cada um de nós tem uma visão pessoal, única, da realidade. Se essa realidade é descrita, ela será deformada, não em sua essência, mas na projeção dessa essência. Essa realidade deformada, ou seja, com outra forma, que varia de acordo coma maneira de ser de cada um, de acordo com a educação, com a vivência, com a sensibilidade, essa realidade deformada é a ficção ou supra-realidade.

Nos exemplos abaixo, tomou-se a definição de "rio", segundo o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Caldas Aulete e a visão que alguns autores têm da realidade "rio". No primeiro caso, teremos a definição, baseada no conhecimento conceptual; no segundo, a visão de rio, segundo o conhecimento intuitivo de cada um e que variará de autor para autor:

1- "Rio, s.m. curso considerável de água, que tem geralmente origem nas montanhas e vem recebendo pelo caminho a água dos regatos e ribeiras até lançar-se, por uma ou mais embocaduras, no mar ou noutro rio; grande curso de água em geral".

2- "Aqui e ali fugiam roscas do rio, que carregava águas barrentas. À sua margem multiplicara a vazante espraiados tranqüilos, que cintilavam ao sol. Já audível, o rumorejar da cachoeira encorpava-se a cada passo avante; era uma cortina de sons que se erguia numa nesga do horizonte e que, em pouco, alastrando, ganhava todo o circuito da paisagem, estrondejando compactamente.

Meto-me por um trilho que se desgarra da estrada, em direitura da cachoeira. Cruzo pedestres, já de volta, com sacos e jacás atestados de peixe. Conversam gritando com surdos, para fazerem-se ouvir. Avisto, por fim, constringidos entre paredões de rocha, os rolos de água, despenhando-se. São os degraus em que a torrente rabeia, fustigando o leito, como serpente assanhada a encrespar a cauda nervosa...

A torrente despeja-se aos fluxos e refluxos. Quando a ondada passa, pulam os peixes em cada poço, inumeráveis, projetando-se para o ar, a despedir chispas de prata dos corpos retorsos, nervosamente enovelados e vibráteis. Abaixo da cachoeira, onde a caudal se rebalsa e retoma a majestade de seu curso lento, a água é torva, quase negra; e, ao olhar que lhe escruta a profundeza, essa negura revela-se feita de cardumes de dorsos escuros, que esfervilham, evolucionando processionalmente no bojo dos remansos, esperando o seu turno de lançar o salto. Lateralmente derivam fios escassos, delgadas fitas que traçam sinuosidades no lajedo, fazendo escala em caldeirões escavados na rocha." (Godofredo Rangel, Vida Ociosa, S. Paulo, Comp. Ed. Nacional, 2ª ed., s.d. pág.234).

3- OS RIOS

Magoados, ao crepúsculo dormente,
Ora em rebojos galopantes, ora
Em desmaios de pena e de demora,
Rios, chorais amarguradamente.

Desejais regressar... Mas, leito em fora,
Correis... E misturais pela corrente
Um desejo e uma angústia, entre a nascente
De onde vindes, e a foz que vos devora.

Sofreis da pressa, e, a um tempo, da lembrança...
Pois no vosso clamor, que a sombra invade,
No vosso pranto, que no mar se lança,

Rios tristes! agita-se a ansiedade
De todos os que vivem de esperança,
De todos os que morrem de saudade...

(Olavo Bilac, Tarde, In "Poesias", Rio, Francisco Alves, 13ª ed., 1928, pág. 300)

4- ÁGUA CORRENTE

Água corrente! Água de um rio quieto
Cortando a alma ignorada do sertão!
Levas à tona, aspecto por aspecto,
Os aspectos da vida em refração.
Água que passa... Sonho predileto
Do lavrador que lavra o duro chão.
Trazes-me sempre a evocação de um teto...
Água! Sangue da terra! Religião...
Há na tua bondade humana e leal,
Quando a roda maior moves do Engenho,
Qualquer bafejo sobrenatural...

Ouvindo, ao longe, o teu magoado som,
Água corrente! eu me enterneço e tenho
Uma imensa vontade de ser bom...

(Olegário Mariano, Água Corrente, In "Poesia". Agir, Rio, 1968, pág. 55)

5- O RIO

Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu a terra;

Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino
Distante milênios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.

Um rio nasceu

(Vinícius de Moraes, Antologia Poética, Rio, Editora do Autor, 2ª ed., 1960, pág. 234)

Como se observa, cada um dos autores teve uma visão pessoal e particular da realidade rio, e a projeção da essência dessa realidade é feita diferentemente por eles.

A Godofredo Rangel o rio transmite a impressão de atividade animal, como a lembrar-lhe que a sua majestade não se deve ao aspecto inanimado e ao mesmo tempo grandioso que a Natureza lhe conferiu. Ele é um ser sensível que se enfurece e se acalma ao sabor dos cometimentos.

Para Olavo Bilac o rio é a projeção do seu próprio estado de espírito. É com uma conotação de amarguras, de desejos contrariados e insatisfeitos que a realidade rio se apresenta para ele. Sente-se aí a alma do poeta oprimida pelo inexorável, deixando-se levar pela força incontrolável do desenrolar da vida humana, enxergando a esperança no futuro e a saudade no passado.

Para Olegário Mariano, longe de ser tão-somente a água corrente, o rio é o sonho do lavrador, a evocação protetora de um teto, aquele sangue da terra que plasma o misticismo transcendental da religião. E nesse plano atemporal, o rio, movendo graciosamente o engenho, poupando o braço do homem, transfigura-se na bondade, como a lembrar ao homem a grandiosidade da obra divina, já agora movendo não a roda do engenho, mas o sentimento humano, tocando-o enternecendo-o pelo dom maravilhoso do sublime e da generosidade.

Finalmente, Vinícius de Moraes, mesmo explicando o nascimento, o desenvolvimento e a majestade do rio feito, foi buscar no universo poético a constelação de imagens com que pessoaliza a realidade rio. O poeta parte da causa para o efeito, mostrando que a simples gota de chuva que se projeta de encontro ao solo, seja na flacidez da terra que lhe abre o ventre (atente-se para a singularidade da imagem), seja na dureza das rochas, do ouro, do carvão, do ferro ou do mármore, vai esta gota sequiosa de espaço, em busca da luz, do horizonte largo.

Depois desses exemplos, é fácil concluir que, sendo eles deformações da realidade através de palavras de sentido múltiplo e pessoal, todos se caracterizam como obras literárias.

Do ponto de vista da linguagem, cumpre ainda notar que o signo usado pelas ciências e filosofias é o mais preciso possível, além de tender para o universal. Assim, se se diz que "o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos", enunciamos um princípio em que o sentido de cada uma das palavras será imutável a universal, podendo, inclusive, ser representado por signos que não são palavras.

O mesmo não se dá com a obra literária: nela, as palavras não são univalentes; ao contrário, são polivalentes, isto é, têm mais de um valor, mais de um significado, podendo variar de autor para autor ou de leitor para leitor. E, exatamente nessa possibilidade de escolha, nessa polivalência dos signos, está uma da maneiras de distinguir obra científica ou filosófica de obra literária.

Note-se que nenhum dos conceitos mencionados envolve qualquer idéia de valoração. Preocupou-se, tão somente, em conceituar obra literária e distingui-la de obra não literária. Assim sendo, qualquer obra escrita que ser enquadre nos dois últimos conceitos mencionados pode ser considerada obra literária, sendo seu valor como tal, objeto de outro tipo de estudo.
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continua...
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Fonte:
Colégio Terra Nova.

Antonio Brás Constante (Do copo ao corpo e ao fundo do poço)



O mundo é um lugar fantástico; coisas simples, como o mel, são verdadeiras maravilhas da natureza. A semente que cai na terra germinando em bela planta, como um limoeiro, por exemplo, que se enche de flores e delas surge o fruto. Até a areia pode ter seus grãos transformados em vidro. Pensem na cana-de-açúcar, que uma vez processada vira alimento, combustível e até o álcool de farmácia.

Eis que então surgiu o homem, cuja inteligência tornou-o senhor absoluto de tudo que existe no mundo. Seu gênio criativo foi desenvolvendo as maravilhas modernas que conhecemos, entre elas carros, casas, aviões, etc. Mas alguns indivíduos resolveram fazer diferente. Então o homem pegou o vidro e inventou o copo, dentro dele pôs o mel e o limão. Da cana-de-açúcar fez a cachaça, juntando-a aos demais ingredientes dentro do copo. Bebeu todo o seu conteúdo e viu que aquilo era bom, recomeçando o processo várias vezes, até que quebrou o copo, derramou o mel, cortou o dedo ao fatiar o limão, cambaleou até um canto qualquer e decidiu tomar só a cachaça diretamente do gargalo mesmo.

A partir daí surgiu o “bebum”.

O bebum enche a cara por vários motivos, mas não lembra de nenhum deles, pois justamente bebe para esquecê-los. Isso o torna uma criatura sem passado e muito provavelmente sem futuro. E lá se vai o arremedo de homem, encharcado de bebida, de volta para casa por ter sido expulso do bar. Após toda uma caminhada em “zigue-zague”, com eventuais paradas para recordar o motivo de estar caminhando pela noite ao invés de ter continuado no boteco, o bebum finalmente chega em sua morada, onde acredita que irá encontrar a sua amada esposa (ao menos espera que desta vez aquela seja a sua casa, já que nas outras inúmeras vezes ele bateu em casas erradas).

Para quem não sabe, nessas situações a “amada esposa” é aquela criatura que fica dentro de casa, sentada no sofá de frente para a porta. Geralmente vestida de roupão de dormir, calçando pantufas felpudas cor-de-rosa e que mesmo podendo facilmente abrir a porta para a entrada do bebum, deixa que ele mesmo faça isso. Algo que pode demorar um bom tempo, pois se já foi difícil achar a rua e a casa, agora começa a tarefa mais difícil que é inserir a chave na diminuta fechadura que fica aparecendo de forma dupla e se movendo freneticamente na sua frente. Quando pressente que o seu alcoolizado marido conseguirá finalmente adentrar pela porta, a esposa então se levanta. Permanece com o rosto fechado e os braços cruzados. Sua mão esquerda tamborilando os dedos no cotovelo direito e a mão direita segurando o rolo de macarrão.

A primeira coisa que as mulheres dizem nessas ocasiões é algo do tipo: “sabe que horas são?”. Como se essa informação pudesse ser de qualquer valia para o organismo empapado de bebida que paira na sua frente de pé (tentando manter o equilíbrio), também conhecido como marido. Essas mulheres ainda podem se considerar felizardas. Duro mesmo é quando o bêbado resolve bancar o machão. Quebrando tudo, batendo na mulher e nos filhos. Transformando seu lar em um tormento para todos aqueles que convivem com ele.

Enfim, o mundo é um lugar maravilhoso, cheio de coisas maravilhosas. Infelizmente o alcoolismo não é uma delas, pois, na estrada da vida, a bebida é o combustível que leva qualquer indivíduo velozmente para longe de todas as pessoas que ele ama. Conduz seu destino para um profundo e solitário abismo, localizado no fundo de uma garrafa.

Fonte:
CONSTANTE, Antonio Brás. Hoje é o seu aniversário – PREPARE-SE: e outras histórias. Porto Alegre, RS: Age, 2009.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Moacyr Scliar (A Colina dos Suspiros)



Com um texto bem-humorado, em A Colina dos Suspiros, de 1999, o autor brinca com a paixão dos brasileiros pelo futebol: se eu morrer na sexta-feira quero ser enterrado no sábado, na hora do jogo. Esse amor pelo clube que está presente nas grandes cidades com os seus jogadores famosos mobiliza também o coração dos torcedores dos times dos times prquenas cidades, distantes e humildes.

Até a presença do cartola, figura tão criticada no meio futebolístico, se faz representar na cidade de Pau Seco: o fazendeiro da região praticamente sustenta time, e nenhuma decisão é tomada sem o seu consentimento.

A ironia do texto cativa o leitor atento, e a venda do estádio do Pau Seco para a construção de um cemitério verticalizado, ponto turístico da cidade, recebe do autor tratamento primoroso. A escolha do nome "Pirâmide do Repouso Eterno", eufemismo para cemitério, seduz os habitantes da cidade, pois atenderia à vaidade humana na hierarquização dos sepultamento: grande jogada de marketing da personagem, lance do mais fino humor de Scliar.

Enredo

Futebol, intriga, paixão e mistério são os ingredientes desta história. A história é verídica. Nos anos 70, o Esporte Clube Cruzeiro, de Porto Alegre, vendeu seu estádio e o lugar se tornou um cemitério (João XXIII). Entre os torcedores do time figura o escritor gaúcho Moacyr Scliar, que inspirado no episódio escreveu um romance divertido. Justamente sobre uma equipe decadente cujo campo vai abrigar a Pirâmide do Eterno Repouso. Entre os tipos pitorescos que recheiam a trama, o mais estranho é Rubinho, craque com potencial de gênio, atormentado por assombrações.

A ascendência russa e a cultura judaica são decisivas na obra de Moacir Scliar, assim como os conhecimentos, experiências e vivência de médico sanitarista. Admiração confessa pelos escritores Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Franz Kafka e, na música, por Mozart, Philip Glass e Chico Buarque. Futebol é o tema de A colina dos suspiros, do gaúcho Moacyr Scliar, e a pequena cidade de Pau Seco é o cenário.

Da realidade à ficção, o autor apresenta neste romance a pequena cidade de Pau Seco, com dois clubes de futebol que se digladiam há muito tempo. Futebol em Pau Seco é o que move ou paralisa a cidade. O estádio fica junto do cemitério.

Ali, o Pau Seco Futebol Clube, à beira da falência, cede seu estádio para a construção de um cemitério. A salvação está em Rubinho, um dos trabalhadores da obra, que se revela um extraordinário jogador.

Rubinho, a possível salvação dos paussequenses, é o jogador-revelação da cidade, que sofre uma humilhação pública, pois tem medo de marcar gol em frente ao túmulo do falecido ídolo Bugio. Desaparece, e só tem um desejo - vingança. Trata-se de um momento decisivo em sua vida. Com humor e sutileza, questões éticas, políticas, sociais, familiares, amorosas, o bem e o mal são discutidos.

O cemitério volta a ser estádio. Aí aparece de tudo: coronel todo-poderoso com seus mandos e desmandos, pobre que sai do anonimato para a riqueza sem preparo, maracutaias e espertezas. Esta narrativa terá surpreendentes desdobramentos e também por isso, fascina o público jovem ou, melhor, de qualquer idade. Com humor e sutileza, Moacyr Scliar discute questões éticas, políticas, sociais, familiares, amorosas, o bem e o mal. Com humor leve, essa saborosa crônica cativa pelo ótimo texto, só interrompido pelas risadas que desperta.

Fonte: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/a_colina_dos_suspiros

Vânia Diniz (A Pequena Órfã)


Quando eu era muito pequena não compreendia nenhuma diferença entre as pessoas. Como pertencia a uma classe privilegiada e tudo era realizado com facilidade à minha volta tinha a ilusão de que todos podiam satisfazer suas necessidades básicas e que “Ter uma casa “ era tão natural como nascer.

Crescendo um pouco comecei a me aperceber o meio privilegiado a que pertencia., porém jamais tinha imaginado a separação que poderia haver entre seres humanos . Aprendera teoricamente que éramos todos iguais, porém notara sempre, desde muito cedo que no colégio que estudava havia uma ala separada, freqüentada por meninas que vestiam um humilde uniforme, o contraste do que era o nosso e que costumavam ajudar nos trabalhos domésticos, embora houvesse uma parte do dia que dedicavam aos estudos.

Essas meninas passavam casualmente por nós, alunas, quando estavam fazendo qualquer tarefa, sem, entretanto nos dirigir a palavra ou iniciar qualquer conversa.

Ocorreu que eu simpatizei com uma daquelas meninas, o que foi recíproco. Senti uma estranha amizade por aquela criança, da minha idade, mas tão acanhada, cujos olhos castanhos profundos era marcados pelo estrabismo que não diminuía a meiguice da expressão. Olhamo-nos como duas boas amigas e sempre que podíamos conversávamos, o que era raro, sem que ninguém nos visse. Isso, porém trazia muito medo à minha secreta amiga que temia que as freiras ou professoras nos vissem juntas. E muitas vezes perguntávamos reciprocamente o que isso poderia haver de mal.

Algumas vezes ela me dizia que era pobre e eu rica e eu lhe perguntava o que isso poderia interferir em alguma coisa.

Tinha uma poderosa atração por aquela ala que ficava na parte de cima do colégio e que sabia ser o pequeno orfanato que as freiras mantinham.

Um dia aproximei-me dela na mesma hora que uma professora ia passando e Soninha advertiu-me da possibilidade de sermos punidas de alguma maneira.

- Cuidado. Preciso ir, ela me disse ,entre triste e revoltada.

- Não fique assim, por favor. Elas não podem fazer nada. Afinal, o que tem de mais conversarmos?

- Você sabe que somos diferentes e que isso não será bom para nós duas. Só que me parece, eu serei a maior prejudicada.

Aquelas palavras me confrangeram e me afastei magoada, sem, entretanto tirar da cabeça a idéia de visitar a ala proibida. Pensativamente afastei-me e por um longo período fiquei sentada no pátio do colégio, onde minhas colegas brincavam na hora do recreio, até que uma freira veio saber o motivo do meu afastamento. Nada disse. Tentava digerir as diferenças que ocorriam e que agora já me preocupavam, pois não conseguia esquecer algo que não podia compreender.

Um mês depois procurei me encontrar com a pequena órfã para lhe dar um livro que havia trazido e quando a encontrei vi no seu sorriso a felicidade pelo fato de não a ter esquecido mesmo depois de sua admoestação. Uma freira veio em minha direção e chamou-me, perguntando o motivo pelo qual eu ainda não havia me juntado às minhas colegas. Receosa de que minha amiga fosse advertida encaminhei-me em direção ao corredor que me levaria às salas, não sem antes ser interrogada pelo fato de estar conversando com Soninha. Disse-lhe que achava isso um absurdo e que me fizesse compreender o mal existente . Ela respondeu-me com evasivas, dizendo que um dia eu compreenderia o valor de aprender a seguir regras preestabelecidas. Não concordei com minha mestra, mas como pretendia realizar o desejo secreto de conhecer o outro lado do enorme colégio , calei-me para não chamar atenção.

Muitas vezes, durante aquele período de minha vida, senti o contraste nas coisas que aprendia e na prática do dia a dia. Não tinha mais do que dez anos e experimentava um estranho amargor ao verificar o que considerava , na época uma injustiça e mais ainda pela sensação de impotência que muitos anos depois viria a sentir em vários acontecimentos tristes e que naquela fase não sabia definir nas minhas reflexões o termo apropriado.

Foi num dia que me parecia igual aos outros que resolvi realizar o sonho de muitos meses. Nunca irei esquecer a sensação de leveza e expectativa que me dominou nos momentos que antecederam a minha exploração pela área desconhecida e, no entanto quanto mais se aproximava o momento da minha indisciplina e um medo latente aflorava, mais eu me sentia empolgada.

Estava acostumada a andar pelo colégio e gostava disso, porém naquele dia não sei como havia conseguido uma desculpa para sair da aula momentos antes do seu término.

Costumava correr por aqueles caminhos conhecidos, mas sempre com a presença de um adulto a alguma distância. Assim foi com uma sensação de liberdade que cheguei ao local de várias dependências que se posicionavam na parte mais alta da enorme escada.

Com o coraçãozinho batendo fortemente, as faces em fogo e os olhos atentos e exploradores deparei-me em primeiro lugar com uma sala de estar decorada com gosto e sobriedade e em seguida uma pequena biblioteca que me fascinou enormemente e que jamais esquecerei. Lembrava da enorme biblioteca do colégio, onde gostava de ficar e aquele simpático e acolhedor ambiente me conquistou imediatamente, exatamente pelo contraste impressionante e pela elegância natural que transparecia.

Quando ia encaminhar-me para outro lugar do singular pavilhão deparei-me com Soninha a olhar-me de maneira insólita no corredor largo e curto. Nesse momento arrependi-me realmente daquele passeio idealizado. Ela me fitava com medo.

E senti que me julgava uma traidora pelo modo como a arriscava.

Não queria acreditar naquele olhar e, no entanto a despeito de tudo eu fazia isso por amizade e carinho. Queria demonstrar que éramos iguais, que todos eram iguais. Ela não compreendera? Lentamente voltei-me aguçada pelo barulho que ouvira e vejo minha mestra aproximando-se lentamente no portal do tranqüilo corredor , agora tão assediado.

A sensação de que tinha perdido uma causa e uma amiga pressionava meus ouvidos e notei que as lágrimas envolviam meus olhos com um inexplicável atordoamento. Não sentia nem um pouco de medo de qualquer punição, apenas não tolerava parecer inconseqüente à pequena órfã indefesa.

Mas ela aproximou-se de mim e com um raro sorriso imensamente doce tocou em meu braço.

- Não chore, não, por favor. Não importa o que aconteça. Sei agora que somos todos iguais e que a única coisa que nos separa é a falta de amor de algumas pessoas. Mas só algumas...

Olhei-a abraçando-a enquanto minha mestra se curvava e segurava nossas cabeças juntas , trazendo-as de encontro a seu peito sem coragem de falar.

Muitas vezes iria me lembrar disso com indizível carinho e mais tarde, muito mais tarde, quando fui visitar meu colégio, deparo com uma jovem irmã, que não estudara tanto quanto as freiras titulares, mas que cuidava da portaria.

Olhando-a, revi debaixo da touca religiosa, os olhos estrábicos, porém imensamente ternos e incrivelmente bonitos da pequena órfã.

Depoimento real omito, porém, nomes verdadeiros para preservar-lhes a privacidade.

Fontes:
http://www.vaniadiniz.pro.br/
Imagem = http://migracao.sisfacil.com.br/

Heloisa Buarque de Hollanda (Literatura Marginal)


No quadro que estamos tratando aqui, ou seja, a cultura como exemplo de resistência e produção de novos sentidos políticos em países em desenvolvimento inseridos no contexto da globalização, a literatura também mostra algumas propostas e mudanças estruturais no sentido de sua criação e divulgação. Nestes casos, a própria noção de cultura, e por tabela a de literatura, é forçada a repensar seus parâmetros e até mesmo, – o que mais interessante -, sua função social.

É neste sentido que reafirmo que as características e as estratégias das expressões artísticas vindas das periferias vêm surpreendendo como a grande novidade deste início de século com o desejo de responder ao acirramento da intolerância racial e às taxas crescentes de desemprego provenientes dos quadros econômicos e culturais globalizados.

A literatura também não ficou imune a estes novos inputs. É da tradição da série literária brasileira, uma atenção significativa aos temas da miséria, da fome, das desigualdades sociais e, ultimamente, da violência urbana. E, como já mencionei anteriormente, é da nossa tradição cultural, o engajamento político e o compromisso social do intelectual, neste caso, do escritor. Nesse sentido, um detalhe interessante no conjunto de nossa produção literária é o fato de que, ao contrário de nossos irmãos latino-americanos, nunca tivemos o testemonio como gênero literário. Especialmente depois dos anos 60, o testemonio tornou-se importante por conseguir dar a voz, ainda que de forma indireta, aos segmentos sociais cujo acesso ao livro e à literatura foi negado. Um dos testemonios mais famosos é o conhecidíssimo caso da narrativa da índia guatemalteca Rigoberta Menchú que, ao lado de sua família, desde muito cedo, engajou-se no movimento camponês em defesa dos direitos humanos e da justiça social. Nessa luta, Rigoberta assistiu seu pai, mãe e irmão serem torturados e violentamente assassinados. Mesmo só, Rigoberta prosseguiu na sua militância chegando à liderar, em 1981, um dos movimentos mais radicais de seu país, a Frente Popular. Dez anos mais tarde em 1992, Rigoberta ganharia o Prêmio Nobel da Paz. Em 1983, havia contado sua história para Elizabeth Debray, que anota meticulosa e fielmente seu relato que vai resultar no primeiro registro latino-americano de testemonio, o livro I, Rigoberta Menchú. Desde então, o gênero se espalha pela literatura política latinoamericana mas no Brasil, temos apenas um caso de testemonio, o livro Cícera sobre a experiência trágica de uma empregada doméstica escrito em colaboração com Danda Prado.

A ausência desta forma colaborativa de narração entre nós talvez expresse a lógica da verticalidade da estrutura das nossas relações de poder e, portanto, a facilidade de agenciamentos e composições patronais entre classes sociais no Brasil. O fato é que o escritor sempre foi o sujeito do discurso sobre o pobre e o excluído da sociedade brasileira. (Me parece que neste sentido, o caso da museografia não está muito longe da literatura).

Com a subida da violência em 1987/88, emblematicamente datada pelos arrastões no Arpoador, o interesse da classe media sobre o assunto começa a se manifestar de maneira mais clara e recorrente Em 1993, o tema da violência atinge seu ápice, só que agora a mobilização da opinião pública é produzida no sentido inverso, o da violência policial. É deste ano, em julho, o massacre da Candelária, no qual 8 crianças entre as 50 que dormiam nas escadarias da Igreja foram mortas a tiros por policiais, seguido, em agosto, ou seja, um mês depois, pelo massacre de Vigário Geral responsável pela morte de 21 inocentes também pela polícia.

Especialmente essa segunda chacina vai marcar época na nossa cultural social e política. Intelectuais, artistas e representantes da sociedade civil, unem-se e começam a articular ações concretas em torno de políticas em defesa da cidadania e dos direitos humanos. É desse momento a criação de organizações como o Viva Rio e a realização de marchas pela paz e contra a violência. Não vou me deter nisso aqui porque não é o caso, mas essas ações e, sobretudo, as articulações entre agentes da classe média e as comunidades das favelas e conjuntos habitacionais marcam o início de um tipo de produção cultural até hoje inéditas no Brasil. São produções destas comunidades que interpelam a cultura main stream e tornam-se sucessos de público e de crítica. Do ponto de vista da história literária, dois livros escritos por autores de classe média inauguram uma produção que vai se desenvolver de forma autônoma e com grande força. São eles Zuenir Ventura com Cidade Partida, de 1994, que relata de forma originalíssima, entre o documental e o literário, as ações pós-massacre de Vigário Geral e Estação Carandiru de Dráuzio Varela, publicado em 1999, sobre as condições sub-humanas de vida no maior presídio da América Latina.

As características propriamente narrativas desses dois livros são bastante interessantes e sobretudo sintomáticas. Cidade Partida traz um narrador cuja posição não pode ser confundida com o que seria um livro de denúncia social, no qual o autor se aproxima de seu objeto e através dele traz à tona uma realidade da qual não se teria notícia senão pela posição privilegiada deste mesmo autor. Também não me parece refletir a objetividade necessária e característica do relato jornalístico. Mesmo não sendo um autêntico testemonio, o relato de Zuenir ao longo de toda sua narrativa, mantém uma postura ambígua: opinativa e afetiva – no sentido da noção de valor-afeto de Antônio Negri – e ao mesmo tempo franqueia um espaço de canal aberto para a fala do outro. Zuenir empresta a sua voz à comunidade que examina, até mesmo ao traficante Flavio Negão, um fato inédito nas narrativas jornalísticas ou literárias. Pela primeira vez, o asfalto ouve as razões, os gostos e a dor de uma ampla e diversificada gama de habitantes da favela, os “terríveis agentes da violência”, iniciando um processo de aproximação entre a favela e o asfalto, sem recorrer a falsas colorações heróicas ou vitimizadas.

Em 1999, Dráuzio Varela vai percorrer um caminho parecido com Carandiru. Aqui a escuta médica, de traços confessionais, que implicam no pressuposto da confiança entre quem relata e seu ouvinte, reproduz também de forma não diretamente opinativa o pensamento e o cotidiano do presos em carceragem. Essas são duas obras que, de certa forma, marcam um lugar de relativa abertura da voz da periferia para o mercado das grandes editoras. Ambas tiveram uma ampla recepção de público e consagraram-se como uma forte tendência de mercado.

Entretanto, dois anos antes de Carandiru, em 1997, nosso Mundo das Letras já havia sido surpreendido pela publicação de uma obra de ficção que, em pouco tempo, se tornaria um dos maiores best sellers brasileiros dos últimos tempos. Falo de Cidade de Deus, de Paulo Lins, hoje com 18 edições e traduzido em inúmeros países.

Paulo Lins nos surpreendeu com uma variável totalmente imprevista nos nossos círculos literários: o pobre tem voz e pode até escrever; e mais ainda: escrever um livro de sucesso de público e de crítica. Vou começar pelo começo. Paulo Lins, morador do conjunto habitacional Cidade de Deus, em Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro e local conhecidamente violento da cidade, formou-se na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, trabalhou como professor de ensino médio, época na qual, começou a escrever seus primeiros poemas.

Em certo momento, começa a trabalhar como assistente de pesquisa, fazendo etnografias sobre a comunidade de Cidade de Deus para a Professora Alba Zaluar, que realizava um trabalho sobre a violência urbana. Como Paulo mostrava grande dificuldade em organizar a redação de seus relatórios, Alba Zaluar sugere que ele faça uma redação literária de seus resultados de pesquisa. E assim foi feito. Certa ocasião, Alba mostra os textos de Paulo Lins para o Professor Roberto Schwarz que, imediatamente, identifica naqueles relatórios, seu potencial literário. Sugere então que Paulo faça um romance com aquele material e o apresenta à Cia das Letras, uma das grandes e mais prestigiosas editoras nacionais. Paulo se entusiasma com o retorno de Schwarz, mas percebe imediatamente a importância inaugural desta empreitada e entra, literalmente, em pânico. Foi com enorme esforço e com a ajuda de Crime e Castigo, seu modelo maior, que conseguiu terminá-lo.

Pela primeira vez, e a partir da convivência estreita com as comunidades de periferia, incluindo-se aí bandidos e traficantes, temos uma detalhada anatomia do cotidiano da miséria e do crime no Brasil, agora com as cores da experiência vivida. Já não se trata mais da favela idealizada e separada do asfalto, mas da violência aberta e do inconformismo existentes nos novos conjuntos habitacionais, ou neofavelas, como as identifica o autor. (A senzala e o quilombo).

Com o sucesso definitivo de Cidade de Deus, ficou claro que alguma coisa irreversível havia afetado a criação e o mercado literário. Talvez até um novo cânone (tradição) estivesse em processo de gestação.

Em 2000, surge um novo livro de igual importância ainda que de repercussão distinta da de Cidade de Deus. Trata-se de Capão Pecado de Ferréz (nome de guerra de Reginaldo Ferreira da Silva). Capão Pecado traz um tão refinado quanto impactante retrato de Capão Redondo, um dos bairros de maior índice de violência, tráfico de drogas e criminalidade de São Paulo, onde Ferréz cresceu e mora até hoje. Seus mais de 200.000 moradores não contam com redes de esgoto, nem hospitais, nem assistência de nenhuma espécie. Capão registra a marca sangrenta de 86.39 assassinatos a cada grupo de 100.00 habitantes, muito mais que a média nacional que já é estratosférica para os padrões europeus.

Este livro mostra uma integração bem maior com o universo hip hop do que seu antecessor, Cidade de Deus. Mesmo que não contasse com uma estrutura rítmica e musical organizada como a que encontram os rappers, Ferréz tomou como referência, as letras dos raps, com seu misto de crônica do gheto e convocação dos manos para a ação. Pelo menos, um ponto de partida diverso do cânone letrado. No livro, temos a presença de Mano Brown (líder do grupo de rap Racionais MCs, também residente de Capão Redondo) que comanda as epígrafes de cada capítulo do livro. Os dois juntos tornaram-se, daí em diante, grandes líderes comunitários e fortes referências para jovens sem perspectiva.

O segundo livro de Ferréz, Manual Prático do Ódio, mais agressivo do que o primeiro, descreve o impasse de uma geração que “não mede conseqüências para buscar o que não teve” (sic) Uma geração marcada pelas seqüelas deixadas pelo Estado e pela intensidade do impacto da mídia.

O que surpreende nos livros de Ferréz é, sobretudo, a inversão do lugar da violência. Em vez de ser tema da narrativa, a violência é apenas o entorno, a condição de vida de personagens comuns que, como nós, têm emoções, prezam a família, amam, têm ciúmes, fazem sexo e sonham com um futuro mais tranqüilo. Isso é um choque para o leitor que não vive nos cenários do crime e termina promovendo uma forma de identificação ou, pelo menos, entendimento, do personagem agressor, ainda não conhecida na nossa literatura

Em Ferréz, torna-se mais clara uma característica já presente em Cidade de Deus. O autor narrativamente comprometido com o local de sua fala que se torna porosa e, portanto, excessivamente receptiva da dicção local. Como se o autor dividisse a autoria da obra com o território da ação. Muitas vezes temos a sensação de que Capão Redondo fala através do autor de seu relato. É um caso bem novo e interessante de autoria que por se querer hiperlocalizada traz em sua construção mesma uma das estratégias mais usadas pelas culturas locais em tempos de globalização. O verbo glocalize já entrou para o léxico do mercado cultural destes últimos anos. É importante ainda observar que o eu-coletivo sempre foi uma alternativa eficaz de empoderamento das dicções literárias das minorias de gênero e etnia. Mas não penso ser este o caso de Paulo Lins ou de Ferréz. Mesmo que tragam consigo esta tradição narrativa, no caso dos dois autores claramente a opção é mais para a marcação do local como espaço territorial do que como vozes coletivas como é o caso da literatura de mulheres ou negros.

Com o sucesso, Ferréz recebeu convite de bolsa para estudar literatura numa universidade americana. Não vai. Esta recusa se estende para a oferta de um produtor norte-americano que tenta comprar os direitos de Capão Pecado para o cinema. Ferréz, em entrevista para os jornais, esclarece: “Escrevo para ser lido pela minha comunidade. Meu lugar é aqui. Minha guerra é essa”.

Comprometido com sua comunidade, Ferréz cria, ainda com Mano Brown, o movimento 1 DASUL, uma usina cultural que, entre outras atividades, tem um selo musical próprio e uma grife de moda chamada Irmandade (um conceito fundamental da cultura hip hop) que hoje já ocupa um galpão de 200 m. e outras duas oficinas apenas de costureiras, produzindo uma média de 300 peças por dia. A grife, que se caracteriza por ilustrações que denunciam o sistema, tem uma loja no centro de SP, sua produção é distribuída para sete estados brasileiros, além de deter os direitos de distribuição das marcas de 6 grupos de rap. A grife Irmandade confecciona também cartilhas mensais para um programa contra drogas e pretende abrir uma clínica para tratamento de dependentes. No mesmo embalo, Ferréz organizou dois números especiais da Revista Caros Amigos chamados “Literatura Marginal” com que reúnem e divulgam escritores da periferia, abrindo espaço para nos talentos locais.

Por marginal, Ferréz entende a busca de um lugar na série literária para aqueles que vem da margem. E explica melhor: Literatura marginal é aquela feita por marginais mesmo, até por cara que já roubou, aqueles que derivam de partes da sociedade que não têm espaço. Mas adverte: “Quando a gente consegue alguma coisa por meio da arte, não quer dizer que a vamos sossegar. Temos é que organizar o nosso ódio, direcioná-lo para quem está nos prejudicando. Tudo o que o sistema não dá, temos que tomar”.

Participando, em 2004, de uma mesa no Seminário Cultura e Desenvolvimento, o Ferréz, indignado, disse: ainda que eu escreva prioritariamente para minha comunidade, não quero minha literatura no gheto. Quero entrar para o cânone, para a história da literatura como qualquer um dos escritores novos contemporâneos. E não acho também que minha comunidade deve se limitar à minha literatura, ela tem o direto de ter acesso ao Flaubert. Esta afirmação de Ferréz traz consigo a chave do principal subtexto dos novos projetos culturais vindos da periferia: ou seja a grande mudança se faz na realidade através de uma concreta democratização de expectativas. Pela primeira vez na História, em alto e bom som, o pobre afirma seu desejo e direito ao consumo dos mesmos bens materiais e simbólicos, historicamente usufruídos apenas pelas classes médias e altas. Ele quer o tênis Nike de última geração tecnológica, assim como quer o acesso à informação especializada e à alta cultura. Para essa “democratização de expectativas” talvez nós, intelectuais e artistas de classe média, ainda não estejamos preparados. Na nossa fantasia perversa aceitamos que o pobre sonhe com um Nike, mas não com Flaubert.

Um último livro que vou comentar rapidamente é o Cabeça de Porco que foi lançado esse ano e que tem a autoria de Luiz Eduardo Soares, Celso Athayde e MV Bill. Um sociólogo, uma liderança comunitária, presidente da CUFA (Central Única de Favelas) e um rapper politicamente engajado. Bill e Celso Athayde estavam já há algum tempo fazendo uma pesquisa, com gravações em vídeo, sobre as causas da violência e adesão ao tráfico de drogas entre jovens das favelas e uniram-se a Luiz Eduardo Soares que, além de sociólogo, já tinha sido Secretário de Segurança no governo Garotinho e Secretário Geral de Segurança Pública no governo Lula, portanto com experiência e informações bastante concretas na área da criminalidade. Os três propuseram então escrever um livro a 3 mãos. É verdade que as partes escritas por cada um são assinadas não produzindo, portanto, um tipo de autoria coletiva mais colaborativa. O livro não desafina na passagem de um autor para outro que aparecem intercalados na estrutura narrativa do livro. Um caso de saber compartilhado com igual peso para cada uma das partes, cada autor oferecendo sua dicção e sua competência específicas em pé de igualdade, onde a autoria é menos importante do que o conjunto polifônico do trabalho, que é precisamente onde esta obra tira sua maior força e valor. A leitura de Cabeça de Porco - cujo sentido na favela é o de uma situação da qual você percebe “sem saída” – é uma leitura de um só fôlego. Sem piedade, e levado por um texto profundamente afetivo, o leitor é mergulhado num universo de violência e miséria cuja experiência emocional é totalmente desconhecida das classes média e alta. É interessante lembrar da reação da platéia essencialmente elitizada da última FLIP, à apresentação deste livro com as presenças de Luiz Eduardo e MVBill. Palmas ininterruptas, assobios, gemidos. Que reação teria sido essa? De uma “revelação quase religiosa”? De encantamento com pop stars? Ou o quê? Neste caso em vez querer escolher uma dessas respostas à minha pergunta, prefiro ficar com o grau de intensidade e não ortodoxia dessa manifestação e de sua recepção pelo público. Escolhi comentar esses três livros muito diferentes entre si para pensar um pouco o papel do intelectual contemporâneo.

Antes disso, me permito um exemplo pessoal, bastante recente, e que demonstra minha falta de jogo de cintura para lidar com esses fenômenos: Há dois meses atrás, coordenei pelo meu Programa na UFRJ, uma exposição no Centro Cultural dos Correios chamada Estética da Periferia . Essa exposição foi montada pelo Gringo Cardia que tem dois projetos exemplares: O Kabum e a Fábrica de espetáculos que são laboratórios super equipados com tecnologia de ponta e que forma marceneiros de teatro, iluminadores, cenógrafos, figurinistas, videomakers, fotógrafos e designers. O objetivo desses laboratórios é a formação e a qualificação profissional de adolescentes e jovens das comunidades de baixa renda. A idéia da exposição foi a de que esses jovens escolheriam as peças da exposição, portanto tinham um poder curatorial, e serviriam como assistentes do Gringo na idealização e produção da montagem cenográfica do evento. Bem, não sei se alguém aqui viu a exposição, mas confesso que eu, uma típica intelectual dos anos 60, com todos os ônus que isso representa, fiquei altamente incomodada e surpresa com o resultado. O que eu vi foi uma exposição que passava longe do que eu considero cultura ou a estética da periferia. Era tudo muito colorido, meio fashion, claramente estetizado. Para uma contemporânea do Cinema Novo isso soou desconfortável. Mas, todas as sextas feiras, fizemos uma visita não diria guiada, mas meio em forma de painel de discussões com diferentes segmentos da periferia. Surpresa. Todos se reconheciam e aplaudiam o resultado alegando que esta era a primeira mostra na qual se respeitava a auto estima da periferia. Que trazia o lado positivo desta cultura e espelhava o que há de melhor nas favelas e nos conjuntos habitacionais. Ouvindo isso, tive certeza de que estamos vivendo um momento bastante especial de acesso real e inédito aos sentimentos, ethos e demandas das classes de alto nível de pobreza. Percebi também como é precário nosso poder de tradução cultural entre classes e etnias.

Alguns pontos merecem serem revisitados para um aprofundamento de questões: Em primeiríssimo lugar a questão dos novos papéis do intermediário. Acho que nesse momento estamos aprendendo que em vez de interpretar demandas e traduzir diretamente culturas devemos exercer o papel de negociadores que possam relativizar nossos espaços de fala, – até hoje um patrimônio digamos tombado pela tradição e pela academia -, para outras vozes que começam a surgir com uma saudável agressividade e alto poder de interpelação. Outro ponto seria o de procurar repensar, com alguma radicalidade, as distinções tão estabelecidas entre o que seria uma cultura “alta” e uma cultura “baixa” seja ela uma cultura de massa ou popular. Mais um ponto seria o de ficarmos atentos à tão inevitável quanto interessante mistura, e muitas vezes hibridização mesmo, de gêneros artísticos, mídias e suportes. Em último lugar recomendo uma especial atenção à questão da autoria e da autenticidade tal como a conhecemos, formatada pelo período moderno. Nesse momento de samplers, remixes e pirataria criativa, é fundamental pensar a noção de saber compartilhado e ficar disponível para as novas formas de autoria colaborativa que estão surgindo e que vão sem dúvida forçar uma mudança razoavelmente séria no nosso papel como intelectuais, artistas e formuladores de políticas públicas. E, finalmente, gostaria de passar para vocês o entusiasmo que estou vivendo com esse momento meio assustador, mas certamente atraente. O intelectual não está afinal necessariamente desempregado nesse século XXI. O que ele deve fazer para garantir sua sobrevivência com algum sentido e positividade é, antes de mais nada, uma bela e urgente autocrítica. E, em seguida, testar novas formas de participação e engajamento.

Fonte:
http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Lucy Nazaro (Caderno de Poesias)



PEDRAS BRINCAM DE FAZER AMOR
(À Rishikesh)

Pedras se lavam na intrepidez de águas geladas que fluem
Escutando o cantar suave que escorre tranqüilamente com elas.
Enquanto brincam de fazer amor, misturam fluídos mágicos e riem
Incitando nossas almas a se abraçar mansamente e voar em sonho.

Um grão aqui, outro grão ali, juntam-se em abraços infinitos
Moldando um colchão para pés cansados e corpos inflamados
Que erguem-se das águas e deitam-se infinitamente unidos
Em lânguidos olhares e beijos ocultos pelos que se sentem amados.

O verde se exibe no horizonte da mãe bondosa
Espalhando esparsas folhas que se jogam de galhos vistosos
Querendo fazer parte da paisagem-cama que se faz briosa
Embalando sonhos e sons de amantes desejosos.

O suave encanto do momento marca corações
Que se abraçam timidamente, escondendo as próprias mãos
Um desvencilhar-se não querendo, um correr que busca ficar
E um enorme desejo de amor se escondendo.

As águas verdes com sua calma espumada seguem trilhas tortuosas
Agora testemunhas de um encontro fatal, pleno de medos
Que se enfileirarão também em vales distantes
Aguardando o momento do encontro em que se tornarão amantes.
–––––––

PÉROLA DO UNIVERSO

Uma curva desvia o que era destino,
Uma força, um vento, um siroco menino
Um grão perdido no sideral espaço
Cria a pérola solitária do universo.

Um róseo coração saltita pelos ares
Navega em barco a vela pelos mares
Voa inquieto, solitário burbulhando amor
Enfeitando jardins verdes de colorida flor.

Há um sonho que insiste se mostrar amarelo,
O quero azul, verde ou vermelho, mas sincero
Exibindo a nave do cósmico voante que o leva
E me busca e em dreams suaves nos enleva.

Mais um risco de um vento no universo... e um grão se fará pérola...
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ASAS PARA O AMOR

Asas me levam no horizonte sem fronteiras
Onde água, terra, ar e fogo se abraçam
Lambendo meu corpo flutuante em corredeiras
De mares e rios que passam.

Passo neles, com eles, como cisco imperceptível
Perdido num sopro de vento que me tirou da estrada
Boiando à toa, em tom descoberto, navego incrível
Sem leme, sem rumo, vento, bússola, sem nada.

Sou nada que se esvai no esquecimento da vinda,
Vida escolhida, magia indecifrável de meu caos tão vasto
Perambulando, sozinho, vejo luzes que pupulam risonhas, ainda.
Enquanto escorrego pelas sombras. Não vivo... me arrasto.

Lá no fundo da estrada, onde terra, céu e mar se abraçam
Tem luz, tem ar, tem fogo, tem eu esperando por mim
E, na iluminura de um quadro amarelo, um sorriso, enfim
Entrevejo, você, que me olha, me chama e diz que me ama

Asas me levam, ultrapasso a fronteira, não sou mais cisco, sou pedreira
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Antonio Brás Constante (A Morte Vai Acabar Me Matando)


Para algumas pessoas a morte dá pena, para outras o que se dá é a pena de morte. A morte é imparcial, não escolhe ou dá preferência entre novos ou velhos, bons ou maus, ricos ou pobres, o único critério exigido é que se esteja vivo (favor excetuar desta afirmação todos os zumbis, vampiros e afins que apesar de estarem tecnicamente mortos, também acabam morrendo, como já demonstrado exaustivamente em inúmeros filmes lançados através dos tempos).

O temor da morte causa contradições em nossas percepções, por exemplo, você sabe o que faz uma pessoa pensar que os anjos olham por ela? Sua fé cega. Viver é trocar a eternidade da inexistência por um pouco de essência. Aliás, viver é um ato de rebeldia, de loucura, que se cura com a morte. Como já dizia o humorista Rafinha Bastos, o homem nunca está satisfeito com sua vida, quando está solteiro quer casar, quando está casado quer morrer, e por aí vai.

Um fato interessante é que quanto mais vivos nós tentamos nos sentir, mais perto da morte ficamos, é o que acontece com quem pratica esportes radicais, onde a sede por adrenalina, por querer sentir-se vivo, faz com que estes indivíduos fiquem com suas vidas por um fio, muito próximas do fio afiado da navalha mortal da própria mortalidade.

Pensar na morte é algo que nos faz matar o tempo. Então percebemos que o tempo não morre, nós é que morremos dentro dele. Matamos o nosso tempo, bem como matamos o tempo dos outros através de nossas ações. Quando ficamos horas em uma fila porque o atendente acha que está fazendo um favor trabalhando ali, ele mata não somente o tempo dele, mas de todos que ficam prisioneiros na fila a espera de sua vez de ser atendidos.

Quando algum apressado no trânsito faz alguma manobra irresponsável causando um acidente e isso gera um engarrafamento quilométrico, ele pode até não ter matado diretamente ninguém, mas indiretamente está matando um pouco do tempo de cada um, um tempo que se somado pode equivaler a uma vida inteira.

Enfim, podemos dizer que a vida é uma história com infinitos enredos, TODOS com o mesmo final: A MORTE DO ATOR PRINCIPAL.

Fonte:
Colaboração do Autor