domingo, 25 de abril de 2010

Nilto Maciel (Aqueles Homens Tristes)


Deitou-se ao lado da mulher, como se preparasse para morrer, sem uma palavra, um gesto de carícia, qualquer menção de repetir cotidianas cenas de brutalidade e desejo. Fechou os olhos e imobilizou-se. Queria apenas pensar, pensar ilimitadamente, desprender-se de todos os laços palpáveis de seu conhecimento, perder-se por corredores e labirintos, por horizontes e profundezas. Desordenar as coisas, as pessoas, o mundo. Fazer redondos os quadrados, aparar arestas, encrespar as formas planas, reduzir a montículos as grandes montanhas, agigantar-se. Como em noites idas.

Não conseguia compreender como e por que tudo se deformava e nunca teve coragem de contar nenhuma de suas descobertas a ninguém. A não ser as mentiras menos assombrosas: aquela porção de frutas amontoadas, a paulada na cabeça de fulano, a tempestade, os monstros. Umas já se haviam perdido no tempo ou tinham ocorrido com outras pessoas. Às vezes discutiam, se ameaçavam e até se matavam, raivosos, incapazes de ouvir tantos disparates, insultos, desafios.

E a mulher, os filhos, os companheiros de caça, o resto será que não saía, um pouquinho só, além dos limites da mesmice? Ou também sentiam medo de contar novidades?

De noite, depois de fechar os olhos, entregar-se ao invisível, tudo virava de cabeça para baixo, transformava-se, confundia-se. A mulher se fazia outra, os filhos morriam, sumiam, se batiam contra feras. Os bichos se devoravam, violentos, estraçalhavam-se, sangrentos. Muitas águas, muito fogo, ventanias de arrastar homens e animais. E nada era verdade, quando não era mentira. Sua mentira.

Não, talvez não fosse bem assim. De dia, os olhos viam o mundo e o mundo existia. De noite, os olhos de dentro viam o mundo, porém um outro mundo.

Abriu os olhos, levantou-se, suado e trêmulo, e olhou para as estrelas que piscavam no céu e para o fogo que ardia ao redor das cabanas. A mulher dormia, os filhos dormiam, todos dormiam. Deu dois passos, escutou o grito dos bichos e sentou-se numa pedra. Aonde andavam as milhares de pessoas de minutos atrás? Onde estavam aquelas construções enormes, feito cabanas sobre cabanas? E os objetos que se locomoviam, feito tartarugas de rodas, a conduzir gente, às carreiras? E os outros que voavam, feito pássaros? O que fazia tanta gente ajoelhada, diante de imagens de barro e homens que falavam de “morada do céu”? E por que quase todos não paravam de suar, o dia todo a derrubar árvores, cavar o chão, lavrar a terra, bater ferros, sob as ordens de uns poucos? Que diabo significavam pedaços de papel coloridos e numerados que aqueles recebiam dos chefes e trocavam por comida, roupa, objetos variados de propriedade dos mesmos chefes?

O sol se anunciou vermelho e encantatório por detrás das montanhas. E se lá vivessem aqueles homens tristes?

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contos Reunidos vol.1. Porto Alegre: Bestiário, 2009. p.14.
- Imagem = http://sequicosacro.blogspot.com/

Folclore Indigena (A Mandioca)



Lenda Baré

A filha de um poderoso tuxaua (chefe) foi expulsa de sua tribo, por ter engravidado misteriosamente. Foi viver em uma velha cabana distante. Parentes iam levar-lhe comida para seu sustento. E, assim, a índia viveu até dar a luz a uma linda menina, muito branca, que chamou de Mani.

A notícia do nascimento espalhou-se por toda aldeia, fez o grande chefe esquecer os rancores e, cruzar os rios, para ver sua filha. O avô se rendeu aos encantos da criança que se tornou muito amada. No entanto, ao completar 3 anos, Mani morreu de forma misteriosa, sem nunca ter adoecido. A mãe ficou desolada e sepultou a filha de acordo com o costume, no meio da oca. Ao amanhecer, viu uma plantinha brotar da terra que molhara com suas lágrimas. A plantinha começou imediatamente a crescer e furou o teto da oca, onde floriu e deu pequenos frutos.

A tribo acorreu, maravilhada. Ao revolverem a terra, observaram que a planta saía do ouvido de Mani e mostrava raízes grossas e brancas em forma de chifre. “Manihua!" exclamaram os índios. Então, muitos passarinhos vieram, comeram as frutinhas e saíram semeando a maniva (manihua). Os pássaros de goela branca semearam a maniva branca e os de goela amarela, a maniva amarela. A raiz por ser semelhante a um chifre (aca), foi denominada mandioca (manihuaca).

Lenda Tupi

Há muitos anos passados apareceu grávida a filha de um cacique. Querendo punir o autor da infelicidade de sua filha, o cacique usou de todos os meios para saber quem havia sido o autor da desonra de sua filha que, apesar dos castigos recebidos, nunca disse quem lhe havia tirado a virgindade e que também nunca havia mantido relações sexuais com nenhum homem. O pai resolveu, então, matar, sacrificar a filha, quando, num sonho, lhe apareceu um homem branco que lhe disse para não matar a moça, que ela era inocente. Passados os nove meses nasceu uma menina muito bonita e, para surpresa de todos, de cor branca. A menina que recebeu o nome de Mani, morreu após um ano sem haver adoecido nem sofrido nenhuma dor. Mani foi enterrada na sua própria casa e, de sua sepultura, nasceu uma planta que, por ser desconhecida, nunca foi arrancada. Um dia, a sepultura se abriu e, nas suas raízes, brancas como Mani, os indígenas encontraram alimento para matar a fome. Mandioca, na língua tupi, vem de Mani-oca, que significa casa de Mani. (Dicionário de Folclore para Estudantes)

Lenda Apurinã

Saíra, a filha do chefe Cauré, era a mais bela da tribo. Um dia, porém, ela engravidou sem ter sido dada em casamento a nenhum guerreiro. O desgosto de Cauré foi imenso. Chamou a filha e questionou-a sobre o pai da criança. Saíra emudeceu. A decisão de Cauré foi inexorável. Ela seria banida da tribo e viveria confinada em uma oca no centro da mata. Ela deu a luz a uma linda menina de pele alva e olhos azuis. Ao ver a beleza da neta, Cauré caiu de amores pela menina. Regressou para a tribo com a filha Saíra e a neta Mani. No entanto, ao completar 4 anos, a menina morreu de forma misteriosa. Era costume da tribo Ipurinã cremar seus mortos mas, desolado, Cauré quebrou a tradição e enterrou Mani na entrada de sua oca. Passaram-se quatro luas e da terra em que Mani foi enterrada nasceu uma planta que, depois de um certo tempo, desnudou-se das folhas. Cauré julgava que as folhas fossem eternas e ficou triste pois a planta havia morrido. Resolveu arrancá-la e, ao fazê-lo, viu surgir, à guisa de raízes, grandes tubérculos radiculares. Curioso, resolveu mordê-la e, ao mastigá-la, achou-a deliciosa. Desde então a mandioca passou a ser um importante alimento para os índios.

Lenda Pareci

Zatinaré e sua mulher, Kokoterô, tiveram dois filhos: Atiolô e Zokooiê. Atiolô era menina. Por esta razão o pai não lhe dava a menor importância; tratava-a displicentemente e, se ela dizia alguma coisa, respondia-lhe assobiando. A pobrezinha não se lembrava de uma só vez que tivesse obtido dele uma resposta em palavras. Por isso, vivia triste e acabrunhada, pelos cantos da ocara; não sorria, não brincava... Um dia, tomou uma resolução. Foi a sua mãe e pediu-lhe que a enterrasse viva:

"Talvez desse modo, mamãe, eu possa fazer algo de bom por nosso povo."
"Não fales assim!" Replicou a mãe, aterrorizada com a idéia. "Tremo só de pensar..."

Finalmente, após vários dias de insistência, Atiolô conseguiu convencê-la. A mãe tomou a filha e levou-a até um cerrado. Sepultou-a ali. Mas o sol estava muito quente. A menina sentia muito calor. Queria outro lugar. Novamente, tomou-a Kokoterô; desta vez, escolheu o campo, aberto e de capim verde e macio. Enterrou-a. O calor, porém, era ainda maior. Atiolô não quis ficar ali. Enfim, acharam um bom local. Era o bosque, escuro, silencioso, calmo. Lá, a menininha não sofreria; lá poderia descansar sossegada. Atiolô rogou à mãe que se afastasse. Atendendo-a, a mulher foi-se retirando. Contudo, não pode resistir e voltou-se. Do túmulo, saía uma plantinha que ia crescendo vagarosamente. Correu para a sepultura; a plantinha diminuiu.

Desde esse dia, começou a tratá-la. Todas as tardes, regava-a com água fresca. A arvorezinha desenvolveu-se. Passaram-se várias luas. Quando ninguém esperava, um grito irrompeu do solo. A índia tremeu de medo. Agarrou o arbusto pelo caule e arrancou-o. Que surpresa! A raiz era grande e grossa; a casca era morena, da cor da pele das jovens da taba; a polpa era branca e gostosa. Kokoterô colocou-a nas costas e carregou-a para casa. Mostrou-a aos índios. Estavam todos espantados.

"Nunca vimos isso antes!" Diziam uns para os outros. Provaram-na e gostaram. Era a mandioca, um dos melhores alimentos que tem os índios até hoje. Eis porque a mandioca não cresce bem no campo ou no cerrado. Prefere sempre a sombra da floresta.

Lenda Bakairi

O veado foi beber água e o peixe bagadu (pirara), espécie de bagre brasileiro comum nas Amazônia, que estava preso num regato quase seco, pediu-lhe ajuda: "Faz uma corda de embira e puxa-me até o rio." Lá chegando, o peixe convidou o veado para ir até sua casa no fundo do rio, onde lhe serviu mingau (pogü) e beiju.

O veado, que desconhecia aquelas iguarias, ficou encantado e o peixe levou-o até sua roça de mandioca. Quando o veado foi embora, o peixe presenteou-o com mudas de mandioca, para que as plantasse também. Em casa, o veado fez uma roça de mandioca. E, tornou-se o senhor da mandioca, pois só a sua família a consumia. Um dia, Keri o encontrou e pediu-lhe mandioca. O veado negou, Keri ficou bravo, segurou o veado pelo pescoço e assoprou na sua cabeça, onde surgiu uma galhada. Keri levou a muda de mandioca, deu de presente as mulheres Bakairi e mostrou-lhes, conforme o veado lhe ensinou, o que deviam fazer para não morrer com o veneno.

Fonte:
http://www.lendorelendogabi.com/

Viviane Tremeia (Num Porto Qualquer)


(Conto classificado em terceiro lugar no Prêmio Escriba de Contos 2009)

Tem os olhos fixos num lugar qualquer. Os cabelos opacos, o rosto pálido levemente inclinado para os pés que se mexem vagarosamente, sem parar. Não se ouve um ruído, e a pouca luz que entra pela porta não alcança a poltrona que fica ao lado da cama onde ela tem passado os dias. O que eu faço? Como tirá-la dessa inércia sem tamanho? Desde que este quarto passou a ser o único lugar que existe, ninguém mais acessou o seu humor, nem quase tudo o que lhe fazia ser quem era. Desde o olhar generoso, o riso solto, as palavras certas, aos gestos mínimos como o de abanar as mãos para diminuir nossos problemas ou de empunhar os braços para nos dar uma bronca. Eu fecho os olhos e ainda consigo vê-la caminhando rápido entre uma peça e outra da casa. Ouço os gritos vindos da cozinha quando ela resolvia se enfurecer com o papagaio, presente de grego da minha avó paterna, ou a boa gargalhada quando não cabia de alegria por estar simplesmente viva. Já faz algum tempo que isso tudo seria para sempre. Por uma fresta de intenção, ainda consigo ver minha mãe de ontem nesse pouco dela de hoje que faço força para reconhecer.

Os dois eram inseparáveis. Meu pai sempre fora o porto seguro, o ferrolho, a mão quente, forte e alerta. Ela, um pássaro feliz, que rodopiava pelos caminhos dele como se enfeitasse e colorisse. Um dia, lembro-me de ter entendido o sentido de cumplicidade ao vê-los caminhando pelo jardim da nossa casa. Conversavam baixinho para que não ouvíssemos a conversa. Um parava para podar um galho seco, o outro acompanhava com os olhos admirando o gesto. Meu pai gostava de mexer com carros antigos. Era engraçado vê-la admirando um motor 250-S, como se
realmente a interessasse. Formavam uma dupla e tanto. Não era raro vê-los olhando longamente um para o outro, como se falassem sem o uso das palavras. Minha mãe tinha o poder de alegra-lo. Ele, o dom de aninha-la e adorna-la. Ambos, a sabedoria de serem felizes.

“Verônica, que loucura é essa agora. O que tu estás fazendo?” Foi a única vez que o vi levantar a voz para ela. Enquanto gritava, minha mãe rasgava cada uma das fotos que eles haviam recém trazido da última viagem de férias. Chorando em desespero, com raiva transpirando pelos punhos, ela murmurava quase como num transe que não aceitaria de jeito nenhum. Que deveria ser um equívoco, que não poderia ser verdade. Concentrada na tarefa, ela não vira que todos nós na sala estávamos aturdidos pela cena. Meu pai constrangido se movia em vão de um lado para o outro como se entendesse o que se passava, mas não quisesse nos dizer.

Aquele episódio foi apenas o primeiro de uma sequência de vários bem estranhos, carregados de angústia e incompreensão. Passamos a vê-la falando sozinha pela casa, fitando, por tempos, o pátio dos fundos pela janela da cozinha. Percebemos o descuido com as roupas que usava e evitava qualquer tentativa de conversa que fazíamos.

“Próstata, meus filhos. Estou com câncer de próstata”. Repetia nosso pai completamente arrasado pela notícia. Esfregando as mãos pesadas no cabelo ralo e grisalho e sem coragem para nos fitar os olhos, seu corpo foi se encolhendo e um homem impotente e desatinado surgiu em nossa frente. Era isso. A insistência o fez confessar. Nenhum de nós aguentava mais assistir nossa mãe desaparecendo de si.

Corri para abraçá-lo. Seu choro fora inédito. A estranheza, absoluta e, como um susto, tudo mudara diante de nós. Incólume, a certeza de que jamais seríamos os mesmos e entre nós um olhar conivente de quem busca uma saída.

Ele nunca adoecia. Lembro da mãe me dizendo: “Juliana, tu devias ter puxado ao teu pai, igual ao Murilo”, meu irmão mais novo. “Estás sempre doente, menina!” Já o Tiago, o irmão do meio, era como eu. Qualquer resfriado era motivo para gazear aula. O nosso pai não. Não havia o que derrubasse o homem. Sim, a doença fatal era descabida, um desaforo.

O médico lhe dera um prognóstico vago. Tudo dependeria do tratamento. Meu pai ergueu-se num pacto particular impressionante. Dispondo-se a enfrentar a morte, a dor, a doença. Minha mãe não. Irônica e lentamente como um câncer, a doença dele a consumia, levando-a para longe de nós, para um porto qualquer de endereço desconhecido.

Os dias transformaram-se em meses que tornaram-se anos e minha mãe jamais voltou.
Não houve sequer um especialista que não tivéssemos procurado para tentar resgatá-la.
Assistimos, em pânico, o abandono de si mesma, como um mistério silencioso e cruel.
Num domingo desses, peguei os dois caminhando no pátio como nos velhos tempos.

Meu coração se encheu de esperanças. Meu pai acariciava a cabeleira desajeitada de minha mãe, enquanto a consolava do seu pavor sem volta. Sim, era assim que chamávamos o que nós víamos. Ela não reagia. Via-se que o desvio pego por ela já havia sido por demais percorrido. Os olhos ternos do meu pai clamavam por uma reação. Mostrava-se forte, com a vivacidade que sempre nos balizou. A doença dormia no corpo dele, os sinais eram de um homem absolutamente saudável. Ela, nunca mais voltara.

Estico os lençóis ainda quentes, abro a janela do quarto, olho para ela o mais fundo que consigo pelo tempo que ela me permite. Com meus braços em seu contorno, me faço presente. “Mãe? Fala comigo. Onde te encontro, mãe? Em que porto te perdeste?”

Cinco anos se passaram desde o anúncio da doença do meu pai. Ela pisca os olhos em resposta e um sorriso seu, de canto de boca, me acende.

Fonte:
Grupo Oficina Literária de Piracicaba. http://golp-piracicaba.blogspot.com/

Durval Mendonça (Trovas que eu Dou à Vida !) Parte III


IN MEMORIAM a Renato Vieira. da Silva
Vai, Poeta, deslumbrado,
tu que soubeste entendê-las,
buscar no céu constelado
tua coroa de estrelas!

Exausta de solidões
de um céu escuro e vazio,
a lua busca emoções
no leito alegre do rio.

Quando, amorosas, nos pisam,
em sublime ditadura,
as mulheres escravizam
com desumana ternura.

Essa ternura em teus lábios,
quando me beijas, querida,
faz-me esquecer os ressábios
dos lábios frios da vida.

Chopin!... A tarde morrendo...
Prelúdios tristes, sombrios,
como lágrimas correndo
daqueles dedos esguios...

Rosas rubras, amarelas,
rosas de todo matiz,
não sois, por certo, mais belas
do que a Rosa que me quis.

Na estrada de Samaria,
por um gesto de bondade,
um homem bom construía
a própria imortalidade.

Nossa estória - grande anseio
de coisas inatingidas;
romance deixado a meio
no meio de duas vidas...

Vai a lua em serenata
pela noite andando ao léu,
triste boêmia, de prata,
pelas esquinas do céu.

O nome - por que dizê-lo?
da mulher, hoje esquecida.
Foi sonho... Foi pesadelo?
Ou, talvez, a própria vida?

Dois destinos paralelos,
na trilha de um só desejo,
são duas linhas de anelos
que se tocam pelo beijo.

Pelada, aos gritos, na rua...
Vidraça que se estilhaça...
"A minha, não, é a tua!"
E depois... a infância passa.

Pelo terror que a sublima,
pela incerteza que lança,
vejo a Rosa de Hiroshima
como a Rosa da Esperança...

Sentadinha aí defronte,
professorinha, conduzes
para as luzes do horizonte
meu horizonte sem luzes.

Com humildade e paciência,
como juncos eu me inclino
para abrandar a inclemência
dos vendavais do destino.

Quando uma lágrima desce
dos teus olhinhos levados,
Deus, no céu, sorrindo esquece
de castigar-te os pecados.

Sertanejo amargurado,
teu triste olhar me comove,
quando te vejo ajoelhado
pedindo chuva e não chove.

Teu amor - minha utopia ...
Esfinge dos meus fracassos ...
Pedaço de fantasia,
que se desfaz em pedaços.

Maroto, o sol se deleita
sobre o mar lá no horizonte:
um olho rubro que espreita
a praia nua defronte.

Em meu caminho sem luz,
sem pousada, sem roteiro,
eu não carrego uma cruz,
eu sofro um calvário inteiro.

Bateram, fui ver. À toa...
Ninguém bateu... Ilusão!
Deve ter sido a garoa
fugindo da solidão.

A lágrima, companheiro,
que reflete minha mágoa,
parece mais um braseiro
que uma simples gota dágua.

Alta noite... Um sino plange...
No espaço, a lua silente
traz a arrogância do alfange
no lirismo do crescente.

Quando meus sonhos dispersos
o luar envolve e conduz,
eu me ponho a fazer versos
bebendo taças de luz...

De mãos dadas, lentamente,
vamos indo, aí, à toa...
Garoa molhando a gente...
Que bem me importa a garoa!...

Ah, como são transitórias
minhas raras alegrias!
Elas me vêm de vitórias
num mundo de fantasias.

Às vezes, a conjuntura
faz covardes destemidos.
Eu já vi muita bravura
por privação de sentidos.

As vitórias que eu consigo
neste mundo de ilusões
vêm, por certo, dos perigos
que transponho aos trambolhões

Desprezando minhas queixas,
passando de andar felino,
deixas no rastro que deixas
o rastro do meu destino.

Um burro, ao filho imprudente,
ajuda, num bom conselho:
- Olha, filho, muita gente
não te serve como espelho...

Como é belo, à luz mortiça
do dia, quando desmaia,
ver o mar, que se espreguiça,
rolando, em ondas na praia

Vale de lágrimas, eis
o mundo que nos foi dado...
Tantas regras, tantas leis,
e... cada vez mais errado!

Destino, que a gente inculpa
e nos livra de embaraços,
em ti jogamos a culpa
dos nossos próprios fracassos.

Teu beijo tem tal ternura
e tal calor aparenta,
que sua temperatura
deve andar pelos quarenta.

Engraçado, mas profundo,
não sei se já percebeste:
hoje, as almas do outro mundo
têm medo das almas deste.

Este sorriso em meu rosto
é, por estranha ironia,
mais filho do meu desgosto
do que de minha alegria.

A gente vê a poesia
mais natural e mais pura,
quando a rês, lambendo a cria,
dá-lhe um banho de ternura.

Chuva que empoça no chão
e depois, em mudo anseio,
mostrando ter coração,
reflete o céu de onde veio.

Chica da Silva amorosa,
crioula terna e gentil,
canela tingindo a rosa
numa florada de abril!

Maria gosta de beijo
e diz que sente vergonha.
Maria, pelo que vejo,
tem é medo da cegonha.

0 meu barraco é tão pobre,
que a verdade, nua e crua,
é que meu corpo se cobre
com o manto branco da lua.

Sempre justa e compassiva,
sua vida foi tão breve...
Quando Mamãe era viva,
minha cruz era mais leve.

Garoa - tédio que desce
maçante, fina sem dó...
De tão miúda, parece
que é chuva desfeita em pó...

Quando uma lágrima aflora
em teus olhos muito azuis,
vejo a beleza da aurora
nessa gotinha de luz.

Chico-Rei, tua ternura
por teus irmãos de senzala,
a História, mística e pura,
fez justiça em exaltá-la.

Pela vida a gente avança,
não vamos sós, na verdade;
a nosso lado a esperança
vai arrastando a saudade.

Este amor que me ofertaste
e, comovido, eu aceito
é pedra de luz no engaste
da jóia que tens no peito.

Teu beijo é o determinismo
de milênios num segundo;
sensação rósea de abismo...
e o paraíso no fundo.

Hoje, triste, no meu canto,
revejo minhas memórias
e surpreende- me este pranto,
banhando antigas vitórias.

Se eu pudesse a meu destino,
dar um destino a meu jeito,
o meu mundo de menino
jamais seria desfeito.

Penetrantes, importunos,
belos no verde invulgar,
tens olhos são dois gatunos
das esmeraldas do mar.

Por que minutos felizes,
inconsequente, me furtas,
quando tu mesma me dizes
que as horas boas são curtas?

Saudade, mágoa feliz
que vive em nossa lembrança;
tristeza que se bendiz,
quando se tem esperança.

A vida tem seus volteios:
ora sobe, ora é descida
e arrasta nos seus rodeios
os sem-destino da vida.

Na incerteza dos caminhos,
eu, de revés em revés,
vou arrancando os espinhos
que vão ferindo meus pés.

Em nossa casa singela
do meu tempo de criança,
minha mãe vinha à janela
esperar sua esperança.

Fonte:
– UBT Juiz de Fora

Aparecido Raimundo de Souza (Mula sem cabeça)



Dona Glória bate desesperadamente à porta do quarto de seu filho Fumarato. Não é a primeira vez que o faz. Está preocupada, impaciente, temerosa. Grita para se fazer ouvida:

- O que faz aí trancado, meu filho?

Fumarato em meio a desordem que reina lá dentro, responde, aos berros:

- Estou brincando, mãe.
- Brincando com quem, ou com quê?
- Sozinho.
- Que barulho estranho é esse?
- Não estou ouvindo nada.

À medida que mantém o diálogo, dona Glória insiste com as pancadas. A palma de sua mão inchou e uma vermelhidão muito forte tomou o lugar da cor natural.

- Destranque e venha lanchar. Cetotifeno, seu coleguinha, se abancou à mesa e lhe espera.
- Já vou, mãe, já vou.

A zoada persiste veloz como um tufão que se realça. Parece um ritual macabro. A impressão de dona Glória é a de que alguma coisa sofre horrores nas mãos do menino. O que ela ouve se assemelhava a grunhidos, urros e relinchos de dor e agonia entrecortados, como se um animal indefeso tivesse sendo barbaramente espancado. Mas impossível. O quarto de Fumarato fica no oitavo andar de um prédio de apartamentos. A janela do garoto media com a de outro edifício, de forma que não assiste razão para qualquer pessoa normal aceitar a idéia de que lá dentro tenha sido introduzido um animal, qualquer que seja o tamanho dele. Ademais, não existe como. Além da portaria não permitir, ela ou a empregada teriam se dado conta e brecado. Que alguma coisa diferente se metera lá dentro, não havia mais duvidas. Os estrondos produzidos não deixavam margens a dúvidas. Dona Gloria não ficara louca, Dorinha e Cetotifeno igualmente ouviam os urros e os chiados, sem, no entanto, identificarem sua possível origem. O que mais intrigava: Fumarato não possuía computador, nem aparelho de tevê. Aquele barulho inexplicável não advinha de nenhum jogo caseiro conhecido, menos ainda de um aparelho eletroeletrônico ligado.

- Abra Fumarato.
- Calma mãe!
- Cetotifeno está aqui. O café foi servido. Dorinha trouxe pão quente e a manteiga que você gosta. Venha, filho. Está me ouvindo?

Ouvindo Fumarato certamente estava. E bem. No entanto, alguma coisa fora dos padrões normais rolava à solta. A voz do guri, ora sobressaia aos relinchos, ora sumia de vez. Às vezes a balburdia aumentava de intensidade, outras cessava misteriosamente. Dona Glória não desistia e parecia cosida a parede.

- Filho, pare com essa bagunça.
- Que saco mãe! Vê se me erra.
- Cetotifeno vai subir pra casa dele. Não faça desfeita ao seu colega.
- Não faça o que, mãe?
- Desfeita, filho, desfeita.

Dona Glória se afasta, tolhida por forte indisposição que a invade. Pede socorro a empregada, sem esmiuçar os comentos malévolos que assaltam seu espírito. Dorinha acode e volta à carga pancadeando a porta com mais intensidade.

- Pó, qual é, mãe. Já vou...
- Não é sua mãe, sou eu, Dorinha.
- Me esquece, cara. Vá lavar as loucas.
- Que diabos acontece ai?
- O que você acha?
- Se eu soubesse alguma coisa não te perguntaria. Vamos, fale comigo. O que se passa?
- Dorinha, você não vai acreditar.
- No que não vou acreditar? Tente?
- Pintou aqui no meu quarto uma mula...
- Uma o quê?
- Uma mula.
- Faça me rir, garoto. Saia para o café. Deixe de pilherias. Você está bem grandinho para essas criancices. Vamos, abra...
- Assim que eu der cabo da mula...
- Só falta você me convencer de que essa mula é sem cabeça...
- Pêra ai, Dorinha. Como sabe?
- Adivinhei. Agora saia. Tenho mais que fazer. Preciso limpar seu quarto.

Dona Glória se prostra a porta. Junto dela, Cetotifeno.

- Filho, se não sair daí, interfonarei para a portaria.

Faz um gesto a Cetotifeno para que a ajude e intervenha. Cochicha com o moleque algumas palavras. O guri aquiesce e repete a história de providenciar reforços.

- Fumarato, sua mãe vai mandar subir a galera. Se eu fosse você caia fora daí agora. Abre ai, ô mané! Vou rachar no trecho. Qualé a sua, mano!
- Assim que acabar com a mula sem cabeça eu saio.
- Pirou, meu?
- Não.

As tentativas restam, por fim, infrutíferas. A contenda segue indiferente as batidas e as súplicas dos mais chegados. O subsíndico chega acompanhado com dois funcionários da administração. Os petitórios para que Fumarato deixe o quarto são redobrados. Nada. Dona Glória decide, então, pelo arrombamento. A ninguém mais interessa aquele estado de intranqüilidade. O pessoal põe a porta ao chão. A cena que surge, entrementes, é violenta e brutal. Assas incrédula e chocante. Fumarato está montado, a cavaleiro, sobre o lombo de um bicho enorme, que jaz estirado. Em volta, sangue por todos os lados respingados pelas paredes e móveis. Uma mancha se estende pelo chão e se transforma num desenho de dimensões grotescas escorrendo para o lado onde fica a cama. A cortina é aberta e a janela escancarada. Um “Meu Deus, que horror!” uníssono se faz ouvir em meio a uma onda de terror e ceticismo. A galera petrifica as feições. Dona Glória desmaia. Dorinha lhe segue os passos e vomita as tripas. Cetotifeno sai correndo em desabalada carreira. O pessoal do socorro acode com álcool e massagens. Fumarato realmente havia acabado de matar uma mula. Uma mula enorme. E sem cabeça.

Fonte:
Colaboração do autor.

Antologia Poética de Piracicaba


Ana Marly de Oliveira Jacobino
PARA "BANDEIRA E TODOS OS POETAS"

Que saudades do Brasil.
Lá eu era amigo do poeta.
Lia Andrade, Bandeira, Drummond
No sítio do meu avô Giubbina,
De bermuda, chinela, camiseta,
Caminhava pela grama orvalhada.

Que saudades do Brasil.
Como Lispector fui feliz por lá,
No Brasil tinha grandes aventuras, como,
Coordenar um Sarau Literário repleto
De poemas de quem sabe fazer
Do bom e belo juntando as palavras,
Passar por Passargada e visitar Bandeira.

Conhecerei meninos e meninas brancos, negros, índios...
Vou visitar a casa Encantada de Santos Dumont
Subir os degraus da escada com o pé direito.
Escada, que ele planejou, enquanto fazia o avião.
Ouvirei Vila Lobos, em sua Sinfonia de Brasilidade,
E, no Carnaval de Ouro Preto, descer as ladeiras,
Com as Repúblicas Históricas vestida de colombina.

Que saudade do Brasil.
Lá sou amiga do Bandeira
Sei que seus poemas são belos,
Tem bolsa família para os mais pobres.
E os trens sumiram das estações,
As pistas viraram sambódromos
Os rios, alguns, estão poluídos,
Mas, as pessoas são alegres, assim mesmo.

Quero ir à Sala São Paulo
Cantando o “Trenzinho Caipira”,
E beber uma caipirinha em Piracicaba
Ler as homilias de D. Paulo Evaristo Arns,
Na linda Catedral da Sé.
Vou-me embora para o Brasil!

E , se porventura vier a sentir
Saudade do vento gelado,
De ouvir um Jayhawks, imitar o toque do celular
De ver as árvores sem folhas,
E a grama queimada pela neve tão alva,
Quem sabe volte pra lá.
Talvez! Porque, aqui sou tão feliz.

Que saudade do Brasil. Lá sou amiga do Bandeira
Sei que no Brasil há Antonio, Benedito, João, Pedro.
Terei uma cama de palha de milho,
Cachaça, rapadura, mandioca e um amigo, à quem escrever.
Porque no Brasil, quem é amiga do Bandeira,
É quase, como amigo do Rei.

(Dedico este poema paráfrase ao Poeta rio pedrense "Richard Mathenhauer ")
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Elda Nympha Cobra Silveira
O PIANO

Estou ao piano...
Os sons saem lânguidos,
dolentes, às vezes, em forte,
fortíssimo, ou piano...pianíssimo.

Vou dedilhando
com sentimento,
e percebo que a vida
é um orquestrar constante.
Batendo nas teclas,
pretas ou brancas,
de stacatto em stacatto,
vou vibrando sempre.

No correr dos anos,
quando a angústia chega,
vou para um moderato
e sigo em frente,
mais devagar, mais silente...
E noto que, de repente,
a música da vida é mais terna,
mais amena, então,
meu sentimento se aprimora,
e quero tocá-la toda hora,
para ver se chego, sem demora,
ao gran finale esperado,
porque não quero acabar num desengano.
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Ana Lúcia Stipp Paterniani
PAISAGEM

Um lago que fica
Cada vez mais tranquilo
Até virar espelho
E refletir as flores coloridas
Que estão ao seu redor
E o céu azul

Escolho uma flor branca,
Parece um lírio -
- colírio para os olhos -
- bálsamo para as feridas da alma -
Assim pura, suave e
Perfumada
Assim, simples e bela -
- como eu quando consigo
Simplesmente
Ser.
====================

Benedita(Bêne) Giangrossi
CHORO

Lágrimas choradas
Fazendo pular o peito
Tão desalinhado
De Tanto chorar.
Lágrimas escondidas
Só o peito compreendido,
Desalinhando-se
De tanto chorar.
O banheiro único refúgio
Das lágrimas escondidas;
Alinhando o peito
De tanto desabafar.
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Ivana Maria França de Negri
ASAS DA POESIA

Há um pássaro aprisionado
dentro de mim,
em frêmitos,
que quer voar,
adejar asas,
viajar no azul com o vento.
Quer eclodir seu canto
e espalhar pelo universo
o doce gorjeio
em forma de verso.
E ele se chama Poesia...
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Eliane Vidal
ESPERANDO O BEIJA-FLOR

Um bem-te-vi eu vi
no meu quintal
pousou num galho
que pesado balançou

e eu, que plantei
um pé de primavera
esperando pelo beija-flor
me encantei
com o bem-te-vi

na vida também
temos que admitir
pra ser feliz
temos que chacoalhar
a nossa primavera...
quem dera
pudéssemos ser como
o beija-flor

tão leve, tão solto,
tão livre, envolto
num brilho que é
só seu...
quisera fosse igual o meu
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Bruno Enei: Um Passeio pela Literatura Italiana



artigo de Ismael de Freitas

Livro traz aulas do professor Bruno Enei que foram taquigrafadas por sua aluna Sigrid Renaux entre os anos de 1956 a 58

A autoridade e o conhecimento em Literatura Italiana de um dos maiores intelectuais que Ponta Grossa já teve, aliados à dedicação de uma aluna que taquigrafava e depois datilografava as aulas, resulta agora no livro "Bruno Enei, aulas de Literatura Italiana e Desafios Críticos", da professora Sigrid Lange Scherrer Renaux, distribuído pela Todapalavra Editora.

O projeto do livro foi iniciado em 1983, na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), e através do patrocínio da Itaipu Binacional vai ser distribuído para escolas públicas municipais e estaduais, além de instituições particulares e de Ensino Superior, bibliotecas e instituições culturais de Ponta Grossa.

A embaixada da Itália, consulados daquele país e as principais bibliotecas do Brasil também receberão exemplares. A solenidade que marca o início da distribuição acontece no próximo dia 6 de maio, às 20 horas, no Colégio Regente Feijó, que também foi palco das aulas magistrais de Bruno Enei. No entanto, quem quiser ter o conteúdo da obra poderá baixar gratuitamente na internet, através do site www.todapapavraeditora.com.br.

A obra é um passeio pela Cultura Italiana, desde os tempos medievais, passando pelo Humanismo, Romantismo, Decadentismo até a Literatura após D'Annunzio. O leitor também vai encontrar escritos de Bruno Enei sobre Leonardo da Vinci, Carlos Drumond de Andrade, Literatura dos Campos Gerais e uma carta dirigida à professora Sigrid, então aluna de Bruno Enei, onde ele discorre sobre trechos da "Divina Comédia", de Dante Aliguieri. Finalizando, o livro traz textos publicados em jornais sobre o professor.

As aulas de Bruno Enei foram taquigrafadas entre os anos de 1956 e 58, período em que Sigrid foi aluna de Língua e Literatura Italiana no Curso de Letras Neolatinas da UEPG, naquela época, Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras. "Estudei taquigrafia com a professora Ema de Macedo, esposa do doutor Carlos de Macedo, numa época (década de 50) em que não se usavam ainda gravadores. Como eu também havia feito o curso de datilografia, aproveitei os dois cursos já enquanto estudava na Escola Técnica de Comércio Ponta-grossense. Assim, quando ingressei na UEPG (1956-59), costumava taquigrafar as aulas de Literatura Latina, Portuguesa, Francesa, Espanhola e Brasileira, além da Italiana, porque os assuntos me interessavam", conta.

Erudição e entusiasmo eram suas marcas

A autora diz que havia algo de especial na maneira como Bruno Enei ministrava suas aulas, marcadas pelo entusiasmo. "Tive excelentes professores no curso de Letras Neo-Latinas, como Nicolau Meira de Angelis, Faris A. Michaele e Robert K. Bowles, entre outros. As aulas do professor Bruno, entretanto, caracterizavam-se não só pela profunda erudição e conhecimento de literatura, arte, filosofia e história, mas também pelo entusiasmo contagiante que impregnava todas as suas palavras em sala de aula".

O livro também é o resultado da forte impressão que Bruno Enei causava em seus alunos. "Na realidade, foi a figura humana e o idealismo do professor Bruno que, acredito, marcaram não só a mim mas a todos os meus colegas de faculdade, características essas presentes em todas as páginas do livro publicado", salienta a professora Sigrid.

Texto mostra liberdade de pensamento

Um dos trechos mais impressionantes do livro é parte de um discurso por ocasião da formatura de seus alunos. O professor aconselha aos formandos a matar o "cepticismo, o mecanicismo, a gramática e o ponto". Para a professora Sigrid essa atitude o aproximava dos mestres. "Acredito que todo grande escritor, como todo grande crítico de literatura, está acima e além das regras fixas, seja de gramática, de gênero ou outras. O próprio Guimarães Rosa, numa entrevista, já dizia que '[A] língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a benção eclesiástica e científica. Entretanto, como sou sertanejo, a falta de tais formalidades não me preocupa. Minha amante é mais importante para mim', dizia. O fato de o professor Bruno aconselhar aos formandos 'Matai a gramática', bem revela sua afinidade com os grandes mestres e sua coragem em proclamar isso numa sessão pública de formatura".

Obra quer preservar atividade intelectual

De acordo com a professora Sigrid, a intenção de publicar o livro com as aulas do professor Bruno Enei é uma maneira de reconhecer o trabalho desenvolvido pelo mestre. "Estou extremamente gratificada por poder, através da publicação desses textos, retribuir de alguma maneira todo o conhecimento e cultura que adquiri do professor Bruno. Acredito que a merecida divulgação de seus textos irá aumentar em muito o reconhecimento, para as gerações atuais e futuras, da figura ímpar deste mestre. Gostaria de registrar meus agradecimentos ao professor Hein L. Bowles, como editor da Todapalavra, que me procurou para retomar este projeto de publicação, iniciado em 1983 na UEPG e interrompido por motivos alheios à minha iniciativa. Graças a ele, à sua equipe e ao patrocínio da Itaipu Binacional, o livro finalmente se concretiza", finaliza a professora.

Professor recebe homenagens em Ponta Groosa

O professor Bruno dá nome à Biblioteca Pública de Ponta Grossa e a um evento anual de cultura na cidade. Muitos consideram que ele foi o principal intelectual que a cidade já teve. "Álvaro Augusto da Cunha Rocha, num artigo publicado na imprensa local em 5 de novembro de 1983, já se referiu a Bruno e à sua mulher Maria Enei como 'duas das mais extraordinárias figuras (intelectuais e humanas) que esta cidade já abrigou'. Compartilho dessa opinião" , frisa a professora Sigrid Renaux.

>> A professora Sigrid Paula Maria Lange Scherrer Renaux, carioca, radicada em Curitiba. É licenciada em Letras Neo-Latinas pela UEPG e em Letras Anglo-Germânicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. É mestre em Estudos Anglo-Americanos e doutora em Literatura Norte-Americana e Inglesa pela Universidade de São Paulo (USP) com pós-doutorado pela Universidade de Chicago.

Fonte:
Jornal da Manhã.
http://www.jmnews.com.br/

‘Alice’ volta às livrarias em versões de luxo, mangá e até cordel

A personagem Alice, em ilustração assinada
pelo artista John Tenniel
artigo de Caio Terreran

Aos 145 anos, Alice está em todo lugar. De carona no blockbuster que Tim Burton preparou para a Disney, a história infantil criada em 1865 pelo escritor Lewis Carroll volta a marcar presença nas livrarias do país em um punhado de formatos e interpretações.

Destacados em nichos separados nas lojas, é possível encontrar desde a edição clássica do livro, que reúne as duas partes da história - “As aventuras de Alice no País das Maravilhas” e “Através do espelho” – e conta com as ilustrações originais de John Tenniel, até uma versão luxuosa renovada, com ilustrações de Luiz Zerbini e tradução do historiador Nicolau Sevcenko.

Há ainda edições especiais da obra para crianças, com páginas que “saltam” do livro, passando por guias visuais para acompanhar o filme de Burton, até versões em mangá e cordel de “Alice” (veja infográfico abaixo).

Mais que um conto de fadas

Com pitadas de surrealismo e nonsense, a saga da garota que despenca em um buraco no jardim e acorda em um mundo fantástico se mostra ainda hoje um tema contemporâneo e atraente, defende a professora de literatura da Universidade de São Paulo Maria dos Prazeres Mendes.

"'Alice no País das Maravilhas' é um clássico", categoriza Maria dos Prazeres, especializada em literatura infantil e juvenil. "[No livro] Carroll constrói uma linguagem inovadora, com marcas imensas de absurdo, que resgata a necessidade de uma adolescente em conhecer-se, adentrar a aventura da descoberta."

Para a professora, é partindo desse ponto comum a todos - a necessidade de se desvendar e entender - que a obra se mantém atraente para todas as gerações. "'Alice' não se equipara a contos de fadas. O efeito cômico, burlesco e popular, explicado em notas, continua atual e universal", garante.

Pop que remete ao clássico

O interesse dos leitores por "Alice" não é recente. Livrarias vêm observando crescimento na procura por livros da personagem desde o ano passado. “Foi a partir de setembro, bem antes de o filme ter data de lançamento ou mais informações divulgadas, que notamos um aumento na procura”, conta o responsável por compras da Livraria Cultura Rodrigo Cardoso.

“É interessante ver que hoje há um caminho inverso ao que era percorrido anteriormente: agora, em vez de um filme ‘vir’ do livro, é o livro que tem seu apelo ressuscitado pelo cinema. Enxergamos isso acontecendo até com gêneros: ‘Crepúsculo’, por exemplo, fez subir as vendas de ‘O morro dos ventos uivantes’”, revela Cardoso.

“O universo de partida é pop, mas leva o leitor, geralmente adolescente, a travar contato com obras clássicas e de qualidade”. Segundo Cardoso, desde o começo do ano toda filial da rede de livrarias montou um espaço apenas com livros baseados na mais famosa criação de Carroll.

Movimento semelhante foi feito na Livraria da Vila – que criou uma vitrine especial para “Alice” em sua unidade no bairro de Pinheiros (na zona oeste de São Paulo). “Como muitas editoras têm direitos sobre a história, foi grande o número de lançamentos que recebemos. Dar destaque foi a forma encontrada para contemplar tantas novidades”, diz o funcionário de marketing da empresa Júlio César Brugnari.

E o estoque, inclusive, já foi reforçado prevendo uma procura maior após a estreia do filme, adianta.

Fonte:
G1 Pop & Arte.

sábado, 24 de abril de 2010

Érico Verissimo (Os Devaneios do General)


Abre-se uma clareira azul no escuro céu de inverno.

O sol inunda os telhados de Jacarecanga. Um galo salta para cima da cerca do quintal, sacode a crista vermelha que fulgura, estica o pescoço e solta um cocoricó alegre. Nos quintais vizinhos outros galos respondem.

O sol! As poças d'água que as últimas chuvas deixaram no chão se enchem de jóias coruscantes. Crianças saem de suas casas e vão brincar nos rios barrentos das sarjetas. Um vento frio afugenta as nuvens para as bandas do norte e dentro de alguns instantes o céu é todo um clarão de puro azul.

O General Chicuta resolve então sair da toca. A toca é o quarto. O quarto fica na casa da neta e é o seu último reduto. Aqui na sombra ele passa as horas sozinho, esperando a morte. Poucos móveis: a cama antiga, a cômoda com papeis velhos, medalhas, relíquias, uniformes, lembranças; a cadeira de balanço, o retrato do Senador; o busto do Patriarca; duas ou três cadeiras... E recordações... Recordações dum tempo bom que passou, — patifes! — dum mundo de homens diferentes dos de hoje. — Canalhas! — duma Jacarecanga passiva e ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem primeiro ouvir o General Chicuta Campolargo.

O general aceita o convite do sol e vai sentar-se à janela que dá para a rua. Ali está ele com a cabeça atirada para trás, apoiada no respaldo da poltrona. Seus olhinhos sujos e diluídos se fecham ofuscados pela violência da luz. E ele arqueja, porque a caminhada do quarto até a janela foi penosa, cansativa. De seu peito sai um ronco que lembra o do estertor da morte.

O general passa a mão pelo rosto murcho: mão de cadáver passeando num rosto de cadáver. Sua barbicha branca e rala esvoaça ao vento. O velho deixa cair os braços e fica imóvel como um defunto.

Os galos tornam a cantar. As crianças gritam. Um preto de cara reluzente passa alegre na rua com um cesto de laranjas à cabeça.

Animado aos poucos pela ilusão de vida que a luz quente lhe dá, o general entreabre os olhos e devaneia...

Jacarecanga! Sim senhor! Quem diria? A gente não conhece mais a terra onde nasceu... Ares de cidade. Automóveis. Rádios. Modernismos. Negro quase igual a branco. Criado tão bom como patrão. Noutro tempo todos vinham pedir a benção ao General Chicuta, intendente municipal e chefe político... A oposição comia fogo com ele.

O general sorria a um pensamento travesso. Naquele dia toda a cidade ficou alvoroçada. Tinha aparecido na "Voz de Jacarecanga" um artigo desaforado... Não trazia assinatura. Dizia assim: "A hiena sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários de 93 agora tripudia sobre a nossa mísera cidade desgraçada". Era com ele, sim, não havia dúvida. (Corria por todo o Estado a sua fama de degolador.) Era com ele! Por isso Jacarecanga tinha prendido fogo ao ler o artigo. Ele quase estourou de raiva. Tremeu, bufou, enxergou vermelho. Pegou o revólver. Largou. Resmungou "Patife! Canalha!" Depois ficou mais calmo. Botou a farda de general e dirigiu-se para a Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha veio. Estava pálido. Era atrevido mas covarde. Entrou de chapéu na mão, tremendo. Ficaram os dois sozinhos, frente a frente.

— Sente-se, canalha!

O Mendanha obedeceu. O general levantou-se. (Brilhavam os alamares dourados contra o pano negro do dólmã.) Tirou da gaveta da mesa a página do jornal que trazia o famoso artigo. Aproximou-se do adversário.

— Abra a boca! — ordenou.

Mendanha abriu, sem dizer palavra. O general picou a página em pedacinhos, amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca do outro.

— Come! — gritou.

Os olhos de Mendanha estavam arregalados. O sangue lhe fugira do rosto.

— Coma! — sibilou o general.

Mendanha suplicava com o olhar. O general encostou-lhe no peito o cano do revolver e rosnou com raiva mal contida.

— Coma, pústula!

E o homem comeu.

Um avião passa roncando por cima da casa, cujas vidraças trepidam. O general tem um sobressalto desagradável. A sombra do grande pássaro se desenha lá em baixo, no chão do jardim. O general ergue o punho para o ar, numa ameaça.

— Patifes! Vagabundos, ordinários! Não têm mais o que fazer? Vão pegar no cabo duma enxada, seus canalhas. Isso não é serviço de homem macho.

Fica olhando, com olho hostil, o avião amarelo que passa voando rente aos telhados da cidade.

No seu tempo não havia daquelas engenhocas, daquelas malditas máquinas. Para que servem? Para matar gente. Para acordar quem dorme. Para gastar dinheiro. Para a guerra. Guerras covardes, as de hoje! Antigamente brigava-se em campo aberto, peito contra peito, homem contra homem. Hoje se metem os poltrões nesses "banheiros" que voam, e lá de cima se põem a atirar bombas em cima da infantaria. A guerra perdeu toda a sua dignidade.

O general remergulha no devaneio.

93... Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue. Quando se aproximava a hora do combate, ele ficava assanhado. Tinha perto de cinqüenta anos mas não se trocava por nenhum rapaz de vinte.
Por um instante, o general se revê montado no seu tordilho, teso e glorioso, a espada chispando ao sol, o pala voando ao vento... Vejam só! Agora está aqui, um caco velho, sem força nem serventia, esperando a todo instante a visita da morte. Pode entrar. Sente-se. Cale a boca!

Morte... O general vê mentalmente uma garganta aberta sangrando. Fecha os olhos e pensa naquela noite... Naquela noite que ele nunca mais esqueceu. Naquela noite que é uma recordação que o há de acompanhar decerto até o outro mundo... se houver outro mundo.

Os seus vanguardeiros voltaram contando que a força revolucionária estava dormindo desprevenida, sem sentinelas... Se fizessem um ataque rápido, ela seria apanhada de surpresa. O general deu um pulo. Chamou os oficiais. Traçou o plano. Cercariam o acampamento inimigo. Marchariam no maior silêncio e, a um sinal, cairiam sobre os "maragatos". Ia ser uma festa! Acrescentou com energia: "Inimigo não se poupa. Ferro neles!"

Sorriu um sorriso torto de canto de boca. (Como a gente se lembra dos mínimos detalhes...) Passou o indicador da mão direita pelo próprio pescoço, no simulacro duma operação familiar... Os oficiais sorriam, compreendendo. O ataque se fez. Foi uma tempestade. Não ficou nenhum prisioneiro vivo para contar dos outros. Quando a madrugada raiou, a luz do dia novo caiu sobre duzentos homens degolados. Corvos voavam sobre o acampamento de cadáveres. O general passou por entre os destroços. Encontrou conhecidos entre os mortos, antigos camaradas. Deu com a cabeça dum prisioneiro fincada no espeto que na tarde anterior servira aos maragatos para assar churrasco. Teve um leve estremecimento. Mas uma frase soou-lhe na mente: "Inimigo não se poupa".

O general agora recorda... Remorso? Qual! Um homem é um homem e um gato é um bicho.

Lambe os lábios gretados. Sede. Procura gritar:

— Petronilho!

A voz que sai da garganta é tão remota e apagada que parece a voz de um moribundo, vinda do fundo do tempo, dum acampamento de 93.

— Petronilho! Negro safado! Petronilho!

Começa a bater forte no chão com a ponta da bengala, frenético. A neta aparece à porta. Traz nas mãos duas agulhas vermelhas de tricô e um novelo de lã verde.
— Que é, vovô?

— Morreu a gente desta casa? Ninguém me atende. Canalhas! Onde está o Petronilho?

— Está lá fora, vovô.

— Ele não ganha pra cuidar de mim? Então? Chame ele.

— Não precisa ficar brabo, vovô. Que é que o senhor quer?

— Quero um copo d'água. Estou com sede.

— Por que não toma suco de laranja?

— Água, eu disse.

A neta suspira e sai. O general entrega-se a pensamentos amargos. Deus negou-lhe filhos homens. Deu-lhe uma única filha mulher que morreu no dia em que dava à luz uma neta. Uma neta! Por que não um neto, um macho? Agora aí está a Juventina, metida o dia inteiro com tricôs e figurinos, casada com um bacharel que fala em socialismo, na extinção dos latifúndios, em igualdade. Há seis anos nasceu-lhe um filho. Homem, até que enfim! Mas está sendo mal educado. Ensinam-lhe boas maneiras. Dão-lhe mimos. Estão a transformá-lo num maricas. Parece uma menina. Tem a pele tão delicada, tão macia, tão corada... Chiquinho... Não tem nada que lembre os Campolargos. Os Campolargos que brilharam na guerra do Paraguai, na Revolução de 1893 e que ainda defenderam o governo em 1923...

Um dia ele perguntou ao menino:

— Chiquinho, você quer ser general como o vovô?

— Não. Eu quero ser doutor como o papai.

— Canalhinha! Patifinho!

Petronilho entra, trazendo um copo de suco de laranja.

— Eu disse água! — sibila o general.

O mulato sacode os ombros.

— Mas eu digo suco de laranja.

— Eu quero água. Vá buscar água, seu cachorro!

Petronilho responde sereno:

— Não vou, general de bobagem...

O general escabuja de raiva, esgrime a bengala, procurando inutilmente atingir o criado. Agita-se todo, num tremor desesperado.

— Canalha! — cicia arquejante — Vou te mandar dar umas chicotadas!

— Suco de laranja — cantarola o mulato.

— Água! Juventina! Negro patife! Cachorro!

Petronilho sorri:

— Suco de laranja, seu sargento!

Com um grito de fera o general arremessa a bengala na direção do criado. Num movimento ágil de gato, Petronilho quebra o corpo e esquiva-se do golpe.

O general se entrega. Atira a cabeça para trás e, de braços caídos, fica todo trêmulo, com a respiração ofegante e os olhos revirados, uma baba a escorrer-lhe pelos cantos da boca mole, parda e gretada.

Petronilho sorri. Já faz três anos que assiste com gozo a esta agonia. Veio oferecer-se de propósito para cuidar do general. Pediu apenas casa, comida e roupa. Não quis mais nada. Só tinha um desejo: ver os últimos dias da fera. Porque ele sabe que foi o general Chicuta Campolargo que mandou matar o seu pai. Uma bala na cabeça, os miolos escorrendo para o chão... Só porque o mulato velho na última eleição fora o melhor cabo eleitoral da oposição. O general chamou-o a intendência. Quis esbofeteá-lo. O mulato reagiu, disse-lhe desaforos, saiu altivo. No outro dia...

Petronilho compreendeu tudo. Muito menino, pensou na vingança mas, com o correr do tempo, esqueceu. Depois a situação política da cidade melhorou. O general aos poucos foi perdendo a autoridade. Hoje os jornais já falam na "hiena que bebeu em 93 o sangue dos degolados". Ninguém mais dá importância ao velho. chegou aos ouvidos de Petronilho a notícia de que a fera agonizava. Então ele se apresentou como enfermeiro. Agora goza, provoca, desrespeita. E fica rindo... Pede a Deus que lhe permita ver o fim, que não deve tardar. É questão de meses, de semanas, talvez até de dias... O animal passou o inverno metido na toca, conversando com os seus defuntos, gritando, dizendo desaforos para os fantasmas, dando vozes de comando: "Romper fogo! Cessar Fogo! Acampar".

E recitando coisas esquisitas. "V. Exa. precisa de ser reeleito para glória do nosso invencível Partido". Outras vezes olhava para o busto e berrava: "Inimigo não se poupa. Ferro neles".

Mais sereno agora, o general estende a mão pedindo. Petronilho dá-lhe o copo de suco de laranja. O velho bebe, tremulamente. Lambendo os beiços, como se acabasse de saborear o seu prato predileto, o mulato volta para a cozinha, a pensar em novas perversidades.

O general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isto já lhe pertenceu... Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus candidatos; derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma sova num promotor público que não lhe obedeceu à ordem de ser brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor resistência a uma ordem sua.

Fecha os olhos e recorda a glória antiga.

Um grito de criança. O general baixa os olhos. No jardim, o bisneto brinca com os pedregulhos do chão. Seus cabelos louros estão incendiados de sol. O general contempla-o com tristeza e se perde em divagações...

Que será o mundo de amanhã, quando Chiquinho for homem feito? Mais aviões cruzarão nos céus. E terá desaparecido o último "homem" da face da terra. Só restarão idiotas efeminados, criaturas que acreditam na igualdade social, que não têm o sentido da autoridade, fracalhões que não se hão de lembrar dos feitos dos seus antepassados, nem... Oh! Não vale a pena pensar no que será amanhã o mundo dos maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos Campolargos!

E, dispnéico, se entrega de novo ao devaneio, adormentado pela carícia do sol.

De repente, a criança entra de novo na sala, correndo, muito vermelho:

— Vovô! Vovô!

Traz a mão erguida e seus olhos brilham. Faz alto ao pé da poltrona do general.

— A lagartixa, vovozinho...

O general inclina a cabeça. Uma lagartixa verde se retorce na mãozinha delicada, manchada de sangue. O velho olha para o bisneto com ar interrogador. Alvorotado, o menino explica:

— Degolei a lagartixa, vovô!

No primeiro instante o general perde a voz, no choque da surpresa. Depois murmura, comovido:

— Seu patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa. Seu patife!

E afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos olhos de sáurio.

Fonte:
"Entrevero". Porto Alegre: L&PM, 1984. (edição especial para MPM Propaganda).

André Carneiro (Livro de Poesias)


ARQUEOLOGIA

0 agora é estrela cadente
na subterrânea memória.
Com pincéis delicados
limpo restos à procura da história.
Homem de Piltdown, quero avós primatas.
Arqueólogo amador,
em elos antigos
acrescento asas.
No retrato falta
a ruga deste instante,
o verso vive atrás
sua melhor face.
0 imediato relâmpago submerge em cinzas cinzentas.
A mão com a caneta reinventa no branco do caderno.
Faíscas atrás da testa são
fósseis do amanhã,
neurônios incendeiam
as melhores sinapses
e o poema desaparece
nas placas tectônicas
das bibliotecas.

FIM DO ANO

0 futuro é um pássaro assustado
na direção da minha testa.
Recuo, às vezes, mas a terra
gira satélites implacáveis.
Calendários são
asas na madrugada
dissolvidas à meia noite.
Enterro o relógio,
misturo a matemática,
não adivinho se é sábado, aniversário
ou desfile da independência ou morte,
Chove, as nuvens surpresas
escorrem no cimento,
a terra seca morre sepultada
com seus olhos de areia.
Algumas espécies desaparecem hoje,
os lemingues engolem as ondas
no suicídio inexplicável.
Perdemos o centro do universo,
abandonados pelos deuses
somos primatas apenas.
Falta o alienígena descer
da nave resplandecente
e partir de novo movendo
frustrados tentáculos.
Nossa escrita
nem golfinhos
compreendem,
mas decifro a língua
da abelha dançarina.
Há muita esperança no amor.
Todos se cumprimentam,
mostram dentes limpos,
presentes com largas
fitas vermelhas.
Escrevo o poema adolescente
esquecido na minha inocente cabeça.

FLORESTAS QUEIMADAS

0 correto é sinuoso.
Atravessar o asfalto de olhos fechados
economiza tardias agonias sem alvo.
Cada palavra gritada
tem dicionário diverso.
Letras deslizam pelos olhos,
o som o dente mastiga,
a vogal mordida perfura o tímpano,
o 'não' salta dos lábios
como um rato assassino.
Há um jeito de perfumar sentenças,
mostrar o mel de virgens letras obscenas.
Como os caninos das serpentes,
há letras molhadas
com o ácido corrosivo
do olhar sem brilho.
Calada, sei quando ela
pensa em nuvens macias
ou estrangula insetos
com os pés em curva.
Faço versos com verbetes alheios.
Arrisco confundir
finjo com pretendo,
loucura com a doçura
do momento em segredo,
o espelho no teto e a porta fechada.
Alienígenas sem lábios, canetas e livros
transmitem o que pensam.
Nossas palavras ditas ou escritas
são ininteligíveis fora deste uni
verso de primatas solitários,
sem dinossauros nas
florestas queimadas.

AS RETICÊNCIAS

Anseio manobrar a língua
dos fatos sólidos
e a outra,
do sentimento abstrato,
explosiva no ódio até
a úmida ternura do beijo.
Palavras com cores diversas,
cinzas e vermelhos
marcando sangue na página.
Haverá um teclado
medindo a tensão de cada dedo,
a mágica apaga versos frouxos,
letras borboletas voam
e pregam mensagens
no teto dos amores fugidios.
Tenho só um dicionário roto,
dedos hesitantes e o
sorriso do humor necessário.
Meu diário é suposto,
foto desfocada da
vida em movimento.
Tento transmitir
apelo, medo, desejo,
nas palavras alinhadas,
tímidos soldados
antes da luta.
É raro saber o gosto alheio
pelo abstrato alimento.
Depois de algumas linhas,
o fim vale como vírgula
para o futuro ignoto
das reticências.

ONTEM SOBRE ONTEM

Buzino para a pomba gorda
na rua empoeirada.
Cães não se conformam
com as rodas estranhas.
Reclinada no banco
você se queixa de algo,
talvez a salada murcha
ou minha ânsia de pontualidade,
ou dos franceses vindos para o lanche.
Engulo a estrada,
quase ultrapasso o caminhão fantasma,
mas não enfrento a mão errada
na curva rodovia dos atos.
Abro o portão eletrônico,
o carro arrefece a ânsia cega
e descansa as válvulas de aço.
Seus átomos, prótons e neutrons
sustentam sua matéria sem veias e nervos.
Escadas, fechos e travesseiros
também são feitos com a fórmula
da minha carne primata, de peixe e vertebrado.
0 cenário eu construo,
não importa se gestos são
pensamentos na matéria cinzenta.
Circulo e falo, cada palavra é signo,
sugere algo abstrato ou sólido aparente,
provoca atos da carne ansiosa.
Somos os documentos nas gavetas,
arquivos, fitas magnéticas.
Diante do inquisidor
inventamos as respostas.
Se o espelho devolve outro rosto,
a chave não abre a porta,
o desespero enlouquece com a perda do ontem.
Aqui, agora, duram milionésimos de segundo.
0 calendário imobiliza o passado.
Até o futuro do sonho acordado
mora na memória.
Sinto a batida da veia com o dedo,
o sangue já fugiu do braço,
o beijo caiu no abismo,
o orgasmo é clarão do incêndio,
corre o espermatozóide,
abraça o óvulo, inventa olhos e pernas,
salta para a mãe apertado nos braços,
cresce a cada instante, talvez escreva versos,
rugas, cabelos brancos,
ontem sobre ontem a humanidade inteira.
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Fonte:
Colaboração do autor.

O Outro Lado do Quadro-Negro


Trecho de Pesquisa coletiva realizada como parte integrante da disciplina DISCURSO PEDAGÓGICO, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Letras, ministrada pela Profª Maria Lucia M. Carvalho Vasconcelos, no 1º semestre de 1996. Autores: Cláudio Dubois, Maria da Graça Hernandes Moura, Wanderci José dos Santos, Elisabeth Virag Garcia, Maristela de Carvalho, Maysa Monção Gabrielli, Ana Lúcia Moura de Oliveira, Kátia Kobal e Maria José Costa.

A expectativa de nossa sociedade, quanto à educação, é a preparação de cidadãos/alunos para a vida e sua formação para o exercício profissional, porém observamos vários fatores que têm desmotivado professores e alunos nesse processo, dentre os quais salientamos: a falta de condições materiais à escola, principalmente à escola pública de 1º e 2º graus; o sentimento de impotência, gerado pela ideologia decorrente de um sistema sócio-econômico baseado no desejo (ganância?) do lucro fácil e rápido, em detrimento da qualidade e dos objetivos a que se propõe a educação; a falta de condições instrumentais do professor, que lhe garantam a capacitação adequada para o exercício profissional.

Em busca de soluções que levem modificações ao ensino, ressaltamos a importância daquelas que possibilitem a valorização e o aperfeiçoamento do professor, devido ao seu papel direcionador na relação pedagógica, de inegável relevância política e social.

Dentro desse contexto, torna-se imprescindível a participação das universidades, criando novas metodologias, levantando e discutindo propostas para a melhoria da qualidade da educação, cabendo à sociedade a decisão quanto à efetivação das mudanças.

Os valores e a realidade da educação variam conforme as tendências sócio-históricas que a envolvem, podendo transformar a função de educar em um simples ato mecânico, rotina de sala de aula. Conseqüentemente, o professor deve manter-se atento à sua maneira de ser e agir enquanto profissional.

O reconhecimento da importância do professor no desempenho de seu papel de educador não depende exclusivamente dele, mas principalmente da escola como instituição social, o que somente se efetiva em decorrência dos valores determinados pela sociedade.

a) O DISCURSO PEDAGÓGICO

A teoria da Análise do Discurso que utilizamos para o estudo das falas dos entrevistados segue a linha de tendência européia. Essa linha de tendência apóia-se nos estudos de Bakhtin, que nos apresenta uma abordagem nova da linguagem, ao afirmar que a matéria lingüística é apenas uma parte do enunciado e que existe também uma outra parte, não-verbal, que corresponde ao contexto da enunciação.

Ao ser atribuído valor ao contexto do enunciado, este passa a não ser mais considerado ato individual, pois o indivíduo não estaria constituindo sozinho os significados de seu discurso. Segundo Brandão, essa visão da linguagem como interação social, em que o Outro desempenha papel fundamental para determinar o significado do que se diz, posiciona a enunciação individual num contexto mais amplo, revelando as relações intrínsecas entre o lingüístico e o social.

Para Bakhtin,
"a palavra é o signo ideológico por excelência, pois, produto da interação social, ela se caracteriza pela plurivalência. Por isso é o lugar privilegiado para a manifestação da ideologia; retrata as diferentes formas de significar a realidade, segundo vozes, pontos de vista daqueles que a empregam. Dialógica por naturaza, a palavra se transforma em arena de luta de vozes que, situadas em diferentes posições, querem ser ouvidas por outras vozes." (Bakhtin, 1979).

O discurso seria lugar de conflito, de confronto de idéias, em que as condições sócio-históricas passam a exercer papel fundamental na constituição dos significados que são produzidos.

Para compreendermos o discurso pedagógico, torna-se necessário analisar o contexto social que permite sua produção, o lugar que asociedade destaca para o professor e como o professor nele se insere. Segundo Pêcheux, hános mecanismos de toda formação social regras de projeção que estabelecem a relação entre as situações concretas e as representações dessas situações no interior do discurso.

Qual seria, portanto, a relação entre o discurso do professor e a sociedade?

A nossa sociedade concede ao professor o lugar de autoridade, e autoridade que detém o saber. Esse contexto sócio-histórico permite que seja estabelecida para o professor uma posição privilegiada em relação aos seus alunos, em que o sujeito se pretende único, e porque entende-se dono do conhecimento, faz uso do discurso autoritário. O sujeito que fala é um sujeito ideológico. "Sua fala é um recorte das representações de um tempo histórico e de um espaço social. Dessa forma, como ser projetado num espaço e num tempo e orientado socialmente, o sujeito situa o seu discurso em relação aos discursos do outro." (LUCKESI, 1994)

"Em geral, e a não ser numa minoria dos casos, parece que o senso comum é o seguinte: para ser professor no sistema de ensino escolar, basta tomar um certo conteúdo, preparar-se para apresentá-lo ou dirigir o seu estudo, ir para uma sala de aula, tomar conta de uma turma de alunos e efetivar o ritual da docência: apresentação de conteúdos, controle dos alunos, avaliação da aprendizagem, disciplinamento, etc. Ou seja, a atividade de docência tornou-se uma rotina comum, sem que se pergunte se ela implica ou não decisões contínuas, constantes e precisas, a partir de um conhecimento adequado das implicações do processo educativo na sociedade." (LUCKESI, 1994)

A prática pedagógica diária pouco tem levado em conta a reflexão crítica sobre o que vem a ser o conhecimento e o seu processo. O senso comum pedagógico manifesta um entendimento idealista do que seja o conhecimento. É como se o conhecimento não tivesse história e não tivesse acertos e erros. O que se diz é assumido como se sempre tivesse sido assim. No entanto, o conhecimento tem história, está eivado de desvios por interesses de uns ou de outros. O senso comum interessa à situação conservadora da sociedade em que vivemos, em função de que ela não possibilita o surgimento de uma "massa crítica" de seres humanos pensantes e ativos na sociedade. O senso comum é o meio fundamental para a proliferação da manipulação das informações, das condutas e dos atos políticos e sociais dos dirigentes dos setores dominantes da sociedade.

Este trabalho questiona esse senso comum, procurando esclarecer o papel do professor e sua real importância para a sociedade.

O PAPEL DO PROFESSOR

"O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não pode reconhecer-se no produto de seu trabalho, porque as condições desse trabalho, suas finalidades reais e seu valor não dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário das condições do trabalho. Como se não bastasse, o fato de que o produtor não se reconheça no seu próprio produto, não o veja como resultado de seu trabalho, faz com que o produto surja como um poder que o domina e o ameaça".(CHAUÍ, 1995)

O ser humano é prático, ativo, uma vez que é pela ação que modifica o meio ambiente que o cerca. É um ser que age no contexto da trama das relações sociais, que, em última instância, caracteriza-se pela posse ou não de meios sociais de produção.

Segundo Luckesi, a ação humana exercida coletivamente sobre a natureza, possibilita ao ser humano compreender e descobrir o seu próprio modo de agir. "A ação prática sobre a realidade desperta e desenvolve o entendimento, a capacidade de compreensão e a emergência de níveis de abstração mais complexos".(LUCKESI, 1994)

Paulo Freire associa o conceito de ação ao conceito de compromisso. Segundo ele, compromisso é decisão lúcida e profunda do homem em usar sua capacidade de agir e refletir para se inserir criticamente no mundo numa atitude objetiva de compreensão da realidade, de luta para transpor os limites impostos pelo mundo, e atuando sobre ele, transformá-lo. Essa inserção crítica produz efeitos no exercício profissional que contribuem para o bem estar coletivo.

Porém, historicamente, o ser humano é dimensionado tanto pela complexidade, sagacidade, inteligência, entendimento, quanto pela alienação, pelo afastamento de si próprio, pois que ele é construído pelo trabalho que ao mesmo tempo constrói e aliena. Não podemos separar esses dois elementos, o criativo e o alienado. Esta é a enorme contradição, o trabalho que cria e aliena. Portanto, torna-se normal nos discursos, a contradição. A personalidade humana é contraditória como contraditória é a sociedade. "O ser humano não é o que ele diz de si mesmo, mas aquilo que as condições objetivas da história possibilitam que ele seja. A alienação surge, individualmente, pela alienação do produto do próprio trabalho, da própria ação." (CHAUÍ, 1995)

Qual seria, portanto, o papel do professor e como ele estaria enfrentando essa dualidade de trabalho que constrói e aliena?

O professor, segundo Luckesi (1994), é um ser humano construtor de si mesmo e da história através da ação, é determinado pelas condições e circunstâncias que o envolvem. É condicionado e condicionador da história. Tem um papel específico na relação pedagógica, que é a relação de docência.

Na práxis pedagógica, o educador é aquele que, tendo adquirido o nível de cultura necessário para o desempenho de sua atividade, dá direção ao ensino e à aprendizagem. Ele assume o papel de mediador entre a cultura elaborada acumulada e em processo de acumulação pela humanidade, e o educando.

Ele exerce o papel de um dos mediadores sociais entre o universal da sociedade e o particular do educando. Para tanto, o educador deve possuir algumas qualidades, tais como: compreensão da realidade para a qual trabalha, comprometimento político, competência no campo teórico de conhecimento em que atua e competência técnico-profissional.

A ação docente tem sentido e significado crítico, consciente e explícito. A alienação de seu trabalho ocorre quando ele ignora a realidade à sua volta, e reduz seu trabalho a uma rotina de sala de aula, cujo objetivo restringe-se à mera transmissão de informações, postura que não condiz com seu papel de educador.

Educar é, segundo Freire (1979), completar, porque o homem é ser inacabado, que sabe disso e por isso se educa. O saber se faz através de uma superação constante, por isso não pode o professor se colocar na posição do ser superior que ensina um grupo de ignorantes, mas sim na posição humilde daquele que comunica um saber relativo (é preciso saber reconhecer quando os educandos sabem mais e fazer com que eles também saibam com humildade).

O discurso autoritário perde seu sentido na prática pedagógica. Segundo proposta de Eni (1987), o discurso do professor deve se tornar polêmico, "efeito de sentidos e não transmissão de informação". Tornar o discurso polêmico é "ser ouvinte do próprio texto e do outro". A transformação do discurso pedagógico possibilitará a revisão da práxis pedagógica, que sairá de dentro das escolas para as ruas, invadindo a vida, o mundo. A postura do professor influencia a postura do aluno, e o seu posicionamento de ouvinte, de aceitação da polêmica no diálogo, abrirá o caminho para a crítica e a conseqüente discussão da realidade.

O discurso autoritário não cria contexto para a transformação. serve de instrumento para a acomodação, porque condena o homem à repetição histórica, impedindo a polêmica que questione o sentimento de impotência do homem frente à sua realidade, impedindo o resgate da confiança de que o homem pode criar no presente ações que concretizem um futuro novo, que rompa com a tradição do passado.

O discurso autoritário é surdo. O debate que levanta sobre a realidade e os problemas enfrentados só transfere responsabilidades, e por transferir responsabilidades, não é capaz de mobilizar a sociedade. Se a discussão gira em torno dos problemas educacionais, afirma que o problema é de responsabilidade do aluno que não estuda mais, que não demonstra interesse pelas aulas, da direção da escola que não orienta ou não apóia adequadamente os professores, dos políticos que impõem diretrizes sem ouvir os profissionais da educação, ou dos professores que não se preparam devidamente para exercer o magistério, etc. É um discurso que impede a organização dos homens e sua visão crítica sobre os problemas, impedindo ações eficazes.

O discurso polêmico inverte os efeitos do discurso autoritário. Ele assume a responsabilidade individual pela transformação da realidade coletiva, ao permitir que os homensse ouçam, que os problemas sejam discutidos racionalmente, de forma objetiva, possibilitando a conscientização da realidade, e a enumeração dos obstáculos. Amadurecida a compreensão dos problemas, as causas são relacionadas e os homens podem então elaborar planos de ação conjunta, que viabilizem ações que levem à real solução dos problemas encontrados.

O objetivo da prática pedagógica é promover o homem a sujeito de sua própria educação. Despertar no homem a consciência de que ele não está pronto, despertar nele o desejo de se complementar, capacitá-lo ao exercício de uma consciência crítica de si mesmo, do outro e do mundo.

Segundo Jean Foucambert (1994), todo aprendizado é uma forma de resposta ao desequilíbrio, portanto, desenvolver a consciência crítica acerca do nosso valor como seres humanos e de nosso trabalho enquanto profissionais, é imprescindível para o estabelecimento do equilíbrio na auto-estima humana. A baixa na auto-estima impede o desenvolvimento das potencialidades do homem, reduz sua capacidade de agir porque o faz desacreditar de seu valor e da importância de seu trabalho, portanto se relaciona ao não aprendizado do valor de si mesmo. Por outro lado, a auto-estima elevada se relaciona ao não aprendizado do valor do outro, o que causa distanciamento entre os homens, impede a troca de experiências, o crescimento conjunto, e a união de esforços para a solução de problemas comuns, desvirtuando a finalidade real do trabalho, que é tanto servir à promoção individual quanto ao bem estar coletivo.

Transcrevemos a seguir trechos das falas dos entrevistados desta pesquisa e suas respectivas análises:

"Eu me considero (realizado), sim. faço exatamente o que gosto. não olho as cifras."

O discurso do sujeito reproduz a fala alienante sobre a questão salarial, impedindo a conscientização do profissional acerca do valor de seu trabalho, que necessita ser adequadamente remunerado, condição imprescindível para o equilíbrio em sua auto-estima. Essa fala é ideológica, pois afasta do indivíduo a possibilidade de reivindicação.

(Você recomendaria o magistério ao seu filho?) "...só se for muito predestinado como eu."

Ao afirmar sua predestinação ao magistério, o sujeito faz uso de um discurso que destitui a escolha profissional de seu caráter de liberdade, não a relacionando a uma opção consciente e crítica. É uma fala que procura manter a ordem social, que estipula para o homem uma posiçãopredestinada, impedindo o questionamento dessa ordem e sua mudança. Tal discurso causa um sentimento de impotência frente ao presente e uma acomodação quanto ao futuro.

"Minha expectativa quanto à profissão, na época em que me formei, em termos de ideal, acho que aumentou. Eu ainda acredito nesta profissão. É uma pena que muitos não acreditem."

Esse discurso vincula profissão a ideal, desconsiderando que professores são profissionais, com direito à satisfação de suas expectativas, que dizem respeito a salário e condições de trabalho adequados, não a ideais. É um discurso eufórico, que exacerba a importância do trabalho, em detrimento da discussão sobre as circunstâncias adversas em que esse trabalho é produzido, levando os profissionais a adotarem uma atitude de abnegação, de resignação.

"Sim (considera-se realizado profissionalmente), só sonho em um dia poder ganhar bem e fazer jus ao meu trabalho."

O discurso acima revela um sujeito consciente de que seu salário não corresponde ao seu desempenho profissional. o sujeito apresenta auto-estima equilibrada, pois reconhece seu valor e de seu trabalho. a palavra sonho revela que as dificuldades para a concretização do desejo de ganhar bem não podem ser vencidas individualmente, mas dependem das circunstâncias históricas determinadas pela sociedade, motivo pelo qual seu direito salarial encontra-se reduzido a uma esperança salarial (o que é menor ainda que uma expectativa).

"As cinco profissões básicas são: o professor, o político, o advogado (o homem das leis), o médico e o arquiteto. O professor já existia desde a Grécia. Era o pedagogo. Sabia que o pedagogo era escravo naquela época? O professor sempre teve isso de escravo. Começou daí."

Ao comparar sua profissão à do escravo, o sujeito se coloca numa posição hierarquicamente inferior na relação de poder (só recebe ordens e possui somente deveres). Esse discurso revela uma ideologia alienante, na qual o sujeito se vê sem liberdade de escolha, sem opção de mudança, portanto, acomodado, tendo em vista que a realidade lhe é apresentada como fruto de um passado que tende a perpetuar-se.

"Os tecnocratas estão lá em cima e dizem que tem de ser assim, mas eles não têm a prática que o professor tem, e o professor nunca é consultado para saber o que poderia ser feito. Nunca. Quando vem, vem a ordem e acabou."

Esse é o discurso autoritário reproduzido pelo sistema, no qual os políticos (tecnocratas) não ouvem a opinião do povo, nem a solicitam, tanto em relação à educação quanto aos demais setores de interesse da sociedade. Esse comportamento é fato social, reproduzido freqüentemente nas relações humanas, em casa, no trabalho, na escola, impedindo a liberdade do sujeito de participar, criticar sua própria atuação e a do outro, cobrar melhor desempenho de ambos e construir mudanças que viabilizem uma sociedade onde haja oportunidade de crescimento para todos os homens.

"Eu não queria sair do magistério. em termos de remuneração era superior (o outro emprego), mas quando nos tornamos efetivos a gente se torna mais estável, e naquela época tinha acabado de passar no concurso."

O discurso revela uma prática social: usar a estabilidade no emprego para compensar o baixo salário pago ao profissional, visando mantê-lo trabalhando, mesmo estando insatisfeito profissionalmente.

"Às vezes eu passo no corredor, vejo os professores dando aula, tenho vontade de entrar na sala e me intrometer, porque as meninas têm dificuldades de lidar com os alunosindisciplinados. Eu grito e ai do demônio que continuar bagunçando. Pelo menos é assim que eu faço com os meus. Olha, eles aprendem muito mais que os outros alunos das outras classes, e todos os pais me adoram."

O sujeito se utiliza de um discurso autoritário que estabelece para si uma posição privilegiada em relação ao aluno e aos demais profissionais da escola, e o faz com a aprovação da comunidade em que está inserido. Esse discurso reproduz a ideologia que aliena os envolvidos no processo educacional, ao impedir que o homem se posicione como sujeito no mundo, capaz de criticar tanto sua atuação quanto a do outro.

"Há 20 anos o aluno era compenetrado, responsável e queria aprender. Atualmente existe uma nova clientela, por isso é necessário o professor se atualizar para se adequar à nova realidade. Hoje o professor tem que encontrar diferentes formas para conseguir passar sua experiência. As relações entre as pessoas estão mais frias em conseqüência do número grande de alunos na sala de aula. O professor tem que se adaptar a essas novas mudanças."

Nesse discurso o professor é situado numa posição hierarquicamente superior ao aluno. O significado constituído por esse discurso é ideológico, pois nele o aluno é apresentado como receptor da experiência do professor e é responsabilizado pelas dificuldades atuais enfrentadas por ele ao tentar "passar" sua experiência. O discurso afirma que devido ao fato do aluno não ser mais compenetrado, responsável e nem querer aprender, o professor precisa se atualizar para se adequar à nova realidade e a essa nova clientela. O efeito dessa ideologia é levar o indivíduo a conviver com o problema, sem questionar suas causas, e conseqüentemente, sem encontrar a solução.

"A escola pública é um laboratório. Ela me permitiu errar."

O sentido implícito na afirmação de que a escola pública permite errar é o de que a escola da rede privada não o permite, ou seja, o desempenho do profissional varia de acordo com o público alvo de seu trabalho. o sujeito que fala é ideológico, e essa sua fala é recorte de um contexto social que pratica discriminação social nas relações de trabalho. esse comportamento, consentido pelo discurso, mantém ideologicamente a divisão e a discriminação das classes sociais, alimentando as injustiças.

"(...) Eu seguiria o mesmo processo, com o mesmo entusiasmo, principalmente com o construtivismo. Eu ainda não entendi direito o que é, mas se pudesse recomeçar, eu aplicaria isso na sala de aula."

Esse discurso é ideológico. Seu objetivo é impedir a consciência da necessidade de ser exercitada a capacidade crítica do indivíduo e sua conseqüente participação social. Essa ideologia leva o profissional à alienação e ao descompromisso, pois não lhe confere a responsabilidade na construção dos procedimentos pedagógicos, nem mesmo o questionamento daqueles que são adotados pelo sistema educacional, o que pode levá-lo à aceitação dos métodos porque " a ordem veio e acabou" ou porque está na moda (é elogiado por outros).

"... ao final de cada mês me sinto decepcionada e frustrada, não somente por ser professora, mas também pelos dirigentes do país que não têm seriedade por aqueles que os formaram e os colocaram no poder."

O discurso acima coloca o professor numa posição hierarquicamente inferior na relação de poder. Apesar de formar o outro e elegê-lo, o professor não continua participando do processo (do poder). Esse discurso é ideológico e assujeita o indivíduo, pois não possibilita a consciência de sua capacidade de transformar, de continuar participando do poder, provocando no profissional um sentimento de impotência que afeta sua auto-estima, fato agravado pela insatisfação financeira e profissional, marcadas implicitamente no texto pelas falas: "ao final de cada mês" e "não somente por ser professora".

Fonte:
http://www.espirito.org.br/

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Livro de Poesias)


MORADA

Deixa-me te amar de qualquer jeito;
Arranca, pois, de mim, esta vontade,
Esmaga para sempre esta saudade
Que amarga como fel dentro do peito...

Faze, então, de mim brisa serena
Roçando o teu corpo levemente,
Deixando que este amor tão de repente
Mostre que a loucura vale a pena.

Arranca-me dos lábios o doce mel,
A seiva que alimenta este prazer
E faze-me sentir subindo ao céu!

Não me deixes vagando, assim, ao léu,
Mostra-me com malícia o que é viver,
Descerra do teu corpo a veste, o véu...
Quero hospedar-me todinho em você!
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FONTE DE DESEJOS

Vejo em você a fonte dos meus desejos.
O oásis que me abriga,
A brisa que me sopra a vida,
A água que me mata a sede,
A boca que me enche a boca
De sutis e delicados beijos.

Vejo em você a imensidão do mar,
A única estrela a brilhar,
O campo repleto de flor.
Vejo em você a vida,
A vida que me dá vida,
Que por triste ironia,
É só sonho e fantasia,
Fonte de ilusão perdida,
Que quase me mata de amor...
=============================

SONHO II

Calo-me no teu colo quente,
Conto estrelas lá no céu,
Deixo brincar docemente
Sonhos que vagam ao léu.

Vaga sonho pela vida,
Deixa o amor aportar,
Sê o ninho e a guarida
Dos sonhos que vêm do mar.

Traze a brisa nos teus braços
Com a luz deste luar
E depois num longo abraço
Vamos matar a saudade
E morrer de tanto amar...
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PRESA

Quero ser a sua presa,
Enroscar-me em sua teia
Sem reação ou defesa,
Ser manjar em sua mesa,
Deixar sugar o meu sangue
Até secar minha veia...

Quero ser seu alimento,
Provisão de cada dia,
Ser o seu pão, seu sustento,
E depois do acalento,
Ser sua noite de orgia.
Eu quero ser o seu vinho,
O cálice que inebria.
Ser madrugada, seu dia,
Ser seu parceiro no ninho.
Quero ser a sinfonia
Mais suave e maviosa,
Ser seu verso e sua prosa
Seu delírio e fantasia...
Quero ser a sua rima,
Sua trova e sextilha,
Sua estrada, sua trilha,
Seu fogo ardente, seu climax.
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TEU SORRISO

Esse teu sorriso me arrebata,
enche-me de prazer - faz lembrar a minha infância,
põe-me a recordar, com ingênua graça,
dias felizes, quando era criança.

Teu jeitinho de sorrir me contagia,
alegra meu coração, purifica a minh’ alma...
até hoje não sei como vivia
sem esse sorriso – bálsamo que me acalma.

Guarda–o contigo, com muito amor,
e por onde quer que andes, vá distribuindo,
lança–o como lança a semente o lavrador,
deixe quem colher, retribuir sorrindo.

Continua, no entanto, a distribuir em maior porção,
a todas as crianças que encontrares no mundo,
pois sinto que esta é a maior razão,
deste teu sorriso terno e tão profundo.

Quanto a mim, considera-me também pirralho,
dá–me o teu sorriso em igual porção,
faze-me feliz, como faz o orvalho,
espalhando gotas de sorriso pelo chão.
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PONTO

O ponto que se ponteia
Na ponta de um ponto só
Não firma o laço da peia
Nem ata o laço do nó.

Passarinho que não trina
Fica triste sem cantar,
Mulher de cintura fina
Faz qualquer homem sonhar.

A lixa que vira lixo
Não serve mais pra lixar,
Burro velho sem rabicho,
Mulher feia sem capricho,
Corre o risco de empacar.
Benzedor que benze bem
Cura espinhela caída
Mas não cobra um só vintém
Pelo bem que faz na vida...

Tronco que vira tronqueira
Não deixa ninguém passar,
Cria vinda de parteira
Já nasce querendo andar.

E eu fico aqui matutando,
Louquinho para encontrar
Um final para os meus versos
Que não sei arrematar.
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Fonte:
Colaboração do Poeta.