terça-feira, 22 de outubro de 2013

Monteiro Lobato (A Reforma da Natureza) Capítulo 11, final – Nem tudo Emília perdeu

Dona Benta estava examinando o galo da testa da negra, quando ouviu umas batidinhas na porta.

Mandou que Narizinho abrisse. Eram as jabuticabas.

- Dona Benta - disseram elas muito zangadinhas - viemos queixar-nos da peça que a Emília nos pregou. Imagine que nos transferiu dos nossos galhos na mamãe-jabuticabeira para um pé de abóbora – uns talos molengões que andam pelo chão. E ficamos presas ali, encostadas à terra, a nos sujar de pó e ciscos. Ora, isso é um despropósito, porque somos frutas de galho e não do chão, como certos porcalhões que conhecemos.

(A Rãzinha cochichou para a Emília: "Isso deve ser indireta para os morangos.")

- Vocês têm razão, jabuticabinhas - disse Dona Benta - e vou repô-las todas no lugar certo.

Impossível admitir que umas criaturas delicadas como vocês andem pelo chão. Chão é bom só para abóbora.

E voltando-se para Emília:

- Vá já desfazer o que fez! - ordenou rispidamente.

Emília fez beicinho e disse para a Rã: "Ela era democrática quando saiu daqui. Depois que lidou com os ditadores da Europa, voltou autoritária e cheia de "vás". "Pois não vou" - e não foi! As abóboras e as jabuticabas tiveram de arrumar-se sozinhas.

Pedrinho veio dizer que as laranjas das laranjeiras estavam descascadas, e havia um milhão de passarinhos em cima, dando cabo de todas.

Dona Benta explicou:

- Emília, eu reconheço as suas boas intenções. Você tudo fez na certeza de estar agindo pelo melhor. Mas não calculou uma porção de inconveniências que podiam acontecer - e estão acontecendo. As laranjas, por exemplo: seria ótimo se pudessem vir já descascadas - mas se fosse assim tornava se impossível o comércio das laranjas, o transporte de um ponto para outro. E, além disso, descascadas elas ficam muito mais sujeitas aos ataques das aves e insetos. A casca é uma defesa indispensável. Assim também as abóboras na jabuticabeira. São frutas muito grandes para ficarem em árvores; a Natureza sabe o que faz. Põe as frutas grandes no chão e as pequenas em árvores.

- Isso não! - protestou Emília. - A maior fruta que eu conheço é a jaca, e a jaca é fruta de árvore, ah!

Dona Benta embatucou.

- Também fiz que as frutas das árvores dessem só nos galhos debaixo - continuou Emília, de modo a facilitar a colheita - e quero ver o que a senhora diz a isto.

Dona Benta declarou que essa reforma só era aceitável do ponto-de-vista humano, mas explicou que as frutas não existiam para que nós as apanhássemos e comêssemos - existiam para o bem da árvore, e apareciam em todos os galhos, tanto os debaixo como os de cima, porque assim ficavam mais bem distribuídas pela árvore inteira, podendo vir em maior quantidade.

- Os galhos debaixo serão só metade dos galhos da árvore toda - disse ela. - Fazendo que as frutas só apareçam nos galhos debaixo, você diminui de metade o número de frutas de uma árvore.

Emília concordou que havia errado, e em companhia da Rãzinha foi restabelecer o sistema antigo.

- Agora, sim - ia dizendo Emília - agora ela deu uma razão boa, clara, que me convenceu e por isso vou desmanchar o que fiz. Mas com aquele "Vá!" do começo, a coisa não ia, não! Vá o Hitler. Vá o Mussolini. Comigo, é ali na batata da convicção, do argumento científico!

E dessa maneira quase todas as reformas da Emília foram anuladas, mas nenhuma delas por imposição de Dona Benta. A boa senhora argumentava, provava o erro - e então a própria Emília se encarregava de restabelecer o velho sistema. Mas mesmo assim muitas das reformas ficaram, como, por exemplo, a dos livros.

- Sim, Emília, esta idéia do livro comestível me parece ótimo, um verdadeiro achado. Mas não para todos os livros. O bom é que haja o livro de papel e ao seu lado o livro comestível. Quem quiser comprar um, quem quiser compra outro. As coisas novas jamais substituem inteiramente as coisas velhas. Lembre-se de que em Nova Iorque, a cidade que tem mais automóveis no mundo, nós vimos as carroças que entregam leite de manhã puxadas por cavalos. Aprovo a idéia do Livro-Pão e hei de propor a um industrial meu conhecido que estude o problema e crie a nova indústria. Mas você me vai fazer o favor de deixar meus livros como eram, porque se não ...

Nesse momento Pedrinho entrou correndo na sala, muito afobado.

- Vovó, imagine o que aconteceu! O Rabicó entrou na sua biblioteca e devorou a Ilíada de Homero e as obras completas de Shakespeare...

- Se não tivessem tirado do focinho dele a ratoeira, nada teria acontecido - disse a Rã. - Bem feito!

- Vê, Emília? - disse Dona Benta. - Nem todos os livros devem ser comestíveis, mas só os de importância secundária, meramente recreativos ou então os livros ruins. Um livro que não presta para ser lido, ao menos que preste para ser comido. E agora? Como vou passar sem a minha Ilíada e o meu Shakespeare?

Emília concordou que realmente nem todos os livros deviam ser comestíveis e indo ã biblioteca "descomestibilizou" a maior parte - menos os "ruins."

E assim terminou a aventura emiliana da Reforma da Natureza. Emília aprendeu a planejar a fundo qualquer mudança nas coisas, por menor que fosse. Viu que isso de reformar às tontas, como fazem certos governos, acaba sempre produzindo mais males do que bens.

A Rãzinha ficou por lá uma semana, a ouvir as histórias que Dona Benta contava da Conferência da Paz. Depois, com muita dor de coração e com muito pesar de todos do sítio, cheirou o pó do fiun - e lá se foi para o Rio de Janeiro, onde encontrou sua pobre mãe de luto e de olhos vermelhos, certa de que sua querida filha tinha desaparecido para sempre.

- Perdoe, mamãe. Entusiasmei-me demais com o programa de reformas da Emília e fui para o Pica-pau Amarelo sem dizer nada à senhora. Nunca mais farei isso. Já me reformei nesse ponto.

- E que mais?

- Ah! Tia Nastácia gostou muito do leite que assobiava ao ferver e conservou o sistema.

- Era uma consumição este negócio do leite - disse ela. - Eu tinha de ficar de plantão ali na cozinha, se não ele fervia e derramava.

Agora, não. Ponho o leite no fogo e nem penso mais nisso. Uma gostosura. A Emília é mesmo uma danadinha. Outra coisa de que gostei muito foi o que ela fez com as pulgas. Entrei no meu quarto e vi uns pontinhos pretos parados no ar. Peguei um. Olhei. Era pulga, Sinhá, pulga parada no ar - e pulga mole, Sinhá, mole como qualquer bichinho mole! Essa reforma foi boa, porque quanto mais velha fico, mais me custa pegar uma pulga daquelas do sistema antigo ...

Dona Benta aprovou a mudança das pulgas e também a das moscas e pernilongos. E com a sua grande sabedoria de filósofa, disse:

- Está bem, Emília. Vou examinar detidamente todas as reformas que você fez, porque estou vendo que há muita coisa aproveitável.

Emília piscou vitoriosamente para o Visconde.

FIM

Carlos Leite Ribeiro (Casa de Fantasmas) Parte 2

Comédia Teatral

Carmo: Vou já, minha senhora. Olhe que já tenho alguns pastelinhos de bacalhau prontos. Quer que lhos traga?

Augusta: Depois trazes. Mas agora vai lá abrir a porta... Mas antes de abrires vê bem quem é.

Carmo: É o Sr. Coronel Ramalho. Boa noite, Sr. Coronel!

Coronel: Boa-noite, minha querida mulher. Desculpa o atraso, mas esta cabeça já não é o que era dantes. Vê lá tu que com a pressa de chegar a casa, me esqueci do molho das chaves no escritório!

Augusta: Não me digas que entre elas também lá deixaste as chaves do cofre?!

Coronel: Pois claro que também lá ficaram. Mas porque estás tão interessada nas chaves do cofre?

Augusta: Por nada, meu amor... Vê lá tu, sempre tão cuidadoso, esqueceres da chave do cofre no escritório... (baixando a voz) - Ai, Jesus... ai... A minha vida está em perigo...

Coronel: Não te compreendo, pois um esquecimento, qualquer pessoa pode ter. Olha, hoje calhou a mim...

Augusta: Eu nem quero acreditar... (baixando a voz) - arranjaste-me a bonita!... Ai... A minha vida a andar para trás...

A criada entra de rompante no salão, e...

Carmo: Minha senhora, minha senhora... Acuda-me! Ai que coisa tão esquisita que aconteceu!...

Augusta: Desembucha, e conta o que te aconteceu. Carmo, que aflição é essa?

Carmo: Os pastéis, os pastéis... Minha senhora...

Augusta: Sim, os pastéis, o que é que têm?! Não te entendo, vê lá se te explicas melhor, para que eu possa entender. O que é que aconteceu aos pastéis?

Carmo: Desapareceram, minha Senhora!

Augusta: Desapareceram?! Mas como é que isso foi possível?

Carmo: Não sei, minha senhora. Tinha-os numa travessa em cima da mesa da cozinha e, quando regressei, já não estavam lá.

Augusta: Mas essa situação é completamente impossível, pois cá em casa nunca desapareceu nada, mesmo nada. Carmo, procura bem os pastéis, sim, porque eles nem asas deviam ter, pois não? E ratos cá em casa não existem!

Carmo: Minha senhora, podia ter sido algum fantasma que tivesse passado por aqui.

Augusta: Credo mulher! “Abrenúncio pé-de-cabra à francesa”. Fantasmas cá em casa, nem pensar!

Toca a campainha da porta. O Senhor Coronel, embora admirado com o desaparecimento dos pastéis, vai abrir...

Coronel: Ah, é o Sr. Capitão Ribeiro, entre e parabéns, meu caro, pois hoje conseguiu não ser o último a chegar!

Capitão: Alguma vez tinha que ser o primeiro a chegar. Sabe, meu caro Coronel, curiosamente, o meu horóscopo indica que hoje vou ter uma noite fora do vulgar, mesmo fora do comum...

Coronel: Este Capitão Ribeiro, tem cada uma! Vejam bem o que o horóscopo lhe diz? Que ele vai ter uma noite fora do vulgar, fora do comum. Uma pessoa da sua categoria, a ler horóscopos, francamente que não lhe fica nada bem. O primeiro decénio do século XXI já passou, e como há ainda pessoas que acreditam nestas coisas!

Capitão: Meu caro Coronel, diga e pense o que quiser, mas eu acredito nessas “coisas”, como você diz, sem vergonha de o dizer. Cada qual, é como cada um.

Nesse momento a criada entra novamente de rompante no salão...

Carmo: Minha senhora!

Augusta: O que é te aconteceu agora, Carmo?

Carmo: O bolo de laranja...o bolo de laranja... Percebe?

Augusta: Mau, mau... O que é que aconteceu ao bolo?!

Carmo: Minha senhora... Compreende? Não compreende... O bolo de laranja, que estava no fogão...

Augusta: Diz rapidamente... O que é que lhe aconteceu?...

Carmo - Desapareceu! Assim como desapareceram as lâmpadas do corredor e da cozinha. Minha senhora, não consigo compreender estas coisas estranhas, pois isto nunca tinha acontecido antes! Devem ser Fantasmas que andam por aqui... E confesso que já estou a ficar aterrada!

Augusta: Calma, mulher, calma. Tu deves estar com visões: primeiro desapareceram os pastéis de bacalhau, depois o bolo de laranja, e agora até as lâmpadas do corredor e da cozinha desapareceram?

Carmo: Isso tudo, como vê, deve ser obra de Fantasmas, ou de coisas do outro mundo... Estou toda arrepiadinha e cheia de medo, minha senhora !

Coronel: Ah, ah, medricas! Fantasmas? Coisas do outro mundo?! Ah, ah, ah ... Essas ideias só podem sair da cabeça de uma criada! Ah, ah, ah ... Onde é que isto já se viu?! De facto, este serão está a ter um princípio muito divertido!... Muito divertido mesmo! Ah, ah, ah!

Augusta: Querido, por favor não te rias. Não te rias pois eu já nem sei o que dizer, ou melhor, pensar... É que podem muito bem existir Fantasmas, e quem sabe, as tais coisas do outro mundo... Olha que também já estou a ficar como tu, Carmo: arrepiada e com... Bem, com algum medo.

Capitão: Meus caros, já notaram que neste salão cheira a pastéis de bacalhau e a bolo de laranja?! Ora cheirem, cheirem bem, que logo notarão...

Augusta: Confesso que não estou a cheirar nada. Deve ser impressão do Sr. Capitão... Olhe, por favor, não faça nem provoque mais confusões. Por favor, Capitão! Que confusão esta, que momento este!...

Capitão: Eu não quero provocar nenhumas confusões, longe de mim tal ideia! Mas pareceu-me ter ouvido um ruído estranho para os lados da cozinha. Como eu tenho um certo jeitinho natural para descobrir certos mistérios, peço-vos licença para ir investigar o que se está a passar por aquelas bandas... Posso? Dão-me licença?

Coronel: Meu caro Capitão, descubra tudo à sua inteira vontade. Mas tome muito cuidado com os Fantasmas, pois eles, por vezes, até são muito maus, violentos e muito cruéis... Ah, ah, ah, que vontade que eu tenho de rir!

Capitão: Saiba o meu caro Coronel que eu nunca, por nunca, tive medo de nada, e, muito menos de Fantasmas!

Coronel: Vá lá então e descubra alguma coisinha. Faça de conta que está em sua casa. Este Capitão…

Por momentos ouve-se um ruído estranho como uma pancada seca e…

Coronel: Mas, mas o que é que aconteceu ao Capitão? Capitão, responda...

O Capitão entra no salão, a cambalear, agarrado à cabeça e todo sujo...

Capitão: Ai, ai a minha rica cabecinha... Ai... Vejam só o que  aconteceu à minha cabecinha!

Augusta: Coitadinho do Sr. Capitão! Olhem que grande "galo" tem na cabeça!... Diga-nos lá o que é que lhe aconteceu... Vá lá, diga-nos...

Capitão: Ai, ai a minha riquinha cabecinha!... Ai, que me dói tanto, tanto. E também estou todo sujo... Veja: todo sujo... Ai, que me dói tanto a minha cabecinha!

Coronel: Não me diga, meu caro Capitão, que foi um Fantasma que lhe deu uma "toutiçada" (pancada) na cabeça e lhe fez esse "galo", além de o sujar com farinha e ovo!... ah, ah, ah, que divertido eu estou!

A criada entra no salão com ar de pessoa comprometida ...

Carmo: Meus senhores, peço-vos perdão a todos, em especial ao Sr. Capitão. Pois, a culpada do que aconteceu, sou eu!... É que o Sr. Capitão apareceu na cozinha e, como ia para destapar o tacho onde está a cozer uma galinha... Espero que compreendam... como a luz está muito fraca, pensei que fosse um Fantasma - e zá catrapus, dei-lhe com a colher de pau na cabeça e depois atirei-lhe com um ovo e farinha. Desculpem, mas como devem calcular, estou muito desorientada com estas coisas que estão acontecendo...

Coronel: Estão a ver o que é que o nosso Capitão arranjou com esta brincadeira de Fantasmas? "Os Fantasmas Bateram na Cabeça do Capitão" ah, ah, ah, até dava um bom título para um romance policial... ah, ah, ah !

Augusta: O Sr. Capitão não faça caso do que o meu marido diz, pois já sabe como é que ele é. Vamos já arranjar-lhe um banhinho e bem quentinho!

Capitão: Muito obrigado, Dona Augusta. Bem preciso de um banho. Este estúpido acidente... Olhem, que ainda me dói a cabeça, e tenho o fato todo sujo...

Augusta: Carmo, prepara já um banho para o Sr. Capitão. E com a água bem quentinha – ouviste?

Carmo: É para já, minha senhora. Um banho bem quentinho, e em especial para o Sr. Capitão!

A campainha da porta volta a tocar…

Augusta: Desta vez sou eu que vou abrir a porta, enquanto a Carmo prepara o banho para o Sr. Capitão... Olhem quem é que chegou, o Sr. Alferes Marques! Boa-noite, entre, entre...

Marques: Com sua licença, Dona Augusta. Boa-noite a todos. Mas, olha que engraçado, o senhor Capitão Ribeiro com o rosto e o fato cheio de farinha e ovo! Não me diga que virou pasteleiro?

Coronel: Meu caro Alferes, o nosso comum e querido amigo Capitão, quis ir caçar Fantasmas, e, imagine que lhe atiraram com farinha e um ovo! Eheheheh! E não apanhou nenhum dito cujo Fantasma! Que divertido que eu estou, ah, ah, ah!

Capitão: Deixe-se de brincadeiras, pois, quem me atirou com isto, não foi nenhum Fantasma, mas sim a Carmo, a criada! Este nosso amigo Coronel muito gosta de gozar comigo.

Augusta: Vocês por favor não me falem mais em Fantasmas... Ai que eu até me arrepio toda, todinhaaaa...

Alferes: Ó Dona Augusta, não me diga que a senhora ainda acredita em Fantasmas?! Já a minha avó contava o que lhe contou a avó dela...

Augusta: Por favor, Sr. Alferes, em Fantasmas, não acredito... Mas lá que eles existem... Existem!

Entretanto, a Dona Augusta dirige-se ao seu quarto, e…

Augusta: Olha...! Ó seus bandidos, o que é que vocês fazem aqui no meu quarto? Bandidos!

1º Encapuzado - Cala já o bico, mulher... Olha que será muito melhor para ti... Caladinha, disse eu... E juizinho nessa cabeça, e não te esqueças... Juizinho e muita calma, senão, pescoço cortado...

2º Encapuzado - Se tu não te calas, ainda te corto o pescoço – assimmmm!

Augusta: Credo, homem, por favor chegue para lá essa faca... Que nervos!...

1º Encapuzado - Pois é como o meu amigo diz. Muito juizinho, senão... Pescoço fora! Vamos lá ao que mais interessa: quando é que nos dás a massinha, ou seja, o dinheiro que combinámos ?

Augusta: Não sei, não sei. Mas por favor não me façam mal, pois eu não tenho culpa do meu marido, o Sr. Coronel Ramalho, ter-se esquecido das chaves no escritório. Assim, não poderei tirar o dinheiro do cofre, como vocês querem. Mas essas fotografias não são minhas...

2º Encapuzado - Cala-te mulher, pois senão já sabes o que te pode acontecer: pescocinho cortado! E tu até tens um pescocinho bem feitinho...

Augusta: Não sei como fazer ou que fazer! Como já vos disse... Olhem, escutem, tive uma ideia: podiam vir cá amanhã, ou mesmo noutro dia, mais ou menos a esta hora, buscarem o dinheiro que me querem extorquir? Compreendem e estão de acordo?

1º Encapuzado - Compreendemos até muito bem! És muito espertinha, mas nós não nos vamos embora sem a massinha (dinheiro)! Que espertinha me saíste!

2º Encapuzado - Com esta brincadeira toda (que não é nenhuma brincadeira, antes pelo contrário), até rasguei as minhas calças. Foi na cozinha ao fugir da maldita da criada...

Augusta: Então... Então foram vocês que comeram os pastéis de bacalhau e o bolo de laranja?!

1º Encapuzado - Pois claro que fomos! Olha lá, não podíamos matar a fome? E estavam deliciosos! Bem podia ter sido mais...

2º Encapuzado - Pois ainda ficámos com fome...

Augusta: Pois, pois... Agora é que estou a compreender: Vocês é que são os Fantasmas que a criada Carminho julga que são!

Fora do quarto, ouve-se a voz do marido:

Coronel: Augusta, ó mulher, nunca mais sais daí do quarto? Olha que o Sr. Sargento Neto, acabou mesmo agora de chegar. Vem servir-nos o Whisky, pois vamos começar o nosso habitual joguinho de cartas.

Augusta: Marido, eu vou já. Só estou a acabar de me arranjar...

1º Encapuzado - Vai lá, mas toma muita atenção, pois nós, os Fantasmas, (como tu dizes), só vamos embora depois de recebermos o dinheirinho todo. Repito: o dinheiro todoooo!

2º Encapuzado - Não te esqueças que são só dez mil e quinhentos reais!

Dona Augusta, abanando a cabeça e encolhendo os ombros, sai do quarto e entra no salão…

Augusta: Boa-noite, Sr. Sargento Neto. Vou já servir o whisky, e para o Sr. Sargento, uma dose muito especial, tome.

Sargento: Este líquido, aliás, este precioso líquido, hoje parece estar divinal! Que rico whisky. Que delícia mais deliciosa que o Sr. Coronel tem cá em casa! Whisky como este, só nos quartéis e só para oficiais superiores!

Alferes: Este Scotch é mesmo genuíno. O que não admira, pois estamos em casa do Sr. Coronel. Em nada se compara com aquele que no outro dia bebemos em sua casa... Ó Capitão Ribeiro, desculpe lá a franqueza! Mas o whisky que lá bebemos era uma má imitação!

Capitão: Sabe, meu caro Sargento, há dias em que o paladar dos amigos não se encontra tão apurado como o de hoje... Mas este whisky, é de facto muito bom, muito diferente daquela "má qualidade" que bebemos por aí em casa de certos amigos, como por exemplo na do Alferes Marques.

Alferes: Mas esse facto tem uma explicação: o whisky chamado de "Imitação de Sacavém, ou de outra terra qualquer" ainda não atingiu a perfeição desejada!...

O Sr. Capitão entra no salão, depois de sair do banheiro...

Coronel: Meus caros amigos e companheiros, o nosso querido e estimado amigo Capitão Ribeiro foi tomar banho.

Capitão: Claro que tive de ir tomar banho... depois daquele disparate que a Carmo me fez... Olhem lá, por acaso, alguém viu as minhas calças? As minhas calças novas?

Alferes: Ó Capitão, não me diga que perdeu as calças!!!

Capitão: Bem, não quero dizer que as tenha perdido... Mas, logo as calças novas, que me custaram quase uma fortuna!...

Coronel: Então, o Sr. Capitão não sabe onde deixou as calças? É esquisito... Olhe, o seu copo está aqui bem cheio de whisky, beba agora e procure depois as calças. Não é que lhe fique mal o toalhão envolto no corpo... mas compreende... Cá em minha casa... Compreende que não é nada decente...

Capitão: Dou-lhe toda a razão, pois eu também não gosto de andar, ou estar, nesta figura. Entretanto, Dona Augusta, por favor, encha-me outra vez o copo. Muito obrigado pela sua gentileza... está bem assim... assim. Que magnífico whisky este! Parece-me que já estou a ficar com os "copos", ou seja, um pouco grosso, bêbedo... Mas eu quero as minhas calças, as minhas calças novas! Roubaram-mas... Isto deve ser uma manobra para me derrubarem psicologicamente!... Protesto, protesto, protesto... Quero as minhas calças novas... As minhas riquinhas calças novas!

Augusta: Tenha calma, Sr. Capitão, pois as calças vão aparecer. Sim, porque cá em casa, não há  (há...há...há?...) ladrões?... Fantasmas?

Coronel: Caro Capitão, antes de ir procurar as suas calças, beba mais um copo de whisky... Vá lá, não se faça esquisito. Depois de beber, vá procurar muito bem as calças, pois, como diz, e muito bem, minha mulher, cá em casa não há ladrões. Mas espere... Só se foi algum Fantasma que lhas roubou... Ah, ah, ah!... Teria sido um fantasma e, neste caso, fantasma e até ladrão?

Augusta: Ai, credo, marido... Cala-te por favor... Mas se foi... Algum Fan... Fantasma... Podemos pedir por favor que ele devolva as calças... Tive uma ideia: vamos todos gritar, assim: Ó Fantasmas!!! Ó senhores Fantasmas!!! Por favor devolvam as calças ao Senhor Capitão... - Vá lá, gritem todos comigo...

Coronel: Ó Augusta, tu também bebeste whisky? Mas o que é que te deu, para estares a gritar aí aos Fantasmas? Até parece que estás louca...

Sargento: Eu também estou de acordo em não gritarmos por Fantasmas, pois senão, daqui a pouco, ficamos inundados por eles, e lá se ia todo o whisky do nosso caro amigo Coronel. Pois devem existir Fantasmas apreciadores do bom whisky. Penso eu...

Coronel - Agora um pouco mais a sério: Carmo, vem cá depressa... Rápido, mulher... És cá uma vagarosa! Mas que mulher esta...

Carmo: Pronto, ao seu inteiro dispor, Sr. Coronel!

Coronel: Olha lá, vais aqui com o Sr. Capitão procurar as calças dele, as quais não devem andar por muito longe. Pelo menos penso que não...

Carmo: Sr. Coronel, eu não me importo de as ir procurar, mas... Mas o pior é a cozinha...

Coronel: E o que é que tem a cozinha a ver com as calças?!...

Carmo: Sabe, é que estou a cozinhar uma galinha de cabidela...

Coronel: E daí? Não me digas que estás com medo que a galinha levante voo e que fuja do tacho... Ficaste muito calada, diz qualquer coisa, ou estás com medo de qualquer coisa?

Carmo: Estou com medo dos Fantasmas, sim, Sr. Coronel, os Fantasmas podem voltar novamente e levarem com eles a galinha. Já vi que o Sr. Coronel não quer compreender, mas...

Coronel: Mau, mau. Deixa-te de brincadeiras e procura rapidamente as calças, pois o senhor Capitão não pode (nem deve) ficar em cuecas toda a noite!

Alferes: Confesso que eu próprio já estou a ficar com um certo receio dos Fantasmas! E pelos vistos, estes até são comilões! Ai, que horror: Fantasmas! Caro Capitão, não se vá embora, não procure ainda as calças, sem antes beber mais um copito de whisky, ao qual terei muito gosto, e prazer, em acompanhá-lo (a beber outro, claro...!).

Sargento: Ai que medo que eu sinto... Até sinto o corpo todo a tremer! Ah, ah, ah! Fantasmas! E se em vez de Fantasmas, fossem, fossem... Assim com estas formas... Formas femininas, compreendem?! Aí é que seria uma grande orgia! Perdão, Dona Augusta! Vejam lá que eu por causa dos Fantasmas, até me esqueci da senhora. Mais uma vez, as minhas desculpas...

Augusta: Aceito as suas desculpas, mas, Sr. Sargento, por favor não provoque mais confusões, pois já estou a ficar muito nervosa com este assunto. Ufff! Fantasmas…

Alferes: Tem toda a razão, em vez de Fantasmas, podiam ser, por exemplo, Lobisomens, Vampiros, ou mesmo Extraterrestres, enfim... sei lá que mais!

Coronel: Meus caros convidados, não podemos dar mais crédito a este assunto nem falar mais em Fantasmas! Sejamos racionais. Não existem Fantasmas! Não existem e ponto final.

Sargento: Pois é, mas nós estamos a dar crédito a essa parvoíce. Até parece um filme que vi há pouco tempo na televisão, com muitos fantasmas maus que até comiam...

Coronel: Bom. Vamos ao que mais interessa: Olha lá, Carmo, já encontraste as calças do Sr. Capitão? Eu quero este caso resolvido rapidamente, ouviste e compreendeste bem?

Carmo: Já as procurei por todo o lado que é sítio, mas não as encontrei.

Capitão: Mas eu quero as minhas calças... Eu quero as minhas calcinhas novas... As minhas ricas calcinhas... Um Capitão, nunca por nunca, pode, nem deve, andar em cuecas! É indigno para a sua categoria social e militar.

Sargento: Apoiado, apoiado! O caro Capitão tem toda a razão (mas não chore) e o seu protesto é pertinente... Embora já tenha bebido alguns copos de whisky!...

Alferes: O caro amigo Sargento, tem toda a razão, pois não deve tentar afogar o desgosto de ter perdido as calças, bebendo muito whisky. Olhe que eu conheço quem já tenha perdido as calças por muito menos!

Capitão: Mas eu quero, eu quero as minhas calcinhas novas. Por favor, compreendam-me, pois sinto-me muito infeliz sem elas... Imaginem só se os meus tropas me vissem neste estado!

A criada entra novamente de rompante no salão...

Carmo: Sr. Coronel, Sr. Coronel... Dona Augusta!

Coronel: Que tens tu? O que é que te aconteceu, Carmo?

Augusta: Não chores, pequena, e diz o que aconteceu...

Carmo: Uma desgraça - uma grande desgraça! É que a galinha de cabidela que estava ao lume...

Coronel: Não me digas que a deixaste queimar?!

Carmo: Não a deixei queimar, não. Mas ela desapareceu!

Augusta: Ai aqueles bandidos!...

Coronel: Bandidos?! Augusta, o que é que tu disseste? Aqueles quê? Confesso que não te ouvi muito bem, por favor repete...

Augusta: O que eu disse? Olha, pois disse, ou devia de ter dito: Fantasmas. Ou seja lá o que for... Mas não sei se foram ou não os Fantasmas que levaram a galinha de cabidela... Olha, não sei se disse alguma coisa, ou pensei alto.

Alferes: Amigos, reparem: agora até começou a cair água do tecto... Vejam, vejam! Até parece que está a chover e a água cheira a líquido orgânico.

Sargento: Olha, pois está. E escutem, não ouvem o barulho de um autoclismo a descarregar?

Coronel: De facto, estou a ouvir. Estou cansado de dizer à Carmo que não utilize o banheiro do sótão. Mas ela é teimosa, e o canalizador ainda não apareceu para afinar o autoclismo.

Carmo: Perdão, senhor Coronel, eu não utilizo o banheiro lá de cima, há mais de um mês. Para mais, com o medo que tenho dos Fantasmas, ainda hoje não fui lá  acima ao meu quarto. Que medo!

Coronel: Então, então... Queres dizer que não foste tu que utilizaste o banheiro?

Carmo: Juro por tudo que não fui eu que utilizei aquele banheiro.

Alferes: Bem, meus senhores, vamos analisar os factos referentes a este assunto: primeiro, os Fantasmas comeram os pastéis de bacalhau, depois o bolo de laranja, e por fim a galinha de cabidela. Com uma certa lógica, depois de comerem isto tudo, com certeza que precisaram de ir à casa de banho (banheiro)...!

Augusta: Mas que lógica... tão lógica! Fantasmas a utilizarem um banheiro - onde é que isto já se viu?

Capitão: Com essa conversa toda, não se esqueçam que eu quero as minhas riquinhas calcinhas... As minhas calças novas. Pela minha dignidade de Capitão, eu nunca devia de sofrer o vexame de andar p'ra aqui em cuecas, e logo em casa do Sr. Coronel.

Sargento: O Sr. Capitão tem toda a razão e todo o meu apoio. Mas por favor deixe de chorar, pois, põe-me muito nervoso. Mas... um Capitão em cuecas, ou em slips, é demais!

Alferes: Pois é, mas por causa das calças que eventualmente perdeu, teve o pretexto de já ter bebido quase uma garrafa inteira. Neste contexto, eu também não me importaria de andar em cuecas!

Sargento: Olhe que ainda está a tempo, meu amigo, pois o nosso querido e Sr. Coronel, ainda tem, pelo menos, mais uma garrafa cheia.

Sargento: Olhem que está novamente a cair água lá de cima. E muito mal cheirosa. De certeza que não comeram sabonetes nem beberam perfume!

Sargento: E prestem atenção. Oiçam com atenção… Um ruído tão característico, pois os Fantasmas devem estar a desbeber, ou seja, devem estar a fazer chichi!

Capitão: Mas eu quero as minhas riquinhas calças novas... Como ninguém se incomoda com o assunto, eu vou lá acima e mato todos, todos os Fantasmas... todos... todos, um a um.

Alferes: Amigos, admirem a valentia do nosso Capitão. Que homem tão valente, um verdadeiro representante da valente raça lusitana!

Sargento: É assim mesmo, caro Capitão. Vá mostrar aos Fantasmas o que é ser um homem de barba rija!... E mais: um verdadeiro herói dos nossos dias!

Capitão: Só preciso de uma arma, para assim poder avançar. Vou matá-los todos, todos os Fantasmas que aparecerem à minha frente... À minha frente...

Alferes: Estou mesmo a ver que vai ser uma enorme mortandade! Ai, pobres Fantasmas, agora é que vão ser elas, com o Capitão no encalço deles!

Coronel: Tem toda a razão para proceder assim, meu caro Capitão. Aqui tem uma boa arma: um martelo de orelhas! E assim tão bem armado, não se esqueça de matar todos (mas todos) os Fantasmas que encontrar no seu caminho. Força, Capitão Ribeiro!

Sargento: Mas tenha muito cuidado, não os maltrate muito, pois eu tenho horror em ver sangue. Contente-se só em fazer-lhes umas nódoas negras!

Coronel: Mas que situação tão caricata: um Capitão em cuecas, com um martelo de orelhas na mão, à procura de uns Fantasmas... E tudo isto em pleno século XXI...

Alferes: Deixai ir o homem, que está muito bem temperado em whisky...
Coronel: Oxalá é que não caia pela escada abaixo... E, claro, que apanhe muitos Fantasmas!

CONTINUA

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Falecimento do Professor da UEM e Poeta, Marciano Lopes e Silva

O professor e poeta Marciano Lopes e Silva, do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá, faleceu no início da noite desta quinta-feira (17/10/2013), no Hospital Metropolitano, em Sarandi.

Na semana passada ele contraiu uma broncopneumonia, foi para a UTI e por volta das 19h não resistiu. 

Seu corpo está sendo velado no Velório Prever, do Cemitério Municipal de Maringá, sendo encaminhado ao Cemitério Parque Maringá, onde será cremado amanhã, sábado, ás 11hs.
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Marciano era conhecido por projetos e eventos culturais como “No meio do caminho” e “Sarau Outras Palavras” e estava na organização de um evento nacional na UEM, a V Jornada Inteartes Outras Palavras em conjunto ao Congresso Nacional de Educação Ambiental Literatura e Ecocrítica.

Marciano , que tinha um blog (http://marcianolopes.blogspot.com), era doutor e atuava na área de Teoria da Literatura e Literatura de Língua Portuguesa.

Marciano Lopes e Silva nasceu em Porto Alegre/RS.

Graduado em Oceanografia e Letras pela Fundação Universidade de Rio Grande (FURG, 1986, 1990), foi mestre e doutor em Letras (UFRGS/1994, Unesp/2005).

Foi professor da Universidade Estadual de Londrina (1995 a 1997) e, desde 1997, lecionava na Universidade Estadual de Maringá.

Suas linhas de pesquisa eram: Estudos sobre Relações Raciais; História e Cultura Afro-brasileiras; Literatura: teorias críticas e história

Como poeta, publicou dois livros, sendo que o segundo, intitulado "A contrapelo", foi premiado pela Lei de Incentivo à Cultura em Maringá e é acompanhado por um CD que reúne dez compositores que residiam na cidade.
 
Em parceria com Fábio Freitas (Sansão), foi um dos fundadores do Movimento Artístico-Cultural "No Meio do Caminho" e um dos editores da extinta revista eletrônica "No Meio do Caminho" juntamente com Caetano Medeiros e Fábio Freitas.

O Projeto Outras Palavras (POP) surgiu como um projeto de extensão do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá (UEM) idealizado e coordenado pelo professor Dr. Marciano Lopes e Silva desde abril de 2006. Atualmente, com a divisão do departamento ocorrida no primeiro semestre de 2013,  passou a ser lotado no Departamento de Teorias Literárias e Linguísticas. Para funcionar, tem a colaboração da Rádio UEM-FM 106,9.


Objetivos:
a) incentivar e divulgar a produção artística brasileira, especialmente de Maringá e região;
b)  proporcionar à comunidade um contato prazeroso, crítico e criativo com a arte,
c) produzir material pedagógico para o ensino de letras e artes;
d) proporcionar aos estudantes que dele participam adquirir experiência de pesquisa, locução radiofônica e organização de eventos.

Em sua organização, o  POP apresenta  as seguintes formas de interação com a comunidade:

1) Programa  Outras Palavras – programa radiofônico apresentado diariamente na Rádio UEM-FM 106,9, sem horário fixo;
2) Sarau Outras Palavras - evento anual que reúne música, poesia e performances dramáticas;
3) Dois sítios no Orkut:  Marciano Lopes - Projeto Outras Palavras e Marciano Lopes - Projeto Outras Palavras - 2 (inativos, porém disponíveis para visitação) ;
4) Revista Outras Palavras – um blog que é utilizado como revista de arte e educação;
5) Jornada Interartes Outras Palavras (JIOP) - evento de extensão realizado na UEM, com periodicidade anual;
6) Revista JIOP  – revista anual de literatura, arte e educação em mídia digital - lançada durante a 2ª JIOP, dia 7 de outubro de 2010

Marciano Lopes e Silva (Poesias Avulsas)


O AMOR À SOMBRA DAS SIBIPIRUNAS
(um poema para as sibipirunas de Maringá)

Sibipirunas em flor
se  enlaçam
lado a lado nas calçadas.

Silêncio.
Frescor.

Pombos entre folhas.
Raios de luz.

Passo a passo
como noivos na catedral.

Amamos.

CHAMAVENTO

Pois transbordando de flores
A calma dos lagos zangou-se
A rosa-dos-ventos danou-se
O leito do rio fartou-se
E inundou de água doce
A amargura do mar
("Rosa-dos-ventos", Chico Buarque)

“Noite de vento, noite dos mortos.”
         (O Tempo e o Vento, Erico Verissimo)


Divino vento!
Não nasce nem morre.
Apenas existe.
Infinito como o tempo.
Divino vento
que faz as montanhas virarem pó
e faz o pó invadir minha alma
carregando o cheiro fétido da morte.
Divino vento que tudo arrasa e arrasta!
Divino vento que move moinhos!
Inflama a chama alastra o fogo
e revolta os mares em vagas colossais!
Divino vento
que penetra por todos os cantos
poros, narinas e frestas...
Divino vento que revolve a terra
seca e esquálida
que povoa a história com sussurros
e desenterra velhos sonhos adormecidos.
Vem!
Vem divino vento!
Vem vendaval!
Vocifera em meus olhos a ira dos deuses
na imensidão da noite!
Vem!
Enlouquece a natureza!
Que corujas lancem pios!
Cães ladrem nos terraços!
Vacas pastem em jardins!
Cavalos relinchem em hotéis!
Gatos uivem no céu!
E ratazanas invadam as ruas
numa gargalhada infernal!
Vem!
Divino vento!
Vem com toda a fúria!
Com a ira de todas as malditas gerações
amordaçadas!
Vem!
Arrebata a rosa-dos-ventos!
Divino e bendito vento!
_____________________________
Nota:
Reescritura de um antigo poema intitulado "As vozes do vento", publicado no livro Concurso DCE-FURG - 15 anos de Contos e Poesias. Rio Grande/RS: FURG, 1987. p. 15-18.

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SEMINAR

O amor da gente é como um grão.
(Drão – Gilberto Gil)


Quem disse que temos todo o tempo do mundo?!
Se assim fosse, por que amar as pessoas
como se não houvesse amanhã?!

Não, o tempo não pára
e o sonho é como um grão:
tem que morrer pra seminar.

SOUVENIR

Veja o sol dessa manhã tão cinza:
a tempestade que vem tem a cor dos teus olhos castanhos.
(Tempo perdido, Renato Russo)


Quando a dor te encontrar no fundo do calabouço,
lembra que a tempestade tem a cor dos teus olhos
e o frescor das fontes que brotam límpidas
do velho poço de pedras.
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ÁGUAS VIVAS

ÁGUA-VIVA I


Nas madrugadas navego.
Oceano sem fim.

Imensa onda.
Jaz mim.

 ÁGUA-VIVA II

Fumaça blues.
Flor essência
de sândalo.

Dourados
no aquário.

ÁGUA-VIVA III

anêmonas
trêmulos
véus...

Divina Vênus
na cama...

ÁGUA-VIVA IV

Estrelas n’água.
Branca espuma
em teus lábios.

No firmamento
noctilucas pululam.

Astrolábios.

ÁGUA-VIVA V

Nas madrugadas bebo
águas vivas.

Resgato águas furtadas,
régias e marinhas.

Depois adormeço,
pálido de aurora.

ÁGUA VIVA VI

Mar remoto.

No fundo
(da concha)
naufrago.

ÁGUA-VIVA VII

as ondas
espumantes
(en) volvem

o doce nácar
das conchas

SINUCA 1: "PRETO BATE BRANCO BATE PRETO"

preto bate branco
bate preto
embola enrola esfola
assola
escarra escarra escarra
cuca luta dis-
puta
taco contra taco
sopapo
nuca noite coice
foice
bate bate bate
bola contra bola
bate
pelas ruas pelos guetos pelos panos
rola
bola contra bola
rola
............................

preto bate branco
bate preto
faca tapa coice
açoite
estala
bala contra bala
estala bala vala
desfia desafia afia
porfia
a faca o taco o troco
sufoco
cara contra cara
encara
caça contra caça
regaça
encara bate e cala
caçapa!

SINUCA 2: TACO CONTRA TACO
 
embola enrola volteia
bate
enrola esnoba floreia
bate
cuca luta bruta pura
disputa
taco troco truco traço
no braço
bola contra bola bate rebate
e gira
pelos cantos pelas beiras pelos panos
rola rola
bola contra bola bate rebate
estala
bola contra bola rela rala rinha risca
desliza
bola contra bola bate rebate reganha rebola
encaixa
taco a taco ferro fere firme forte
fácil

última bola:
cara a cara encara mira e cala
caçapa

DOM QUIXOTE DALI

Dom Quixote manchado,
cavaleiro das taças quebradas,
envolto em moinhos
de sonhos e mágoas,
avante!.. avante!...
Impávido
pelos trilhos utópicos
alucinado a rodar e a rodar e a rodar
em sonhos...
carrossel...
Atravessa os túneis,
penetra a terra,
move os céus e as montanhas,
estrela a brilhar em consternação...
Constrói o futuro
e cola os cacos da história!
Tu que és trapeiro doido da lua,
eternamente um louco salvador...
Tu que és trapeiro doido da lua,
eternamente salvador dali...
Dali, daqui, de lá, acolá...
Evoé!
Avante Quixote!
Ole!... Ole!... Ole!…

SER/VIDA

vida sobre/mesa
sobre/mesa vida
vida ser/vida

vida sobre/mesa
explícita

cadáver vivo?

natureza morta?

vida sobre/mesa
mesa sob(r)a vida
sobre/mesa vida

ser/vida
a/guarda
?

quem descubra
quem decifre
quem devore
?

faca
ques
pedaça
?

vida sobre/mesa
es/finge faminta

devora
ar/dente
mente
?

sente(?)
-
MIRANDO JANIS JOPLIN
-
É nessa cadeira, vejam, é nesta cadeira vazia
que ouço Janis Joplin
e converso com Bertold Brecht
sobre os absurdos do mundo.
É nessa cadeira, vejam, que ouvimos Neruda cantar
e converso com o mais estranho e eclíptico demente
que com os meus olhos meninos eu vi!
Ele se delicia com rainhas, balões, porcos e pedras rolantes,
grita berra e murmura baixinho
que não tem certeza de nada e que a ignorância também é sábia.
Fala de doidos amores
conta as mulheres que comeu e cuspiu
nos podres vasos da aurora
nos banheiros sujos em que deixou
o âmago quente do seu estômago
cansado da burra servidão do dia.
É nessa cadeira, vejam,
é nesta cadeira vazia que converso com Janis Joplin
sim! eu converso com Janis Joplin!
Nessa cadeira Neruda a cantar!
Bertold Brecht fala dos absurdos do mundo!
Sim! Eu ouço Janis! Janis Joplin!
nesta cadeira vazia.

Não, não assuste não! São somente máscaras
com que disfarçamos o medo
o vazio o vácuo a velocidade a voz
que vem do nada por todos os lugares
jorrando como sangue do coração
fazendo esgares nos espelhos espalhados pelo caminho!
Sim, é nesta cadeira, vejam, é nesta cadeira vazia
que miro Janis Joplin!

Canção apresentada durante o 1º Acorde Universitário - Festival de MPB.
-
MIGALHAS
-
bebia sua vida num gole gargalo
com jornal de lã na calçada-divã
vestia saída num beco soberbo
de fome subúrbia
travessa sacia sua sede de pão

meio-dia fomenta milhares de carros
com tal sede insana faminta de grana
pro gole final que deu ali mesmo
de magna angústia
tomou batida e encheu a cara de chão

encheu a esquina
de cena
agora é a vida

que
pinga
que
pena [1]


Milhões de migalhas
encobrem a mesa.

Milhões de migalhas
não fazem um pão.

Milhões de migalhas
não fazem nem mesmo
uma fatia.

Milhões de migalhas
são apenas mais sujeira
no dia a dia.
____________________
[1] O texto em itálico é um poema do amigo Sansão (Fábio Freitas), cujo título é “Pão e pinga (A fome e a embriaguez)” e foi gentilmente cedido para acompanhar meu poema "Migalhas".
=========================
NO LIMITE

Num mundo videoestilhaçado
deve o poema também sê-lo?

Em canais latrinobabélicos
deve o poema signosilenciar?

Narcisopausterizado na massa
deve o poeta e(x)goelar-se?

Ou a saída seria dispará-lo à seco
cilada selada com muito desvelo?

DA DIFÍCIL TAREFA DE SER ATOR

Ser ator é moleza,
barra é ser professor.

Interpretar todo dia
sem ao menos ter um palco
por salvação
não é pra qualquer um

só para hipócritas
e ratinhos
de labotoratório.

Viver por tanto
então
nem se fale.

Somente louco
ou artista.
Tanto vale.

Fonte:
http://marcianolopes.blogspot.com

Francisco Miguel de Moura (Chico Miguel) (Sonetos Escolhidos 3)

Imagem: Biblioteca Manuel Antonio Pina
DESENCONTRO (1)

Tomado de saudade e sofrimento,
um dia eu quis rever a terra amada.
sondei a posição varia do vento
e pus meus olhos e meus pés na estrada.

Noite ainda (acordei de madrugada),
tinha a lua por luz, por seguimento...
Nem sentia o cansaço da jornada,
pensando no ontem, no hoje, como alento.

Me alegrava pisar velhos caminhos!
Os pássaros contavam nos deus ninhos
e a natureza toda, então, sorria.

Ouvi tocar o sino em minha aldeia,
lembrei das orações na hora da ceia
e da casa que outrora me acolhia.

DESENCONTRO (2)

Fui devagar, pois, afinal, queria
gozar a sensação de uma beleza
que me ficara intacta, à alma presa,
bem distante da atual selvageria.

Meus olhos, percorrendo a redondeza,
iam matando as sombras sem valia,
cheio de força, o copo estremecia,
e de calor e luz... Longe a tristeza.

Era um quadro tão belo e tão feliz,
do qual jamais pudera ser juiz...
Porém, quando cheguei: - “Que coisa alheia!”

– exclamei. A montanha era mais baixa,
a igreja velha, o sino rouco, e a faixa
de rua era tão feia... Era tão feia!...

DESENCONTRO (3)

Vi que o tempo não poupa, tudo encaixa,
mexe na minha vida e faz sua teia...
O sangue virou gelo em minha veia,
a pressão, que me era alta, se rebaixa.

Luz se havia era pouca., e de candeia,
no breu da noite... E não havia caixa
de banco... Nem rapaz e nem muchacha...
Deserta de homem, de mulher, a aldeia.

Então, pergunto a mim: Qual o destino,
se vim buscar aqui meu ser menino
e menino nenhum aqui encontro?

Vim rever minha terra e meu passado.
Mas, o que vejo? - Um sonho naufragado...
E eu perdido num louco desencontro!

EM DUAS RIMAS

A vida nasce numa enorme festa,
Nasce do amor, no instante da folia
Do sexo, da paixão e da alegria.
Mas também chora, a vida é uma floresta.

Há confusões. Porém sobra uma fresta
Por onde socorrer-se na agonia,
Dá passagens na busca de harmonia.
Há morte e vida e luzes nessa gesta.

Há buscas ideais, filosofia...
Indagações: – Meu Deus, que coisa é esta?
O amor a transformar-se em poesia.

E assim morrer: – Cantando uma seresta,
Ou ir sorrindo para uma outra festa
É o fim que todo homem gostaria.

EMOÇÕES


Só tenho olhos pra aquilo que me nega,
só sinto o cheiro e a fala de outras vinhas,
mais me apetece o rosto que as covinhas,
e em mim a luz é sombra e se me integra.

Se há gosto em minha boca, não me pega,
mas se meu corpo alisam – coisa minha –,
meu passado sofrido se esfarinha
e a nuvem interior se desintegra.

A natureza, em mim, vem da floresta.
Gosto do vento a arrepiar a testa,
gosto de rir... Mas como rir primeiro?

Vivo tão sério! Não, de mim não riam,
se as emoções mais tolas me aliviam:
- São pérolas que dôo ao mundo inteiro!

GOZO EXTENSO

Gozo os segundos todos, ano a ano,
do que ainda me resta por saúde,
não me entristece olhar o que não pude
ser. E dos meus achaques não me ufano.

No que fiz e refiz, por ser humano,
injetei muitas gotas de bondade.
Pela essência da calma que me invade,
sou a esperança no que não me engano.

E em tudo a fortaleza me aclareia
como os gozos de outrora... Tão intenso
é o meu prazer e minha nova messe.

No momento outro sonho é que me enleia:
- O encanto de saber que estou imenso,
num coração que, enfim, rejuvenesce.

MÁRTIR

De que serve contar já tantos anos
de vida, se a verdade foge e foge,
o ontem nunca mais tornando ao hoje,
e o amanhã tão perto, e seus enganos?

Não me valeram experiência e danos
que as primaveras fúteis produziram,
se, em lugar de saudades, me surgiram
só lembranças inúteis, desenganos...

De que posso, vaidoso, me gabar
senão da arte, em saber ouvi-la e vê-la,
embora não me leve a qualquer parte?

Ora, bem! Zombarei do grande azar
de ter nascido em Vênus, bela estrela,
pra fazer vida no planeta Marte.

MINUTO ETERNO

Deitada é bela, e, se levanta, estua:
Sinal de cio... Fecha os olhos, pensa...
Como, então, me darei a recompensa
de mais de perto vê-la inda mais nua?

Voar ao prédio em frente desta rua
e surpreendê-la em sua displicência?
Perder todo este medo e a paciência
de anjo sem paz que sabe e não flutua?

Vou morrer de ciúme aqui, de longe,
por não tê-la sequer um só segundo,
por delirar, na posição de monge.

Se fosse minha um só minuto – eterno–­,
zombaria das glórias deste mundo
e trocaria os céus por todo o inferno.

VOYEUR
(Segunda versão de “Minuto Eterno”)

Seminua, deitada, insone e quente,
no sofá, fecha os olhos, pestaneja...
Ah, eu queria ter cometimentos
pra mais de perto vê-la, vê-la, vê-la!

Voar deste meu prédio lá, na frente,
tocar seu corpo em toda a displicência...
Ai, não posso! E com isto me entristeço
como um anjo incapaz, louco e doente.

Tenho ciúmes, sim, no longe-e-perto.
Vejo um inseto pousado no seu peito
quando aqui morro em posição de feto.

Se fosse minha por um dia apenas
seria o homem mais feliz do mundo,
renegaria os deuses do universo.

O FANTASMA

Quem lhe matou a vida de menino
e a tão sonhada vida de rapaz?
Não sabe, está perdido e vai atrás
do perdido nos becos do destino.

Entre os deuses e o diabo, oh desatino!
de desistir ninguém o fez capaz.
Foi buscando vitória sem ter paz,
sem vislumbrar seu ser em pequenino.

Mesmo assim, sob os gritos de revolta,
luta fria e ferozmente atrasado...
Só que um dia o fantasma a si se volta.

E renasce uma imagem tão candente
que o leva a gargalhar de toda gente,
no sorriso feliz de um só pecado.

O QUE MORRE

Casa e caminhos morrem desamados,
esquecidos, na solidão do amém.
Os segredos falecem de guardados,
e amores morrem quando morre alguém.

O porto morre, a onda se esvazia,
e o sonho esvai-se quando acorrentado,
e treva nasce do morrer do dia.
Vão-se o rico, o feliz e o desgraçado.

Nada é perene, pois quem nasce vibra
somente um instante para a queda enorme,
eis que essa lei fatal tudo equilibra.

Morrem lembranças, fruto do passado,
e o presente e o futuro quando dorme
o homem sem fé, sem luz, abandonado.

Fonte:
O Autor

Carlos Leite Ribeiro (Casa de Fantasmas) Comédia Teatral - Parte 1

Como era habitual às quintas-feiras, em casa do Sr. Coronel Ramalho (grande herói das campanhas do tempo em que os ventos lutavam contra os moinhos),reunia-se um grupo de amigos para um animado e silencioso serão a jogar às cartas.

O salão onde esses serões se realizavam era amplo, tendo ao centro uma mesa rectangular, e em sua volta, seis cadeiras também do estilo Luís XV, assim como o aparador e a cristaleira que a ladeavam. No tecto, um lustre de metal e vidro, do mesmo modelo dos quatro apliques situados em paredes diferentes, assim como várias molduras com fotografias de familiares, destacando-se entre elas, uma enorme fotografia do austero pai do Sr. Coronel Ramalho, conhecido na época como comerciante de vinhos a granel, com os seus grandes e torcidos bigodes, situada em frente onde habitualmente a Dona Augusta, a esposa do Sr. Coronel Ramalho, fazia a sua renda (ou malha), junto a uma das duas janelas do salão. Ao fundo colocado ao meio da parede, situava-se um enorme e barulhento relógio que marcava até os quartos de hora, ficando por baixo uma vitrina onde o Sr. Coronel conservava orgulhosamente as suas condecorações e algumas armas antigas, algumas das quais das guerra napoleónicas.

Este salão tinha três portas: uma com acesso às escadas que, descendo, davam para a rua; subindo, davam para o sótão onde a criada tinha o seu quarto, junto à sua casa de banho e despensa da casa; outra porta dava para um corredor que ligava à cozinha; e uma terceira para o quarto do casal.

Os convidados para o serão desse dia (que por sinal eram sempre os mesmos), ou seja, o Sr. Capitão Ribeiro, o Sr. Alferes Marques e o Sr. Sargento Humberto, ainda não tinham chegado.

Mais tarde apareceram dois encapuzados, completamente desconhecidos, nem se chegando a saber de onde vieram…

Entretanto, a criada, a Carmo (uma jovem lisboeta que dizia ter vinte cinco anos) aproximou- se da patroa, de nome Augusta...

Carmo: Minha senhora, por favor... Dona Augusta, dá-me licença?

Augusta: Levantando os olhos de um bordado que estava a fazer, por fim, respondeu para a criada: Entra, entra Carmo. Diz lá o que queres?

Carmo: Minha Senhora, tenho de ir ao supermercado fazer umas compras, pois, são quase vinte horas e depois eles fecham. A senhora quer que pague a dinheiro?

Augusta: Ai não!... pois… não tenho dinheiro trocado... Eles que assentem na minha conta, que depois pago. Mas, Carmo, não te demores, e não te esqueças que hoje é quinta-feira, e os convidados não tardam aí a chegar...

Carmo: Eu não vou demorar mesmo nada, Dona Augusta, fique tranquila.

Augusta: Então vai lá, pequena...

Pouco depois da criada ter saído, toca a campainha da porta...

Augusta: Quem será que está a tocar à porta? A Carmo não deve ser. Só se esqueceu alguma coisa…

A campainha volta a tocar, desta vez mais prolongadamente…

Augusta: - Não toque mais, pois eu vou já abrir...

Ao abrir a porta, a Dona Augusta teve uma grande surpresa, pois à sua frente estavam três homens encapuçados.

Augusta: Mas...mas quem são os senhores, o que me querem? Por favor não me empurrem, estou em minha casa. Não me empurrem...!

1º Encapuzado - Mulher, está caladinha, senão... olha esta faca. Deixa-nos passar e senta-te aí nessa cadeira, sossegadinha...

2º Encapuzado - Raio da mulher não está quieta. Rápido, amigo, amarra depressa esta "fera" aí a essa cadeira...

Augusta: Ah, mas quem são os senhores?!...

2º Encapuzado - Está quieta e cala-te! Tem muita calma, pois só queremos falar um pouco contigo. Está sossegada, mulher... Tem juizinho nessa cabeça, senão...

1º Encapuzado - Já te dissemos para estares quieta e deixares de chorar! Nós só queremos falar contigo... Olha que é um assunto que te interessa muito...

Augusta: Eu vou estar quietinha, mas por favor não me empurrem, nem me agarrem... Por favor...

2º Encapuzado - E ela não se cala nem está sossegada, hei... Ó mulher, ainda te mato. Ouviste bem? Ainda te mato!

Augusta: - Mas quem são vocês? Por favor, digam-me... O que é vocês querem de mim?!...

1º Encapuzado - Assim está bem. Continua calminha, pois, só queremos mostrar-te umas fotografiazinhas que temos aqui...

2º Encapuzado - E são fotografias de uma pessoa que tu deves conhecer muito bem... Vá lá, não vires a cara para o lado... Não te armes em pudica! Olha! Olha!...

1º Encapuzado - Abre, abre, não feches os olhinhos... Vê, vê... Por acaso, não conheces esta mulher que está toda nua... Deitada na cama com este homem?!... Não me digas que a não conheces? Vá lá, faz um esforçozinho de memória!...

Augusta: Mas... Mas eu não conheço essa mulher... juro por tudo que não a conheço ! Juro que a não conheço, mas larguem-me, larguem-me...

2º Encapuzado - Não nos tentes enganar, pois esta mulher é mesmo tu - tu, ouviste bem? Ou será que não te conheces a ti própria?!...

1º Encapuzado - Não te faças de tolinha, pois connosco, isso não pega - espertinha!

2º Encapuzado - Ó mulher, deixa-te de tretas, pois é melhor entrares em acordo connosco. Pensa bem e rapidamente, e não queiras fazer nenhuma asneira...

Augusta: Mas eu já vos disse que esta mulher que está nesta fotografia toda nua, não sou eu!... Volto a jurar por tudo, que não sou eu que, está aí toda nua!

2º Encapuzado - Ah, ah... És tu, és, não me consegues enganar, e por favor não me faças perder a paciência. Senão, daqui a pouco corto-te o pescoço... Assim...!!!

1º Encapuzado - Tem calma, amigo, pois deves ter uma certa paciência com esta mulher... E tu aí, mulher, para não ficares com o teu pescocinho cortado, é melhor resolveres entrares em acordo connosco. Senão, como deves calcular, o teu maridinho, o Sr. Coronel, vai saber tudo, tim-tim por tim-tim!!!...

2º Encapuzado - Como já deves calcular, a nós, não nos custa nada... Mas mesmo nada, fazer isso! Amigo, talvez seja melhor mostrar-lhe novamente as fotografias...

Augusta: Eu não sei como é que vos hei-de fazer crer que esta mulher que está aqui, nesta fotografia, não sou eu!!! Juro que não sou eu! Só se for... Só se for... A minha irmã - gémea, que se chama Liza. Já há muitos anos que a não vejo. Só se for ela.

2º Encapuzado - Já te disse que não venhas com essa mentira! És tu, tu, e só tu - e está tudo dito !!! Percebeste?

Augusta: Ai que vida a minha! Já vi que não adianta discutir com vocês... Mas, finalmente, o que é que vocês querem de mim? Mais uma vez vos digo que não sou eu...

1º Encapuzado - Já te disse para estares quieta e cala-te... Como já vimos que és boa mulher, vamos fazer umas continhas, e assim, por estas fotografias... sim, por estas fotografias só te vamos levar...

2º Encapuzado - Digamos... Dez mil e quinhentos euros!

1º Encapuzado - Como vês, é uma verdadeira pechincha: só dez mil e quinhentos euros. Até devia ser mais qualquer coisinha…

Augusta: Mas o que é que vocês estão p'ra aí a dizer? Dez mil e quinhentos euros, é pouco dinheiro? Olhem que eu nunca tive tanto dinheiro junto e em meu poder! Vocês são uns escroques, uns chantagistas...

2º Encapuzado - Toma mas é cuidadinho com essa língua, pois senão já sabes que te corto o teu lindo pescoço.

Augusta: Ai credo, homem!... Que aflição... Tire-me essa faca daqui do meu pescoço!... Ai o meu coração...

1º Encapuzado - Não te enerves, mulher, olha o teu coração... Nós não desejamos que você morra, antes de nos dar o dinheiro...

Augusta: Ai, o meu pobre coração até parece que vai rebentar!... Ai...

1º Encapuzado - Deixa lá o coração e vamos lá ao que mais interessa: tens ou não os dez mil e quinhentos euros? Se não tens, vai ao cofre do teu marido, o Sr. Coronel, pois ele deve ter lá muito dinheiro...

Augusta: Mas não é possível, pois eu nunca roubei nada a ninguém, e muito menos ao meu marido. Vocês estão doidos...

2º Encapuzado - Não me venhas cá com esses argumentos, pois para nós não pega. Vai depressa ao cofre e traz rapidamente o dinheiro. Vá lá, rápido!...

1º Encapuzado - E para tua orientação, enquanto não nos entregares o dinheiro, ficaremos cá em casa a fazer distúrbios. E tu nem calculas os distúrbios que somos capazes de fazer...

Augusta: O que vocês estão p'ra aí a dizer? Que ficam cá em casa? Mas onde?...

1º Encapuzado - Onde não interessa. Mas podes ter a certeza que ficaremos cá até recebermos a massinha toda. Não faças essa cara de espantada e nem tentes brincar connosco...

2º Encapuzado - E toma bem atenção: se por acaso tentares denunciar-nos, já sabes o que te vai acontecer: pescoço fora!

Neste momento toca novamente a campainha da porta …

1º Encapuzado - Amigo, espreita aí pelo óculo da porta... O que é que vês?

2º Encapuzado - É a criada. Olha que a «mamífera» tem cá um "cabedal" de género avião... Ai que bom... bonzinho... Ai... Que gatinha! Estou a ficar cheio de comichões…

1º Encapuzado - Deixa-te de parvoíces. Vamos esconder-nos atrás daquele sofá... Rápido e sem barulho. Cuidado não tropeces nesse fio... Esconde-te... Rapidamente…

2º Encapuzado - E tu aí "menina"... Olha para aqui para mim... Assim... Se não colaborares connosco, já sabes o que te acontece aos teu lindo pescoço... Olha que não somos para brincadeiras...

1º Encapuzado - E toma atenção: diz à criada que faça qualquer coisa que se coma, pois estamos esfomeados! Ela que faça um bom petisco para nós... Não te esqueças!

2º Encapuzado - Agora “menina”, vai lá abrir a porta, mas com juizinho...
Augusta: É inacreditável o que me está a acontecer... Eu nem quero acreditar!... Deve ser um sonho mau...

Falando um pouco mais alto, prepara-se para abrir a porta...

Augusta: Quem é?... Quem é que está aí a bater à portaaa?...

Carmo: Sou eu, minha senhora, a Carmo.

Augusta: Até que enfim que chegaste! Sempre que vais fazer compras, até parece que levas uma cadeirinha atras de ti... Deves dar um grande desgaste à tua língua ao falares tanto com as vizinhas...

Carmo: Mas, a senhora deve de estar enganada, pois desta vez quase que não me demorei nada. Fui num pé e vim noutro.

Augusta: Olha que não me parece. A mim, pareceu que demoraste quase uma eternidade. Olha, vai para a cozinha e prepara... Deixa cá ver...talvez uns pastelitos de bacalhau e, bem fritinhos...

Carmo: Pastéis de bacalhau a esta hora?...

Augusta: Não compreendo a tua observação, pois, a qualquer hora, podemos ter vontade de comer pastéis de bacalhau!

Carmo: A senhora é que manda. Vou já preparar meia dúzia de pastéis...

Augusta: Só meia dúzia?! São poucos! Nem calculas a fome que eu tenho. Prepara pelo menos uma dúzia e meia ou mesmo duas dúzias, de pastelinhos e bem fritinhos, não te esqueças.

Carmo: Não sabia que a senhora tinha deixado de fazer dieta para o tal regime de emagrecimento, que tanto falava! Isto de ser criada, tem muito que se lhe diga!

Quando a criada já se encontrava na cozinha, toca novamente a campainha da porta.

Augusta: Carmo, vai abrir a porta; ainda não ouviste a campainha?
====================
continua…

Fonte:
O Autor

Simone Borba Pinheiro (Ciranda da Amazonia) Parte 3

DUDU CRUZ
Eu não tenho nada a ver com a Amazônia...

-
 Quem diz que não tem nada a ver com a Amazônia hoje
 Com certeza amanhã não terá nada para ver em toda a Terra.
 A natureza não renasce das cinzas...
 Precisamos parar de criar cinzas!
 Precisamos cuidar da natureza como uma Senhora querida que cai.
 Naturalmente, devemos esticar o braço dar a mão para ajudar a Natureza a se levantar!
 Ela, com certeza, agradecerá por nossa atitude nos dando a sua beleza!
 E nós, agradeceremos por tê-la novamente de pé, com toda sua Graça!
 A Natureza é Graça de Deus materializada!
 Pessoas que não acreditam em Deus, acreditam que a Natureza seja uma Senhora a ser amada.
 Por isso, você tem que ver hoje como fazer para salvar a Amazônia, para não admitir amanhã, que não há mais nada a fazer para ver a Natureza viva.
-
EFIGÊNIA COUTINHO
Prece Da Paz Ambiental

-
 É nesta Floresta aqui, onde me
 ajoelho, e para me unir, também
 eu, modesta criatura do meu
 Planeta, edificando minha
 Prece Universal. Onde calco
 com meus joelhos todas essas
 folhas mortas, que se acumulam,
 de geração em geração, umas
 sobre as outras, para servirem de
 humidade sobre a terra, cedendo
 lugar ás suas novas e majestosas
 folhas. São as folhas verdes do
 alto de seus ramos, que cantam
 a canção da vida, que não repousa nunca!

 E as folhas secas debaixo, e sobre as
 quais pousam os meus pés e os meus
 joelhos, murmuram ao meu ouvido a
 PRECE DA PAZ AMBIENTAL...
-

SILVIA GIOVATTO
Pulmão do Mundo


 SOS, queremos respirar!
 o pulmão do mundo está ameaçado,
 estão destruindo a nossa floresta amazônica,
 como se não bastasse a poluição do ar, estão tirando
 a nossa chance de vida que vem das matas.
 Pouco a pouco a Amazônia vai se a acabando,
 destruída pelas mão de seres humanos... será?
 Fica aqui o meu pedido de socorro.
 alguém tem de acordar e resolver esse problema
 que afeta o mundo.
 Não precisamos encher nosso pulmão de ar,
 com substancias medicamentosas através de inalação,
 precisamos de ar puro, vindo das árvores, das matas....e
 isso nós tínhamos, quando a ganância do homem não existia.
 O homem está se destruindo e tirando das nossas crianças
 a chance de respirar, de viver...
 Não cortem as nossas árvores, não queimem as nossas matas,
 por caridade, não destruam o nosso planeta...
 você pode ter vantagens com isso, mas está destruindo a sua vida,
 a nossa vida, a vida dos nossos animaizinhos...
 Não destrua, construa!
 Não derrube, plante!
 Não mate, dê chance de vida a quem quer viver!
 Nós precisamos de ar puro...você também precisa!
 Não use suas mãos para destruir, elas serão mais úteis na construção.
 Pense nisso... e por favor...
 Pare agora, com essa destruição.
-

FERNANDO REIS COSTA
Mãe Natureza


 Ó estirpes que se extinguem da beleza
 Que a mãe Natureza ao homem deu!
 Vemos hoje que a própria Natureza
 Está sendo destruída… e se perdeu!

 E o homem, ambicioso e com frieza,
 Quer mais e muito mais em cada dia:
 Destrói cada vez mais a Natureza
 Buscando tostões na tecnologia!

 Lembremos a paisagem, outrora linda;
 Hoje… terra de cinzas, tão queimada;
 No ar, o oxigénio quase finda…

 E se a destruição continuar ainda
 No ritmo que leva, acelerada…
 O homem-suicida fica “nada”!
––––

GLADYS OVADILLA
Amazônia

 Amanecía en la amazónica,
 Con sus tintes de colores,
 Mirando en silencio,
 En la orilla azotaba el agua,
 Color león con fuerza,
 Meditando escuche el
 Bullicio de las aves,
 Prolongando su vuelo,
 Recuerdo caminar en redomona,
 Mis pies parecían quebrarse,
 En medio del lodazal,
 Quede petrificada, no veía más
 Que árboles y pastos,
 Tacita quede hasta el hartazgo,
 La claridad deteniéndome asustada,
 Los maravillosos árboles talados,
 ¡Señor de los cielos! no puede ser,
 Tedioso en el paseo vi. árboles caer,
 Sin retaceo temí lo peor, lo encontré,
 La tierra vacía sin quejas,
 Se robaron el monte Mister,
 Desigualando el clima y al indígena,
 Su habitad infalible de tanto siglos,
 Osadía, los verdugos traficantes,
 Los montes con sañas se llevaron,
 ¡Vuelven por más! A cegarlos todos,
 El obraje oscurecido secuestro el aire,
 Cambio el clima, los vientos, y el agua misma,
 No son nubes pasajeras, son aguacero,
 Torrentosos interminables, que corren por
 Las ciudades incalculables,
 Al mundo globalizado, estamos perdiendo,
 Por culpa de la amazona que esta muriendo,
=============
HERMES JOSÉ NOVAKOSKI
Amazônia! Quem Te Ama?

 Te destruímos, queimamos
 Derrubamos tua riqueza
 Nós não mais te amamos
 Queremos apenas tua nobreza

 Teus rios nós os poluímos
 As fontes estão secando
 As aves nós as matamos
 Com os animais acabamos

 Tua grandeza e imensidão
 Ainda não entendemos
 O bem que tu nos fazes
 Ainda não percebemos

 Nem os teus filhos te amam
 Destroem o que vêem pela frente
 Eles não sabem ainda
 Que te destruindo, destroem muita gente

 Deixamos as marcas da destruição
 Porque queremos enriquecer
 Tua morte não será em vão
 Contigo vamos perecer

 Perdoa-nos Amazônia! Não te amamos como mereces
 Em vez de te tratar como um rei, uma rainha
 Te fazemos sofrer para que seques e desapareças
 Não nos importa a vida, mas as riquezas que tinhas

 Os que te amam contigo choram
 São poucos, mas são nossos amigos
 Lutam para te defender do malvado e imploram
 Que tu tenhas piedade e não envies castigos

 Seguirás o teu ciclo
 Nós sofremos as consequências
 O homem é o pior dos bichos
 Que destrói por prepotência

 Os que te amam pensam em ti e em si
 Pois sabem que sem o ar, a água, a biodiversidade
 A vida vai aos poucos se extinguir
 Marcas do capitalismo e egoísmo: a infelicidade

 Pensar em ti é pensar no futuro
 Que tu nos garantirás
 Uma vida livre, sem muros
 A liberdade em fim reinará.

Fonte:
http://www.familiaborbapinheiro.com/ciranda_amazonia.htm

Monteiro Lobato (A Reforma da Natureza) Capítulo 10 – A volta de Dona Benta

No dia marcado, ali pelas dez horas da manhã, Emília e a Rãzinha ouviram rumor de automóvel na estrada. Correram à varanda. Vinha vindo uma porção de carros, com Dona Benta, tia Nastácia e os meninos no da frente.

Ao entrarem no terreiro Emília adiantou-se para recebê-los. Os homens da Comissão apearam e despediram-se de Dona Benta com muitas palavras de agradecimento e amabilidades.

- Pois é isso - disse-lhes a boa velha. - Sigam lá na Europa as minhas instruções que tudo dará certo. Adeus, adeus! Mil recomendações ao Rei Carol e ao Duque e à Duquesa de Windsor - gostei muito dela. E digam ao Mussolini e ao Hitler que apareçam quando puderem, para um passeio no Quindim. Adeus, adeus!

Os automóveis da Comissão partiram na voada.

Depois que desapareceram lá na curva, Dona Benta entrou para a saleta com os meninos e tia Nastácia foi para a cozinha. Mas ...     que era aquilo? Não estavam reconhecendo a velha saleta da entrada.

Tudo esquisito, tudo diferente.

- Que é isto, Emília? Que significam estas mudanças?

Emília contou tudo.

- Eu reformei a Natureza - disse ela. - Sempre tive a idéia de que o mundo por aqui estava tão torto como a Europa, e enquanto a senhora consertava a Europa eu consertei o sítio.

- Consertou o sítio?!... - repetiu Dona Benta sem entender coisa nenhuma. - Que história é essa?

Narizinho interveio:

- Eu bem disse, vovó, que ela queria ficar sozinha para fazer coisas malucas. Fui lá ao meu quarto e encontrei a cama pendurada no forro, imagine ! ...

- E eu - disse Pedrinho entrando - fui á biblioteca e encontrei os seus livros cheirando a alho e cebola. Abri um, provei; gosto de sopa; páginas adiante, gosto de carne assada ...

O assombro de Dona Benta não tinha limites e por mais que Emília explicasse ela ficava na mesma.

Súbito, deu com a Rãzinha.

- Quem é esta menina? - perguntou.

- É a Rã.

- Que rã?

- A Rãzinha da Silva, minha amiga do Rio, que veio ajudar-me na reforma da Natureza.

O assombro de Dona Benta crescia, e cresceu ainda mais quando tia Nastácia apareceu aos berros.

- Sinhá, Sinhá, está tudo esquisito lá na cozinha ! Pus o leite no fogo; assim que começou a ferver, assobiou!...

- Assobiou, o leite, Nastácia?

- Sim, Sinhá, assobiou, e o fogo no mesmo instantinho apagou por si mesmo. Aquilo está com feitiçaria, Sinhá. Andou alguma bruxa por aqui...

- A bruxa é ela - disse Narizinho apontando para Emília. - Diz que reformou a Natureza ...    

Dona Benta não voltava a si do espanto.

- Mas que absurdo, Emília, reformar a Natureza! Quem somos nós para corrigir qualquer coisa do que existe? E quando reformamos qualquer coisa, aparecem logo muitas conseqüências que não previmos. A obra da Natureza é muito sábia, não pode sofrer reformas de pobres criaturas como nós. Tudo quanto existe levou milhões de anos a formar-se, a adaptar-se; e se está no ponto em que está, existem mil razões para isso.

- Não acho! - contestou Emília cruzando os braços. - A obra da Natureza está tão cheia de "bissurdos" como a obra dos homens. A Natureza vive experimentando e errando. Dá cem pés á centopéia e nem um para as minhocas - por que tanta injustiça? Faz um pêssego tão bonito e deixa que as moscas ponham ovos lá dentro e dos ovos saiam bichos que apodrecem a linda carne dos pêssegos - não é uma judiação? Veste os besouros com uma casca grossa demais e deixa as minhocas mais nuas do que a careca do Quindó - isso é erro. Quanto mais observo as coisas mais acho tudo torto e errado.

Mas sem demora começou a ser desmentida. Um tico-tico entrou na sala e disse com muito desespero para Dona Benta:

- Minha boa senhora, livrai-me do que a Emília fez em mim. Transformou-me em passarinho ninho, com ovos às costas, e isso tem sido uma atrapalhação medonha, porque não me deixa voar com desembaraço, e desse modo não consigo escapar aos meus perseguidores.

- Que história de passarinho-ninho é essa? - perguntou Dona Benta, e quando soube de tudo abriu a boca. Era demais a ousadia da Emília. Alterar daquele modo a Natureza! Mudar as coisas que levaram milhões de anos para se equilibrarem ...     E agarrando o tico-tico desfez-lhe o ninho das costas e guardou os três ovos para pô-los no ninho natural que ele fizesse pêlo sistema antigo.

Estava ainda a lidar com a pobre ave, quando Pedrinho apareceu de novo, muito assustado.

- Vovó, o que aconteceu aqui no sítio parece até um sonho! Encontrei Quindim completamente transformado, com couro de palhinha, a Branca de Neve com os anões pintados no casco, quatro pernas diferentes, cem rabos, e em vez de chifre uma seta de Cupido com um coração na ponta. Imagine! Não dá a menor idéia dum bicho possível !...

A boca de Dona Benta abriu de caber dentro uma laranja.

- E o Rabicó, então? - continuou Pedrinho.

- Está com cauda de cachorro lulu, toda frisadinha, e só com dois pés - e pés de tartaruga. E com uma ratoeira no focinho e um lenço automático no nariz!...

- Sinhá! Sinhá! - voltou tia Nastácia berrando. - O mundo está perdido. Já não entendo mais nada. Fui ver a Mocha e sabe o que encontrei? Um bicho sem propósito, com a cauda no meio do lombo, chifre de saca-rôlha com bola de borracha na ponta, e as tetas fora do lugar, com duas torneirinhas, Sinhá, imagine! E o chão anda cheio de moscas sem asa. E um pernilongo cantou no meu ouvido uma música tal e qual aquela que lá na Conferência sêo "Churche" mandou os músicos tocarem para a senhora ouvir – direitinho! Eu não fico mais nesta casa nem um minuto. Isto virou "hospiço" de feiticeiros, Sinhá! Tudo atrapalhado, sem jeito. Ninguém entende nada de nada. Fui encontrar a sua cadeirinha, Sinhá, pregada lá no forro! Subi na escadinha de lavar vidraça, peguei a cadeira pela perna e puxei - e quem disse da cadeira descer? Parece que está pregada no forro com elástico. A gente larga dela e ela sobe outra vez.

- É a força centrípeta - explicou a Rã.

- Centrífuga - corrigiu Emília - e contou a história da supressão do peso.

Tia Nastácia passava a mão num galo que tinha na testa. A negra estava verdadeiramente zonza.

- E ainda tem mais, Sinhá - disse ela. - Imagine que me sentei debaixo da jabuticabeira, e sabe o que aconteceu? De repente uma coisa enorme caiu lá do alto em cima da minha cabeça. Era uma abóbora, Sinhá! Uma abóbora deste tamanho! Fiquei tonta uma porção de tempo, nem sei como não morri. As abóboras andam agora nas jabuticabeiras, Sinhá. Veja que "bissurdo."
-------
continua...

Folclore dos Estados Unidos (Lenda Indígena Abenaki: História da Criação e A Importância de Sonhar)

Grande Espírito, em um tempo não conhecido por nós olhou aproximadamente e não viu nada. Sem cores, sem beleza. Tempo ficou em silêncio na trevas. Não havia nenhum som. Nada poderia ser visto ou sentido. O Grande Espírito decidiu preencher esse espaço com luz e vida.

De seu grande poder, ele comandou as faíscas da criação. Ele ordenou Tolba, o grande da tartaruga para vir das águas e tornar-se a terra. O Grande Espírito moldou as montanhas e os vales nas costas de tartaruga. Ele colocou as nuvens brancas no céu azul. Ele ficou muito feliz e disse: "Tudo está pronto agora. encherei este lugar com o movimento feliz da vida. "Ele pensou e pensou sobre que tipo de criaturas que ele faria.

Onde é que eles vivem? O que eles fariam? Qual seria o seu propósito ser? Ele queria um plano perfeito. Ele pensou tanto que ficou tão  cansado e adormeceu.

Seu sono foi cheio de sonhos de sua criação. Ele viu estranhas coisas em seu sonho. Ele viu animais rastejando sobre quatro patas, alguns em duas. Algumas criaturas voando com asas, alguns nadavam com barbatanas. Lá  haviam plantas de todas as cores, cobrindo o chão por toda parte. Insetos zumbiam ao redor, os cachorros latiam, os pássaros cantavam, e os seres humanos chamados uns aos outros. Tudo parecia fora do lugar. O Grande Espírito pensou que ele estava tendo um sonho ruim. E pensou que nada poderia ser este imperfeito.

Quando o Grande Espírito despertou, viu um castor mordiscando um ramo. E percebeu o mundo de seu sonho tornou-se sua criação. Tudo ele sonhou havia se tornado realidade. Quando ele viu o castor fazer a sua casa, e uma represa para fornecer uma lagoa para a sua família  nadar, então ele sabia que cada coisa tem o seu lugar, e fim no tempo.

Tem sido dito entre o nosso povo de geração em geração. Não devemos questionar nossos sonhos. Eles são a nossa criação.

Fonte:
Toca da Morgana

Guilherme de Azevedo (Alma Nova) XIV

foi mantida a grafia original.
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OS PALHAÇOS

Heróis da gargalhada, ó nobres saltimbancos,
Eu gosto de vocês,
Porque amo as expansões dos grandes risos francos
E os gestos de entremez,

E prezo, sobretudo, as grandes ironias
Das farsas joviais.
Que em visagens cruéis, imperturbáveis, frias.
À turba arremessais!

Alegres histriões dos circos e das praças,
Ah, sim, gosto de vos ver
Nas grandes contorções, a rir, a dizer graças
De o povo enlouquecer,

Ungidos pela luta heroica, descambada,
De giz e de carmim,
Nas mímicas sem par, heróis da bofetada,
Titãs do trampolim!

Correi, subi, voai num turbilhão fantástico
Por entre as saudações
Da turba que festeja o semideus elástico
Nas grandes ascensões,

E no curso veloz, vertiginoso, aéreo,
Fazei por disparar
Na face trivial do mundo egoísta e sério
A gargalhada alvar!

Depois, mais perto ainda, a voltear no espaço,
Pregai-lhe, se podeis,
Um pontapé furtivo, ó lívidos palhaços,
Luzentes como reis!

Eu rio sempre, ao ver aquela majestade,
Os trágicos desdéns
Com que nos divertis, cobertos de alvaiade,
A troco duns vinténs!

Mas rio ainda mais dos histriões burgueses,
Cobertos de ouropéis,
Que tomam neste mundo, em longos entremezes,
A sério os seus papéis.

São eles, almas vãs, consciências rebocadas,
Que enfim merecem mais
O comentário atroz das rijas gargalhadas
Que às vezes disparais!

Portanto, é rir, é rir, hirsutos, grandes, lestos,
Nas cómicas funções,
Até fazer morrer, em desmanchados gestos,
De riso as multidões!

E eu, que amo as expansões dos grandes risos francos
E os gestos de entremez,
Deixai-me dizer isto, ó nobres saltimbancos:
Eu gosto de vocês!

A HIDRA

Há muito que desceu das orientais montanhas
A hidra singular que espalha nas ardências
Duma luta febril cintilações estranhas!

Ela galga, rugindo, às grandes eminências,
E enquanto vai soltando o silvo pelo espaço
Engrossa à luz do sol na seiva das consciências.

Tem rijezas sem par, como de roscas de aço
E corre descrevendo em giros caprichosos
Na leiva popular um indefinido traço.

Prefere aos antros vis os focos luminosos
E em mil voltas cruéis aperta dia a dia,
Numa longa espiral, os tronos carunchosos.

Passou pelo país da cândida Utopia:
Nos míticos rosais viveu dum vago aroma
Ao pálido fulgor da aurora que rompia.

Mas hoje com valor em toda a parte assoma,
E sem temer sequer a lúgubre viseira
Há muito que transpôs os pórticos de Roma.

E os Papas mais os reis sentindo-a na carreira
Do seu longo triunfo, um tanto apavorados,
Trataram de acender a lívida fogueira.

E ao galope lançando os esquadrões cerrados
Começaram depois, na terra, a persegui-la,
A cúmplice fatal dos lívidos Pecados!

Mas ela sem temor, nos cérberos tranquila,
Derrama cada vez mais belos e fecundos
Os intensos clarões da lúcida pupila,

E enquanto a imprecação de tantos moribundos,
Os déspotas cruéis, acolhem com desdém,
A hidra imensa — a Ideia — a farejar nos mundos
Ainda a garra adunca afia contra alguém!