quinta-feira, 28 de março de 2013

Isaac Leib Peretz (Bontsha, o Silencioso)

(1852-1915 - Polônia)
Judeu polonês que escrevia em iídish, lsaac Leib Peretz deixou uma enorme influência em inúmeros escritores judaicos contemporâneos, pelo mundo todo. Seus contos constam em várias antologias mundiais, principalmente publicados nos Estados Unidos. Histórias como As Três Prendas, Dois Moribundos e este Bontsha, o Silencioso, retrato de um ser humano que nunca sentiu ódio e que nunca se queixa de Deus ou dos outros homens, são contos consagrados. De amor pela vida e de um humor (quase) pungente.
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Aqui, neste mundo, a morte de Bontsha, o Silencioso, não causou nenhuma impressão. Pergunte a qualquer um: quem foi Bontsha? Como viveu? Como morreu? Suas forças pouco a pouco o abandonaram, seu coração, com o tempo, desistiu de bater ou foram seus ossos que cederam debaixo do peso de seu fardo? Quem sabe? Talvez, por não comer, tenha morrido de fome.

Um cavalo, que caísse morto, puxando uma carroça pelas ruas, chamaria mais atenção. Curiosos viriam de longe para ver a carcaça. O local do acidente ficaria marcado. Os jornais noticiariam o fato. Mas se os cavalos fossem tão numerosos como os seres humanos não mereceriam tal honra. Afinal, quantos cavalos existem? Já os homens, são tantos - deve haver bilhões!

Bontsha era um ser humano. Viveu desconhecido, no silêncio, e no silêncio morreu, depois de passar pela vida como uma sombra. No dia em que Bontsha nasceu, ninguém ficou alegre, ninguém tomou um copo de vinho. Na sua confirmação, não houve discurso nem celebração. Viveu como o grão de areia na beira do grande oceano, entre milhões de outros, grãos como ele. E quando o vento, enfim, o levantou e levou com seu sopro para a outra margem, ninguém notou.

Durante sua vida, seus pés não deixaram marcas no pó da estrada; depois de sua morte, o vento derrubou a tabuleta que marcava sua sepultura, e quando a mulher do coveiro encontrou aquele pedaço de madeira, já longe do seu túmulo, usou-o para acender o fogo embaixo de uma panela de batatas. Três dias depois da morte de Bontsha ninguém mais, nem mesmo o coveiro, se lembrava onde fora enterrado. Se houvesse uma lápide no túmulo, alguém poderia, mesmo muitos anos depois, ler seu nome na pedra e Bontsha, o Silencioso, não teria desaparecido da memória dos homens como uma sombra.

Solitário viveu e solitário morreu. Não fosse a pressa e o barulho infernal em que vivem os homens, talvez alguém notasse que Bontsha também era um ser humano, que seus ossos se quebravam sob o peso das tarefas diárias, que ele tinha dois olhos assustados, que era trêmula sua boca silenciosa, que mesmo quando não tinha um pesado fardo nas costas ele caminhava curvado, olhando para o chão, como se já estivesse procurando a sepultura.

Quando o levaram para o hospital, dez miseráveis disputaram seu canto estreito que logo encontrou um inquilino. Quando foi para o necrotério, havia vinte doentes que só esperavam que ele morresse e vagasse seu leito na enfermaria. Eram quarenta os mortos a serem sepultados, quando o levaram para o cemitério. Quem sabe quantos esperam para roubar dele até mesmo aquele pedacinho de chão?

Silencioso quando nasceu, silencioso na vida, silencioso quando morreu, mais silencioso ainda foi seu enterro. Mas no outro mundo foi diferente. Ali a morte de Bontsha foi uma sensação. O som da trombeta messiânica ecoou pelos sete céus, anunciando: Bontsha, o Silencioso, morreu! Os anjos mais importantes voaram, com suas asas imponentes, para contar uns aos outros: Sabe quem chegou? Bontsha! Bontsha, o Silencioso, morreu.

Os anjinhos, com suas asas de ouro e seus sapatinhos prateados, os olhos brilhando e rindo de felicidade e de alegria, correram, cantando, para receber Bontsha. O rumor que fizeram com suas asas, o bater de seus pequenos sapatos e seu riso cristalino correram por todo o Paraíso, de forma que até Deus soube que Bontsha, o Silencioso, havia chegado.

Nosso pai Abraão esperava por ele no portão, com braços estendidos para abençoar e acolher:

- A paz esteja contigo! - disse com o rosto, patriarcal e vincado, iluminado por um doce sorriso.

Mas o que está acontecendo no céu? Dois anjos trazem um trono dourado para que Bontsha se sente nele e sobre sua cabeça colocam uma coroa de pedras preciosas.

- Mas por que o trono e a coroa? Antes mesmo que ele seja julgado? - se perguntam os santos com uma pontinha de inveja.

Os anjos respondem que aquele é Bontsha e que seu julgamento será apenas uma formalidade. Quem poderia dizer alguma coisa contra ele? Imaginem, Bontsha, o Silencioso!

Quando se viu recebido por um coro de anjinhos e abraçado pelo patriarca Abraão como se fossem velhos amigos, quando viu preparado para si um trono e sua cabeça coberta por uma coroa, quando ouviu que em seu julgamento final nada seria dito contra ele, Bontsha, como fazia em vida, ficou em silêncio. Ficou em silêncio de medo. Com o coração apertado e o sangue correndo gelado; sabendo que tudo isto só podia ser um sonho ou um terrível engano.

Ele estava acostumado às duas coisas, sonhos e enganos. Quantas vezes não sonhara ser rico, com muito dinheiro! Apenas para acordar na mesma cama de sempre e um pouco mais miserável. Quantas vezes alguém lhe dissera uma palavra gentil com um sorriso! Apenas para afastar-se com nojo e irritação ao perceber o engano.

Não ousava levantar os olhos, fazer um movimento, como não ousara responder à saudação do patriarca (seus lábios não conseguiram formar a palavra "paz"). Tinha medo que um gesto seu fizesse o sonho se dissipar e que ele acordasse num ninho de cobras. Medo que uma palavra o denunciasse por quem não era, e descoberto o engano fosse expulso dali. Medo que o impedia de ouvir o coro angelical e de ver dançar em volta dele os querubins. Quando o conduziram, enfim, diante de Deus no Tribunal do Juízo, não foi, ao menos, capaz de dizer "bom dia". Estava paralisado de medo.

Olhando para o chão belíssimo, que só fazia aumentar seu terror quando via que eram seus pés que pisavam ali, tudo que conseguia pensar era: "Quem sabe com que ricaço importante ou sábio rabino me confundem? Ele aparecerá e será o meu fim E fechou os olhos para não ver.

Não conseguiu entender o que diziam quando chamaram seu próprio nome. Ouvia as vozes como quem houve um instrumento musical sem dar sentido às palavras. Uma voz de anjo dizia:

- Bontsha, o Silencioso, um nome que o cobre de glória como nem o mais rico e elegante dos mantos jamais cobriu um príncipe...

"O que será que estão dizendo? De quem estarão falando?", pensava Bontsha, a quem parecia ter ouvido seu nome, enquanto outra voz interrompia seu anjo defensor:

- Rico manto! Príncipe! Poupe-nos as metáforas e o tempo.

- Nunca reclamou - continuou a defesa - nem de Deus nem da vida; em seus olhos nunca se viu traço de mágoa ou despeito. Nunca um protesto aos céus.

Bontsha continuava sem entender do que falavam quando outra vez ouviu a voz do promotor:

- Deixemos, por favor, a retórica!

- Seus sofrimentos foram indescritíveis, temos aqui um homem que padeceu mais que Job!

"Quem?" - pensava Bontsha - "Quem será este homem?"

- Fatos! Fatos! Deixe de lado os floreios e atenha-se, por favor, aos fatos! disse o juiz.

- No oitavo dia foi circuncidado...

- Tanta riqueza de detalhes é desnecessária.

- Fizeram um talho mal feito e nem ao menos lhe estancaram o sangue...

- Desnecessária e de mau gosto.

- Desde criança sempre silencioso. Não chorava sua dor, nem mesmo quando perdeu sua mãe e foi entregue à víbora, à bruxa, que era sua madrasta!

"Será que falam de mim?" - pensou Bontsha.

- Não é a madrasta quem está sendo julgada - advertiu o juiz.

- Eram contados os pequenos pedaços de pão bolorento e duro que lhe dava. Enquanto ela mesma tomava seu café com creme. A única coisa que Bontsha teve com abundância foram maus tratos. Equimoses e cicatrizes ficavam à vista de todos, através dos rasgos, nos trapos que lhe dava para vestir. No inverno fazia-o cortar lenha descalço no frio quintal coberto de neve. Suas mãozinhas eram fracas e se feriam nos troncos pesados demais para elas. Tantas vezes seus pés congelaram. Mas ele sempre em silêncio, sem nunca uma queixa, nem mesmo ao seu pai...

- Aquele bêbado? Imaginem queixar-se a ele! - a voz do promotor era cheia de escárnio enquanto o corpo de Bontsha tremia com a memória do medo antigo.

- Nunca reclamou e sempre tão só. Jamais teve um amigo, um companheiro. Jamais foi a uma escola. Nunca viu uma muda de roupa nova. Nunca soube o que era um momento
de liberdade.

- Objeção! Objeção! - gritou irritado o promotor. - Ele está apenas apelando para o sentimentalismo da Corte, com esses vôos de retórica.

- Silencioso! Mesmo quando seu pai, completamente embriagado, atirou-o para fora de casa, na neve fria de uma noite de inverno, ele não disse nada. Levantou-se em silêncio e andou para onde o levaram seus passos.

- Vagou pelo mundo na miséria e em silêncio; mesmo passando fome, ele implorava apenas com o olhar. Finalmente, numa noite chuvosa de início de primavera seus passos o levaram (como o vento transporta uma folha) para uma grande cidade. Lá entrou sem ser visto nem ser ouvido, mas, mesmo assim, o jogaram numa prisão. Sempre em silêncio não protestou nem perguntou: "Por quê?" "Que foi que eu fiz?" Quando as portas da prisão se abriram, ele saiu, como havia entrado, sem dizer uma palavra. Procurou um trabalho e deram-lhe o mais pesado e o que pagava menos. Ele aceitou em silêncio! Mais terrível que o trabalho era procurar por trabalho, suando frio, com o estômago torturado pela fome. Sempre em silêncio! Enlameado e sujo, era, com desprezo, expulso das calçadas e obrigado a andar pela rua, entre as bestas e os carros, com sua carga. Ele mesmo uma besta de carga, arriscando o pescoço a cada passo. Em silêncio.

- Nunca se preocupou em saber quantos quilos de carga devia carregar, .nem quantas viagens devia fazer, tropeçando a cada passo para ganhar uma moeda. Nunca levantou a voz para reclamar sua paga. Como um mendicante, esperava que lhe dessem o que de direito era seu. Esperava na porta em silêncio; se lhe diziam: "Volte mais tarde", desaparecia como uma sombra, e mais tarde voltava como uma sombra para esperar. Nunca reclamou quando lhe pagavam menos ou davam-lhe, misturada às outras, uma moeda falsa. A tudo suportava em silêncio.

- Uma vez - continuou o anjo defensor - sua sorte pareceu mudar. Que milagre aconteceu? Quando cruzava a rua, Bontsha viu uma carruagem que vinha em disparada com os cavalos sem governo. Seu cocheiro estava caído lá atrás com a cabeça sangrando. Dentro dela um homem mais morto que vivo de pânico. Os cavalos assustados espumavam pela boca e em seus olhos selvagens brilhava uma luz que era como o fogo numa noite escura. Bontsha atirou-se às rédeas e conseguiu parar os cavalos. O homem a quem salvara era rico e generoso e não foi ingrato, pôs nas mãos dele o chicote do cocheiro morto e fez de Bontsha seu novo cocheiro. Um cocheiro! Não mais um carregador! Melhor ainda, seu benfeitor conseguiu-lhe uma esposa na qual, com grande generosidade, fez ele mesmo um filho para que Bontsha criasse. E Bontsha, em silêncio ainda desta vez, não reclamou.

"É de mim que falam" - pensou Bontsha - "é realmente de mim!" - Mas ainda assim não teve coragem para abrir os olhos e olhar seus juizes.

- Resignou-se em silêncio - prosseguiu o anjo - quando, falido, seu benfeitor deixou de pagar-lhe todos os salários atrasados. Aceitou sem uma queixa quando sua esposa o abandonou deixando-lhe seu filho, ainda pequeno, para que ele cuidasse. E permaneceu em silêncio, quando, quinze anos mais tarde, aquele mesmo menino que ele criara estava crescido e forte o bastante para botá-lo para fora de sua própria casa.

"É de mim que estão falando" - pensou Bontsha, ainda com medo - "é de mim mesmo!"

- Ficou em silêncio até mesmo quando - continuou o anjo que o defendia - o benfeitor, tendo resolvido seus problemas econômicos e novamente rico, pagou a todos seus credores e não se lembrou de pagar a ele. E, mais ainda, contratou um novo cocheiro para sua bela carruagem enquanto Bontsha trabalhava outra vez como carregador pelas ruas. E, quando foi atropelado, por esta mesma carruagem com seus belos cavalos, suas rodas de borracha e seu novo cocheiro, nem então, Bontsha, agonizando na rua, teve uma palavra amarga. Nem mesmo à polícia ele disse quem o havia atropelado e abandonado na rua. No hospital, onde todos têm o direito de gemer, Bontsha continuou em silêncio; quieto em seu leito, abandonado por médicos e enfermeiros, que não perdem tempo com quem não pode pagar. Sempre assim, sem um murmúrio! Quando a morte chegou, ele a esperava em silêncio. Nunca um protesto contra os homens, nunca um protesto contra Deus!

A defesa havia terminado e o pânico voltou a tomar conta de Bontsha; agora, ele sabia, viria a fala do promotor. Como o defensor, que o fizera lembrar de tantos detalhes de sua vida na Terra, seria agora a vez da acusação de tirar do passado seus pecados e faltas e trazê-los todos de volta à memória. Deus sabe o que ele iria lembrar!

- Senhores! - começou o anjo acusador, com uma voz seca e dura, mas logo fez uma pausa como se não soubesse como continuar. - Senhores! - começou outra vez e finalmente disse - Senhores, como Bontsha, que passou toda a vida em silêncio, eu também ficarei em silêncio.

Sobre o Tribunal caiu um grande silêncio que foi quebrado por fim por uma voz nova. Uma voz que vinha do mais alto trono. Uma voz terna e amorosa:

- Bontsha, meu filho! Bontsha - a voz era como música -, filho do meu coração!

Bontsha foi tocado, pela voz de Deus, no mais íntimo de seu ser. Sua alma começou a chorar. E era tão doce chorar. Nunca Bontsha pensara que chorar pudesse ser tão doce.

- Meu filho...

Nunca, desde que sua mãe morrera, ninguém o chamara assim. Com uma voz assIm.

- Meu filho - ele continuou ouvindo -, você sofreu tanto e nunca se queixou. Não existe um lugar em seu coração que não tenha sido ferido. Não existe lugar no seu corpo que não tenha sangrado. Nenhum lugar em sua alma que não fosse ofendido. Sem um protesto, sempre em silêncio.

- Em vida ninguém o compreendeu. Você mesmo não se compreendeu. Que não era necessário suportar tanto. Que tinha o direito de se lamentar. Que seu lamento chegaria ao céu. Que um gemido seu poderia chamar um exército de anjos vingadores e o próprio fim do mundo. Nunca entendeu o poder adormecido que havia em você. Lá, naquele mundo de ilusões, seu silêncio nunca foi recompensado, mas aqui no Paraíso, é tudo seu. Não apenas uma parte, não uma cota, mas tudo. O Paraíso é seu! O que você quiser, é tudo seu!

Então, Bontsha, ousou finalmente levantar os olhos. A luz o cegava. A luz esplendorosa que estava em tudo e em toda parte. Os anjos brilhando na luz, o trono iluminado.

Ele baixou novamente os olhos, ofuscados:

- Verdade? - Perguntou incrédulo e um pouco embaraçado.

- Sim, de verdade! - respondeu o Todo Poderoso, e com ele, numa só voz, todo o coro celestial - É tudo seu! Tudo no Paraíso é seu! Escolha! Tome! É tudo seu! Você estará tomando daquilo que já é seu!

- Nesse caso - disse Bontsha, sorrindo pela primeira vez -, nesse caso, Excelência, eu gostaria de ter todos os dias, no café da manhã, um pãozinho quente com bastante manteiga.

Um silêncio terrível tomou conta do Tribunal, mais terrível ainda do que tinha sido o silêncio de Bontsha durante toda sua vida. E Deus e os anjos baixaram a cabeça, envergonhados de terem criado na Terra tanta e tão desnecessária humildade.

Então o silêncio foi quebrado pela gargalhada amarga do anjo acusador.

(Tradução de Octávio Marcondes)

Fonte: Os 100 melhores contos de humor da literatura universal / Flávio Moreira da Costa (org.).Rio de Janeiro: Ediouro, 2001

Afonso Arinos (Assombramento) Parte 2


Enoitara-se o escampado e, com ele, o rancho e a tapera. O rolo de cera, há pouco aceso e pregado ao pé direito do rancho, fazia uma luz fumarenta. Embaixo da tripeça, o fogo estalava ainda. De longe vinham aí morrer as vozes do sapo-cachorro que latia lá num brejo afastado, sobre o qual os vaga-lumes teciam uma trama de luz vacilante. De cá se ouvia o resfolegar da mulada pastando, espalhada pelo campo. E o cincerro da madrinha, badalando compassadamente aos movimentos do animal, sonorizava aquela grave extensão erma.

As estrelas, em divina faceirice, furtavam o brilho às miradas dos tropeiros que, tomados de langor, banzavam, estirados nas caronas, apoiadas as cabeças nos serigotes, com o rosto voltado para o céu.

Um dos tocadores, rapagão do Ceará, pegou a tirar uma cantiga. E pouco a pouco, todos aqueles homens errantes, filhos dos pontos mais afastados desta grande pátria, sufocados pelas mesmas saudades, unificados no mesmo sentimento de amor à independência, irmanados nas alegrias e nas dores da vida em comum, responderam em coro, cantando o estribilho. A princípio timidamente, as vozes meio veladas deixaram entreouvir os suspiros; mas, animando-se, animando-se, a solidão foi se enchendo de melodia, foi se povoando de sons dessa música espontânea e simples, tão bárbara e tão livre de regras, onde a alma sertaneja soluça ou geme, campeia vitoriosa ou ruge traiçoeira irmã gêmea das vozes das feras, dos roncos da cachoeira, do murmulho suave do arroio, do gorjeio delicado das aves e do tétrico fragor das tormentas. O idílio ou a luta, o romance ou a tragédia viveram no relevo extraordinário desses versos mutilados, dessa linguagem brutesca da tropeirada.

E, enquanto um deles, rufando um sapateado, gracejava com os companheiros, lembrando os perigos da noite nesse ermo consistório das almas penadas - outro, o Joaquim Pampa, lá das bandas do sul, interrompendo a narração de suas proezas na campanha, quando corria à cola da bagualada, girando as bolas no punho erguido, fez calar os últimos parceiros que ainda acompanhavam nas cantilenas o cearense peitudo, gritando-lhes:

- Ché, povo! Tá chegando a hora!

O último estribilho:

Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar

expirou magoado na boca daqueles poucos, amantes resignados, que esperavam um tempo mais feliz, onde os corações duros das morenas ingratas amolecessem para seus namorados fiéis:

Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar

O tropeiro apaixonado, rapazinho esguio, de olhos pretos e fundos, que contemplava absorto a barra do céu ao cair da tarde, estava entre estes. E quando emudeceu a voz dos companheiros ao lado, ele concluiu a quadra com estas palavras, ditas em tom de fé profunda, como se evocasse mágoas longo tempo padecidas:
Rio Preto há de dar vau

Té pra cachorro passar!

- Tá chegando a hora!

- Hora de que, Joaquim?

- De aparecerem as almas perdidas. Ih! Vamos acender fogueiras em roda do rancho.

Nisto apareceu o Venâncio, cortando-lhes a conversa.

- Gente ! O patrão já está na tapera. Deus permita que nada lhe aconteça. Mas vocês sabem: ninguém gosta deste pouso mal-assombrado.

- Escute, tio Venâncio. A rapaziada deve também vigiar a tapera. Pois nós havemos de deixar o patrão sozinho?

- Que se há de fazer? Ele disse que queria ver com os seus olhos e havia de ir só, porque assombração não aparece senão a uma pessoa só que mostre coragem.

- O povo diz que mais de um tropeiro animoso quis ver a coisa de perto; mas no dia seguinte, os companheiros tinham que trazer defunto para o rancho porque, dos que dormem lá, não escapa nenhum.

- Qual, homem! Isso também não! Quem conta um conto acrescenta um ponto. Eu cá não vou me fiando muito na boca do povo, por isso é que eu não gosto de pôr o sentido nessas coisas.

A conversa tornou-se geral e cada um contou um caso de coisa do outro mundo. O silêncio e a solidão da noite, realçando as cenas fantásticas das narrações de há pouco, filtraram nas almas dos parceiros menos corajosos um como terror pela iminência das aparições.

E foram-se amontoando a um canto do rancho, rentes uns aos outros, de armas aperradas alguns e olhos esbugalhados para o indeciso da treva; outros, destemidos e gabolas, diziam alto.

- Cá por mim, o defunto que me tentar morre duas vezes, isto tão certo como sem dúvida - e espreguiçavam-se nos couros estendidos, bocejando de sono.

Súbito, ouviu-se um gemido agudo, fortíssimo, atroando os ares como o último grito de um animal ferido de morte.

Os tropeiros pularam dos lugares, precipitando-se confusamente para a beira do rancho.

Mas o Venâncio acudiu logo, dizendo:

- Até aí vou eu, gente ! Dessas almas eu não tenho medo. Já sou vaqueano velho e posso contar. São as antas-sapateiras no cio. Disso a gente ouve poucas vezes, mas ouve. Vocês têm razão: faz medo.

E os paquidermes, ao darem com o fogo, dispararam, galopando pelo capão adentro.
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continua…

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 27. Justiça

Íamos hoje para a cidade na marcha habitual, nem muito rápida, nem propriamente vagarosa. Circunstância notável, se bem que ordinária -o bonde não correu nem por um instante fora dos trilhos. Entretanto, chocou de repente com um automóvel, e surgiu uma grande discussão a respeito de se saber a quem tocava a culpa, se ao motorista, se ao chauffeur.

Entrou em função o juiz que há dentro de cada indivíduo, e as sentenças divergiam.

-"Foi esse negrinho estúpido," dizia um, indigitando o chauffeur.

-"O culpado é esse louco desse portuga," asseverava outro, referindo-se ao motorista.

-"Cadeia com eles, é o que eu vivo a dizer."

-"Qual! só a pau."

-"Por milagre não houve coisa muito pior: olhe como ficou a máquina."

-"Foi pena que não ficasse ainda mais escangalhada, era menos uma."

-"Mas o bonde podia bem ter parado a tempo."

-"Não podia, aqui é um declive."

-"Seu guarda, o culpado é o chauffeur."

-"Não, seu guarda, o culpado é o motorneiro."

E cada juiz era também um partidário, ou do lado do homem do bonde, ou do lado do homem do automóvel. Por simpatia física, por espírito de nacionalidade ou de raça, por disposição mais favorável a uma das classes de automedontes, por ter ou não automóvel, por ter ou não ter um parente chauffeur ou automobilista, por mero palpite, cada um propendeu imediatamente para uma das bandas.

Mas, valha a verdade, havia também homens imparciais, por exceção. Um destes, abanando a cabeça, e afastando-se do burburinho, me ponderou tranqüilamente:

-"Ora, ora! Quem foi, quem não foi... Eu o que fazia era pegar nos dois e socá-los no xilindró: é aí, seus danados! Esta corja..."

Fonte:
Domínio Público

O Nosso Português de Cada Dia (Pegadinhas do Português) 6

Pegadinha 27

Viemos aqui, nesta hora, expressar nosso agradecimento pelo grande favor que nos fizeram.
Neste caso, apresenta-se um verbo comumente usado de maneira errada em algumas de suas formas. Nesta oportunidade falaremos apenas sobre um desses deslizes cometidos com o uso indevido do verbo vir. Ninguém diz: "estivemos aqui, nesta hora." Diz-se, porém, no tempo certo: "estamos aqui, nesta hora." Se é "nesta hora" que o fato ocorre, então, o verbo deve estar no presente.

Então, depois da correção, tem sua frase inicial assim escrita:

Vimos aqui, nesta hora, expressar nosso agradecimento pelo grande favor que nos fizeram.

Pegadinha 28

O político que se pode confiar ainda não nasceu.


Este é erro próprio da fala popular, linguagem que não está nem aí para a regência verbal. Erros desse tipo são muito explorados em provas de vestibulares e concursos públicos. Esteja alerta, caro leitor. A regência do verto confiar exige a preposição em, pois quem confia, confia em alguém, e não confia alguém.

Este tópico, depois da correção, tem sua frase inicial escrita assim:

O político em que se pode confiar ainda não nasceu.

Pegadinha 29

Traze-me uns pastelzinhos.

Neste tópico, focalizamos um aspecto muito explorado em provas de vestibulares e concursos públicos - o plural dos diminutivos em -zinho -, que é feito do seguinte modo:

A - leva-se o substantivo ao plural em seu grau normal: pastéis;
B - retira-se o s final: pastei;
C - acrescenta-se -zinhos, e pronto: pasteizinhos.

Outros exemplos:
pãezinhos
carreteizinhos
limõezinhos
caracoizinhos
aneizinhos

Depois da correção, a frase correta fica assim:

Traze-me uns pasteizinhos.

Pegadinha 30

O relógio marcou meio-dia e meio.

Esta pegadinha que, de vez em quando, figura em provas de vestibular e concurso, sempre acaba tirando candidatos do páreo. A palavra que se refere a horas é meia e não meio. Diz-se nove horas e meia, vinte horas e meia e assim por diante.

Então, depois da correção, temos a seguinte frase:

O relógio marcou meio-dia e meia.

Pegadinha 31

Ao comer, tenha cuidado com os espinhos de peixe.


Esta pegadinha apresenta mais uma popularização errônea de uma palavra. Peixe não tem espinhos. Isso é próprio de certas plantas e, quando muito, do porco-espinho. Peixe tem espinhas. É bom estar preparado para a ocorrência de casos como o desta dica, em provas de vestibular e concurso.

Então, depois da correção, temos a seguinte frase:

Ao comer, tenha cuidado com as espinhas de peixe.


Pegadinha 32

Nossa situação está russa.

Esta pegadinha nos adverte para não confundir estado físico ou mental com estado político. Russa refere-se à Rússia. Quando se quer dizer que a situação está feia, diz-se que está ruça (com ç), que significa a cor pardacenta, escura. Em provas de vestibular e concurso, não é raro questões desse gênero.

Então, depois da correção, temos a seguinte frase:

Nossa situação está ruça.

Pegadinha 33

O juiz leu os 3º, 4º e 5º parágrafos.

Eis um tema frequentemente cobrado em provas de vestibular e concurso — a concordância nominal. A frase em destaque, acima, está mal formulada quanto ao aspecto da concordância nominal. Mesmo que haja uma lista ou uma série de elementos antes do artigo, este deve concordar com o elemento mais próximo. O artigo deve ficar no singular, diante de palavra no singular. Exemplos:

Este cartório serve a 2ª e 3ª varas de família.
A revogação atingiu o 4º, 5º, 6º e 7º artigos da antiga lei.
Estamos discutindo o I e II itens do contrato.
A 1ª, 2ª e 3ª séries terão aulas de educação física.

Então, depois da correção, temos a seguinte frase:

O juiz leu o 3º, 4º e 5º parágrafos.

Pegadinha 34

O chefe reclamou porque a secretária não tinha entregue o relatório.

Nesta pegadinha, temos que considerar que existem duas línguas faladas no País — a culta e a popular. Esta é falada sem nenhuma preocupação com o idioma, enquanto aquela cujo conhecimento é exigido em provas de vestibular e concurso, subordina-se às normas da língua portuguesa falada no Brasil.

O verbo entregar possui dois particípios — entregue e entregado. Com os verbos ter e haver, usa-se entregado. Por outro lado, a forma entregue é usada com os verbos ser e estar. Exemplos:

A moça não havia entregado o bilhete.
João já tinha entregado as passagens.
Uma lista nova é entregue todas as manhãs.
Não se preocupe, a encomenda foi entregue.
A mercadoria está entregue.

A frase acima, depois de corrigida, fica assim:

O chefe reclamou porque a secretária não tinha entregado o relatório.

Fonte:
126 Pegadinhas em Língua Portuguesa. www.softwareebookecia.com.

Soares de Passos (A Fonte dos Amores)

Eis os sítios formosos, onde a triste
Nos dias d'ilusão viveu ditosa;
Eis a fonte serena, e os altos cedros
Que os segredos d'amor inda lhe guardam.
Oh! quantas vezes, solitária fonte,
Após longo vagar por esses campos
Do plácido Mondego, nestas margens
A namorada Inês veio assentar-se,
E ausente de seu bem carpir saudosa,
Aos montes e às ervinhas ensinando
O nome que no peito escrito tinha!
E quantas, quantas vezes no silêncio
Desta grata soidão viste os amantes,
Esquecidos do mundo e a sós felizes,
Nos êxtases da terra os céus gozando!

Pobre, infeliz Inês! breves passaram
Os teus dias d'amor e de ventura.
Ao régio moço o coração renderas,
E o que em todos é lei, em ti foi crime.
Eis do bárbaro pai, do rei severo,
Se arma a dextra feroz, ei-lo que aos sítios
Onde habitava amor conduz a morte.
Distante do teu bem, ao desamparo,
Ai! não pudeste conjurar-lhe as iras.
Debalde aos pés d'Afonso lacrimosa
Pediste compaixão; debalde em ânsias
Abraçando teus filhinhos inocentes,
Os filhos de seu filho, a natureza
Invocaste e a piedade: a voz dos ímpios,
Dos vis algozes, te abafou as queixas,
E o cego rei te abandonou aos monstros.
Ei-los a ti correndo, ei-los que surdos
Aos ais, aos rogos que tremendo soltas,
No palpitante seio cristalino,
Que tanto amou, oh bárbaros! os ferros,
Os duros ferros com furor embebem.
Prostrada, agonizante, os doces filhos
Por derradeira vez unes ao peito,
E de teu Pedro murmurando o nome,
Aos inocentes abraçada expiras.

Inda, infeliz Inês, inda saudosos
Estes sítios que amavas te pranteiam.
As aves do arvoredo, os ecos, brisas,
Parecem murmurar a infanda história;
Teu sangue tinge as pedras, e esta fonte,
A fonte dos amores, dos teus amores,
Como que em som queixoso inda repete
Às margens, e aos rochedos comovidos
Teu derradeiro, moribundo alento.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Guimarães Rosa (O Burrinho Pedrês)

Conto de Sagarana

Análise da obra

Conto narrado em 3ª pessoa. A onisciência do narrador é propositalmente relativizada, dando voz própria e encantamento às narrativas e acentuando sua dimensão mítica e poética.

Em O burrinho pedrês, primeiro dos nove contos, Guimarães procura mostrar, tendo como pano de fundo o mundo dos vaqueiros, que todos têm a sua hora e sua vez de ser útil. É o caso do burrinho Sete-de-Ouros: a gente segue a esperteza mansa do bicho, a sua finura de instinto e inteligência que o faz poupar-se, furtar-se a choques e maus pisos e, por fim, orientar-se e salvar-se numa cheia onde os cavalos afogam, carregando um bêbado às costas e ainda outro náufrago enclavinhado no rabo - ressalta Oscar Lopes.

O burrinho pedrês é uma estória que metaforiza a experiência da velhice, um burrinho experiente sabe se orientar onde cavalos de boa montaria sucumbem.

Neste conto, assim como em Conversa de bois e em A volta do marido pródigo, os animais se transformam em heróis, questionando o saber dos homens com o seu suposto não saber.

A ironia do escritor vale-se do decadente burrinho para pôr a nu a onipotência presunçosa do homem, que julga controlar o próprio destino, ignorando as inesperadas surpresas que este lhe reserva. A perspectiva místico-religiosa, a luta entre o bem e o mal, os riscos morais que acompanham o homem no perigoso ofício de viver, são os temas preponderantes que alimentam a ficção.

Em Sagarana renasce o anônimo “contador de estórias”, o homem-coletivo que se enraíza nos rapsódias gregas e nas canções de gesta medievais. Desde o início do conto ("Era um burrinho pedrês...") esboça-se claramente a atitude ingênua e espontânea da “palavra lúdica”, que não aprisiona o falar nos limites rígidos do individualismo, mas se identifica com a palavra anônima e coletiva.

Seja pela fórmula lingüística caracterizadora da narrativa elementar, da fábula, da lenda ("Era um burrinho..."), tempo e modo verbais que, de imediato, tiram à narrativa o caráter de coisa datada, para projetarem na esfera intemporal do universo de ficção; seja pela mescla de precisão e imprecisão documental no registro do espaço (vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão); seja pela dimensão antropomórfica (forma humana) que é dada à personagem central, o “burrinho-gente”, e que situa a narrativa na fronteira entre o real e o mágico; seja pela funcionalidade das cantigas inseridas no fluxo narrativo, tudo isso e muito mais nos revela, no universo da palavra rosiana, a presença do “homo ludens” (homem lúdico), descompromissado com as estruturas convencionais do pensamento lógico.

A trama desse conto, como nas demais narrativas de Guimarães Rosa, é relativamente simples. Publicado pela primeira vez em 1946, O burrinho pedrês é uma história sugerida por um acontecimento real, passado no interior de Minas Gerais, envolvendo um grupo de vaqueiros. É a história da condução de uma boiada em dia de fortes chuvas, em algum ponto indefinido do sertão, sob a tensão de uma maquinação ameaçadora de ciúme e crime. O seu desfecho, de todo surpreendente, só poderia ser ideado por um mestre da palavra e da criação literária. O foco da narrativa está centrado em um burrinho pedrês, que é testemunha de um trágico acidente. Em contraponto com a intriga que se desenvolve entre os boiadeiros, há episódios relacionados com o ciclo mítico do boi, onipresente na vida sertaneja. Pairando sobre tudo e todos, destaca-se a figura sábia e intensamente "humana" do burrinho pedrês, que aparece pouco na ação mas, como citado, domina o universo da narrativa.

O cenário é a Fazenda da Tampa, do Major Saulo, no interior de Minas Gerais.

O burrinho Sete-de-Ouros, protagonista da história, simboliza o peso da vida quando “Carregado de algodão”, o trabalho do burrinho, e metaforiza a carga dos homens, o peso do mundo, como fardos de algodão. “Preguntei: p’ra donde ia?” – a forma arcaica do verbo perguntar sugere a indagação permanente dos homens, sábios e filósofos: para quê?, por quê?, de onde?, para onde?. “P’ra rodar o mutirão” alude ao esforço coletivo, ao dever de solidariedade que o burrinho cumprirá na sua hora e na sua vez.

Desde esse primeiro conto, estão presentes os elementos fundamentais para compreendermos os contos de Sagarana. O nome do burrinho, Sete-de-Ouros, é recoberto pela magia de um número místico (sete) e pela força simbólica do ouro, indicador de superação e de transcendência paralquimistas. A travessia, a superação de obstáculos por ocultos caminhos é uma imagem freqüente em Guimarães Rosa, como também a presença de forças mágicas, da natureza, atuando sobre o mundo e mostrando as possibilidades de os fracos se tornarem fortes, de se saber uma vida no resumo exemplar de apenas um dia.

Personagens

Sete-de-Ouros - animal miúdo e resignado, idoso, muito idoso, beiço inferior caído. Outros nomes que tivera ao longo de anos e amos: Brinquinho, Rolete, Chico-Chato e Capricho.
Major Saulo - corpulento, quase obeso, olhos verdes. Só com o olhar mandava um boi bravo se ir de castigo. Estava sempre rindo: riso grosso, quando irado; riso fino, quando alegre; riso mudo, de normal. Não sabia ler nem escrever, mas cada ano ia ganhando mais dinheiro, comprando mais gado e terras.
João Manico - vaqueiro pequeno que montou o burrinho Sete-de-Ouros na ida. Na volta, trocou de montaria. Na hora de entrar na água, refugou, alegando resfriado, e escapou da morte.
Francolim - espécie de secretário do Major Saulo, encarregado de pôr ordem nos vaqueiros. Obedece cegamente às ordens do Major. Foi salvo, na noite da enchente, pelo burrinho Sete-de-Ouros.
Raymundão - vaqueiro de confiança do Major Saulo. Enquanto tocam a boiada, vai contando a história do zebu Calundu.
Zé Grande - vai à frente da boiada, tocando o berrante.
Silvino - vaqueiro; perdeu a namorada para Badu e planejava matar o rival na volta, depois de deixarem a boiada no arraial.

Resumo do conto

Na Fazenda da Tampa, do Major Saulo, os homens estão ultimando os últimos preparativos para sair pelo sertão, tocando uma boiada de bois de corte. O dia é de chuva, mas ela ainda não veio. Major Saulo ordena que os homens preparem os animais. Por zebra, o burrinho Sete-de-Ouros, presente ali na varanda da casa grande, também é escolhido para a viagem. Para montá-lo, o Major escolheu o vaqueiro João Manico.

Raymundão conta a história do touro Calundu. Não batia em gente a pé, mas gostava de correr atrás de cavaleiro. Certa vez, na proteção de um grupo de vacas com seus bezerros novinhos, Calundu enfrentou uma onça preta, amedrontando a fera e pondo-a para correr. Certa feita, o touro Calundu matou Vadico, filho do fazendeiro Neco Borges. O pai, vendo filho ensangüentado no chão, puxou o revólver para matar o touro. Vadico, antes de morrer, pediu que o pai não matasse Calundu. Neco Borges mandou o touro para outra fazenda para ser vendido ou dado a alguém. Raymundão foi quem levou o bicho. O zebu ficou uma noite apenas no curral. No outro dia, estava morto.

Depois da chuva grossa, a boiada chegou ao córrego da Fome. Estava cheio. A travessia era perigosa, e o Major Saulo pediu cautela. Ali já morrera muita gente. Mas a travessia é feita sem perda. Até o Sete-de-Ouros atravessou sem reclamar.

Em determinado ponto do caminho, Major Saulo ordenou que Francolim trocasse de montaria com João Manico. A ordem foi obedecida. Francolim fez um pedido ao Major: que, na entrada do povoado, a troca fosse desfeita. Não ficava bem para ele, encarregado do Major, ser visto montado no burrinho Sete-de-Ouros.

Badu está na fazenda há apenas dois meses e já tomou a namorada do Silvino. Por isso, os dois viraram inimigos, um querendo prejudicar o outro. Francolim já avisou o major sobre o perigo de um matar o outro. Raymundão acha que o caso não é para morte. A moça é meio caolha. O casamento com Badu já está marcado. Raymundão, em prosa com o Major, informou que Silvino vendeu umas quatro cabeças de gado por preço abaixo do normal. Outra informação que veio do Francolim: Silvino está com bagagem além do normal. O Major Saulo, antes da chegada ao povoado, determinou que Francolim, na volta, vigie Silvino o tempo todo. O Major está convencido de que Silvino já planejou a morte de Badu.

A chegada ao povoado foi uma festa. O povo, mesmo com a meia-chuva, foi para o curral da estrada de ferro ver o embarque. Depois, os animais ficaram descansando enquanto os vaqueiros andavam um pouco pelo povoado.

Na hora de ir embora, cada um pegou a sua montaria. Badu ficou por último: estava bêbado e tinha ido comprar um presente para sua morena. Por maldade, deixaram-lhe o burrinho Sete-de-Ouros. Na saída do povoado, alguém vaiou: Badu era por demais grande para o burrinho pedrês, os pés iam quase arrastando no chão. Já no fim do lugar, Francolim estava parado no meio da estrada, esperando Badu.

Francolim deixou Badu para trás e foi juntar-se ao grupo. Queria mesmo era ficar de olho em Silvino. Os dois, Silvino e o irmão Tote, iam bem na frente dos dois. Tote tentava dissuadir o mano para não matar Badu. Mas Silvino estava determinado. Esperava apenas o momento certo para fazer o serviço e cair no mundo.

João Manico, por insistência de todos, contou mais uma vez a história da boiada que estourou à noite, quando o Major Saulo, ainda novo, era tratado por Saulinho. No estouro, de madrugada, o gado passou por cima dos dois vaqueiros que estavam de vigia. Deles, só restou uma lama cor de sangue.

Viajavam à noite. De repente, os cavalos empacaram, pressentindo o mar de água. O Córrego da Fome transbordara, inundando tudo bem alem das margens. Todos aprovaram a idéia de esperar Badu e o burrinho Sete-de-Ouros. Se o burro entrasse na água, todos o seguiriam. É que burro não entra em lugar de onde não pode sair.

Sete-de-Ouros entrou levando Badu ás costas. Os cavalos seguiram-no. E foi uma tragédia: oito vaqueiros mortos naquela noite. Benevides, Silvino, Leofredo, Raymundão, Sinoca, Zé Grande, Tote e Sebastião. O burrinho Sete-de-Ouros, com Badu agarrado às crinas e Francolim agarrado à cauda, conseguiu atravessar o mar de águas em que se transformara o pequeno córrego. Já em terra firme, livrou-se de Francolim e seguiu ligeiro para a fazenda. Ali, livraram-no do vaqueiro, que dormia, e dos arreios.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/o_burrinho_pedres_conto

Ditados Populares do Brasil (Letra O)

O adeus é o fim da esperança e o começo da saudade.
O amor é igual ao sol: a nuvem cobre mas não apaga.
O amor não sendo firme, por qualquer coisa varia.
O assassino da distância, o acumulador da saudade.
O Brasil espera que cada um cumpra com seu débito.
O amor faz passar o tempo e o tempo faz passar o amor.
O Brasil produz e a Ford conduz.
O caminho da volta é fácil.
O chifre é como consórcio. Quando você menos espera, é contemplado.
O inferno é uma série de diabos, a mulher uma série de infernos.
O homem é como bicicleta, quando pára cai.
O homem nasce, cresce, fica bobo e casa.
O homem vence pela coragem e a mulher pelo carinho.
O homem pensa, a mulher dá o que pensar.
O maior peso do mundo é uma mulher leviana.
O mundo não vale o meu lar.
O poste é o limite.
O pouco que eu te vejo me ajuda a viver.
O problema do menor é o maior do Brasil.
O que bota pobre pra frente é topada.
O que levanta a cabeça do pobre é avião.
O que se escreve com a pena nem a machado se desfaz.
O terror da morte é a sentinela da vida.
O teu chamego não é amor, é labareda.
O amor é cego, mas vê muito longe.
O apressado come cru.
O barato sai caro
O boi sabe onde arromba a cerca.
O bom filho a casa torna
O coração tem razões que a própria razão desconhece.
O diabo quando não vem, manda.
O frade onde canta, janta. (Provérbio antigo quando os religiosos compareciam a saraus.)
O habito faz o monge.
O hábito não faz o monge
O homem é fogo, a mulher estopa, o diabo assopra
O homem na praça, e a mulher em casa.
O homem põe e Deus dispõe.
O homem prevenido vale por dois
O ímpio a própria sombra o amedronta, o justo é um leão que tudo afronta.
O ladrão cuida, que todos o são.
O macaco é quem está certo.
O melhor da festa é esperar por ela.
O melhor remédio para tristeza é consolar a alheia.
O olho do dono é que engorda o cavalo
O pior cego é o que não quer ver
O pior surdo é o que não quer ouvir
O prevenido morreu de velho, e o desconfiado ainda hoje é vivo.
O prevenido vale por dois.
O prometido é devido
O que dá pra rir, dá pra chorar.
O que é teu, às tuas mãos vai ter.
O que não mata, engorda
O que não tem remédio remediado está.
O que o berço dá, só a cova tira
O que os olhos não veem, o coração não sente
O que os olhos não vêem, o coração não sente.
O reverso da medalha.
O risco que sofre o pau, sofre o machado.
O sabio não diz o que sabe, o tolo não sabe o que diz
O sol nasce para todos
O tempo cicatriza as feridas do corpo e da alma
O tiro saiu pela culatra.
Ofereça ao vilão o dedo e ele lhe toma a mão.
Olhar de peixe morto.
Olho por olho, dente por dente
Onde há foguete, há festa.
Onde ha fumaça, há fogo
Onde há fumaça, há fogo.
Onde não entra o sol, entra o médico
Orvalho não enche poço.
Os cães ladram, e a caravana passa.
Os incomodados que se mudem.
Os maiores venenos estão nos menores frascos
Os melhores perfumes estão nos menores frascos
Os olhos do dono engordam o cavalo.
Os ultimos serão os primeiros
Ou vai, ou racha.
Ovelha que berra, bocado que perde.
Ovo gabado, ovo gorado.

terça-feira, 26 de março de 2013

Trova 257 - Dorothy Jansson Moretti (SP)

Imagem formatada com trova obtida no facebook da autora

Nicoló Maquiavel (Belfagor)

O florentino Nicoló Bemardo Maquiavel (1469-1527 - Itália), diplomata, homem de Estado, historiador e escritor, virou um nome consagrado (a ponto de virar adjetivo: "maquiavélico) como autor de O Principe, obra que é um marco do Renascimento italiano, até hoje indispensável nos estudos das ciências políticas. Belfagor, sua única história curta conhecida, está presente em várias antologias do humor universal.
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Nas antigas memórias das crônicas de Florença lê-se uma história relacionada a um homem santíssimo que, em meio à devassidão da época, era mui respeitado por todos seus contemporâneos. Certo dia, absorto em suas piedosas meditações, conseguiu ver que as almas dos infelizes mortais que morriam pecadores e que iam para o inferno lamentavam - se não todos, pelo menos a maior parte - que a razão de tal desdita devia-se ao fato de terem-se casado. Minos e Radamanto, juntos com outros juízes do inferno, ficaram deveras admirados e, não podendo dar crédito às calúnias que tais almas lançavam ao sexo feminino, deram ciência disso a Plutão, tanto mais que tais lamentações só faziam crescer. Plutão então deliberou examinar o caso de perto com todos os príncipes do Inferno para, só depois, tomar partido do que fosse julgado o mais conveniente para descobrir a falácia e saber a verdade por inteiro. Convocou-os, pois, ao conselho, e falou nos seguintes termos:

- Embora eu, meus diletos amigos, por disposição celeste e vontade do destino, e ainda que me encontre acima do juízo de Deus e dos homens, no entanto, como maior prova de sabedoria e prudência, resolvi consultar-vos hoje sobre a conduta que devo seguir num caso que poderia redundar em infâmia para nosso império. Todas as almas dos homens que entram em nosso reino pretendem ter sido causa disso a própria mulher, o que não nos parece possível. Condenando tal afirmação, talvez os levianos nos acusem de maldade; caso não o fizermos, talvez os injustos nos considerem demasiado indulgentes e pouco afeitos à justiça. Querendo evitar uma e outra acusação, e não encontrando um meio para tal, decidimos convocar-vos a fim de que nos ajudeis com vossos conselhos e façais com que este reino continue a viver sem infâmia, como sempre tem vivido.

Nenhum daqueles príncipes das trevas deixou de considerar o caso importantíssimo e de grande monta. Estavam todos de acordo em que era necessário descobrir a verdade, mas discordavam quanto à maneira de assim proceder. Alguns julgavam que se devia mandar um deles ao mundo, outros que vários, para ali pessoalmente conhecerem, sob a forma humana, qual era a verdade. A outros parecia desnecessário tal transtorno: bastaria obrigar algumas almas, por meios de diversos tormentos, a confessá-la.

No entanto, como a maioria optasse pela primeira opinião, foi essa a adotada. Mas ninguém se ofereceu voluntariamente para a empreitada; assim, recorreram eles a um sorteio. A sorte recaiu sobre Belfagor, arquidiabo, que anteriormente - antes de cair do Céu - tinha sido arcanjo.

Foi com relutância que ele aceitou o encargo, mas o poder de Plutão o constrangera a executar o que o conselho deliberara e teve assim que consentir nas condições solenemente aceitas por todos. Fora deliberado que aquele em quem recaísse a sorte receberia imediatamente cem mil ducados, e com eles viria nascer no mundo. A casar-se sob a forma de um homem e a viver com a mulher dez anos; depois, fingindo morrer, voltaria e exporia a seus superiores a própria vivencia, quais eram os encargos e os incômodos do casamento. Deliberou-se também que, durante o tempo em apreço, ele ficaria submetido a todos os achaques e males a que os homens estão sujeitos, inclusive a pobreza, a prisão, as doenças e todas as desgraças que aos mortais ocorrem, salvo se por meio de engano e astúcia conseguisse livrar-se delas.

Aceitas pois as condições e os ducados, foi-se Belfagor ao mundo e, devidamente provido de cavalos e acompanhantes, entrou ele em Florença com o maior aparato. Escolhera esta cidade para domicílio, entre todas as demais, por lhe parecer a mais plausível para quem quisesse viver empregando seu dinheiro em negócios. Fez-se chamar Rodrigo de Castela e alugou uma casa no bairro de Todos os Santos [Ognissanti]. Para que não pudessem lhe descobrir os antecedentes, disse ter partido da Espanha ainda criança; dali fora à Síria e a Alepo, onde ganhara tudo o que possuía; de lá viajara para a Itália e a fim de se casar num lugar mais humano e mais conforme à vida civilizada e à sua própria índole.

Era Rodrigo um moço formoso, que aparentava trinta anos. Em poucos dias demonstrara ele quantas riquezas tinha e dera provas de sua liberalidade e humanidade; logo vários cidadãos nobres, providos de muitas filhas e pouco dinheiro, lhe ofereceram seus préstimos. Entre todas, Rodrigo escolheu uma belíssima donzela chamada Honesta. Filha de Américo Donati, que tinha mais três filhas, quase em idade de se casar, e três filhos já adultos. De família muito nobre e tido em bom conceito em Florença, era no entanto muito pobre, levando-se em conta sua numerosa prole e sua condição.

Rodrigo celebrou suas núpcias com esplendor e grandeza, não descuidando de nada que seja necessário em tais circunstâncias, pois entre as obrigações que lhe foram impostas ao sair do Inferno, estava a de sujeitar-se a todos os caprichos humanos; assim, logo passou a deleitar-se com as honrarias e pompas do mundo e a gostar de ser louvado entre os homens, coisas que o levaram a grandes gastos. Por outro lado, não tardou muito a apaixonar-se perdidamente por sua D. Honesta e quase não conseguia viver quando a encontrava triste ou aborrecida.

Com sua nobreza e formosura, a senhora Honesta levara consigo para a casa de Rodrigo um orgulho tão desmesurado que mesmo Lúcifer não o tivera igual. Rodrigo, que podia comparar um e outro, considerava o de sua mulher infinitamente superior, e consta que ainda chegou a ser maior quando percebera o amor que seu marido sentia por ela. Imaginando ser por todas as maneiras a dona absoluta, dava suas ordens sem consideração ou piedade, e se ele relutasse a fazer as suas vontades, desatava em recriminações e injúrias, o que era para o pobre Rodrigo motivo de viva pena e aflição. Sem dúvida, por consideração a seu sogro, a seus cunhados e demais parentes, por respeito aos deveres do casamento e pelo amor que dedicava à esposa, sofria seus males com a maior paciência. Quero passar em silêncio sobre os grandes gastos a que era obrigado para contentá-la, vestindo segundo os novos costumes e as modas mais recentes, que nossa cidade varia por hábito natural; nem lembrarei que, para ela o deixar em paz, teve ele de ajudar o sogro a casar as outras filhas, o que lhe fez despender também considerável importância. Depois, querendo manter-se em boa paz com a mulher, consentiu em mandar um dos irmãos dela ao Oriente com casimira e outro para o Ocidente levando sedas, ao passo que para o terceiro irmão abriu em Florença uma oficina de ourives, em que despendeu a maior parte do dinheiro que possuía. Além disso, nas festas de Carnaval e de S. João, celebradas pela cidade inteira segundo tradição antiga, quando grande número de cidadãos nobres e ricos se honravam uns aos outros com magníficos banquetes, D. Honesta, para não ficar atrás de outras damas, queria que seu Rodrigo superasse a todos os demais com suas festas. Tudo isso, suportava-o Rodrigo pelos motivos supracitados; apesar de gravíssimas, nem graves as teria achado se houvessem introduzido a paz em sua casa, permitindo-lhe aguardar em sossego o momento de sua própria ruína. Mas foi o contrário o que aconteceu, pois a índole insolente da esposa, além das despesas insuportáveis, carreara-lhe inúmeros aborrecimentos. Nenhum criado a agüentava, não digo por muito tempo, mas nem sequer por alguns dias. Para Rodrigo era o mais duro dos incômodos não possuir um criado que tivesse amor a sua casa. Os próprios diabos que trouxera consigo como domésticos preferiram voltar aos fogos do Inferno a viver no mundo sob as ordens daquela mulher.

Assim prosseguia a vida tumultuada e inquieta de Rodrigo. Tendo já consumido nos gastos desenfreados o que recebera em espécie, começou a viver à espera das entradas financeiras que aguardava do Ocidente e do Oriente. Como ainda tivesse bom crédito, pediu dinheiro emprestado para não ficar aquém de sua condição; e já certo número de letras sacadas por ele circulavam na praça, o que logo foi percebido pelos que trabalhavam neste ramo de negócios. Já era bem precária a situação de Rodrigo quando, de súbito, chegaram notícias do Oriente e do Ocidente: aqui, um dos irmãos de D. Honesta perdera no jogo todo o dinheiro de Rodrigo; ali, o outro, ao voltar de um navio carregado de suas mercadorias, que não estavam no seguro, naufragou com toda a carga.

Mal estas novas circulavam pela cidade, os credores de Rodrigo reuniram-se. Consideravam-no um homem liquidado, mas ainda não podiam tomar providências por não haver expirado o prazo das cobranças; resolveram, pois, que mandariam quem o observasse habilmente, para que num abrir e fechar de olhos não resolvesse fugir. Por sua parte, Rodrigo, sem ver outro remédio e sabendo das obrigações de seu pacto infernal, decidiu fugir a todo o transe. Certa manhã montou a cavalo e saiu da cidade pela porta do Prato, perto da qual residia. Espalhada a notícia de sua fuga, os credores recorreram alarmados às autoridades e puseram-se no encalço dele, acompanhados não apenas de meirinhos como também de muitos populares.

Mal se distanciara da cidade cerca de uma milha, souberam eles de sua fuga, de sorte que, vendo-se perdido, resolveu Rodrigo, para melhor se esconder, abandonar a estrada principal e tentar a sorte em outras direções; porém o terreno árduo e abrupto dificultava tremendamente a sua marcha. Percebendo que era impossível seguir a cavalo, decidiu-se salvar-se a pé mesmo, deixando o animal no meio do caminho, e depois de ter muito tempo andado por entre vinhas e canaviais que cobriam os campos, aproximou-se de Pretola, detendo-se na casa de Giovanni Matteo de Bricca, um dos colonos de Giovanni dei Bene. Felizmente àquela hora chegava também ao local o próprio Giovanni Matteo para alimentar o gado. A ele se recomendou o fugitivo, prometendo-lhe que, se o salvasse dos inimigos que o perseguiam para fazer com que morresse na prisão, o tornaria rico, coisa que lhe daria prova antes mesmo de sair de sua casa; se não o fizesse, concordaria que o próprio camponês o entregasse a seus adversários.

Embora simples camponês, era Giovanni Matteo homem de coragem. Pensou que nada tinha a perder se tentasse salvá-lo, e prometeu-lhe auxílio. Em frente à casa havia um monte de estrume: foi lá que o escondeu, cobrindo-o de caniços e ramos colhidos para fazer fogo.

Mal acabara Rodrigo de esconder-se, seus perseguidores chegaram. Por mais ameaças que fizessem a Giovanni Matteo, não conseguiram fazê-lo confessar o que tinha visto.

Assim, partiram, e depois de procurá-lo todo aquele dia e mais o seguinte, retomaram exaustos para Florença.

Afastada a agitação, Giovanni Matteo tirou Rodrigo do esconderijo e pediu-lhe que cumprisse a promessa, ao que Rodrigo lhe disse:

- Irmão meu, tenho uma grande obrigação para contigo e desejo cumpri-la de qualquer maneira; e para que acredites em que eu possa fazer, vou dizer-te quem sou.

Nisso revelou a sua identidade contando em que condições saíra do Inferno e como se casara. Em seguida, explicou-lhe como pretendia fazê-lo rico. O seu plano, resumindo, era o seguinte: quando Giovanni Matteo soubesse que alguma mulher estava tomada pelos espíritos, devia saber que era ele, Rodrigo, que se apoderara dela: nem sairia do corpo da vítima sem que Giovanni Matteo viesse a tirá-lo: assim, poderia o camponês pedir aos parentes da endemoninhada o preço que bem entendesse. Giovanni Matteo aceitou a proposta e Rodrigo partiu.

Decorridos alguns dias, propagou-se por toda Florença a notícia de que a filha de mestre Ambrósio Amadei, casado com Bonaiuto Tebalducci, estava tomada pelos maus espíritos. Não descuidaram os parentes de nenhum dos remédios a que se recorria em casos semelhantes; assim, puseram-lhe na cabeça o crânio de S. Zenóbio e o manto de S. João Gualberto. Rodrigo, no entanto, zombava de tudo aquilo. E para dar a entender a todos que o mal da moça era um espírito e não qualquer imaginação fantástica, falava em latim, discutia coisas de filosofia, descobria os pecados de muita gente, desmascarando-os, entre outros, a um frade que guardara em sua cela durante mais de quatro anos uma mulher vestida à maneira de um fradinho, coisas que a todos enchiam de espanto. Estava Mestre Ambrósio irritadíssimo e, havendo experimentado em vão todos os remédios, perdera já a esperança de curar a filha, quando Giovanni Matteo veio ter com ele, prometendo-lhe a saúde da filhinha se lhe dessem quinhentos florins para comprar uma propriedade em Pertola. Mestre Ambrósio aceitou a proposta. Então Giovanni Matteo, depois de mandar dizer certo número de missas e executar certas cerimônias para embelezar a coisa, aproximou-se da moça e segredou-lhe ao pé do ouvido:

- Rodrigo, aqui estou eu esperando que me cumpras a promessa.

Ao que Rodrigo respondeu:

- Com o maior prazer. Mas isto não chega ainda a te tornar rico. Eis por que, apenas saído daqui, entrarei na filha do rei Carios de Nápoles, e de lá não sairei sem que me chames. Exigirás então uma recompensa segundo a tua vontade, e depois disso não deverás mais me importunar.

Nisso saiu do corpo da moça doente, para a alegria e admiração de toda Florença.

Não tardou e espalhava-se por toda Itália a mesma desgraça ocorrida, desta vez com a filha do rei Carios. Como os remédios dos frades de nada adiantassem, o rei, que ouvira falar em Giovanni Matteo, mandou que ele fosse conduzido até ele. Chegando a Nápoles, o camponês, depois de algumas cerimônias de fachada, curou-a. Mas antes de sair do corpo da princesa, Rodrigo disse-lhe:

- Bem vês que hei cumprido a minha promessa de enriquecer-te. Agora que recompensei o serviço que me fizeste, nada mais te devo; assim, aconselho-te a que não mais apareças à minha frente, pois se te fiz benefícios até aqui, daqui por diante poderia causar-te dissabores.

Giovanni Matteo retornou a Florença muito rico, pois o rei lhe havia dado mais de 50 mil ducados, e não pensava senão em desfrutar de sua riqueza, com muito gosto e sossego, sem cogitar que Rodrigo pudesse, em qualquer época, lhe causar algum dissabor. Bem cedo, no entanto, se desiludiu, ante a notícia de que uma filha de Luís VIl, rei da França, estava possuída pelo demônio. Notícia essa que tumultuou de todo a alma de Giovanni Matteo, que não conseguia parar de pensar na autoridade daquele monarca e nas palavras que lhe dissera Rodrigo. De fato, o rei, não encontrando remédio para o mal de sua filha, e tendo ouvido falar da capacidade de Giovanni Matteo, mandou chamá-lo, primeiro através dos correios, simplesmente; mas em vista de que o homem alegava certa indisposição, viu-se o rei forçado a recorrer ao governo de Florença, o qual obrigou Giovanni Matteo a obedecer.

Desesperado, foi Giovanni para Paris, onde foi logo explicando ao rei que efetivamente curara já certas pessoas endemoninhadas, mas que isso de modo algum significava que soubesse ou pudesse curá-las todas, pois algumas havia de natureza tão pérfida que não temiam ameaças nem encantamentos, nem religiões, seja qual for; que, no entanto, estava disposto a fazer o que pudesse, mas pedia desculpa e perdão se não viesse a ser bem-sucedido. Enfastiado, o rei declarou que, se não lhe curasse a filha, mandaria enforcá-lo. Viu-se Giovanni Matteo em péssimos lençóis, mas fez de sua fraqueza sua força: mandou vir a possuída e, aproximando-se-lhe do ouvido, recomendou-se humildemente a Rodrigo, lembrando-lhe o benefício prestado e como seria ingrato se o desamparasse naquele imbróglio. Rodrigo então assim reagiu:

- Traidor infame! Como te atreves a aparecer perante mim? Acreditas que podes te vangloriar de ter enriquecido à minha custa? Pois hei de mostrar-te a ti e a todos que sei muito bem dar e tomar qualquer coisa, como melhor me prover; e antes que partas daqui, farei enforcar-te, custe o que custar.

Dando-se por perdido, Giovanni Matteo, não vendo outro remédio, resolveu arriscar a sorte por outro meio. Mandou que levassem dali a possuída e disse ao rei:

– Senhor, como falei a Vossa Majestade, há espíritos tão malignos que com eles ninguém pode; pois este é um dos tais. Mas quero fazer uma última tentativa: se for bem-sucedido, Vossa Majestade e eu teremos alcançado o nosso objetivo; caso contrário, estarei nas mãos de Vossa Majestade, que saberá ter comigo a compaixão que faz jus a minha inocência. Ordene Vossa Majestade que se erga na Praça de Notre Dame um grande palco onde caibam todos os barões e todo o clero desta cidade; mande orná-lo de panos de seda e de ouro, e mande erguer no meio dele um altar. Preciso que no domingo próximo Vossa Majestade se reúna no estrado do palco com todos os seus príncipes e barões, numa pompa real, vestidos de trajes ricos e esplêndidos. Depois da missa celebrada, Vossa Majestade fará vir a possuída. Preciso, além disso, que num ângulo da praça haja pelo menos vinte pessoas reunidas com trompas, cornetas, tambores, cornamusas, címbalos, timbales e outros instrumentos de toda sorte. Quando eu erguer o chapéu todos deverão tanger seus instrumentos e encaminhar-se na direção do estrado. Estas coisas, juntas com alguns remédios secretos, poderão fazer, julgo eu, com que o espírito maligno desapareça.

Tudo isso o rei ordenou. Chegou a manhã de domingo. O palco improvisado estava cheio de personalidades, e a praça, cheia do povo. Celebrada a missa, a endemoninhada foi conduzida ao estrado por dois bispos e muitos senhores. Ao ver tamanha multidão e tanto aparato, Rodrigo ficou meio tonto e disse consigo mesmo: "Que será que inventou esse traidor miserável? Será que está pensando me espantar com toda essa pompa? Ignora que estou acostumado a assistir as pompas do Céu e fúrias do Inferno? Haverei de castigá-lo de qualquer maneira."

Quando, logo depois que Giovanni Matteo se aproximou novamente e lhe pediu que saísse, Rodrigo assim lhe falou:

- Bela idéia a tua, para dizer a verdade! Que pensas alcançar com todo esse aparato? Acreditas escapar assim ao meu poder e à ira do rei? Ladrão miserável, farei com que te enforquem haja o que houver!

Como não parasse de dizer tais palavras, acrescentando-lhes outras menos injuriosas, Giovanni Matteo houve por bem não perder mais tempo. Ergueu o chapéu, todas as pessoas encarregadas de fazer barulho tocaram seus instrumentos e com rumor que atingia o Céu foram-se aproximando do estrado. O barulho aguçou os ouvidos de Rodrigo que, sem entender do que se tratasse, pediu assombrado que Giovani Matteo lho explicasse, e Giovanni respondeu-lhe de forma bem perturbada:

- Ai, meu Rodrigo, é a tua mulher que vem te buscar!

Foi, em verdade, maravilhoso ver até que ponto Rodrigo horrorizou-se ao ouvir o nome de sua mulher. Tamanho lhe foi o espanto que, sem indagar a si mesmo se seria possível que ela ali estivesse, fugiu sem dizer uma palavra e assim deixou a princesa livre; preferiu voltar ao inferno para dar conta de suas ações a submeter-se outra vez ao jugo matrimonial, suportando tantos desgostos, aborrecimentos e perigos.

E eis aqui como Belfagor, de volta ao Inferno, pode dar testemunho dos males que uma mulher leva consigo a um lar, e como Giovanni Matteo, que foi mais astuto do que o diabo em pessoa, pôde retornar a sua casa cheio de alegria.

Fonte:
COSTA, Flávio Moreira da (org.) . Os 100 melhores contos de humor da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001

Afonso Arinos (Assombramento) Parte 1

História do Sertão

À beira do caminho das tropas, num tabuleiro grande, onde cresciam a canela-d'ema e o pau-santo, havia uma tapera. A velha casa assombrada, com grande escadaria de pedra levando ao alpendre, não parecia desamparada. O viandante a avistava de longe, com a capela ao lado e a cruz de pedra lavrada, enegrecida, de braços abertos, em prece contrita para o céu.

Naquele escampado onde não ria ao sol o verde escuro das matas, a cor embaçada da casa suavizava ainda mais o verde esmaiado dos campos.

E quem não fosse vaqueano naqueles sítios iria, sem dúvida, estacar diante da grande porteira escancarada, inquirindo qual o motivo por que a gente da fazenda era tão esquiva que nem ao menos aparecia à janela quando a cabeçada da madrinha da tropa, carrilhonando à frente dos lotes, guiava os cargueiros pelo caminho a fora.

Entestando com a estrada, o largo rancho de telha, com grandes esteios de aroeira e mourões cheios de argolas de ferro, abria-se ainda distante da casa, convidando o viandante a abrigar-se nele. No chão havia ainda uma trempe de pedra com vestígios de fogo e, daqui e dacolá, no terreno acamado e liso, esponjadouros de animais vagabundos.

Muitas vezes os cargueiros das tropas, ao darem com o rancho, trotavam para lá, esperançados de pouso, bufando, atropelando-se, batendo uns contra os outros as cobertas de couro cru; entravam pelo rancho adentro, apinhavam-se, giravam impacientes à espera da descarga até que os tocadores a pé, com as longas toalhas de crivo enfiadas no pescoço, falavam à mulada, obrigando-a a ganhar o caminho.

Por que seria que os tropeiros, ainda em risco de forçarem as marchas e aguarem a tropa, não pousavam aí? Eles bem sabiam que, à noite, teriam de despertar, quando as almas perdidas, em penitência, cantassem com voz fanhosa a encomendação. Mas o cuiabano Manuel Alves, arrieiro atrevido, não estava por essas abusões e quis tirar a cisma da casa mal-assombrada.

Montado em sua mula queimada frontaberta, levando adestro seu macho crioulo por nome "Fidalgo" - dizia ele que tinha corrido todo este mundo, sem topar coisa alguma, em dias de sua vida, que lhe fizesse o coração bater apressado de medo. Havia de dormir sozinho na tapera e ver até onde chegavam os receios do povo.

Dito e feito.

Passando por aí de uma vez, com sua tropa, mandou descarregar no rancho com ar decidido. E enquanto a camaradagem, meio obtusa com aquela resolução inesperada, saltava das selas ao guizalhar das rosetas no ferro batido das esporas; e os tocadores, acudindo de cá e de lá, iam amarrando nas estacas os burros, divididos em lotes de dez, Manuel Alves, o primeiro em desmontar, quedava-se de pé, recostado a um mourão de braúna, chapéu na coroa da cabeça, cenho carregado, faca nua aparelhada de prata, cortando vagarosamente fumo para o cigarro.

Os tropeiros, em vaivém, empilhavam as cargas, resfolegando ao peso. Contra o costume, não proferiram uma jura, uma exclamação; só, às vezes, uma palmada forte na anca de algum macho teimoso. No mais, o serviço ia-se fazendo e o Manuel Alves continuava quieto.

As sobrecargas e os arrochos, os buçais e a penca de ferraduras, espalhados aos montes; o surrão da ferramenta aberto e para fora o martelo, o puxavante e a bigorna; os embornais dependurados; as bruacas abertas e o trem de cozinha em cima de um couro; a fila de cangalhas de suadouro para o ar, à beira do rancho, - denunciaram ao arneiro que a descarga fora feita com a ordem do costume, mostrando também que à rapaziada não repugnava acompanhá-lo na aventura.

Então, o arrieiro percorreu a tropa, correndo o lombo dos animais para examinar as pisaduras; mandou atalhar à sovela algumas cangalhas, assistiu à raspagem da mulada e mandou, por fim, encostar a tropa acolá, fora da beira do capa-o onde costumam crescer as ervas venenosas.

Dos camaradas, o Venâncio lhe fora malungo de sempre. Conheciam-se a fundo os dois tropeiros, desde o tempo em que puseram o pé na estrada pela primeira vez, na era da fumaça, em trinta e três. Davam de língua às vezes, nos serões de pouso, um pedação de tempo, enquanto os outros tropeiros, sentados nos fardos ou estendidos sobre os couros, faziam chorar a tirana com a toada doída de uma cantilena saudosa.

Venâncio queria puxar a conversa para as coisas da tapera, pois viu logo que o Manuel Alves, ficando ai, tramava alguma das dele.

- O macho lionanco está meio sentido da viagem, só Manuel.

- Nem por isso. Aquele é couro n'água. Não é com duas distâncias desta que ele afrouxa.

- Pois olhe, não dou muito para ele urrar na subida do morro.

- Este? Não fale!

- Inda malhando nesses carrascos cheios de pedra, então é que ele se entrega de todo.

- Ora!

- Vossemecê bem sabe: por aqui não há boa pastaria; acresce mais que a tropa deve andar amilhada. Nem pasto, nem milho na redondeza desta tapera. Tudo que sairmos daqui, topamos logo um catingal verde. Este pouso não presta; a tropa amanhece desbarrigada que é um Deus nos acuda.

- Deixe de poetagens, Venâncio ! Eu sei cá.

- Vossemecê pode saber, eu não duvido; mas na hora da coisa feia, quando a tropa pegar a arriar a carga pela estrada, é um vira-tem-mão e - Venâncio p'r'aqui, Venâncio p'r'acolá.

Manuel deu um muxoxo. Em seguida levantou-se de um surrão onde estivera assentado durante a conversa e chegou à beira do rancho, olhando para fora. Cantarolou umas trovas e, voltando-se de repente para o Venâncio, disse:

- Vou dormir na tapera. Sempre quero ver se a boca do povo fala verdade uma vez.

- Hum, hum! Está aí! Eia, eia, eia!

~ Não temos eia nem peia. Puxe para fora minha rede.

- Já vou, patrão. Não precisa falar duas vezes.

E daí a pouco, veio com a rede cuiabana bem tecida, bem rematada por longas franjas pendentes.

- Que é que vossemecê determina agora?

- Vá lá à tapera enquanto é dia e arme a rede na sala da frente. Enquanto isso, aqui também se vai cuidando do jantar..

O caldeirão preso à rabicha grugrulhava ao fogo; a carne-seca no espeto e a camaradagem, rondando à beira do fogo lançava à vasilha olhares ávidos e cheios de angústias, na ansiosa expectativa do jantar. Um, de passagem atiçava o fogo, outro carregava o ancorote cheio de água fresca; qual corria a lavar os pratos de estanho, qual indagava pressuroso se era preciso mais lenha.

Houve um momento em que o cozinheiro, atucanado com tamanha oficiosidade, arremangou aos parceiros dizendo-lhes:

- Arre! Tem tempo, gente! Parece que vocês nuca viram feijão. Cuidem de seu que fazer, se não querem sair daqui a poder de tição de fogo!

Os camaradas se afastaram, não querendo turrar com cozinheiro em momento assim melindroso.

Pouco depois chegava o Venâncio, ainda a tempo de servir o jantar ao Manuel Alves.

Os tropeiros formavam roda, agachados, com os pratos acima dos joelhos e comiam valentemente.

- Então? perguntou Manuel Alves ao seu malungo.

- Nada, nada, nada! Aquilo por lá, nem sinal de gente!

- Uai! É estúrdio!

- E vossemecê pousa lá mesmo?

- Querendo Deus, sozinho, com a franqueira e a garrucha, que nunca me atraiçoaram.

- Sua alma, sua palma, meu patrão. Mas... é o diabo!

- Ora! Pelo buraco da fechadura não entra gente, estando bem fechadas as portas. O resto, se for gente viva, antes dela me jantar eu hei de fazer por almoçá-la. Venâncio, defunto não levanta da cova. Você há de saber amanhã.

- Sua alma, sua palma, eu já disse, meu patrão; mas, olhe, eu já estou velho, tenho visto muita coisa e, com ajuda de Deus, tenho escapado de algumas. Agora, o que eu nunca quis foi saber de negócio com assombração. Isso de coisa do outro mundo p'r'aqui mais p'r'ali - terminou o Venâncio, sublinhando a última frase com um gesto de quem se benze.

Manuel Alves riu-se e, sentando-se numa albarda estendida, catou uns gravetos do chão e começou a riscar a terra, fazendo cruzinhas, traçando arabescos.... A camaradagem, reconfortada com o jantar abundante, tagarelava e ria, bulindo de vez em quando no guampo de cachaça. Um deles ensaiava um rasgado na viola e outro - namorado, talvez, encostado ao esteio do rancho, olhava para longe, encarando a barra do céu, de um vermelho enfumaçado e, falando baixinho, co'a voz tremente, à sua amada distante...
––––––––––
continua

Cláudia Dimer (Os Passos dos Meus Sonhos)

Fonte:
Poesia formatada obtida no facebook da autora

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 26. Rufina

Encontrei-me hoje com o boticário, a quem não via desde a última vez que vira Rufina.

"Quem é aquela moça", lhe perguntei, "que, há coisa de duas semanas, viajou conosco neste bonde? Aquela morenota de olhos grandes e úmidos? Aquela de bonitos dentes? Aquela espigadinha, de branco, a quem você, saltando do carro, deitou uma olhadela xaroposa?"

Fabiano custava-lhe recordar-se. Vincou a testa, cravou os olhos no tejadilho, levou a unha do indicador para entre os incisivos, com a boca aberta.

-"Uma gorda, de cabelo ondado?"

-"Nada. Não ofenda."

-"Não me lembro... Espere. Uma alta, de nariz grande?"

-"Já lhe disse que era morena, pequena, engraçada."

Fabiano agitou-se, como que para sacolejar a caixa das lembranças, atirou uma perna para cima da outra, curvou o busto, agarrou o queixo, carregou o cenho. "Diabo!" De repente, riu-se, deu-me uma tapona no joelho e exclamou:

-"Já sei! Uma cabrochinha, não é isso?"

Conservei-me calado, mandando em espírito, o idiota do boticário a todos os mil demônios. Aliviado, voltei-me para ele, frio:

-"Desistamos, oh amigo Fabiano José de Figueiredo Alves."

-"Figueiredo, não; Azevedo."

-"Ou isso."

Eu estava convencido de que Fabiano não queria era lembrar-se de Rufina. Impossível que se tivesse realmente esquecido dessa criatura maviosa e rara. Conhecia mulheres como um recenseador: uma gorda, uma alta, uma parda, fora muitas outras que não referiu; e não se recordava da única que valia a pena! Grande ordinário.

Percorremos umas quatro ou cinco quadras em silêncio. Eu nem sequer olhava para a cara de Fabiano. A certa altura, perguntou-me se sabia o nome da moça.

-"Rufina."

-"Hein?!"

-"Rufina."

Fabiano olhou para mim e disparou a rir.

-"Já sei, meu caro, já sei!"

-"Mas porque essa risada?"

-"Ah! já sei, meu amigo, já sei. .. Olhe, ela nunca se chamou Rufina. Qual Rufina, nem meia Rufina!... É boa! Ela é Augusta, meu caro amigo. Augusta, entendeu? Rufina... é boa! quiá, quiá, quiá..."

"Mas.. então, conhece-a?..."

- "Pchê! Há muito tempo. Uma rapariga magra, moreno-mate, com o nariz levemente rebitado, o queixo saliente, não é isso? Conheço muito. Chama-se Augusta, mora ali para as bandas do cemitério. Boa fazenda coitada!"

Desmoronei. Só ao cabo de longos e dolorosos minutos pude reconstruir-me um pouco, firmar-me um pouco em cima de mim mesmo, e perguntar com voz sumida:

-"Mas, então, esse nome de Rufina?"

-"Muito simples. Bestice do coronel Ferrão, um velho meio pancada -bem pancada, aliás – que tinha a mania de lhe dar esse nome."

-"E por que?"

-"Por nada, burragem dele. Gostava de trocar os nomes, fazia isso com toda a gente. Tinha um sobrinho, o Bentoca, Bento Felizardo Ferrão, homem respeitável, atacadista ali no centro: chamava-lhe Esmeraldino, até diante dos empregados, na loja. O Viana, era para ele Pascoal, um dia; outro dia, era Bonifácio. A mim, quis-me uma vez batizar por Crispiniano, mas eu, pan! barrei-o logo: Às suas ordens, seu Januário. Danou-se -ora, imagine: danou-se, o bestiaga! -e não falou mais comigo."

Emudeci. Fabiano continuava, mas já não o entendi daí por diante. A versátil indiferença do boticário chocava-me como uma sem-vergonhice irritante, de sujeito sem alma, sem o senso piedoso e comovido da miséria humana. Mas Fabiano afinal era um bom homem: isto é, um tipo fútil e feroz como soem ser os homens de juízo.

Oh! n'insultez jamais une femme qui tombe!

Mas não é isso, oh poeta, não é isso o pior. O horrendo é esta indiferença, esta sorridente indiferença, esta familiar e brincalhona ferocidade, aérea, difusa, impalpável, com que se considera um ser humano, com que se fala de uma pobre mulher - logo de uma mulher! de uma triste mulher e do seu destino, de uma mulher bela, graciosa e miseranda; de uma mulher que tem toda a massa de que se fazem as mães e os anjos da terra, -e com uns olhos tão grandes, tão úmidos, tão luminosos!

-"Mas porque é que queria saber" indagou o boticário, depois de uma pausa.

-"À-toa, Fabiano."

-"Pois olhe, é fácil."

Encarei-o de um modo que devia ter-lhe parecido esquisito, pois calou-se e ficou sério. E não se falou mais nisto.

Fonte:
Domínio Público

O Nosso Português de Cada Dia (Pegadinhas do Português) 5

Pegadinha 20

Depois de vinte minutos de interrupção, o árbitro deu continuidade ao jogo.

Esta seção de dicas de português para concursos expõe um grande equívoco de uso das palavras continuidade e continuação, conforme se explica a seguir.

continuidade — propriedade física da superfície dos corpos;

continuação — prosseguimento;

Exemplos:

A continuidade do grande espelho do salão foi afetada por uma rachadura na parte superior direita.
A continuidade do leito da ponte foi interrompida por uma trinca de uns dez centímetros, de lado a lado.
Em continuação a esta exposição de razões, falarei, agora, sobre os meninos de rua.
Precisamos dar continuação àquela partida de xadrez, no prazo máximo de cinco dias contados de sua interrupção.
Depois que o aluno alterado retirou-se da sala, o professor deu continuação à aula.

Então, depois da correção da frase inicial, fica assim:

Depois de vinte minutos de interrupção, o árbitro deu continuação ao jogo.

Pegadinha 21

A polícia não pode prendê-lo porque ele é de menor.

Eis uma seção de dicas de português para vestibulares e concursos cuja sutileza muita gente boa não percebe. O predicativo dessa frase liga-se ao sujeito com auxílio de verbo de ligação sem preposição. O povo é que construiu essa anomalia. Veja outros exemplos de predicativo:

Ele é sargento do exército.
Ela é maior de 14 anos.
Ela é a rainha do colégio.
Ele é menor de 6 anos.
Meu pai é professor.
Então, depois da correção da frase inicial, fica assim:

A polícia não pode prendê-lo porque ele é menor de idade.

Pegadinha 22

Sou difícil de fazer amizade.

Neste tópico de dicas de português para concursos, a frase já se inicia por uma incoerência, pois ninguém é difícil ou fácil de coisa alguma. Pelo menos, assim se espera. O que é difícil não é a pessoa, mas sim a ação de fazer amizade. O sujeito dessa frase é oracional — fazer amizade — e o predicativo é difícil. O verbo é de ligação — ser.

Então, depois da correção da frase inicial, fica assim:

É-me difícil fazer amizade. – ou - Fazer amizade me é difícil. – ou – Fazer amizade é difícil para mim.

Pegadinha 23

Já comuniquei o chefe que a mercadoria chegou.

Esta pegadinha de português para vestibular e concurso aborda um deslize sutil e corriqueiro, ideal para uma questão de concurso. Não devemos, jamais, comunicar uma pessoa, seja ela quem for. O que se comunica é o objeto da comunicação, isto é, o assunto, o fato ocorrido.

Comunica-se, sim, à pessoa um determinado fato. O verbo comunicar possui dois objetos. Um deles é o objeto indireto, que é a pessoa que recebe a comunicação. A esse objeto o verbo se liga sempre por meio de preposição. O outro complemento verbal é o objeto direto, que representa o fato comunicado.

Veja os seguintes exemplos:
Daniel comunicou ao Mário a demissão da antiga secretária
.O presidente comunicou ao povo a decisão que tomara quando decidiu o caso.
O marido comunicou à mulher que naquele dia não iria almoçar em casa.

Então, depois da correção da frase inicial, fica assim:

Já comuniquei ao chefe que a mercadoria chegou.

Pegadinha 24

A rapariga está meia aborrecida.

Mais um exemplo de pegadinha que tirou preciosos pontos para a aprovação de muitos vestibulandos e concursandos. Meia, modificando substantivo, é adjetivo e varia em gênero e número. Exemplos:

Meio litro de água. (metade do litro)
Meia xícara de café. (metade da xícara)
Ele fala em meias palavras. (metade das palavras, como metáfora de "não dizer tudo")
Ele se expressa em meios termos. (idem, explicação acima)
Meio, modificando adjetivo, é advérbio e, como tal, não varia. Exemplos:
Ela está meio triste.
As duas moças permanecem meio confusas.

Então, depois de corrigida a frase inicial, fica assim:

A rapariga está meio aborrecida.

Pegadinha 25

Mais de um artista cantarão.

Este caso exige-nos atenção redobrada. Embora saibamos que a expressão "mais de um artista" representa, no mínimo, duas pessoas, devemos levar o verbo à forma da terceira pessoa singular cantará, fazendo a concordância gramatical com o numeral um da expressão "mais de um".

Veja outros exemplos:
Mais de um automóvel foi sorteado.
Mais de uma mulher assistiu à cena.

Do mesmo modo, é feita a concordância de frases do tipo Menos de dois alunos fizeram a prova. Nessa frase, embora compreendamos que a expressão "menos de dois alunos" representa, quantitativamente, um aluno; a concordância também é gramatical, com base no numeral dois da expressão "menos de dois alunos", e não ideológica, isto é, com a idéia ou sentido que a frase puder sugerir.

Outros exemplos:
Menos de dois livros, foram queimados no incêndio.
Menos de duas moças saíram antes de o espetáculo se findar.

Então, depois de corrigida a frase inicial, fica assim:

Mais de um artista cantará.

Pegadinha 26

Eu nasci há trinta e cinco anos atrás.

Esta pegadinha nos lembra uma famosa música dos anos setentas — Eu nasci há dez mil anos atrás. Há excesso nessa frase! Quando ocorre excesso desse tipo, dizemos que existe redundância, isto é, repetição viciosa, que só empobrece a linguagem de quem a comete. O verbo haver, por si só, já representa "tempo transcorrido", a palavra atrás é redundante. Deve-se, portanto, escolher — ou se escreve há, do verbo haver, ou atrás.

Então, depois de corrigida a frase inicial, poderia ser escrita de duas maneiras:

Eu nasci há trinta e cinco anos.
ou Eu nasci trinta e cinco anos atrás.

Fonte:
126 Pegadinhas em Língua Portuguesa. www.softwareebookecia.com.

Ditados Populares do Brasil (Letra N)

Na prática, a teoria é outra.
Nada como um dia atrás do outro, e uma noite no meio.
Não adianta chorar o leite derramado.
Não botar prego sem estopa.
Não coloque o carro na frente dos bois.
Não confundir alhos com bugalhos.
Não cries cão se te falta pão.
Não culpar a vassoura pela existência do lixo.
Na boca de quem não presta o bom não vale nada.
Na cabine cabem muitas; no coração só uma.
Na estrada da vida há espinhos de metro em metro e rosas de légua em légua.
Na frente, a felicidade; atrás, poeira e saudade.
Na subida você me aperta, na descida nós acerta.
Namorar mulher casada é fazer contrato com a morte.
Namoro é isca, casamento é anzol.
Não buzine, levante mais cedo.
Não buzine, passe por baixo.
Não chore, meu bem, na volta te levarei.
Não confie em mulher nem em freio de caminhão.
Não corro porque tenho pressa.
Não creio em homem que perde nem em mulher que acha.
Não fico rico, mas me divirto.
Não esquente a cabeça que o chifre amolece.
Não faça do seu namorado um tarado, a vítima poderá ser você.
Não fale a Deus dos seus grandes problemas, fale aos seus problemas que você tem um grande Deus.
Não há amor sem disciplina nem disciplina sem amor.
Não há mezinha que cure a dor da separação.
Não há mulher sem graça nem festa sem cachaça.
Não há regra sem exceção nem mulher sem senão.
Não há sabão que lave a alma da inveja.
Não maldiga o fim da vida, ele é o começo da vida sem fim.
NÃo me acompanhe que não sou novela.
Não me dê conselho; sei errar sozinho.
Não podem ser escondidos: o amor, o fogo e a tosse.
Não preciso esconder nada, o tempo vê, escuta e revela tudo.
Não se desculpe, corrija-se.
Não sou batom, mas vivo na tua boca.
Não sou bombeiro, mas apago o teu fogo.
Não sou rei, mas gosto de coroa.
Não sou dentista, mas gosto de banguela.
Não sou detetive, mas ando na pista.
Não sou laquê, mas vivo na cabeça das mulheres.
Não sou parafuso, mas vivo sempre apertado.
Não sou peixe, mas nado nas tuas águas.
Não sou pipoca, mas dou meus pulinhos.
Não sou 7 de setembro, mas sou parada.
Não suba de um salto, você pode cair.
Não suba muito, a queda pode ser maior.
Não temo estrada ruim, tudo é canja pra mim.
Não tenha pressa que a vida é curta.
Não tenho tudo que amo, mas amo tudo o que tenho.
Não tente descobrir os meus defeitos. Procure os seus.
Nas curvas do teu corpo, capotei meu coração.
Nas curvas do teu corpo freei meu coração.
Nas longas estradas de saudade choro.
Nas longas estradas moro e  as vezes de saudade choro.
Nele mando eu e na minha casa minha mulher.
Nesta casa, quanto mais curta a mini-saia, melhor.
Ninguém é tão ninguém que nunca tenha ajudado alguém.
Ninguém se fie em cachorro na cozinha nem em mulher que sai sozinha.
No baralho da vida só encontrei uma dama.
No começo é bom, no fim é pior.
No deserto Deus fala ao homem.
No jardim de minha vida, de planta só tem saudade.
No laço do teu amor, minha alma geme e suspira.
No silêncio da noite é que aumenta a população.
Nossas BRIGAS são renovações de amor.
Nosso amor virou cinza porque você mandou brasa.
Nunca é tarde pra amar.
Não dar ponto sem nó.
Não dê a passada maior que as pernas.
Não deixar o certo pelo duvidoso.
Não deixes pra amanhã o que podes fazer hoje.
Não é com vinagre que se apanha moscas
Não faça aos outros o que não queres que te façam
Não fale o roto do esmolambado.
Não fale o sujo do mal lavado.
Não fazer aos outros o que não quer que lhes faça.
Não há carne sem osso,Não há nada que não tenha suas dificuldades
Não há mal que perdure, não há dor que não se cure
Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe.
Não há mulher sem graça nem festa sem cachaça.
Não há nada como um dia depois do outro
Não há rosa sem espinho.
Não há segundo prato com o gosto do primeiro.
Não julgue o vinho pelo barril.
Não meta a colher onde não é chamado.
Não se deve dar pérolas aos porcos
Não se meta em camisa de onze varas.
Não se pode assobiar e chupar cana.
Não vá o sapateiro além das tamancas.
Nas pedras nascem flores.
Nascer empelicado.
Nem só de pão vive o homem.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
Nem tudo está perdido.
Nem tudo que reluz é ouro
Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que balança cai.
Nem tudo são flores.
Ninguém perdoa a testemunha da desdita.
Ninguém pode servir a dois senhores.
Ninguém sabe tanto que não possa aprender e nem tão pouco que não possa ensinar.
No velório de pobre há choro, no de rico há briga.
Nunca vi carrapateira botar cacho na raiz, nunca vi moça solteira ter palavra no que diz.
Nuvem baixa, sol que racha

domingo, 24 de março de 2013

Trova 256 - Pedro Melo (SP)


Paulo Setúbal (Poemas Avulsos II)

Pintura de Iman Maleki
A FAZENDA

Ao meu querido Laerte

Seis horas... Salto do leito.
Que céu azul! Que bom ar!
Ai, como eu sinto no peito,
Moço, vivo, satisfeito,
O coração a cantar!

No meu quarto, alegre e claro,
Há rosas e girassóis.
Eu, com enlevo, reparo
No mínimo do seu preparo,
Na alvura dos seus lençóis.

Que doce encanto, e que graça,
Nesta simpleza aldeã,
Têm, sobre os vãos da vidraça,
Leves cortinas de cassa,
Bailando ao sol da manhã!

E da florida janela
Que eu abro de par em par,
- Verde painel, larga tela,
Da cor mais viva e mais bela,
Desdobra-se ao meu olhar!

A manhã, que é fresca e branda,
A rir, gloriosa e feliz,
Doira a casa veneranda,
Com sua quieta varanda
Cheirosa de bogaris...

Um renque de altos coqueiros
Circunda o velho pomar;
Toscos, enormes tabuleiros,
Ficam em frente os terreiros,
Com grãos em coco a secar.

Num quadro, curvo e sozinho,
Um pobre negro, o Bié,
A passo, devagarinho,
Com seu rumoroso ancinho,
Lá vai, rodando o café...

Depois - a máquina, a tulha,
O alpendre, o farto paiol:
Ah, como a roça se orgulha
De ver subir a fagulha
Que lança a máquina ao sol!

Branca, entre tufos, a escola,
Na estrada logo se vê:
Aí, nessa casinhola,
A filha de nhá Carola
Vive a ensinar o a b c.

Fulgem, na estrada tranqüila,
Casinhas brancas de cal:
É a colônia que cintila,
Graciosa como uma vila,
Risonha como um pombal.

Ao longe, o pasto, a cancela,
- Um boi deitado no chão:
Paisagem rude e singela,
Daria fina aquarela
De puro estilo aldeão.

E além, para lá da ponte,
Ao lado do matagal,
Por sobre as lombas do monte,
Por todo o imenso horizonte,
- Alastra-se o cafezal!

O olhar, tonto, se extasia
Na cena rústica e chá;
E a gente sente a poesia.
Sente a radiosa alegria
De tão soberba manhã!

Absorto no panorama
Que assim contemplo, de pé,
Eis que uma velha mucama,
Surgindo à porta, me chama:
"Nhonhô, tá pronto o café...

A GENTE

Saio a passear... Claro e quente,
O sol na altura sorri.
Eu sigo, de alma contente,
Saudando esta boa gente
Dos sítios onde nasci!

Lá vou, por entre este povo,
Com tanta ingênua emoção,
Que eu, sem querer, me comovo,
Revendo agora, de novo,
Nhô Lau, seu Juca, o Bastião...

* * *

Aquele... Nossa Senhora!...
- Aquele é o seu Nicanor:
O mesmo, tão curvo agora,
Que foi, nos tempos de outrora,
O meu grande professor!

É um velho... Um republicano
Desde o tempo que lá vai!
Vive a falar no Floriano,
Dizendo que é veterano
Da guerra do Paraguai...

* * *

E este?... O Mendonça afamado,
O célebre caçador!
Traz a lapeana de lado,
E um perdigueiro malhado
Que salta no carreador.

Rude, feroz, barba intonsa,
Com a sua desfaçatez,
A todos narra o Mendonça
Terríveis caçadas de onça,
- Caçadas que nunca fez.

* * *

Lá está na foice, roçando,
O velho Jeca Morais:
Caboclo bom, gênio brando,
Apenas, de quando em quando,
Bebe algum trago demais.

* * *

No dia em que se endominga,
Vai ao povoado passear;
E à volta, cheirando à pinga,
Discute, provoca, xinga,
Querendo à força brigar!

* * *

Junto, o Nicola persiste
Em consertar um moirão;
Não sei se no mundo existe
Outro violeiro mais triste
Que esse infeliz mocetão.

Louca paixão, louca e imensa,
Sempre em angústias o traz:
É que ele, o poeta, só pensa
Na filha do Quim Proença,
Que gosta de outro rapaz.

Quando o luar desenrola,
No espaço, o místico alvor,
Sonhando um sonho, o Nicola
Põe-se a chorar na viola
As mágoas do seu amor...

* * *

Guiando os bois do seu carro,
Que ringe num alto som,
Nhô João, na estrada de Barro,
Lá vai, pitando um cigarro,
Cheiroso de fumo bom.

Com seu enorme trabuco,
Calça xadrez, pé no chão,
Na venda do Zé Macuco,
Sentado à mesa do truco,
- Que noites passa nhô João!

* * *

Ao longe, num largo trote,
Com elegâncias de peão,
- Bombacha, espora e chicote -
Passa na estrada o Mingote,
Montado num alazão.

Moço dos mais arrogantes,
De claro olhar, claro e azul,
Conta as paixões delirantes
Que teve em terras distantes,
Ao vir com tropas do Sul...

* * *

Eu sigo... Festivamente,
O sol na altura sorri;
Assim, risonho e contente,
Revejo toda esta gente
Dos sítios onde eu nasci...

DERRADEIRA SAUDADE

Paixão fugaz... Ventura passageira...
Rosa que não colhemos da roseira,
Mas que esteve, no galho, ao nosso alcance.
Ah! Quanta vez, num desespero mudo,
Eu quedo-me a cismar naquilo tudo,
Que encheu de sol nosso cruel romance!

Bendigo ainda os beijos que maldizes,
Que abriram na minhalma cicatrizes,
Que encheram de ambrosias nossa boca;
Só me consola, nesta dor pungente,
Lembrar que te adorei perdidamente,
Lembrar que me adoraste como louca!

Mudaste muito, eu sei... Mas, com certeza,
Nas horas de saudade e de tristeza,
Em que a alma chora e o coração nos trai,
Hás de pensar em mim de quando em quando,
Com lágrimas nos olhos relembrando
- Toda essa história que tão longe vai!

Fonte:
SETUBAL,Paulo. Alma Cabocla 

Olivaldo Junior (Aniversário...)

Aniversário. Pintura de Galina
Tento enganar o Tempo, mas ele não perde o bonde e me deixa a pé. O Tempo é demais para mim. Por isso, ao fazer um texto, ao compor um tema, engano o Tempo (e a mim mesmo) trancando-o nas letras e nos compassos a fim de tê-lo a qualquer hora. Ontem fiz aniversário. Sim, “eu tenho mais de vinte anos”, mas o Tempo ainda corre em minhas veias, ainda durmo em suas teias, sonhando encontros e cânticos para alguém.

Alguém mandou cartão pelos Correios. Mais alguém, um poema, que mo mandou por e-mail. O que me importa é que alguém telefonou e me deu parabéns ainda que longe. Longe, ou perto, alguém se lembrou de que fiz aniversário. Abraçaram-me. Ganhei abraços de braços que também querem outros. Outros não mandaram nada. Alguns não sabiam. De uns poucos, não sei dizer.

Outra noite, cá estava eu, junto do rádio, qual fazia quando criança, ouvindo música, pensando alto e voando baixo. Não consegui encontrar quem me acompanhasse no ato de tentar cantar. Mais coisas, meu bem, não falo. “Eu tenho mais de vinte anos”. Sonhos envelhecem como eu mesmo me envelheço a cada vez que me recordo: tudo é recorte, apenas penas que o vento inventa ao voar.

Parabéns, “menino que eu fui”! Você me fez vivo enquanto viveu! Ainda, num e noutro gole de música, muito breve, eu o vejo... Você, que sonha, mas é morto. O que se vê é um homem cujos versos tem tido indiferença e cuja música é cachaça que se deixa envelhecer (sonhos?), sem ninguém a ter provado.

Fontes:
O Autor
Pintuira obtida em http://www.chapelart.com.br