domingo, 19 de maio de 2013

XXVI Jogos Florais de Ribeirão Preto (Nacional - Resultado Final)

TEMA NACIONAL: MURALHA

CATEGORIA: VENCEDOR
(Troféu)


1º LUGAR

O meu bom senso não cede
a um desejo extravasado...
É a muralha que me impede
seguir um caminho errado!
MARILÚCIA REZENDE
São Paulo/SP

2º LUGAR

Ante os revezes da estrada,
eu só permaneço em pé,
por ter a vida cercada
pela muralha da fé.
MAURICIO CAVALHEIRO
Pindamonhangaba/ SP

3º LUGAR

É muito triste esta vida
de quem implora por pão
e enfrenta a muralha erguida
por quem não tem coração...
IZO GOLDMAN
São Paulo/ SP

4º LUGAR

Para acabar com a guerra,
que traz luto aos corações,
basta que caía por terra
a muralha entre as nações.
OLYMPIO DA CRUZ SIMÕES COUTINHO
Belo Horizonte/ MG

5º LUGAR

Devemos manter vigília
contra o mal aliciador
blindando nossa família
com a muralha do amor.
MAURICIO CAVALHEIRO
Pindamonhangaba/ SP

CATEGORIA: MENÇÃO HONROSA
(Medalha Dourada)

1º LUGAR

Para vencer a batalha,
por um viver mais profundo,
se há de transpor a muralha,
dos desenganos do mundo...
FABIANO DE CRISTO MAGALHÃES WANDERLEY
Natal/ RN

2º LUGAR

Esta muralha que ergueste,
depois de acabado o amor,
sem querer me ofereceste
um mundo cheio de cor!...
MARICLAIRE REZENDE MITNE
Londrina/ PR

3º LUGAR

Ante a muralha não paro
e com fé transponho o muro;
na vida só chega ao claro
quem não tem medo do escuro.
OLYMPIO DA CRUZ SIMÕES COUTINHO
Belo Horizonte/ MG

4º LUGAR

A “muralha” mais temida
é o desprezo que se tem
desgastando a nossa vida
pelos caprichos de alguém.
RUTH FARAH NACIF LUTTERBACK
Cantagalo/ RJ

5º LUGAR

Seja alegre ou seja triste,
a saudade, simplesmente,
quebra a muralha que existe
entre o passado e o presente!
RENATA PACCOLA
São Paulo/SP

CATEGORIA: MENÇÃO ESPECIAL
(Medalha Prateada)


1º LUGAR

Eu não temo o que amealha
as pedras do ódio e rancor,
por crer que qualquer muralha
cede... ante a força do amor!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

2º LUGAR

Enfim eu pude transpor,
até com certa altivez,
essa muralha no amor
que se chama timidez.
ANTONIO CARLOS RODRIGUES
Rio de Janeiro/RJ

3º LUGAR

Teu abraço me agasalha
com carinho tão profundo...
sinto em volta uma muralha,
separando-nos do mundo!...
ROBERTO TCHEPELENTYKY
São Paulo/SP

4º LUGAR

Vence sempre quem labuta.
um mais tarde, outro mais cedo,
e este é o que, antes de ir à luta,
vence a muralha do medo.
JAIME PINA DA SILVEIRA
São Paulo/SP

5º LUGAR

Há, na vida, uma batalha
- parece-me sem igual –
É verdadeira muralha:
a “batalha conjugal”.
DJALDA WINTER SANTOS
Rio de Janeiro/RJ

TROVAS HUMORÍSTICAS

TEMA: CERCA

VENCEDORES (troféu)


1. lugar 

Na cerca ficou provado,
o adultério de Rosinha,
ficou no arame farpado
um pedaço da calcinha.
LUIZ HENRIQUE DOS SANTOS
Pindamonhangaba/SP.

2. lugar

Pular cerca é mau caminho
mas é coisa prazerosa,
pois a fruta do vizinho
sempre é muito mais gostosa.
OLYMPIO DA CRUZ SIMÕES COUTINHO
Belo Horizonte/MG.

3. lugar

A cerca sempre pulando
e a esposa nada falava,
acabou desconfiando...
viu que ela também pulava.
FLAVIO FERREIRA DA SILVA
Nova Friburgo/RJ

4. lugar

Ao dar tudo o que ela quer,
a evitar que o amor se perca,
o corno cerca a mulher
mas a mulher pula a cerca.
DULCÍDIO DE BARROS MOREIRA SOBRINHO
Juiz de Fora/ MG

5. lugar

Sem que nada mais se perca,
nosso amor não tem futuro:
Ela vai pulando a cerca
e eu venho pulando o muro...
SÉRGIO FONSECA
Mesquita/ RJ.

MENÇÕES HONROSAS

1. lugar

Manter a mulher fechada
para que ela não se perca,
não vai adiantar de nada,
pois pode pular a cerca!
JOSÉ MARQUES
Bauru/ SP

2. lugar
“Pular cerca? Isso eu não faço!”
e a vizinha, em ato esperto,
aumenta seu embraço,
deixando o portão... aberto!
JOSÉ OUVERNEY
Pindamonhangaba/ SP

3. lugar

Vendo a vizinha chegar,
ouvindo a porta bater,
Meu amigo, sem pensar,
pulou a cerca e foi ver...
DARI PEREIRA
Maringá/ PR

4. lugar

Ao ver, na cerca, a viuvinha
usando roupa sumária,
diz o esposo da vizinha:
-Que mulher extra...ordinária!!!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/ SP

5. lugar

Desde jovem, muito afoita,
com um, não se contentava;
Já casada, mas na moita,
Sempre ela a cerca pulava.
JESSÉ NASCIMENTO
Angra dos Reis/ RJ

MENÇÕES ESPECIAIS

Pra que a filha não se “perca”,
meu vizinho fica alerta...
De que vale “fazer cerca”
pra quem tem porteira aberta?!
ROBERTO TCHEPELENTYKY
São Paulo/ SP

Em lugar de dar vexame
sobre a cerca do rival,
melhor reforçar o arame
da cerca do teu quintal...
ANTÔNIO AUGUSTO DE ASSIS
Maringá/ PR

No carnaval, animada,
pulou a cerca e assumiu,
deu uma sorte danada,
“Tava” escuro... ninguém viu.
DENISE CATALDI
Condominio Maravista/ RJ

Pulou a cerca a Maria,
mas foi um caso bem sério
Porque ela não sabia
Que ia dar no cemitério
MARINA DE OLIVEIRA DIAS
São Gonçalo/ RJ

Fonte:
Nilton Manoel

sábado, 18 de maio de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Reticências


Encontrei-me hoje no bonde, depois do almoço, com o Nicolau Coelho. Como eu lhe dissesse, um dia, que lera com prazer a sua crônica sobre finados, desse dia em diante se aproximou de mim, e não me vê sem que me venha apertar a mão. Ainda hoje pagou a minha passagem. 

Conheço Nicolau desde menino, fui amigo de seu pai, professor gratuito de um dos seus irmãos, e nunca se julgara obrigado a usar de cortesias comigo. Passei a ser alguém para ele no dia em que lhe elogiei uma crônica, a ele que tantas e tão aplaudidas tem escrito, a ele carregado de glórias. 

Nicolau, vendo-me no último banco, ergueu-se do seu e desfechou-se de lá. Sacou de cinco tiras de papel e disse, com modéstia: 

-"Isto é curtinho... Gostaria que lesse, preciso da sua opinião." 

Fixei os meus olhos nos seus. 

-"Precisa da minha opinião?" 

-"Sim pois..." 

-"Mas isso é grave, meu amigo. Então a minha opinião vale?" 

-"Muito." 

-"Nesse caso, eu necessitaria ler com vagar, com toda a atenção." 

-"Mas, eu tenho de levar o original à folha. É curtinho. Lerá num momento." 

Li. Li e não achei mal. Ao contrário. Certa harmonia agradável e constante, harmonia de forma, harmonia de fundo, feitas de pequenas audácias de pensamento e de expressão, difíceis de orquestrar. Notei apenas um exagero de sinais sintáticos, travessões, virgulas, pontos-e vírgulas, pontos finais, e sobretudo, reticências. 

O abuso das reticências me é particularmente enervante (a não ser quando entram, num sistema personalíssimo de notações, compreensível em certos indivíduos muito irregularmente "individuais".) Ponham quantas forem necessárias para indicar suspensão ou transição inesperada. Mas este costume de derramar ao pé de cada período uma série de pontinhos, para denotar que a frase é aguda, que ali há coisa, que a passagem envolve malícia ou profundidade 

-não, não. 


O leitor (sempre inteligente) irrita-se por não se lhe deixar o gosto de descobrir por si mesmo as sutilezas, as intenções, os valores velados. E depois o autor acaba por botar reticências em tudo, porque é difícil que um autor não veja coisas a realçar em cada um dos seus períodos. Afinal, a função dos pontinhos desaparece, e onde eles não estão é que a gente vai ver se desentoca o melhor. 

A mania das reticências não tarda em semeá-las no próprio pensamento. Recolhem, como as bexigas. E lá se vai o amor da claridade e da justeza, lá vem o prazer vicioso do equívoco, do ambíguo, do flutuante. 

Os antigos não usavam reticências. Faltou-lhes pois uma boa forma de notação, hoje indispensável. Mas o fato é que a estreiteza do sistema de suplementares da palavra tinha as suas vantagens. Forçava-os a tudo exprimir e sugerir com os recursos únicos da frase nua e dos seus ritmos naturais. Em vez de pôr um sinal de ironia tinham de açacalar a ironia através da rede dos períodos. Em vez de indicar com que óculos cinzentos ou vermelhos se havia de ler o capítulo ou a página, davam à página ou ao capitulo a tonalidade sentimental ou mental conveniente. Era o processo direto, que penetrava até às carnes e aos nervos do estilo. 

Podiam falecer-lhe a este as flexibilidades e esfumaturas da sensibilidade moderna, mas ainda isso era uma vantagem, porque era uma disciplina. O escritor havia de se resignar, por muito indeciso e ondulante que tivesse o espírito, ao freio de um métier e havia de viver perpetuamente em busca do límpido, do incisivo, do luminoso. Nunca se entregava senão a construções de pensamento com uma classificação e um fim. Toda a sua aspiração era fabricar obras acabadas, portáteis, que representavam aquisições (como diz Emerson a propósito já não lembra de que autor) coisas que se poderiam sopesar, palpar, pôr no bolso e levar para casa como um utensílio, como uma jóia, como uma fruta. 

Representei tudo isto por outras e mais breves palavras, a Nicolau, cujo valor não deixei de tomar para estribilho. Guardou os originais, acendeu um cigarro e perguntou, com um sorriso reticente: 

-"Então, só um excesso de... pontinhos?" 

"Só, Nicolau, só. Mas isso mesmo, ó Artista, ó Imaginífico, ó Mistagogo! é talvez mania ou sutileza do meu bestunto emperrado. Quando vejo um desses escritos retalhados em pequenos parágrafos cada parágrafo seguido de uma secreção de pontinhos, tenho logo a idéia de uma desfilada de cabritos. 

"Mas, pensando bem, penso que um escritor moço precisa de ter certa porção de cacoetes e singularidades, até de erros, dentro de certo limite porque tudo isto serve exatamente de lhe dar um ar de viçoso verdor e de divinatória inexperiência, a graça do gênio ainda ignorante de si próprio, todo em flor e esperança. 

"As pequenas carepas envolvem uma promessa festiva de aperfeiçoamento ao passo que a lixa insistente e minuciosa, tirando todas as titicas e asperidades da superfície, deixa ver melhor as imperfeições essenciais da matéria e da construção. 

"Esses cacoetes, essas singularidades, esses descuidos constituem uma garantia para o escritor. Ninguém suspeita nele um gramático, um espírito peco e miúdo, preocupado com a língua e outras superfluídades peróbicas. Perdoam-lhe por simpatia, numa absolvição geral, as faltas cometidas, e ainda as que venha a perpetrar. Ao passo que os escritores corretos dão ganas a todo o mundo de lhes descobrir trincas e manchas. 

E isto sempre se consegue: a correção é uma zona ideal de equilíbrio instável..." 

Ia eu assim dissertando, alheio ao bonde e ao tempo, quando uma brecada instantânea fez estralejar todo o arcabouço do carro. Gritos, borborinho. O bonde havia pegado uma carroça pela rabeira e arremessado esse veículo, com os seus dois animais, a três metros de distância. 

A carroça adernara, com uma das rodas meio fora do eixo, e os burros, presos ao correame e aos varais abatidos, resfolegavam largamente, com estremeções espaçados de toda a courama. 

O pior é que o próprio carroceiro, cuspido para o chão, raspara a poeira e se estatelara ao lado, a verter sangue da cabeça, as mãos meio enclavinhadas, o peito a arquejar sob a camisa aberta. 

Magotes de curiosos iam e vinham enquanto dois homens de maior iniciativa tratavam de recolher a vítima a uma casa próxima e de levantar os animais. 

Válidos, prestantes bons homens! Surgiram de repente da massa amorfa, como os que sabemquerer e mandar. E eu era da massa amorfa, imprestável distraída, hesitante. Ó céu, cada dia me reservas uma humilhação! 

Depois, que, vinda a polícia e o carro da assistência, o bonde pôde continuar a viagem, os passageiros consternados ainda pormenorizavam o ocorrido, explicavam o desastre, discutiam as culpas. Quanto a mim, conservava-me quieto, com a visão pasmada daquele homem caído no chão, a derramar sangue na poeira, e do triste do motorista que parecia fulminado de estupor, na balorda prostração do animal tocado de raio. 

Nicolau catucou-me de repente no braço. Voltei-me para ele como quem despertava. 

-"Mas!... quer que lhe diga?" (recomeçou) "não estou de acordo com o senhor." 

E tinha um arzinho entre provocador e mofento. 

-"Comigo?! Em que?!..." 

- "Nesse negócio de reticências. A mim me parecem indispensáveis. A questão está naquilo que se pretende dizer ou sugerir." 

E por aí foi, a traçar com o indicador o desenho dos argumentos. Dei-lhe sempre razão até o termo do discurso e da linha. "Sim. Claro. Sim! Pois não. Sim, sim!" 

Afinal, disse um adeus veloz a esse espírito gentil e corri a um café, onde fui tomar a minha xícara em silêncio e em penitência, e reatar os fios inacabáveis do meu perene diálogo comigo mesmo -com o único indivíduo que não se aborrece quando o contrario, com o único indivíduo que me aborrece quando o não quero contrariar. 

Alcântara Machado (Carmela)


Dezoito horas e meia. Nem mais um minuto porque a madama respeita as horas de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca vem ao seu lado.

 A Rua Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de automóveis gritadores. As casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO PAULO-PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como gangorras.

 - Espia se ele está na esquina.

 - Não está.

 - Então está na Praça da República. Aqui tem muita gente mesmo.

 - Que fiteiro!

 O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo maduro para os lábios dos amadores.

 - Ai que rico corpinho!

 - Não se enxerga, seu cafajeste? Português sem educação!

 Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas.

 Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira. 

 - Olha o automóvel do outro dia.

 - O caixa-d'óculos?

 - Com uma bruta luva vermelha.

 O caixa-d'óculos pára o Buick de propósito na esquina da praça.

 - Pode passar.

 - Muito obrigada.

 Passa na pontinha dos pés. Cabeça baixa. Toda nervosa.

 - Não vira para trás, Bianca. Escandalosa!

 Diante de Álvares de Azevedo (ou Fagundes Varela) o Ângelo Cuoco de sapatos vermelhos de ponta afilada, meias brancas, gravatinha deste tamanhinho, chapéu à Rodolfo Valentino, paletó de um botão só, espera há muito com os olhos escangalhados de inspecionar a Rua Barão de Itapetininga.

 - O Ângelo!

 - Dê o fora.

 Bianca retarda o passo.

 Carmela continua no mesmo. Como se não houvesse nada. E o Ângelo junta-se a ela. Também como se não houvesse nada. Só que sorri.

 - Já acabou o romance?

 - A madama não deixa a gente ler na oficina.

 - É? Sei. Amanhã tem baile na Sociedade.

 - Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Não segura no braço!

 - Enjoada!

 Na Rua do Arouche o Buick de novo. Passa. Repassa. Torna a passar.

 - Quem é aquele cara?

 - Como é que eu hei de saber?

 - Você dá confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa! Não olha pra ele que eu armo já uma encrenca!

 Bianca rói as unhas. Vinte metros atrás. Os freios do Buick guincham nas rodas e os pneumáticos deslizam rente à calçada. E estacam.

 - Boa tarde, belezinha...

 - Quem? Eu?

 - Por que não? Você mesma...

 Bianca rói as unhas com apetite.

 - Diga uma cousa. Onde mora a sua companheira?

 - Ao lado de minha casa.

 - Onde é sua casa?

 - Não é de sua conta.

 O caixa-d'óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um traquejado.

 - Responda direitinho. Não faça assim. Diga onde mora.

 - Na Rua Lopes de Oliveira. Numa vila. Vila Margarida n.0 4. Carmela mora com a família dela no 5.

 - Ah! Chama-se Carmela... Lindo nome. Você é capaz de lhe dar um recado?

 Bianca rói as unhas.

 - Diga a ela que eu a espero amanhã de noite, às oito horas, na rua... na.... atrás da Igreja de Santa Cecília. Mas que ela vá sozinha, hein? Sem você. O barbeirinho também pode ficar em casa.

 - Barbeirinho nada! Entregador da Casa Clark!

 - É a mesma cousa. Não se esqueça do recado. Amanhã, as oito horas, atrás da igreja.

 - Vá saindo que pode vir gente conhecida.

 Também o grilo já havia apitado.

 - Ele falou com você. Pensa que eu não vi?

 O Ângelo também viu. Ficou danado.

 - Que me importa? O caixa-d'óculos disse que espera você amanhã de noite, às oito horas, no Largo Santa Cecília. Atrás da igreja.

 - Que é que ele pensa? Eu não sou dessas. Eu não!

 - Que fita, Nossa Senhora! Ele gosta de você, sua boba.

 - Ele disse?

 - Gosta pra burro.

 - Não vou na onda.

 - Que fingida que você é!

 - Ciao.

 - Ciao.

 Antes de se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro Carmela abre o romance à luz da lâmpada de 16 velas: Joana a Desgraçada ou A Odisséia de uma Virgem, fascículo 2.0

 Percorre logo as gravuras. Umas tetéias. A da capa então é linda mesmo. No fundo o imponente castelo. No primeiro plano a íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do castelão inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E atravessada no cachaço do ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de carambola.

 Quando Carmela reparando bem começa a verificar que o castelo não é mais um castelo mas uma igreja o tripeiro Giuseppe Santini berra no corredor:

 - Spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa principessa!

 E - raatá! - uma cusparada daquelas.

 - Eu só vou até a esquina da Alameda Glette. Já vou avisando.

 - Trouxa. Que tem?

 No Largo Santa Cecília atrás da igreja o caixa-d'óculos sem tirar as mãos do volante insiste pela segunda vez:

 - Uma voltinha de cinco minutos só... Ninguém nos verá. Você verá. Não seja má. Suba aqui.

 Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a do direito, depois a do esquerdo de novo, depois a do direito outra vez, levantando e descendo a cinta. Bianca rói as unhas.

 - Só com a Bianca...

 - Não. Para quê? Venha você sozinha.

 - Sem a Bianca não vou.

 - Está bem. Não vale a pena brigar por isso.

 - Você vem aqui na frente comigo. A Bianca senta atrás.

 - Mas cinco minutos só. O senhor falou...

 - Não precisa me chamar de senhor. Entrem depressa.

 Depressa o Buick sobe a Rua Viridiana.

 Só pára no Jardim América.

 Bianca no domingo seguinte encontra Carmela raspando a penugenzinha que lhe une as sobrancelhas com a navalha denticulada do tripeiro Giuseppe Santini.

 - Xi, quanta cousa pra ficar bonita!

 - Ah! Bianca, eu quero dizer uma cousa pra você.

 - Que é?

 - Você hoje não vai com a gente no automóvel. Foi ele que disse.

 - Pirata!

 - Pirata por quê? Você está ficando boba, Bianca.

 - É. Eu sei porquê. Piratão. E você, Carmela, sim senhora! Por isso é que o Ângelo me disse que você está ficando mesmo uma vaca.

 - Ele disse assim? Eu quebro a cara dele, hein? Não me conhece.

 - Pode ser, não é? Mas namorado de máquina não dá certo mesmo.

 Saem à rua suja de negras e cascas de amendoim. No degrau de cimento ao lado da mulher Giuseppe Santini torcendo a belezinha do queixo cospe e cachimba, cachimba e cospe.

 - Vamos dar uma volta até a Rua das Palmeiras, Bianca?

 - Andiamo.

 Depois que os seus olhos cheios de estrabismo e despeito vêem a lanterninha traseira do Buick desaparecer, Bianca resolve dar um giro pelo bairro. Imaginando cousas. Roendo as unhas. Nervosissima.

 Logo encontra a Ernestina. Conta tudo ã Ernestina.

 - E o Ângelo, Bianca?

 - O Ângelo? O Ângelo é outra cousa. E pra casar.

 - Há!…

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Manuel Alegre (Caravela da Poesia)

Manuel Alegre de Melo Duarte (Águeda/ Portugal, 12 de Maio de 1936)

AS MÃOS

 Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
 Com mãos tudo se faz e se desfaz.
 Com mãos se faz o poema - e são de terra.
 Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

 Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
 Não são de pedras estas casas, mas
 de mãos. E estão no fruto e na palavra
 as mãos que são o canto e são as armas.

 E cravam-se no tempo como farpas
 as mãos que vês nas coisas transformadas.
 Folhas que vão no vento: verdes harpas.

 De mãos é cada flor, cada cidade.
 Ninguém pode vencer estas espadas:
 nas tuas mãos começa a liberdade.

O PRIMEIRO SONETO DO PORTUGUÊS ERRANTE

Eu sou o solitário o estrangeirado
o que tem uma pátria que já foi
e a que não é. Eu sou o exilado
de um país que não há e que me dói.

Sou o ausente mesmo se presente
o sedentário que partiu em viagem
eu sou o inconformado o renitente
o que ficando fica de passagem.

Eu sou o que pertence a um só lugar
perdido como o grego em outra ilíada.
Eu sou este partir este ficar.

E a nau que me levou não voltará.
Eu sou talvez o último lusíada
em demanda do porto que não há.

ÚLTIMA PÁGINA

Vou deixar este livro. Adeus.
Aqui morei nas ruas infinitas.
Adeus meu bairro página branca
onde morri onde nasci algumas vezes.

Adeus palavras comboios
adeus navio. De ti povo
não me despeço. Vou contigo.
Adeus meu bairro versos ventos.

Não voltarei a Nambuangongo
onde tu meu amor não viste nada. Adeus
camaradas dos campos de batalha.
Parto sem ti Pedro Soldado.

Tu Rapariga do País de Abril
tu vens comigo. Não te esqueças
da primavera. Vamos soltar
a primavera no País de Abril.

Livro: meu suor meu sangue
aqui te deixo no cimo da pátria
Meto a viola debaixo do braço
e viro a página. Adeus.

SOBRE UM MOTE DE CAMÕES

Se me desta terra for
eu vos levarei amor.
Nem amor deixo na terra
que deixando levarei.

Deixo a dor de te deixar
na terra onde amor não vive
na que levar levarei
amor onde só dor tive.

Nem amor pode ser livre
se não há na terra amor.
Deixo a dor de não levar
a dor de onde amor não vive.

E levo a terra que deixo
onde deixo a dor que tive.
Na que levar levarei
este amor que é livre livre.

ILHA DE COS

Eu sabia que tinha de haver um sítio
Onde o humano e o divino se tocassem
Não propriamente a terra do sagrado
Mas uma terra para o homem e para os deuses
Feitos à sua imagem e semelhança
Um lugar de harmonia
Com sua tragédia é certo
Mas onde a luz incita à busca da verdade
E onde o homem não tem outros limites
Senão os da sua própria liberdade

AS MÃOS

 Com mãos se faz a paz se faz guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema - e são de terra.
Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

 Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

 E cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

 De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

O HOMEM SENTADO À MESA
 
Eis o homem sentado à mesa
Diante da folha branca.
Um longo, longo caminho,
Da vida para a palavra.

Decantação, purificação
Para chegar ao pássaro.

O homem que está à mesa
Atravessou muitos desertos
Virou do avesso a certeza
Naufragou nos mares do sul.

Entre ditongo e ditongo
Para chegar ao pássaro
Tu próprio terás de ser
Cada vez mais substantivo.

Irás de sílaba em sílaba
Ferido por sete espadas
Diante da folha branca
Serás fome e serás sede
Como o homem que está à mesa,

O homem tão despojado
Que a si mesmo se transforma
No pássaro que busca a forma.

Este é tempo do homem
perdido na multidão
Como ser desintegrado
Na folha branca da cidade.

Tempo do homem sentado
À mesa da solidão.

Há palavras como asas,
outras mais como raízes

O pássaro voa por dentro
Do homem sentado à mesa.
Vai de fonema em fonema
Sobre as cordas dos sentidos.
 
Se vires o homem que passa
Como se fosse no ar
Já sabes: é o homem que está
Diante da folha branca.
 
Às vezes levanta vôo
Para outro espaço, outro azul
E deixa dentro das sílabas
Um rastro como de sul.
 
Quando recordas,
Quando a tristeza
toca demais as cordas do coração
 
Quando um ritmo começa
Dentro das palavras,
 
Um sapateado inconfundível
(Malagueña, malagueña!)
E a folha branca é uma Espanha
Para cantar, para dançar
Para morrer entre sol e sombra
Às cinco em sangue...
 
Então verás chegar
O homem sentado à mesa
Às cinco en sombra de la tarde
Malagueña, Malagueña!
Diante da folha branca
Como por terras de Espanha.
 
Nos descampados deste tempo
Nos aeroportos auto-estradas
Nos anúncios sob as pontes
Talvez no marco geodésico
 
No fumo do lixo ardendo
No cheiro do alcatrão
Nos dejectos de lata e plástico
Nos jornais amarrotados
Nas barracas sobre a encosta
Na estrutura de betão
Sobre o gasóleo e a tristeza
Sobre a grande poluição
Onde nem folha ou erva cresce
 
Seco, duro, estéril tempo
Diante da folha branca
Da solidão suburbana
Onde a multidão se perde
Entre tristeza e tristeza
 
Às vezes um coração:
Talvez um pássaro verde
Ou talvez só a canção
Do homem sentado à mesa
 
O homem que está à mesa
Tem qualquer coisa que escapa
Qualquer coisa que o faz ser
Ausente quando presente
 
Às vezes como de mar
Às vezes como de sul
 
Um certo modo de olhar
Como atravessando as coisas
Um certo jeito de quem
Está sempre para partir.
 
O homem sentado à mesa
Não está sentado: caminha
Navega por sobre os mares
Ou por dentro de si mesmo.
 
Vem de longe para longe
Do passado para agora
De agora para amanhã
Está no avesso da hora!
 
Solta o pássaro, não pára,
Tem outro espaço, outro azul
Às vezes como de mar
Às vezes como de azul
 
E não se tem a certeza se está do lado de cá
Ou se está do outro lado, deste lado onde não está.
Mesmo se sentado à mesa
Não é possível detê-lo
O homem que tem um pássaro
É sempre um homem que passa.
 
Tem qualquer coisa que nem se sabe
O quê nem de quem
 
É talvez um mais além
Algo que sobe e que voa
Entre o Aqui e o Ali
Algo que não se perdoa
Ao homem quando ele tem
Um pássaro dentro de si...
 
Há um tocador a tocar
As harpas de cada sílaba
 
Diante da folha branca
Tudo é guitarra e surpresa.
 
Escutai o pássaro e o canto
Do homem sentado à mesa!

TROVA DO VENTO QUE PASSA

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Fontes:
http://www.antoniomiranda.com.br/Iberoamerica/portugal/manoel_alegre.html
http://www.jornaldepoesia.jor.br/alegre.html
http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/alegre.html

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 31. Um Fio de Cabelo

Aquela moça espigada que entrou no bonde com o ímpeto ágil de um gafanhoto e ficou sentada ao meu lado, nunca imaginaria que fosse causa possível de uma pequena tragédia.

Entrou, sentou-se, tão isenta, como diria o Camões, tão longe de mim que sentia a irradiação das suas calorias! Viçosa, inocente e jocunda como um cacho de flores de resedá arrancado ao galho pela manhã, tinha a afilada silhueta de uma girl esportiva e a despachada simplicidade de um rapaz. Tirou a espécie de boina que trazia na cabeça, agitou o nevoeiro de fogo do cabelo, ajeitou-o com as mãos, de leve, como se lhas queimasse, e minutos depois, repondo o gorro, partia, num outro salto de gafanhotinho brincalhão.

Jeunesse de visage et jeunesse de coeur!

Quando cheguei a casa, tinha no ombro um fio de cabelo, um fio de chama. Descobriu-o a criada, com um sorriso ingênuo e perverso. Pegou nele, de intrometida, examinou-o à luz da janela, e ia deixá-lo cair quando eu, não me podendo conter, exclamei: "Deus a faça careca, Manuela!" Manuela olhou-me com cara de surpresa e desapontamento, como a pedir explicação. Não lha dei, limitando-me a assoviar uns compassos da Marcha de Cádis, para não lhe deixar a impressão de estar zangado, e retirei-me para o meu quarto.

Na verdade, estava zangado. Aquele ato da pobre mulher apertara a mola ao mecanismo das minhas melancolias. Pus-me a considerar os frutos de suspicácia, de bisbilhotice e de malignidade que a moral produz nas almas simples; e de reflexão em reflexão achei-me de repente imerso, mal sustendo a cabeça de fora, na imensurável e irremediável miséria da bicharia humana.

E aí está como aquela menina, inocente como o é a Lua, dos raios que deixa cair, não esteve longe de ser causa de um desaguisado doméstico. Ao mesmo tempo que alisava o cabelo, num movimento de mãos e numa dança de dedos leve e aérea como um gorjeio, poderia estar agitando a corrente de dois destinos ignorados e preparando uma pororoca longínqua.

Ai! por muito pobre que seja a imaginação dos malfazejos, os distúrbios que ela consegue promover são pequena coisa diante do mal que todos fazemos uns aos outros pelo simples fato de existir.

Não há pior acidente do que ocupar um lugar no espaço. Um simples fio de cabelo caindo de uma cabeça pode ser para alguém como o raio destruidor partindo do punho de Arimã. Vivemos assim uma eterna e terrível mitologia. Participamos da natureza dos deuses, ao menos para o mal. Só para o mal. A vida é a angústia do terror difuso e permanente.

Fonte:
Domínio Público

Charles Dickens (Horácio Sparkins) Parte II, final

- Faltam cinco para as cinco - disse o Sr. Malderton consultando o relógio. - Espero que ele não nos desiluda.

 - Ei-lo! - exclamou a Senhorita Teresa ao ouvir duas fortes pancadas à porta.

 Todos procuraram assumir o ar de quem nem suspeitava a chegada de quem quer que fosse, como costumam fazer as pessoas que esperam ansiosas uma visita.

 A porta da sala abriu-se.

 - O Sr. Barton - anunciou a criada.

 - Raios o partam! - murmurou Malderton - Ah, meu querido, como vai você? Que há de novo?

 - De novo mesmo - retrucou o comerciante na sua habitual maneira rude - não há nada. Nada que eu saiba. Como vamos, meninas e rapazes? Sr. Flamwell, prazer em vê-lo!

 - Eis o Sr. Sparkins - disse Tom, que estava olhando pela janela - num formidável cavalo preto!

 Lá vinha Horácio, bem seguro, montando um grande cavalo preto que curveteava e cabriolava como um surpanumerário de bufar, de empinar-se, de escoicear, o animal consentiu parar a umas cem jardas da porta. O Sr. Sparkins apeou-se e o confiou aos cuidados do cavalariço do Sr. Malderton. A cerimônia de introdução realizou-se com as devidas formalidades. O Sr. Flamwell fitou Horácio por trás de seus óculos verdes com ar misterioso e importante ao mesmo tempo, e o galante Horácio olhou para Teresa com uma expressão indizível.

 - É o nobre Sr. Augustus como-se-chama-mesmo? - perguntou baixinho o Sr. Malderton a Flamwell, que o escoltava para a sala de jantar.

 - Bem, não é ele... pelo menos não precisamente - volveu a grande autoridade - , não precisamente.

 - Quem é, então?

 - Psiu! - disse Flamwell abanando a cabeça com gravidade como para mostrar que o sabia bem, mas se achava impedido por alguma grave razão de revelar o notável segredo.

 Podia ser um ministro que procurava inteirar-se das opiniões do povo.

 - Sr. Sparkins - disse a encantadora Sra. Malderton - queira dividir as senhoras. João, ponha uma cadeira para o cavalheiro entre as senhoritas.

 Estas palavras foram dirigidas a um homem que, em condições normais, acumulava as funções de criado e jardineiro mas, como era necessário impressionar o Sr. Sparkins, fora forçado a calçar sapatos e pôr um lenço branco no pescoço, e havia sido retocado e escovado até assemelhar-se a um segundo lacaio.

 O jantar era excelente. Horácio dava a maior atenção à Senhorita Teresa e todos estavam de bom humor, exceto o Sr. Malderton, o qual, conhecendo as propensões de seu cunhado, sofreu a espécie de agonia que, segundo as informações dos jornais, experimenta a vizinhança quando um servente de taverna se enforca num depósito de feno, agonia "mais fácil de ser imaginada que descrita".

 - Flamwell, tem visto ultimamente o seu amigo sir Thomas Noland? - perguntou o Sr. Malderton, lançando a Horácio um olhar oblíquo para ver o efeito que sobre ele exercia o nome de tamanho homem.

 - Bem, não muito... quer dizer, não ultimamente. Mas vi Lorde Gubbleton há três dias.

 - Ah espero que S. Exa. esteja passando bem - disse Malderton num tom de profundo interesse.

 Desnecessário declarar que, até aquele momento, ignorava de todo a existência da personalidade em apreço.

 - bem, estava passando bem... muito bem até. É um ótimo camarada. Encontrei-o na City, e tivemos uma longa prosa. Damo-nos muito. Mas não pude conversar com ele todo o tempo que queria, porque ele ia à casa de um banqueiro, um homem rico e membro do Parlamento, com o qual também me dou bastante... poderia até dizer - intimamente.

 - Sei a quem você está se referindo - retrucou o hospedeiro, que o sabia tão pouco, na realidade, quanto o próprio Flamwell. - Ele tem um negócio formidável.

 Era tocar em assunto perigoso.

 - Por falar em negócios - interveio o Sr. Barton, do centro da mesa - um cavalheiro que você conhecia muito bem, Malderton, antes de você ter dado aquele primeiro golpe feliz, passou outro dia na nossa loja e...

 - Barton, permite-me que lhe peça uma batata? - interrompeu o infeliz dono da casa, na esperança de cortar a história pela raiz.

 - Pois não! - respondeu o comerciante, insensível de todo ao objetivo de seu cunhado - E ele me disse sem rodeios...

 - Mais farinhenta, por favor, - interrompeu Malderton outra vez, temendo o fim da anedota e a repetição da palavra loja.

 - Ele me disse assim - continuou o culpado depois de passar a batata: - "Como vão os negócios?" Entoa eu lhe disse brincando - você conhece a minha maneira - , sim, eu lhe disse: "Eu nunca estou acima dos meus negócios, e espero que eles também nunca estejam acima de mim" Ah! Ah!

 - Sr. Sparkins - disse o dono da casa, debalde procurando disfarçar a sua consternação - um copo de vinho?

 - Com o maior prazer, meu senhor.

 - O prazer é todo meu.

 - Obrigado.

 - Uma dessas noites - resumiu o hospedeiro dirigindo-se a Horácio, em parte com a intenção de ostentar os dotes de conversador de seu novo conhecido, em parte com a esperança de abafar as histórias do cunhado - uma destas noites conversamos sobre a natureza do homem. Sua argumentação me impressionou muito fortemente.

 - E a mim também - disse o Sr. Frederico.

 Horácio inclinou a cabeça graciosamente.

 - Por favor, Sr. Sparkins, qual a sua opinião a respeito da mulher? - indagou a Sra. Malderton.

 As moças sorriam tolamente.

 - O homem - respondeu Horácio - , o homem, quer quando erra nos campos luminosos, alegres e floridos de um segundo Éden, quer quando percorre as regiões estéreis, áridas e, por assim dizer, vulgares a que somos forçados a nos habituar em tempos como estes; o homem, em qualquer circunstância ou em qualquer lugar, vergado sob as mortíferas rajadas da zona frígida ou comburido pelos raios de um sol vertical - , o homem sem a mulher, estaria sozinho.

 - Estou muito contente de verificar que o senhor tem opiniões tão respeitáveis - declarou a Sra. Malderton.

 - Eu também - acrescentou a Senhorita Teresa.

 Horácio fitou-a com olhar encantado, e a jovem corou.

 - Pois bem, na minha opinião... - disse o Sr. Barton.

 - Eu sei o que é que você quer dizer - interveio Malderton, determinado a não dar oportunidade a seu parente - e discordo de você.

 - Como? - perguntou o comerciante, espantado.

 - Sinto não estar de acordo com você, Barton - lançou o hospedeiro de modo tão positivo como quem deveras contradiz uma asserção feita por seu interlocutor - mas não posso aprovar o que eu considero uma afirmação monstruosa.

 - Mas eu queria dizer...

 - Você nunca poderá me convencer - afirmou o Sr. Malderton com obstinada determinação - Nunca.

 - Pois eu - disse o Sr. Frederico, a auxiliar o ataque de seu pai - não posso subscrever integralmente a argumentação do Sr. Sparkins.

 - Como! - exclamou Horácio, que se tornara mais metafísico e argumentador ao ver a parte feminina da família ouvi-lo com enlevada atenção. - Como! É o efeito conseqüência da causa? É a causa precursora do efeito?

 - Aí está - disse Flamwell.

 - Sem dúvida - concordou o Sr. Malderton.

 - Porque se o efeito é a conseqüência da causa e se a causa precede o efeito, parece que o senhor se engana - prosseguiu Horácio.

 - Sem sombra de dúvida - acudiu o sicofanta Flamwell.

 - Pelo menos esta dedução me parece lógica e justa.

 - Sem dúvida alguma - repercutiu Flamwell - Com isso a questão está liquidada.

 - Talvez esteja - disse o Sr. Frederico. - Não o percebi logo.

 - Eu nem agora o percebo - opinou o comerciante - , mas suponho que tudo esteja certo.

 - Que inteligência maravilhosa! - segredou a Sra. Malderton às filhas quando se retiraram para o salão.

 - É um amor! - disseram juntas as duas moças. - fala como um oráculo. Ele deve ter visto coisas.

 Ficando a sós os cavalheiros, produziu-se uma pausa, durante a qual todos olharam com suma gravidade, como se exaustos com a profundidade da discussão. Flamwell, que resolvera elucidar quem era e o que era o Sr. Horácio Sparkins, foi o primeiro a quebrar o silêncio.

 - Desculpe-me, senhor - disse aquela distinta personalidade - suponho que estudou para advogado, não? Eu mesmo já tive o desejo de adotar essa profissão... pois estou em relações bastante íntimas com algumas das glórias do nosso foro.

 - N... não... - respondeu Horácio depois de hesitar um pouco. - Precisamente, não.

 - Mas, ou muito me engano, ou o senhor tem tido contato com as becas de seda, - disse Flamwell com deferência.

 - Quase toda a minha vida - replicou Sparkins.

 Assim, a questão estava resolvida no espírito do Sr. Flamwell. Tratava-se de um moço que entraria a advogar dentro em pouco.

 - Eu não gostaria de ser advogado - disse Tom, falando pela primeira vez e olhando para todos a ver se alguém lhe prestava atenção.

 Ninguém respondeu.

 - Não gostaria de usar cabeleira postiça - insistiu o rapaz.

 - Tom, peço que não se torne ridículo, - observou-lhe o pai. - Peço-lhe que preste atenção ao que está ouvindo, para aproveitá-lo, sem fazer a cada momento essas declarações absurdas.

 - Está certo, papai, - respondeu o infeliz Tom, que não pronunciara nem uma palavra sequer depois que pedira outro bife, às cinco e um quarto; agora já eram oito.

 - Bem, Tom - disse o tio bondoso - , não se aflija. Eu estou de acordo com você. Não gostaria de usar cabeleira postiça; prefiro um avental.

 O Sr. Malderton tossiu com violência. O Sr. Barton quis concluir:

 - Pois se um homem está acima dos seus negócios...

 A tosse voltou com decuplicada violência, e não cessou antes que o seu infeliz motivo, de tão alarmado, houvesse de todo esquecido o que pretendia dizer.

 - Sr. Sparkins - interrogou Flamwell, voltando a carga - conheceu por acaso o Sr. Delafontaine, de Bedford Square?

 - Trocamos os nossos cartões, e desde então já tive a oportunidade de servi-lo bastante, - replicou Horácio, corando um pouco, sem dúvida por haver sido forçado a fazer essa confissão.

 - O senhor pode considerar-se feliz por haver tido ocasião de ser útil a esse grande homem - observou Flamwell com profundo respeito.

 Depois, murmurou confidencialmente ao Sr. Malderton, quando acompanhavam Horácio ao salão:

 - Não sei quem é. Mas é certo que ele pertence à justiça e que é alguém de grande importância, com relações das mais altas.

 - Não há dúvida.

 O resto da noite decorreu de modo mais agradável. Aliviado de suas apreensões por haver o Sr. Barton caído em sono profundo, o Sr. Malderton ficou tão amável e gentil quanto possível.

 A Senhorita Teresa tocou A queda de Paris de maneira magistral, conforme declarou o Sr. Sparkins, e ambos, assistidos pelo Sr. Frederico, ensaiaram um sem número de canções e trios do começo ao fim, chegando à agradável evidência de que suas vozes se harmonizavam à perfeição. Por via das dúvidas, cantaram todos a primeira parte. Horácio, além da leve desvantagem de não ter ouvido, estava na mais perfeita ignorância de qualquer nota musical. Contudo, passaram o tempo deliciosamente. Era mais de meia-noite quando o Sr. Sparkins pediu que lhe trouxessem o seu corcel com ar de cavalo de coche fúnebre, pedido esse que só foi satisfeito com a condição expressa de que ele repetiria a visita no domingo seguinte.

 Quem sabe se o Sr. Sparkins não deseja fazer parte do nosso grupo amanhã de noite? - sugeriu a Sra. Malderton - O Sr. Malderton quer levar as meninas a verem o pantomimo.

 O Sr. Sparkins inclinou-se e prometeu ir ter com elas no decorrer da noite, no camarote 48.

 - Não o requisitamos para a parte da manhã - disse a Senhorita Teresa num tom fascinante - porque mamãe nos leva a uma porção de lojas a fazer comprar. Sei que os cavalheiros têm horror a essa espécie de passatempo.

 O Sr. Sparkins inclinou-se outra vez e declarou que ficaria encantado, mas negócios de grande monta ocupavam-no durante a manhã. Flamwell olhou significativamente para o Sr. Malderton.

 - É dia de vencimento - sussurrou.

 No dia seguinte a carruagem encontrava-se às doze horas na porta de Oak Lodge a fim de levar a Sra. Malderton e as filhas para a sua expedição. Deviam elas jantar e vestir-se para o espetáculo na casa de um amigo. Primeiro, carregadas de caixas de chapéus, tinham de fazer uma excursão à loja dos Srs. Jones, Spruggins & Smith, em Tottenham Court Road; depois, outra, à Casa Redmayne, em Bond Street; depois outras, a inumeráveis lugares de que nunca ninguém tinha ouvido falar. As meninas procuravam diminuir o tédio da viagem elogiando o Sr. Horácio Sparkins, censurando a própria mãe por conduzi-las tão longe só para economizar um xelim, e perguntando se jamais chegariam a seu destino. Por fim o veículo parou em frente à loja de um fanqueiro, de aspecto sujo, com toda espécie de mercadoria e letreiros de todos os tamanhos na vitrina. Havia ali enormes setas com minúsculos "três quartos de pêni" ao lado, perfeitamente invisíveis a olho nu; "cinqüenta mil e trezentos estolas de senhoras, desde um xelim até um pêni e meio; sapatos franceses de legítima pele de cabrito, dois xelins e nove pence o par; sombrinhas verdes, a preço não menos módico; e toda espécie de mercadorias a cinqüenta por cento abaixo do custo", como diziam os donos, que o deviam saber melhor do que ninguém.

 - Por Deus, mamãe, a que lugar a senhora nos trouxe! - exclamou a Senhorita Teresa. - Que diria o Sr. Sparkins se nos visse?

 - Com efeito, que diria! - concordou a Senhorita Mariana, horrorizada com a idéia.

 - Sentem-se, minhas senhoras. Qual é o primeiro artigo? - perguntou o obsequioso mestre de cerimônias do estabelecimento, o qual, com seu grande lenço branco no pescoço e sua gravata solene, parecia um mau "retrato de um cavalheiro" numa exposição de Somerset House.

 - Gostaria de ver sedas - respondeu a Sra. Malderton.

 - Pois não, minha senhora! Sr. Smith! Onde está o Sr. Smith?

 - Estou aqui, senhor! - gritou uma voz do fundo da loja.

 - Tenha a bondade de apressar-se, Sr. Smith, - disse o mestre-de-cerimônias. - O senhor nunca está onde a sua presença é necessária.

 Convidado assim a desenvolver a maior rapidez possível, o Sr. Smith pulou o balcão com grande agilidade e plantou-se diante das freguesas. A Sra. Malderton deu um grito abafado. A Senhorita Teresa, que se tinha curvado para falar à irmã, levou a cabeça e viu - Horácio Sparkins!

 "Encobriremos com um véu", como dizem os romancistas, a cena subseqüente. O misterioso, filosófico, romântico e metafísico Sparkins - aquele que, aos olhos da interessante Teresa, parecia encarnar o ideal dos jovens duques e dos tafuis poéticos que vestiam chambre de seda azul e chinelos idem idem, os quais ela conhecia dos livros e com os quais sonhava, mas que nunca esperava ver - transformara-se de repente no Sr. Samuel Smith, auxiliar de uma loja barata, o caixeiro mais moço de uma firma incerta, de três semanas de existência. O desaparecimento honroso do herói de Oak Lodge, em seguida a esse reconhecimento inesperado, não pôde senão ser comparado ao furtivo esgueirar-se de um cachorro com uma enorme chaleira presa ao rabo. Todas as esperanças dos Maldertons se derreteram de vez, como sorvetes de limão num banquete; Almacks era para eles mais distantes que o Pólo Norte.
FIM

domingo, 12 de maio de 2013

Cláudia Dimer (Eu Quis Ver Deus)


Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 30. Ainda a Rosa

A rosa que o meu amigo velho me dera anteontem ainda estava hoje bem passável. Olhei-a, pela manhã, quando lavava o rosto, e achei-lhe um encanto dorido de mulher bonita que, em pleno solstício de encantos, de repente se vê marcada pelos primeiros gorgulhos do tempo.

Esborrifei-lhe um pouco de água, e disse-lhe: "Que será de si amanhã, minha rosa?" As rosas sabem falar, e para ouvir e entender o que elas dizem não é preciso amar alguma senhora, como, segundo o poeta, se requer de quem deseje ouvir as estrelas. E a rosa, com soberba indiferença, respondeu: "Que será de mim? Olha esse grosseiro antropomorfismo, néscio animal! Então tu julgas que nós outras somos feitas da tua massa? Para mim e minhas irmãs todas as voltas do mundo são as mesmas. Eu, amanhã, não serei nada que tu aprecies, mas aí ficam infinidades de rosas desabrochadas e por desabrochar. E todas elas são eu mesma, porque eu sou todas, e não desapareço, nem sucumbo".

Muito bem, muito bem. Em todo caso, como rosa individual, a minha durava bastante. Malherbe assinou a esta flor, como prazo fixo de vida l'espace d'un matin, e entretanto é geralmente sabido que ela pode durar dois ou três dias, e mais. Mas também está geralmente convencionado que, para os efeitos poéticos, há de durar uma só manhã.

Verdades duplas, assim, há muitas, há tantas que o mundo está cheio delas.

A borboleta, símbolo da volubilidade na poesia, é com efeito uma excelente imagem da
constância, porque só faz indefinidamente a mesma coisa.

A abelha, essa dizem que é o tipo do ecletismo intelectual ou sentimental que saqueia a corola de todas as flores; na verdade, é a representação mais fiel da inflexibilidade de princípios, pois que não visita senão as flores que lhe forneçam matéria-prima, e delas não quer senão a pequenina dose de matéria-prima que possam dar.

O gato considerado como um animal de caráter independente, vive de fato na estreita dependência própria dos parasitas, não sabendo senão estar nas cozinhas e nos telhados; gravitando em redor da paparoca preparada.

À palmeira, chamam-lhe esbelta e soberba, ou altiva, ou senhoril. Não há o que se lhe oponha, porque, realmente, a gente pode dar às coisas os adjetivos que quiser, não havendo contrariedade declarada; mas é muito de notar que, assim como a palmeira é esbelta e senhoril, também poderia ser senhoril e esbelto um espanador de cabo comprido, ou uma vassoura do tipo antigo, trastes estes havidos como sumamente prosaicos.

O boi, símbolo da força, é um colosso tão frágil que passa da mocidade à decrepitude em meia dúzia de anos, e possui muitíssimo menos energia ativa do que uma formiga ou uma pulga. E a águia, emblema do gênio, porque tem asas e vive nas alturas, é menos inteligente do que uma galinha e nem sofre comparação com o castor, que passa a existência no fundo dos vales e no lamaçal dos rios.

Enfim, não se contam as verdades, duplas que todo o mundo enxerga, ou poderia enxergar, mas deliberadamente separa e torna reciprocamente estanques. E não só no que respeita ao mundo objetivo, mas também no que se refere ao próprio domínio subjetivo da experiência moral.

A economia é uma virtude, quando se põem sobre ela os óculos simpáticos da generalização poética; a economia, em seus casos concretos, é sempre uma indecenciazinha de que nos envergonhamos e que satirizamos nos mais.

"O amor é a mais bela e a mais santa das coisas desta vida": mas ninguém torne esse conceito como preceito porque se arrisca a ser apedrejado na praça.

"A calúnia é o fel das almas ignóbeis": na realidade, a calúnia é um vício tão generalizado e tão familiar como o do cigarro; e quem não o cultivar está no perpétuo risco de passar por idiota ou por "jesuíta".

Mas, afinal de contas, esses desdobramentos da verdade são úteis, porque correspondem a duas tendências fundamentais do espírito humano: a que visa a adaptação deste à natureza, e a que procura a sua adaptação à sociedade.

A primeira procede por via de indagações meticulosas e serenas; a segunda marcha por meio de conceituações imediatas e sínteses arrojadas.

A primeira é lenta, dificultosa e fatigante; a segunda é rápida, leve e encantadora.

A primeira fornece exercício a uma minoria de cabeças, especializa e desmembra funções, e como que pulveriza a continuidade e a fluência do real numa infinidade de corpúsculos gelados; a segunda comunica impulsos a toda a sorte de mentes, aproxima-as, harmoniza-as, estimula a imaginação e a simpatia, dando a todas a mesma concepção aproximativa das coisas, deformante mas agradavelmente fácil, ampla e satisfatória.

A primeira prepara o viveiro das verdades exatas e necessárias de amanhã; a segunda alarga o domínio das verdades agradáveis e convencionais provisórias para uns, perpétuas para a maior parte.

Instinto de saber, instinto de poesia. Dois irmãos inimigos, que não podem viver um sem o outro.

Posta de parte essa parlenda, o fato é que a resposta da rosa mais me enamorou dela. Enfiei-a na botoeira, apesar de já meio fanada. -Precisei, para tanto, de um pouco de decisão e atrevimento, pois nunca uso flores comigo, nem mesmo frescas. Audácia de carneiro. Atrevimento de cágado.

Instalado no bonde, semicerrados os olhos, e sentindo na face a carícia de uma pétala pendente, instiguei a minha interessante companheira a falar ainda, antes que algum golpe de vento ou algum encontrão a despojasse da sua voz feita de cor e perfume. Não se fez de rogada.

"Não sabes, amigo? Tal como aqui me vês, sou filho do conúbio do homem e da natureza... Tanto devo o ser ao solo, ao sol, ao ar, como ao espírito, à arte e à mão humana.

Sou um produto da terra e da civilização: duplamente flor de cultura.

Sou ao mesmo tempo a glória de Flora e a mais perfeita das flores artificiais. Tendo o viço hereditário das rosas selváticas e a aura humana das rosas de papel e de tecido, armadas por magras mãos de operárias tristes, mãos febris de moças namoradas.

O homem faz-me, cheio de suas vaidades, seus desejos, suas ambições, seus sobejos de carinhos, seu saber, seu gosto amável, paciente e caprichoso. Assim, uma infinidade de forças diversas vêm-se coordenando e vêm colaborando, através dos séculos, na seleção das minhas formas, dos meus tons e dos meus olores - florindo e reflorindo em mim.

De mim, pois, aprende, homem tolo e ingrato! a olhar a tua humanidade não tanto na sombria confusão dos seus galhos e ramas, como na vária e fugitiva permanência das suas flores, ou no perpétuo esplendor das suas graças transitórias.

Ama-a com todos os seus vícios e brutezas, com todos os seus primores e pulcritudes.

Não há vícios, não há primores, há só o homem. O homem e nada mais. O homem inumerável, incomportável e indefinível. O homem que te ultrapassa no espaço e no tempo, e cujos últimos limites partem do centro da terra e vão perder-se nas constelações.

Perdoa-lhe tudo, tudo. Perdoa-lhe simplesmente. Sem gestos e sem frases. Perdoa-lhe mesmo na cólera e na angústia. Reserva-lhe ao menos uma promessa de perdão no infinito, até para o que não possas, até para o que não devas perdoar.

Se tudo, nele, coopera na produção destes milagres de melindroso e incorruptível prestigio!

Milagres em que o fugitivo se confunde com o permanente, e o encanto de uma hora é um sorriso dos séculos.

Passam as catedrais, esfarelam-se os granitos e os bronzes, desagregam-se os impérios, e as nações dissolvem-se, mas eu permaneço na minha deliciosa insignificância, Como a última confidência de ternura e de beleza que as gerações legam umas as outras através dos abismos do tempo.

Sou a obra mais duradoura do homem. Não há ferrugem nem verme, nem guerras nem sinistros que me atinjam.

Vê como uma coisa assim pequenina e branda vem a ser o único triunfo comum das energias contraditórias derramadas pela face da terra!

Eis-me aqui, doce como um afago, leve como uma asa, breve como um sonho, mas forte como o que permanece e perdura, imorredoura e essencial como a lágrima e como o sorriso, esses dois resumos humanos da infinita comédia, e da infinita alegria do universo...

Serve-me com os olhos, aspira-me, grava-me na alma. E sabe que nunca faltarei ao pé de ti, se o quiseres. Busca-me, achar-me-ás. Eu só desapareço de teus olhos para que em ti se renove a ânsia pela minha presença.

Toda a perene agitação do mundo parece não ter outro fim que produzir uma espuma de rosas. Nada tão ao alcance da tua mão.

Colhe, beija e sorri.

Nesse minuto estarás num pináculo da vida e num ponto luminoso da eternidade.

Eu sou a Rosa, eu sou a Rosa, a beleza e a graça fugentes, a doce filha da terra vil e do homem desgraçado..."

Fonte:
Domínio Público

Lima Barreto (Um e outro)

(A Deodoro Leucht)
Não havia motivo para que ela procurasse aquela ligação, não havia razão para que a mantivesse. O Freitas a enfarava um pouco, é verdade. Os seus hábitos quase conjugais; o modo de tratá-la como sua mulher; os rodeios de que se servia para aludir à vida das outras raparigas; as precauções que tomava para enganá-la; a sua linguagem sempre escoimada de termos de calão ou duvidoso; enfim, aquele ar burguês da vida que levava, aquela regularidade, aquele equilíbrio davam-lhe a impressão de estar cumprindo pena.

 Isto era bem verdade, mas não a absolvia perante ela mesma de estar enganando o homem que lhe dava tudo, que educava sua filha, que a mantinha como senhora, com o chaufleur do automóvel em que passeava duas vezes ou mais por semana. Por que não procurara outro mais decente? A sua razão desejava bem isso; mas o seu instinto a tinha levado.

 A bem dizer, ela não gostava de homem, mas de homens; as exigências de sua imaginação, mais do que as de sua carne, eram para a poliandria. A vida a fizera assim e não havia de ser agora, ao roçar os cinqüenta, que havia de corrigir-se. Ao lembrar-se de sua idade, olhou-se um pouco no espelho e viu que uma ruga teimosa começava a surgir no canto de um dos olhos. Era preciso a massagem... Examinou-se melhor. Estava de corpinho. O colo era ainda opulento, unido; o pescoço repousava bem sobre ele, e ambos, colo e pescoço, se ajustavam sem saliências nem depressões.

 Teve satisfação de sua carne; teve orgulho mesmo. Há quanto tempo ela resistia aos estragos do tempo e ao desejo dos homens? Não estava moça, mas se sentia ainda apetitosa. Quantos a provaram? Ela não podia sequer avaliar o número aproximado. Passavam por sua lembrança numerosas fisionomias. Muitas ela não fixara bem na memória e surgiam-lhe na recordação como cousas vagas, sombras, pareciam espíritos. Lembrava-se às vezes de um gesto, às vezes de uma frase deste ou daquele sem se lembrar dos seus traços; recordava-se às vezes da roupa sem se recordar da pessoa. Era curioso que de certos que a conheceram uma única noite e se foram para sempre, ela se lembrasse bem; e de outros que se demoraram, tivesse uma imagem apagada.

 Os vestígios da sua primitiva educação religiosa e os moldes da honestidade comum subiram à sua consciência. Seria pecado aquela sua vida? Iria para o inferno? Viu um instante o seu inferno de estampa popular: as labaredas muito rubras, as almas mergulhadas nelas e os diabos, com uns garfos enormes, a obrigar os penitentes a sofrerem o suplício.

 Haveria isso mesmo ou a morte seria...? A sombra da morte ofuscou-lhe o pensamento. Já não era tanto o inferno que lhe vinha aos olhos; era a morte só, o aniquilamento do seu corpo, da sua pessoa, o horror horrível da sepultura fria.

 Isto lhe pareceu uma injustiça. Que as vagabundas comuns morressem, vá! Que as criadas morressem, vá! Ela, porém, ela que tivera tantos amantes ricos; ela que causara rixas, suicídios e assassinatos, morrer era uma iniqüidade sem nome! Não era uma mulher comum, ela, a Lola, a Lola desejada por tantos homens; a Lola, amante do Freitas, que gastava mais de um conto de réis por mês nas cousas triviais da casa, não podia nem devia morrer. Houve então nela um assomo íntimo de revolta contra o destino implacável.

 Agarrou a blusa, ia vesti-la, mas reparou que faltava um botão. Lembrou-se de pregá-lo, mas imediatamente lhe veio a invencível repugnância que sempre tivera pelo trabalho manual. Quis chamar a criada: mas seria demorar. Lançou mão de alfinetes.

 Acabou de vestir-se, pôs o chapéu, e olhou um pouco os móveis. Eram caros, eram bons. Restava-lhe esse consolo: morreria, mas morreria no luxo, tendo nascido em uma cabana. Como eram diferentes os dois momentos! Ao nascer, até aos vinte e tantos anos, mal tinha onde descansar após as labutas domésticas. Quando casada, o marido vinha suado dos trabalhos do campo e, mal lavados, deitavam-se. Como era diferente agora... Qual! Não seria capaz de suportá-lo mais... Como é que pode?

 Seguiu-se a emigração... Como foi que veio até ali, até aquela cumiada de que se orgulhava? Não apanhava bem o encadeamento. Apanhava alguns termos da série; como porém se ligaram, como se ajustaram para fazê-la subir de criada a amante opulenta do Freitas, não compreendia bem. Houve oscilações, houve desvios. Uma vez mesmo quase se viu embrulhada numa questão de furto; mas, após tantos anos, a ascensão parecia-lhe gloriosa e retilínea. Deu os últimos toques no chapéu, concertou o cabelo na nuca, abriu o quarto e foi à sala de jantar.

 - Maria, onde está a Mercedes? perguntou.

 Mercedes era a sua filha, filha de sua união legal, que orçava pelos vinte e poucos anos. Nascera no Brasil, dois anos após a sua chegada, um antes de abandonar o marido. A criada correu logo a atender a patroa:

 - Está no quintal conversando com a Aída, patroa.

 Maria era a sua copeira e Aída a lavadeira; no trem de sua casa, havia três criadas e ela, a antiga criada, gostava de lembrar-se do número das que tinha agora, para avaliar o progresso que fizera na vida.

 Não insistiu mais em perguntar pela filha e recomendou:

 - Vou sair. Fecha bem a porta da rua... Toma cuidado com os ladrões.

 Abotoou as luvas, concertou a fisionomia e pisou a calçada com um imponente ar de grande dama sob o seu caro chapéu de plumas brancas.

 A rua dava-lhe mais força de fisionomia, mais consciência dela. Como se sentia estar no seu reino, na região em que era rainha e imperatriz. O olhar cobiçoso dos homens e o de inveja das mulheres acabavam o sentimento de sua personalidade, exaltavam-no até. Dirigiu-se para a Rua do Catete com o seu passo miúdo e sólido. Era manhã e, embora andássemos pelo meado do ano, o sol era forte como se já verão fosse. No caminho trocou cumprimentos com as raparigas pobres de uma casa de cômodos da vizinhança.

 - Bom dia, "madama".

 - Bom dia.

 E debaixo dos olhares maravilhados das pobres raparigas, ela continuou o seu caminho, arrepanhando a saia, satisfeita que nem uma duquesa atravessando os seus domínios.

 O rendez-vous era para a uma hora; tinha tempo, portanto, de dar umas voltas à cidade. Precisava mesmo que o Freitas lhe desse uma quantidade maior. Já lhe falara a respeito pela manhã quando ele saiu, e tinha que buscá-la ao escritório dele.

 Tencionava comprar um mimo e oferecê-lo ao chauffeur do "Seu" Pope, o seu último amor, o ente sobre-humano que ela via coado através da beleza daquele "carro" negro, arrogante, insolente cortando a multidão das ruas, orgulhoso como um deus.

 Na imaginação, ambos, chauffeur e "carro", não os podia separar um do outro; e a imagem dos dois era uma única de suprema beleza, tendo a seu dispor a força e a velocidade do vento.

 Tomou o bonde. Não reparou nos companheiros de viagem; em nenhum ela sentiu uma alma; em nenhum ela sentiu um semelhante. Todo o seu pensamento era para o chauffeur, e o "carro". O automóvel, aquela magnífica máquina, que passava pelas ruas que nem um triunfador, era bem a beleza do homem que o guiava; e, quando ela o tinha nos braços, não era bem ele quem a abraçava, era a beleza daquela máquina que punha nela ebriedade, sonho e a alegria singular da velocidade. Não havia como aos sábados em que ela, recostada às almofadas amplas, percorria as ruas da cidade, concentrava os olhares e todos invejavam mais o carro que ela, a força que se continha nele e o arrojo que o chauffeur moderava. A vida de centenas de miseráveis, de tristes e mendicantes sujeitos que andavam a pé, estava ao dispor de uma simples e imperceptível volta no guidão; e o motorista que ela beijava, que ela acariciava, era como uma divindade que dispusesse de humildes seres deste triste e desgraçado planeta.

 Em tal instante, ela se sentia vingada do desdém com que a cobriam, e orgulhosa de sua vida.

 Entre ambos, "carro" e chauffeur, ela estabelecia um laço necessário, não só entre as imagens respectivas como entre os objetos. O "carro" era como os membros do outro e os dois completavam-se numa representação interna, maravilhosa de elegância, de beleza, de vida, de insolência, de orgulho e força.

 O bonde continuava a andar. Vinha jogando pelas ruas em fora, tilintando, parando aqui e ali. Passavam carroças, passavam carros, passavam automóveis. O dele não passaria certamente. Era de "garage" e saía unicamente para certos e determinados fregueses que só passeavam à tarde ou escolhiam-no para a volta dos clubes, alta noite. O bonde chegou à Praça da Glória. Aquele trecho da cidade tem um ar de fotografia, como que houve nele uma preocupação de vista, de efeito de perspectiva; e agradava-lhe. O bonde corria agora ao lado do mar. A baía estava calma, os horizontes eram límpidos e os barcos a vapor quebravam a harmonia da paisagem.

 A marinha pede sempre o barco a vela; ele como que nasceu do mar, é sua criação; o barco a vapor é um grosseiro engenho demasiado humano, sem relações com ela. A sua brutalidade a violenta.

 A Lola, porém, não se demorou em olhar o mar, nem o horizonte; a natureza lhe era completamente indiferente e não fez nenhuma reflexão sobre o trecho que a via passar. Considerou dessa vez os vizinhos. Todos lhe pareciam detestáveis. Tinham um ar de pouco dinheiro e regularidade sexual abominável. Que gente!

 O bonde passou pela frente do Passeio Público e o seu pensamento fixou-se um instante no chapéu que tencionava comprar. Ficar-lhe-ia bem? Seria mais belo que o da Lúcia, amante do Adão "Turco"? Saltava de uma probabilidade para outra, quando lhe veio desviar da preocupação a passagem de um automóvel. Pareceu ser ele, o chauffeur. Qual! Num táxi? Não era possível. Afugentou o pensamento e o bonde continuou. Enfrentou o Teatro Municipal. Olhou-lhe as colunas, os dourados; achou-o bonito, bonito como uma mulher cheia de atavios. Na avenida, ajustou o passo, concertou a fisionomia, arrepanhou a saia com a mão esquerda e partiu ruas em fora com um ar de grande dama sob o enorme chapéu de plumas brancas.

 Nas ocasiões em que precisava falar ao Freitas no escritório, ela tinha por hábito ficar num restaurant próximo e mandar chamá-lo por um caixeiro. Assim ele lhe recomendava e assim ela fazia, convencida como estava de que as razões com que o Freitas lhe justificara esse procedimento eram sólidas e procedentes. Não ficava bem ao alto comércio de comissões e consignações que as damas fossem procurar os representantes dele nos respectivos escritórios; e, se bem que o Freitas fosse um simples caixa da casa Antunes, Costa & Cia., uma visita como a dela poderia tirar de tão poderosa firma a fama de solidez e abalar-lhe o crédito na clientela.

 A espanhola ficou, portanto, próximo e, enquanto esperava o amante, pediu uma limonada e olhou a rua. Naquela hora, a Rua Primeiro de Março tinha o seu pesado transito habitual de grandes carroções, pejados de mercadorias. O movimento quase se cingia a homens; e se, de quando em quando, passava uma mulher, vinha num bando de estrangeiros recentemente desembarcados.

 Se passava um destes, Lola tinha um imperceptível sorriso de mofa. Que gente! Que magras! Onde é que foram descobrir aquela magreza de mulher? Tinha como certo que, na Inglaterra, não havia mulheres bonitas nem homens elegantes.

 Num dado momento, alguém passou que lhe fez crispar a fisionomia. Era a Rita. Onde ia àquela hora? Não lhe foi dado ver bem o vestuário dela, mas viu o chapéu, cuja pleureuse lhe pareceu mais cara que a do seu. Como é que arranjara aquilo? Como é que havia homens que dessem tal luxo a uma mulher daquelas? Uma mulata...

 O seu desgosto sossegou com essa verificação e ficou possuída de um contentamento de vitória. A sociedade regular dera-lhe a arma infalível...

 Freitas chegou afinal e, como convinha à sua posição e à majestade do alto comércio, veio em colete e sem chapéu. Os dois se encontraram muito casualmente, sem nenhum movimento, palavra, gesto ou olhar de ternura.

 - Não trouxeste Mercedes? perguntou ele.

 - Não... Fazia muito sol...

 O amante sentou-se e ela o examinou um momento. Não era bonitos muito menos simpático. Desde muito verificara isso; agora, porém, descobrira o máximo defeito da sua fisionomia. Estava no olhar, um olhar sempre o mesmo, fixo, esbugalhado, sem mutações e variações de luz. Ele pediu cerveja, ela perguntou:

 - Arranjaste?

 Tratava-se de dinheiro e o seu orgulho de homem do comércio, que sempre se julga rico ou às portas da riqueza, ficou um pouco ferido com a pergunta da amante.

 - Não havia dificuldade... Era só vir ao escritório... Mais que fosse...

 Lola suspeitava que não lhe fosse tão fácil assim, mas nada disse. Explorava habilmente aquela sua ostentação de dinheiro, farejava "qualquer coisa" e já tomara as suas precauções.

 Veio a cerveja e ambos, na mesa do restaurant, fizeram um numeroso esforço para conversar. O amante fazia-lhe perguntas: Vais à modista? Sais hoje à tarde? -ela respondia: sim, não. Passou de novo a Rita. Lola aproveitou o momento e disse:

 - Lá vai aquela "negra".

 - Quem?

 - A Rita.

 - A Ritinha!... Está agora com o "Louro", croupier do Emporium.

 E em seguida acrescentou:

 - Está muito bem.

 - Pudera! Há homens muito porcos.

 - Pois olha: acho-a bem bonita.

 - Não precisavas dizer-me. És como os outros... Ainda há quem se sacrifique por vocês.

 Era seu hábito sempre procurar na conversa caminho para mostrar-se arrufada e dar a entender ao amante que ela se sacrificava vivendo com ele. Freitas não acreditava muito nesse sacrifício, mas não queria romper com ela, porque a sua ligação causava nas rodas de confeitarias, de pensões chics e jogo muito sucesso. Muito célebre e conhecida, com quase vinte anos de "vida ativa", o seu college com a Lola, que, se não fora bela, fora sempre tentadora e provocante, punha a sua pessoa em foco e garantia-lhe um certo prestígio sobre as outras mulheres.

 Vendo-a arrufada, o amante fingiu-se arrependido do que dissera, e vieram a despedir-se com palavras ternas.

 Ela saiu contente com o dinheiro na carteira. Havia dito ao Freitas que o destinava a uma filha que estava na Espanha; mas a verdade era que mais de metade seria empregada na compra de um presente para o seu motorista amado. Subiu a Rua do Ouvidor, parando pelas montras das casas de jóias. Que havia de ser? Um anel? Já lhe havia dado. Uma corrente? Também já lhe dera uma. Parou numa vitrine e viu uma cigarreira. Simpatizou com o objeto. Parecia caro e era ofuscante: ouro e pedrarias - uma cousa de mau gosto evidente. Achou-a maravilhosa, entrou e comprou-a sem discutir.

 Encaminhou-se para o bonde cheia de satisfação. Aqueles presentes como que o prendiam mais a ela; como que o ligavam eternamente à sua carne e o faziam entrar no seu sangue.

 A sua paixão pelo chauffeur durava havia seis meses e encontravam-se pelas bandas da Candelária, em uma casa discreta e limpa, bem freqüentada, cheia de precauções para que os freqüentadores não se vissem.

 - Faltava pouco para o encontro e ela aborrecia-se esperando o bonde conveniente. Havia mais impaciência nela que atraso no horário. O veículo chegou em boa hora e Lola tomou-o cheia de ardor e de desejo. Havia uma semana que ela não se encontrava com o motorista. A última vez em que se avistaram, nada de mais íntimo lhe pudera dizer. Freitas, ao contrário do costume, passeava com ela; e só lhe fora dado vê-lo soberbo, todo de branco, casquette, sentado à almofada, com o busto ereto, a guiar maravilhosamente o carro lustroso. impávido, brilhante, cuja niquelagem areada faiscava como prata nova.

 Marcara-lhe aquele rendez-vous com muita saudade e vontade de vê-lo e agradecer-lhe a imaterial satisfação que a máquina lhe dava. Dentro daquele bonde vulgar, num instante, ela teve novamente diante dos olhos o automóvel orgulhoso, sentiu a sua trepidação, indício de sua força, e o viu deslizar, silencioso, severo, resoluto e insolente, pelas ruas em fora, dominado pela mão destra do chauffeur que ela amava.

 Logo ao chegar, perguntou à dona da casa se o José estava. Soube que chegara mais cedo e já fora para o quarto. Não se demorou muito conversando com a patroa e correu ao aposento.

 De fato, José estava lá. Fosse calor, fosse vontade de ganhar tempo, o certo é que já havia tirado de cima de si o principal vestuário. Assim que a viu entrar, sem se erguer da cama, disse:

 - Pensei que não viesses.

 - O bonde custou muito a chegar, meu amor.

 Descansou a bolsa, tirou o chapéu com ambas as mãos e foi direita à cama. Sentou-se na borda, cravou o olhar no rosto grosseiro e vulgar do motorista; e, após um instante de contemplação, debruçou-se e beijou-o, com volúpia, demoradamente.

 O chauffeur não retribuiu a carícia; ele a julgava desnecessária naquele instante. Nele, o amor não tinha prefácios, nem epílogos; o assunto ataca-se logo. Ela não o concebia assim: resíduos da profissão e o sincero desejo daquele homem faziam-na carinhosa.

 Sem beijá-lo, sentada à borda da cama, esteve um momento a olhar enternecida a má e forte catadura do chauffeur José começava a impacientar-se com aquelas filigranas. Não compreendia tais rodeios que lhe pareciam ridículos

 - Despe-te!

 Aquela impaciência agradava-lhe e ela quis saboreá-la mais. Levantou-se sem pressa, começou a desabotoar-se devagar, parou e disse com meiguice:

 - Trago-te uma coisa.

 - Que é? fez ele logo.

 - Adivinha!

 - Dize lá de uma vez.

 Lola procurou a bolsa, abriu-a devagar e de lá retirou a cigarreira. Foi até ao leito e entregou-a ao chauffeur. Os olhos do homem incendiaram-se de cupidez; e os da mulher, ao vê-lo satisfeito, ficaram úmidos de contentamento.

 Continuou a despir-se e, enquanto isso, ele não deixava de apalpar, de abrir e fechar a cigarreira que recebera. Descalçava os sapatos quando o José lhe perguntou com a sua voz dura e imperiosa:

 -Tens passeado muito no "Pope" ?

 - Deves saber que não. Não o tenho mandado buscar, e tu sabes que só saio no "teu".

 - Não estou mais nele.

 - Como?

 - Saí da casa... Ando agora num táxi.

 Quando o chauffeur lhe disse isso, Lola quase desmaiou; a sensação que teve foi de receber uma pancada na cabeça.

 Pois então, aquele deus, aquele dominador, aquele supremo indivíduo descera a guiar um táxi sujo, chocalhante, mal pintado, desses que parecem feitos de folha-de-flandres! Então ele? Então... E aquela abundante beleza do automóvel de luxo que tão alta ela via nele, em um instante, em um segundo, de todo se esvaiu. Havia internamente. entre as duas imagens, um nexo que lhe parecia indissolúvel, e o brusco rompimento perturbou-lhe completamente a representação mental e emocional daquele homem.

 Não era o mesmo, não era o semideus, ele que estava ali presente; era outro, ou antes, era ele degradado, mutilado, horrendamente mutilado. Guiando um táxi... Meu Deus!

 O seu desejo era ir-se, mas, ao lhe vir esse pensamento, o José perguntou:

 - Vens ou não vens?

 Quis pretextar qualquer cousa para sair; teve medo, porém, do seu orgulho masculino, do despeito de seu desejo ofendido .

 Deitou-se a seu lado com muita repugnância, e pela última vez.