domingo, 4 de agosto de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 21

CAPÍTULO XIII

Teobaldo saiu de casa verdadeiramente aborrecido.

— Malditas fossem todas as mulheres! Maldito fosse ele, que não conseguia dar um passo sem tropeçar logo num rabo de saia! Arre! Era preciso despedir-se de Leonília por uma vez e fazer com todas as outras o que fizera com Ernestina! Esta com certeza estava mais que despachada!

E, assim considerando pelo caminho, principiou a passar uma revista mental aos seus amores.

— No fim de contas, pensava, só trouxera de tudo isso conseqüências ridículas ou perniciosas, que serviam apenas para lhe atrasar a vida e afastá-lo dos seus verdadeiros interesses. Ah! Mas desta vez havia de tomar uma resolução, uma medida séria! Naquele andar não conseguiria nunca fazer carreira... A ter de ter amores, que fossem estes com mulheres de quem lhe viesse algum benefício real: mulheres que, lhe abrindo os braços, abrissem-lhe também as portas de um futuro garantido e cômodo. Estava disposto a amar, sim senhor, contanto que lhe viesse daí algum proveito imediato para as suas ambições.

Com estes cálculos chegava ao largo de S. Francisco quando o Aguiar lhe bateu no ombro. Virou-se, sem ter tempo de compor um sorriso amável.

— Oh! Estás com uma cara! Disse-lhe aquele.

— Não é nada! Tédio.

— Eu também não me sinto de bom humor. Dormi mal A noite passada e tive enxaqueca durante todo o dia. Vou beber para ver se distrai; queres vir também?

— Não, obrigado; estou incapaz de tudo.

— Anda daí.

— Está bom. Vamos lá.

E à mesa do botequim, defronte dos copos de cerveja:

— Mas, que diabo tens tu? perguntou Aguiar.

— Desanimado, filho, totalmente desanimado! Não imaginas a série de contrariedades que me sucedem todos os dias. Agora, para cúmulo de caiporismo, é o diabo da Leonília que entende perseguir-me de um modo atroz!

E contou minuciosamente o que ela fizera.

Aguiar abriu os olhos com exagero de espanto.

— Que! Pois seria crível? Ora, para que lhe havia de dar! Exclamava a rir. Paixão aguda, com caráter pernicioso! Podre Leonília.

— Pobre, mas é de mim! Emendou Teobaldo, muito preocupado.

— De ti? Tu o que és é um grande felizardo! Disse o outro. As mulheres procuram-te e são capazes de ir ao inferno para te descobrirem!

— Não esta má fortuna! Dava-a de boa vontade a quem a quisesse!

— Deixa-te disso…

— Juro-te, meu amigo, que estou deveras aborrecido com tudo isto e que de bom grado abandonaria o Rio de Janeiro, se me achasse em condições de fazer uma viagem.

Depois de alguns outros copos, os dois rapazes ficaram mais expansivos. Aguiar confessou então, que a causa do seu mal-estar não era a tal noite mal passada, nem tampouco a suposta enxaqueca, mas o diabinho de uma prima que ele tinha, um diabinho de quinze anos, que ele adorava, sem conseguir arrancar-lhe um ar de sua graça.

— Não te corresponde?

— Qual! Parece até embirrar comigo. Talvez me confunda com os tipos que a cobiçam por causa do dote…

— Ah! É rica!

— Tem cento e tantos contos... Ah! Mas tu sabes perfeitamente que eu, só por parte de minha mãe, possuo mais do que isso, sem contar com a morte de meu avô.

Teobaldo soltou um suspiro.

— Já vês... Disse o outro, que não é pelo dote!

— Está claro!

— Pois, apesar disso, não consigo agradá-la. Tenho empregado todos os meios; não penso rim outra coisa; persigo-a por toda a parte, e a malvadinha cada vez mais cruel!

— Decerto; toda mulher foge enquanto a perseguem. Deixa-a. de mão; finge indiferença, e verás que ela se chega.

— Homem. e dizes bem. vou fazer-me indiferente.

Mas acrescentou logo depois:

— Qual! É impossível! Não tenho forcas para isso!... Será bastante vê-la, encontrá-la na rua, vara que eu perca de todo a cabeça e não saiba mais regular os meus atos. Fico louco!

— Oh! Mas então a coisa é séria!

— Que queres tu? Adoro-a!

— Ela é bonita?

— Encantadora! Queres ver o retrato?

E, tirando do bolso uma fotografia.

— Olha.

— É linda. com efeito. Pois. filho, se estás tão apaixonado, é insistir, porque a água mole em pedra dura...

— Sim. mas já me vão faltando as esperanças de conseguir qualquer coisa... Ri. sabes? Ela depois de amanhã faz anos; hesito ainda no presente que lhe devo dar...

— Não lhe dês nada.

— Impossível. Há uma festa em casa da família. O pai, o comendador

Rodrigues que protege as minhas pretensões sobre a filha. convidou-me.

— Ah! O pai protege-te?

— Pai, parentes, amigos, todos me protegem, menos ela.

— É o diabo! Estás mal!

— Contudo, ainda não desanimei de todo e vou experimentar uma idéia, que tive agora, uma idéia para o dia de seus anos.

— Qual é?

— Uma idéia magnifica; só tu, porém, me podes ajudar.

— Eu? De que modo?

— Vou levar-lhe de presente uma poesia... Que achas? É um presente econômico.

— Mas eu não sei fazer versos; tu és quem os há de arranjar.

— Não seja essa a dificuldade. Podes contar com eles.

— Não. Há de ser já; ao contrário sei que não os pilho.

— Agora?

— Sim. Olha; ali tens uma mesa com papel e tinta; toma a fotografia para te inspirares, e mãos à obra!

— Ora, filho, mas isto é uma espiga.

— Anda! Escreve!

Teobaldo ainda recalcitrou, mas o outro insistiu por tal forma, que ele afinal não teve remédio senão fazer-lhe a vontade.

E, colocando o retrato defronte de si, compôs ao correr da pena meia dúzia de estrofes líricas, repassadas de arrebatamento amoroso; depois limou-as pelo melhor que pode e leu-as ao amigo.

— Que tal achas?

— Soberbo! Com isto creio que avanço uma légua nas minhas pretensões.

E guardando os versos na algibeira:

— É verdade! Tu bem podias vir comigo à festa; é domingo. Hás de gostar.

— Pode ser... respondeu o outro

— Não; quero que venha com certeza; desejo apresentar-te a meu tio.

Teobaldo, havia muitos meses, não tinha ocasião de visitar famílias o que com a sua educação, fazia-lhe certa falta; não lhe foi por conseguinte de mau efeito o convite do amigo, e, logo que este pôs à disposição dele algum dinheiro, ficou entre os dois combinado que jantariam juntos no domingo em casa do Aguiar e seguiriam depois para o baile do comendador Rodrigues. Depois foram daí ao teatro e à volta deste cearam no Mangini em companhia de uma francesa que se lhe agregara durante o espetáculo.

Eram duas horas da madrugada quando Teobaldo, um pouco eletrizado pelos seus vinhos italianos, recolhia-se afinal a casa, pé ante pé, para não acordar o Coruja. Mas, ao entrar no quarto, ficou surpreendido; alguém ressonava na sua cama. Acendeu a vela; era Ernestina, que dormia o sono solto.

— Ora esta! Pensou ele, tomando uma carta que acabava de descobrir sobre a mesa, e, ato contínuo, soprou o vela e tornou a sair, muito enfiado.

— Diabo! Exclamou, fechando sobre si a porta da rua. Pois nem com a minha pobre cama posso contar?

Neste instante, Ernestina, que havia acordado, aparecia à janela, estremunhada e aflita.

— Que! Pois não ficas em casa?! Perguntou ela.

— Decerto! Respondeu de baixo o moço com raiva.

— És um homem impossível!

E ouviram-se soluços.

— Impossível é a senhora! Gritou ele. Creio que não podia lhe falar com mais franqueza do que falei! Fez mal em ficar!

— Sobe! Pediu ela com a voz chorosa.

— Não me aborreça, replicou Teobaldo, afastando-se furioso.

E pensar, considerava o fugitivo pela rua, que não fui ter hoje com Leonília só para gozar uma noite completamente sossegada...

E, depois de alguns passos, enquanto seu pensamento trabalhava, deteve-se no meio da rua, batendo freneticamente com a bengala no chão.

— Mas isto não tem jeito! No fim de contas é uma violência que me incomoda, que me irrita, que me põe neste estado! Quero dormir, quero repousar e nem isso me permitem! Antes ser escravo! Antes ser um cão, que esses ao menos descansam! Então foi que se lembrou da carta encontrada sobre a mesa; aproximou-se de um lampião e abriu-a. Reconheceu logo pelo sobrescrito que era de Leonília.

Teobaldo — Confesso-te que estou deveras surpresa com o teu procedimento; vejo que me enganei — não és um cavalheiro. Por tua causa enterrei-me neste arrabalde, transformei toda « minha vida e tu, logo nos primeiros dias,foges de mim como se eu fosse a peste em pessoa; ora, hás de...

Teobaldo não leu o resto; amarrotou a folha de papel entre os dedos e lançou-a fora com arremesso.

— Vão todas para o diabo! Disse, e foi continuando a caminhar até à porta do hotel Paris. Bateu e pediu um quarto.

Só depois de recolhido se lembrou de que tinha consigo pouco dinheiro e, pois, não devia gastá-lo em coisas supérfluas.

— Amanhã... Amanhã darei um jeito a tudo isto!... Deliberou entre os lençóis. Vou falar com franqueza ao Coruja e pedir-lhe que me ajude a fugir desta crítica situação em que me acho... Ele é muito capaz de descobrir um meio, e se não descobrir, arranjarei o negócio por minha conta... Aqueles demônios das mulheres... .

Adormeceu em meio deste raciocínio e tão profundamente, que só acordou no dia seguinte à uma hora da tarde. A despeito disso não teve vontade de sair da cama; um entorpecimento doentio parecia chumbá-lo ao colchão; e com os olhos ainda cerrados, deixava que sua consciência funcionasse à vontade, grupando em torno dela um mundo de exprobrações.

Para mais lhe enervar o espírito ali estava aquele insociável aspecto do quarto de hotel, onde se sentiam ainda os rastros da última mulher que o habitara. Teobaldo, despertando afinal, reparou para tudo isso, minuciosamente, com o doloroso prazer de quem repisa de propósito uma parte do corpo que está dorida e machucada.

— A cama era muito larga, com um grande colchão de molas, onde o corpo se abismava; os travesseiros monstruosos e enfeitados de rendas e fitas; e por cima um imenso cortinado de labirinto, enxovalhado de pó. Sobre o mármore do lavatório via-se a bacia de gigantescas proporções, ao lado de uma porção de vasilhas de porcelana; e, em contraste com o resto, um miserável pedaço de sabão de 200 rs., fornecido pelo hotel. A o canto da pedra, esquecida sobre os rebordos do lavatório, havia uma escova de dentes, suja de opiato.

E todo esse aspecto de abandono e desleixo, todo esse falso conforto de quarto sem dono e nunca desocupado, tudo isso ainda mais o entristecia e acabrunhava. Depois — o fato de não ter mudado de roupa e ver--se obrigado a vestir aquela mesma camisa da véspera também o torturava.

— Maldita Ernestina!

Pagas a dormida e uma xícara de café que lhe deram, não lhe ficava dinheiro suficiente para o almoço; vestiu--se, disposto a sair logo. Mas, enquanto se aprontava, ouviu no quarto imediato uma voz grossa, de homem, que altercava com o criado.

— Esta voz!... Pensou o rapaz.

E, tomando de curiosidade, abriu a porta e espiou para o corredor, justamente quando o seu vizinho ia a sair.

— Mas, não me engano! Exclamou. É ele! É o marido da tia Gemi! O velho Hipólito!

— Velho, não! Respondeu o homem. Velho é trapo!

E a sua testa enrugava-se em orlas regulares, como água onde caísse uma pedra.
E reparando:

— Ora, espera! Você é o Teobaldo!...

— Em carne e osso, meu tio.

— As orlas da testa do velho acentuaram-se mais, numa expressão de contrariedade, que ele não procurava disfarçar; circunstância que alterou no mesmo instante o ar de contentamento que se havia formado no rosto do moço.

— Não sabia que o senhor estava na corte... Disse este, para quebrar o silêncio.

— Cheguei ontem e tive o caiporismo de meter-me no diabo deste hotel, que afinal me parece o menos próprio para mim! Com a breca, só vejo franceses e pelintras! E, demais, esfolam-me! Pedem-me os olhos da cara por dar cá aquela palha! Você mora aqui?...

— Não, senhor; vim apenas dormir esta noite: mas a ninguém lembra morar neste hotel. O senhor deve procurar outro. Como ficou minha tia?

— Bem. Está perfeitamente boa!

— Oh! Dir-se-ia que o senhor dá notícias de sua mulher contra a vontade...

— É o meu gênio!

E, sem poder dominar-se:

— Demais, para que precisa você das notícias de sua tia? Parece-me que uma pessoa que, durante dois anos, não se lembrou dos parentes, não há de ter muito interesse por eles...

— Perdão! Replicou Teobaldo. — Eu escrevi à tia Gemi por ocasião da morte de meu pai e depois creio que mais duas vezes; segundo, porém, a única resposta que recebi, quis acreditar que tanto ela como o senhor estavam persuadidos de que eu lhes escrevia para obter dinheiro, e...

— Ah, sim! Sua tia chegou a falar-me em dar-lhe uma mesada, mas, se me não engano, você foi o próprio a rejeitá-la.

— Não me lembro disso, mas é natural que seja exato.

— Pois eu me lembro perfeitamente e afianço que é.

— Bom.

E Teobaldo declarou o número da casa em que morava e pô-la à disposição do tio.

— Passe bem! Respondeu este.

E, quando o rapaz havia-se afastado:

— Um peralta que abandonou os estudos, que não arranjou meios de vida, um pobre diabo! Ainda vem para aqui com soberbas... Bata a outra porta, se quiser: comigo não se arranjará! Ah! Eu logo vi que semelhante educação havia de dar nisto mesmo!

Entretanto Teobaldo sofria e sofria muito. Só quem já atravessou uma boa quadra de necessidade, quando se tem o estômago mal confortado e o coração cheio de orgulho, poderá julgar do desgosto profundo e do tédio homicida que o acompanhavam.

Maldita educação! Maldito temperamento! Compreender o seu estado e não poder reagir contra ele; sentir escorregar-se para o abismo e não conseguir suster a queda; haverá maior desgraça e mais dolorosa tortura?

A surda aflição que lhe punha no espírito a sua falta de recursos, a força de reproduzir-se, havia já se convertido em estado patológico, numa espécie de enfermidade nervosa, que o trazia sempre desinquieto e lhe dera o hábito de levantar de vez em quando o canto do lábio superior com um certo trejeito de impaciência. Orgulhoso como era, a ninguém, a nenhum amigo, exceção feita do Coruja, confessava as suas necessidades e este fato ainda mais as agravava.

E quando em tais ocasiões lhe pediam dinheiro emprestado? Oh! Não se pode imaginar que suplício para Teobaldo! Principiava por lhe faltar a coragem de confessar que não o tinha; e, se o do pedido insistia, começava ele a arranjar pretextos, a remanchear, a prometer para daí a pouco, a mentir, como um caloteiro que deseja engodar um credor impertinente. E, se o sujeito não desistia, Teobaldo dizia-lhe que esperasse um instante e corria a empenhar o relógio, a arranjar dinheiro fosse lá como fosse, contanto que não tivesse de confessar a sua miséria a outro necessitado.

Estes sacrifícios eram tanto mais rigorosamente cumpridos, quanto menos seu amigo era o sujeito que lhe fazia o pedido; não representavam desejo de servir, mas pura e simples manifestação de vaidade.

Quando, porém, o pedinchão lhe era de todo desconhecido, Teobaldo preferia passar por mau e respondia-lhe com a lógica de um sovina, e aos mendigos negava a esmola rindo, fingindo não acreditar nas lágrimas de fome que muita vez lhes saltavam dos olhos.
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continua...

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Mário de Andrade (Tempo de Camisolinha)

A feiúra dos cabelos cortados me fez mal. Não sei que noção prematura de sordidez dos nossos atos, ou exatamente, da vida, me veio nessa experiência da minha primeira infância. O que não pude esquecer, e é minha recordação mais antiga, foi, dentre as brincadeiras que faziam comigo para me desemburrar da tristeza em que ficara por me terem cortado os cabelos, alguém, não sei mais quem, uma voz masculina falando: "Você ficou um homem, assim!" Ora eu tinha três anos, fui tomado de pavor. Veio um medo lancinante de já ter ficado homem naquele tamanhinho, um medo medonho, e recomecei a chorar.

Meus cabelos eram muitos bonitos, dum negro quente, acastanhado nos reflexos. Caíam pelos meus ombros com cachos gordos, com ritmos pesados de molas de espiral. Me lembro de uma fotografia minha desse tempo, que depois destrui por uma espécie de polidez envergonhada... Era já agora bem homem e aqueles cabelos adorados na infância, me pareceram de repente como um engano grave, destrui com rapidez o retrato. Os traços não eram felizes, mas na moldura da cabeleira havia sempre um olhar manso, um rosto sem marcas, franco, promessa de alma sem maldade. De um ano depois do corte dos cabelos ou pouco mais, guardo outro retrato tirado junto com Totó, meu mano. Ele, quatro anos mais velho que eu, vem garboso e completamente infantil numa bonita roupa marinheira; eu, bem menor, inda conservo uma camisolinha de veludo, muito besta, que minha mãe por economia teimava utilizar até o fim.

Guardo esta fotografia porque se ela não me perdoa do que tenho sido, aos menos me explica. Dou a impressão de uma monstruosidade insubordinada. Meu irmão, com seus oito anos é uma criança integral, olhar vazio de experiência, rosto rechonchudo e lisinho, sem caráter fixo, sem malícia, a própria imagem da infância. Eu, tão menor, tenho esse quê repulsivo do anão, pareço velho. E o que é mais triste, com uns sulcos vividos descendo das abas voluptuosas do nariz e da boca larga, entreaberta num risinho pérfido. Meus olhos não olham, espreitam. Fornecem às claras, com uma facilidade teatral, todos os indícios de uma segunda intenção.

Não sei por que não destruí em tempo também essa fotografia, agora é tarde. Muitas vezes passei minutos compridos me contemplando, me buscando dentro dela. E me achando. Comparava-a com meus atos e tudo eram confirmações. Tenho certeza que essa fotografia me fez imenso mal, porque me deu muita preguiça de reagir. Me proclamava demasiadamente em mim e afogou meus possíveis anseios de perfeição. Voltemos ao caso que é melhor

Toda a gente apreciava os meus cabelos cacheados, tão lentos! e eu me envaidecia deles, mais que isso, os adorava por causa dos elogios. Foi por uma tarde, me lembro bem, que meu pai suavemente murmurou uma daquelas suas decisões irrevogáveis: "É preciso cortar os cabelos desse menino." Olhei de um lado, de outro, procurando um apoio, um jeito de fugir daquela ordem, muito aflito. Preferi o instinto e fixei os olhos já lacrimosos em mamãe. Ela quis me olhar compassiva, mas me lembro como se fosse hoje, não aguentou meus últimos olhos de inocência perfeita, baixou os dela, oscilando entre a piedade por mim e a razão possível que estivesse no mando do chefe. Hoje, imagino um egoísmo grande da parte dela, não reagindo. As camisolinhas, ela as conservaria ainda por mais de ano, até que se acabassem feitas trapos. Mas ninguém percebeu a delicadeza da minha vaidade infantil. Deixassem que eu sentisse por mim, me incutissem aos poucos a necessidade de cortar os cabelos, nada: uma decisão à antiga, brutal, impiedosa, castigo sem culpa, primeiro convite às revoltas intimas: "é preciso cortar os cabelos desse menino".

Tudo o mais são memórias confusas ritmadas por gritos horríveis, cabeça sacudida com violência, mãos enérgicas me agarrando, palavras aflitas me mandando com raiva entre piedades infecundas, dificuldades irritadas do cabeleireiro que se esforçava em ter paciência e me dava terror. E o pranto, afinal. E no último e prolongado fim, o chorinho doloridíssimo, convulsivo, cheio de visagens próximas atrozes, um desespero desprendido de tudo, uma fixação emperrada em não querer aceitar o consumado.

E o meu passado se acabou pela primeira vez. Só ficavam como demonstrações desagradáveis dele, as camisolinhas. Foi dentro delas, camisolas de fazendinha barata (a gloriosa, de veludo, era só para as grande ocasiões), foi dentro ainda das camisolinhas que parti com os meus pra Santos, aproveitar as férias do Totó sempre fraquinho, um junho.

Havia aliás outra razão mais tristonha pra essa vilegiatura aparentemente festiva de férias. Me viera uma irmãzinha aumentar a família e parece que o parto fora desastroso, não sei direito... Sei que mamãe ficara quase dois meses de cama, paralítica, e só principiara mesmo a andar premida pelas obrigações da casa e dos filhos. Mas andava mal, se encostando nos móveis, se arrastando, com dores insuportáveis na voz, sentindo puxões nos músculos das pernas e um desânimo vasto. Menos tratava da casa que se iludia, consolada por cumprir a obrigação de tratar da casa. Diante da iminência de algum desastre maior, papai fizera um esforço espantoso para o seu ser que só imaginava a existência no trabalho sem receio, todo assombrado com os progressos financeiros que fazia e a subida de classe. Resolvera aceitar o conselho do médico, se dera férias também, e levara mamãe aos receita dos banhos de mar

Isso foi, convém lembrar, ali pelos últimos anos do século passado, e a praia do José Menino era quase um deserto longe. Mesmo assim, a casa que papai alugara não ficava na praia exatamente, mas numa das ruas que a ela davam e onde uns operários trabalhavam diariamente no alimento de um dos canais que carreavam o enxurro da cidade para o mar do golfo. Ai vivemos perto de dois meses, casão imenso e vazio, lar improvisado cheio de deficiência, a que o desmazelo doentio de mamãe ainda melancolizava mais, deixando pousar em tudo um ar de mau trato e passagem.

É certo que os banhos logo lhe tinham feito bem, lhe voltaram as cores, as forças, e os puxões dos nervos desapareciam com rapidez. Mas ficara a lembrança do sofrimento muito grande e próximo, e ela sentia um prazer perdoável de representar naquelas férias o papel largado da convalescente. A papai então o passeio deixara bem menos pai, um ótimo camarada com muita fome e condescendência. Eu é que não tomava banho de mar nem que me batessem! No primeiro dia, na roupinha de baeta calçuda, como era a moda de então, fora com todos até a primeira onda, mas não sei que pavor me tomou, dera tais gritos, que nem mesmo o exemplo sempre invejado de meu mano mais velho me fizera mais entrar naquelas águas vivas. Me parecia morte certa, vingativa, um castigo inexplicável do mar, que o céu de névoa de inverno deixava cinzento e mau, enfarruscado, cheio de ameaças impiedosas. E até hoje detesto banho de mar... Odiei o mar, e tanto, que nem as caminhadas na praia me agradavam, apesar da companhia agora deliciosa e faladeira de papai. Os
outros que fossem passar, eu ficava no terreno maltratado da casa, algumas árvores frias e um capim amarelo, nas minhas conversas com as formigas e o meu sonho grande. Ainda apreciava mais ir até à borda barrenta do canal, onde os operários me protegiam de qualquer perigo. Papai é que não gostava muito disso não, porque tendo sido operário um dia e subido de classe por esforço pessoal e Deus sabe lá que sacrifícios, considerava operário má companhia pra filho de negociante mais ou menos. Porém mamãe intervinha com o "deixa ele!" de agora, fatigado, de convalescente pela primeira vez na vida com vontades; e lá estava eu dia inteiro, sujando a barra da camisolinha na terra amontoada do canal, com os operários.

Vivia sujo. Muitas vezes agora até me faltavam, por baixo da camisola, as calcinhas de encobrir as coisas feias, e eu sentia um esporte de inverno em levantar a camisola na frente pra o friozinho entrar Mamãe se incomodava muito com isso, mas não havia calcinhas que chegassem, todas no varal enxugando ao sol fraco. E foi por causa disso que entrei a detestar minha madrinha, Nossa Senhora do Carmo. Não vê que minha mãe levara pra Santos aquele quadro antigo de que falei e de que ela não se separava nunca quando me via erguendo a camisola no gesto indiscreto, me ameaçava com a minha encantadora madrinha: — "Meu filho, não mostra isso, que feio! repare: sua madrinha está te olhando na parede!" Eu espiava pra minha madrinha do Carmo na parede, e descia a camisolinha, mal convencido, com raiva da santa linda, tão apreciada noutros tempos, sorrindo sempre e com aquelas mãos gordas e quentes. E desgostoso ia brincar no barro do canal, botando a culpa de tudo no quadro secular Odiei minha madrinha santa.

Pois um dia, não sei o que me deu de repente, o designio explodiu, nem pensei: largo correndo os meus brinquedos com o barro, barafusto porta a dentro, vou primeiro espiar onde mamãe estava. Não estava. Fora passear na praia matinal com papai e Totó. Só a cozinheira no fogão perdida, conversando com a ama da Mariazinha nova. Então podia! Entrei na sala da frente, solene, com uma coragem desenvolta, heróica, de quem perde tudo mas se quer liberto. Olhei francamente, com ódio, a minha madrinha santa, eu bem sabia, era santa, com os doces olhos se rindo para mim. Levantei quanto pude a camisola e empinando a barriguinha, mostrei tudo pra ela. "Tó! que eu dizia, olhe! olhe bem! tó! olhe bastante mesmo!" E empinava a barriguinha de quase me quebrar pra trás.

Mas não sucedeu nada, eu bem imaginava que não sucedia nada... Minha ma
drinha do quadro continuava olhando pra mim, se rindo, a boba, não zangando comigo nada. E eu saí muito firme, quase sem remorso, delirando num orgulho tão corajoso no peito, que me arrisquei a chegar sozinho até a esquina da praia larga. Estavam uns pescadores ali mesmo na esquina, conversando, e me meti no meio deles, sempre era uma proteção. E todos eles eram casados, tinham filhos, não se amolavam proletariamente com os filhos, mas proletariamente davam muita importância pra o filhinho de "seu dotô" meu pai, que nem era doutor, graças a Deus.

Ora se deu que um dos pescadores pegara três lindas estrelas-do-mar e brincava com elas na mão, expondo-as ao solzinho. E eu fiquei num delírio de entusiasmo por causa das estrelas-do-mar O pescador percebeu logo meus olhos de desejo, e sem paciência pra ser bom devagar, com brutalidade, foi logo me dando todas.

— Tome para você, que ele disse, estrela-do-mar dá boa sorte.

— O que é boa sorte, hein?

Ele olhou rápido os companheiros porque não sabia explicar o que era boa sorte. Mas todos estavam esperando e ele arrancou meio bravo:

— Isto é... não vê que a gente fica cheio de tudo... dinheiro, saúde...

Pigarreou fatigado. E depois de me olhar com um olho indiferentemente carinhoso, acrescentou mais firme:

— Seque bem elas no sol que dá boa sorte.

Isso nem agradeci, fui numa chispada luminosa pra casa esconder minhas estrelas-do-mar Pus as três ao sol, perto do muro lá no fundo do quintal onde ninguém chegava, e entre feliz e inquieto fui brincar no canal. Mas quem disse brincar! me dava aquela vontade amante de ver minhas estrelas e voltava numa chispada luminosa contemplar as minhas tesoureiras de boa sorte. A felicidade era tamanha e o desejo de contar minha glória, que até meu pai se inquietou com o meu fastio no almoço. Mas eu não queria contar. Era um segredo contra tudo e todos, a arma certa da minha vingança, eu havia de machucar bastante Totó, e quando mamãe se incomodasse com o meu sujo, não sei não... mas pelo menos ela havia de dar um trupicão de até dizer "ai", bem feito! As minhas estrelas-do-mar estavam lá escondidas junto do muro me dando boa sorte. Comer? pra que comer? elas me davam tudo, me alimentavam, me davam licença pra brincar no barro, e se Nossa Senhora, minha madrinha, quisesse se vingar daquilo que eu fizera pra ela, as estrelas me salvavam, davam nela, machucavam muito ela, isto é... muito eu não queria não, só um bocadinho, que machucassem um pouco, sem estragar a cara tão linda da pintura, só pra minha madrinha saber que agora eu tinha a boa sorte, estava protegido e nem precisava mais dela, tó! ai que saudades das minhas estrelas-do-mar!... Mas não podia desistir do almoço pra ir espiá-las. Totó era capaz de me seguir e querer uma pra ele, isso nunca!

— Esse menino não come nada, Maria Luísa!

— Não sei o que é isso hoje, Carlos! Meu filho, coma ao menos a goiabada...

Que goiabada nem mané goiabada! eu estava era pensando nas minhas estrelas, doido por enxergá-las. E nem bem o almoço se acabou, até disfarcei bem, e fui correndo ver as estrelas-do-mar.

Eram três, uma menorzinha e duas grandonas. Uma das grandonas tinha as pernas um bocado tortas para o meu gosto, mas assim mesmo era muito mais bonita que a pequetitinha, que trazia um defeito imenso numa das pernas, faltava a ponta. Essa decerto não dava boa sorte não, as outras é que davam: e agora eu havia  de ser sempre feliz, não havia de crescer, minha madrinha gostosa se rindo sempre, mamãe completamente sarada me dando brinquedos, com papai não se amolando por causa dos gastos. Não! a estrela pequenina dava boa sorte também, nunca que eu largasse de uma delas!

Foi então que aconteceu o caso desgraçado de que jamais me esquecerei no seu menor detalhe. Cansei de olhar minhas estrelas e fui brincar no canal. Era já na hora do meio-dia, hora do almoço, da janta, do não sei o-quê dos operários, e eles estavam descansando jogados na sombra das árvores. Apenas um porém, um portuga magriço e bárbaro, de enorme bigodões, que não me entrava nem jamais dera importância pra mim, estava assentado num monte de terra, afastado dos outros, ar de melancolia. Eu brincava por ali tudo, mas a solidão do homem me preocupava, quase me doía, e eu rabeava umas olhadelas para a banda dele, desejoso de consolar. Fui chegando com ar de quem não quer e perguntei o que ele tinha. O operário primeiro deu de ombros, português, bruto, bárbaro, longe de consentir na carícia da minha pergunta infantil. Mas estava com uns olhos tão tristes, o bigode caía tanto, desolado, que insisti no meu carinho e perguntei mais outra vez o que ele tinha.

"Má sorte" ele resmungou, mais a si mesmo que a mim.

Eu porém é que ficara aterrado. Minha Nossa Senhora! aquele homem tinha má sorte! aquele homem enorme com tantos filhinhos pequenos e uma mulher paralítica na cama!... E no entanto eu era feliz, feliz! e com três estrelinhas-do-mar pra me darem sorte... É certo: eu pusera imediatamente as três estrelas no diminutivo, porque se houvesse de ceder alguma ao operário, já de antemão eu desvalorizava as três, todas as três, na esperança desesperada de dar apenas a menor. Não havia diferença mais, eram apenas três "estrelinhas"-do-mar. Fiquei desesperado. Mas a lei se riscara iniludível no meu espírito: e se eu desse boa sorte ao operário na pessoa da minha menor estrelinha pequetitinha?... Bem que podia dar a menor, era tão feia mesmo, faltava uma das pontas, mas sempre era uma estrelinha-do-mar Depois: o operário não era bem vestido como papai, não carecia de uma boa sorte muito grande não. Meus passos tontos já me conduziam para o fundo do quintal fatalizadamente. Eu sentia um sol de rachar completamente forte. Agora é que as estrelinhas ficavam bem secas e davam uma boa sorte danada, acabava duma vez a paralisia da mulher do operário, os filhinhos teriam pão e Nossa Senhora do Carmo, minha madrinha, nem se amolava de enxergar o pintinho deles. Lá estavam as três estrelinhas, brilhando no ar do sol, cheias de uma boa sorte imensa. E eu tinha que me desligar de uma delas, da menorzinha estragada, tão linda! justamente a que eu gostava mais, todas valiam igual, porque a mulher do operário não tomava banhos de mar? mas sempre, ah meu Deus que sofrimento! eu bem não queria pensar mas pensava sem querer, deslumbrado, mas a boa mesmo era a grandona perfeita, que havia de dar mais boa sorte pra aquele malvado de operário que viera, cachorro! dizer que estava com má sorte. Agora eu tinha que dar pra ele a minha grande, a minha sublime estrelona-do-mar!...

Eu chorava. As lágrimas corriam francas listrando a cara sujinha. O sofrimento era tanto que os meus soluços nem me deixavam pensar bem. Fazia um calor horrível, era preciso tirar as estrelas do sol, senão elas secavam demais, se acabava a boa sorte delas, o sol me batia no coco, eu estava tonto, operário, má sorte, a estrela, a paralítica, a minha sublime estrelona-do-mar! Isso eu agarrei na estrela com raiva, meu desejo era quebrar a perna dela também pra que ficasse igualzinha à
menor, mas as mãos adorantes desmentiam meus desígnios, meus pés é que resolveram correr daquele jeito, rapidíssimos, pra acabar de uma vez com o martírio.

Fui correndo, fui morrendo, fui chorando, carregando com fúria e carícia a minha maiorzona estrelinha-do-mar. Cheguei pro operário, ele estava se erguendo, toquei nele com aspereza, puxei duro a roupa dele:

— Tome! eu soluçava gritado, tome a minha... tome a estrela-do-mar! dá... dá, sim, boa sorte!...

O operário olhou surpreso sem compreender. Eu soluçava, era um suplício medonho.

— Pegue depressa! faz favor! depressa! dá boa sorte mesmo!

Aí, que ele entendeu, pois não aguentava mais! Me olhou, foi pegando na estrela, sorriu por trás dos bigodões portugas, um sorriso desacostumado, não falou nada felizmente que senão eu desatava a berrar. A mão calosa quis se ajeitar em concha para me acarinhar, certo! ele nem media a extensão do meu sacrifício! e a mão calosa apenas roçou por meus cabelos cortados.

Eu corri. Eu corri pra chorar à larga, chorar na cama, abafando os soluços no travesseiro sozinho. Mas por dentro era impossível saber o que havia em mim, era uma luz, uma Nossa Senhora, um gosto maltratado, cheio de desilusões claríssimas, em que eu sofria arrependido, vendo inutilizar-se no infinito dos sofrimentos humanos a minha estrela-do-mar.

Henrique Wellen (“O Leitor” e a crítica da racionalização da irracionalidade)

 Via de regra, existe uma tendência de que o processo de adaptação de obras literárias para o cinema repercute em perda de qualidade artística. Seja na impossibilidade de exibição dos detalhes presentes nos livros, seja, especialmente, nas dificuldades em expor qualidades subjetivas dos personagens, os leitores costumam acusar alguma frustração quando se deparam com as transformações dos textos romanescos em filmes. Esse não é, todavia, o caso do filme O Leitor que, inspirado no livro homônimo de Bernard Schlink, tem muito mais a oferecer que a peça original. O filme dirigido por Stephen Daldry não somente consegue narrar melhor a história contida no livro, entrelaçando mais precisamente os tempos narrados, como é capaz de superar algumas das limitações de forma e conteúdo que travejam o texto de Schlink.

A narrativa, que se passa na Alemanha, e que se reparte em tempos históricos distintos, intenta, a partir do romance entre um jovem estudante e uma mulher adulta, suscitar reflexões sobre as relações sociais das gerações que vivenciaram e herdaram a época nazista. O tempo é medido pela exposição dos momentos de vida do personagem principal, Michael Berg, na sua juventude e nos momentos da vida adulta (respectivamente expressos nas boas atuações de David Kross e de Ralph Fiennes). O papel da sua amante, Hanna Schmitz, é estrelado de forma precisa e destacada por Kate Winslet, garantindo os momentos mais artísticos do filme.

O encontro dos dois personagens ocorre em 1955, na cidade de Neustadt, num momento de doença do jovem estudante, que é ajudado por Hanna. Depois de uma visita destinada ao agradecimento, os dois acabam se envolvendo sexualmente e, com o desenvolvimento da relação, passam a alternar os momentos de relação sexual com a leitura de obras literárias, lidas pelo estudante para a sua amante. Daí surge, portanto, o título do livro. Contudo, a relação dos dois, perpassada por qualidades de afetividade e de carinho (momentos mais expressivos no filme do que no livro), é quebrada quando Hanna desaparece misteriosamente. Os dois só voltam a se encontrar num segundo momento, em 1966, quando Berg, agora estudante de direito na universidade de Heildelberg, depara-se com Hanna no tribunal, sendo julgada por crimes ocorridos nos campos de concentração nazistas.

A forma narrativa utilizada no livro se estabelece na primeira pessoa, descrevendo atos e fatos passados, dando o tom de uma confissão refletida de Michael Berg. Já o filme, utilizando-se da metanarrativa, consegue superar algumas incoerências narrativas presentes no livro. Tal recurso, além de auxiliar no desenvolvimento da história, facilitando a apreensão sobre os tempos distintos intercalados, também proporciona tons de credibilidade ao personagem principal, na sua tentativa de expurgo de uma culpa implícita. Isso porque, o filme, ao estender a esfera narrativa, fornece uma visão mais ampla das relações sociais, evitando o isolamento no subjetivismo.

Não obstante, o filme não consegue superar algumas limitações da obra original, reproduzindo cenas em que personagens e fatos aparecem pré-determinados e sem possibilidade de alteração, descritas de maneira naturalista. Por outro lado, mesmo que tal problema seja mais expressivo no livro, fica patente a intenção de criticar e superar as qualidades passivas dos personagens a partir de uma concepção antípoda. De um lado o naturalismo e de outro o subjetivismo idealista. Os personagens não são capazes de ultrapassar a passividade das suas vidas, mas são cobrados moralmente e subjetivamente por isso. Especialmente no caso do livro, ocorre a relação entre essas duas questões, pois, ao passo que centra esforços narrativos e dramáticos naquela, não aprofunda de forma necessária e criteriosa a análise social.

Tal fato poderia apresentar qualidades estéticas positivas, caso os personagens fossem sínteses dessas determinações e, a partir das suas condutas pessoais, expressassem mediações particulares desse movimento da totalidade social. No entanto, a história narrada, pecando pela ausência dessa relação social, não apenas hipertrofia a singularidade, como tece nuances que parecem inverossímeis. Tal processo se pluga numa concepção idealista e moralista do escritor, elegendo o mundo das ideias como causa motora dos atos humanos e, dessa forma, derrapa para um julgamento idealista e valorativo dos acontecimentos sociais. Às vezes esses dois movimentos se unem em tons naturalistas: ora situando o enredo (as lembranças do passado) como pré-determinadas e a crítica limitada apenas à contemplação dos fatos e, principalmente, apresentando a personagem principal – Hanna – como intelectualmente e cognitivamente e portadora de problemas psicológicos. Tal descrição se apresenta, portanto, ausente de verossimilhança.

Essa personagem não apresenta muitas qualidades tão reais pois, caso as suas limitações fossem tão elevadas, quais os atrativos que ela poderia exercer sobre o jovem e, inversamente, se ela fosse dominada pela angústia ou pela culpa, o desfecho seria diferente. Trata-se de uma mulher adulta, independente, fisicamente atrativa, mas muito ignorante, com pouca noção dos seus atos sociais. Mas, sendo assim, por que o seu isolamento? Por que a sua brutalidade a priori contra os outros? Se ela é realmente movida pela culpa, esses elementos se entronizariam no seu ser e se apresentariam em forma de contradições. O problema é que, principalmente no livro, essas contradições não são suficientemente apresentadas. O grande suposto desfecho, que representaria o principal enigma do livro, fica antecipadamente explicitado: a incapacidade de leitura de Hanna representa um ingrediente a mais na sua limitada personalidade e não, como desejaria o escritor, uma contradição ao seu ser.

Outro paradoxo existe  na construção do relacionamento do casal, uma vez que, mesmo sendo jovem, o menino – Michael – apresenta inquietações e reflexões mais amplas que Hanna e, pela aparência, a única medida da sua atração por ela ocorre pelo sexo. Mas seria possível a manutenção dessa relação apenas por esse motivo? Aqui o autor não exerce um determinismo biológico, tão presente nos livros naturalistas? A idade precoce dele explica em parte a permanência dessa relação, mas não serve para sustentar a narrativa. Além disso, o autor não expõe no livro outros motivos de admiração dele por ela (diferentemente do filme). Os carinhos que ele recebe ou se restringem ao teor sexual ou aparentam uma relação maternal. Por isso a ausência de admiração autêntica. Inclusive cogita-se que o jovem tenha também problemas psicológicos, o que fermenta ainda mais o grau de naturalismo.

Schlink tenta criar um clima de drama com expectativa sobre o futuro, mas sem sucesso, seja pela própria ausência de drama e suspense, seja, especialmente, pela superficial e introdutória construção dos personagens. Diferentemente, no filme, os fatos e as relações entre os personagens são esteticamente mais elaborados e humanamente melhor abordados, apresentando cenas delicadas e imagens que envolvem o expectador, ora apresentando o problema, ora insinuando as limitações da personagem central. A Hanna da tela é mais humana do que a do livro e isso, mesmo sem alcançar a intensidade almejada, ajuda a segurar a ação trágica e dramática. O filme apresenta uma relação amorosa mais delicada, em que Hanna não apenas instrui seu amante nos roteiros sexuais, como existe uma admiração por parte de Michael perante o comportamento sensível da parceira. Da mesma forma se apresentam nuances emotivas da personagem, quando essa escuta e se emociona com as histórias lidas pelo amante. Um exemplo dessas diferenças encontra-se na cena da igreja, dentro do passeio realizado pelo casal. Enquanto o livro tende a demonstrar um grau mais elevado de ignorância ou brutalidade em Hanna, o filme a apresenta com tons de humanismo, expondo suas sensações emotivas ao ouvir o coro das crianças. É nesse sentido que se justifica a ausência de uma cena do livro, a da agressão de Hanna em Berg que, não sendo incorporada, serviu para elevar a qualidade humana em detrimento de elementos naturalistas.

A distância estética entre as duas obras diminui a partir da segunda parte, quando o livro passa por uma alteração dinâmica de forma e conteúdo. Nesse novo ambiente literário, em que se descrevem os meandros do mundo jurídico (campo profissional de Schlink), os detalhes exibidos passam a funcionar esteticamente na sua dupla atuação de reflexo: como descrição dos fatos da realidade e na exposição artística dessas determinações sobre os personagens. Ainda que os personagens não alcancem méritos artísticos capazes de sustentar sua plena verossimilhança, aqui eles estão mais humanizados e problematizados. Mostram-se e se escondem com base nas suas contradições humanas. Inclusive quando se apresentam covardemente e passivamente, essa condição está mediada pelas circunstancias sociais. É nesse momento que essas obras estéticas conduzem o leitor e/ou expectador a uma importante reflexão filosófica. O julgamento das guardas nazistas, dentre elas Hanna Schmitz, sobre a culpa em crimes cometidos durante o holocausto, constitui-se como ápice artístico e reflexivo de O Leitor. Nesse ambiente podem se observar três tipos de julgamentos e de culpas. Dois desses recaem diretamente sobre os personagens principais, enquanto o terceiro é mais amplo e de maior impacto atual.

Pelo desenvolvimento das cenas, fica clara não apenas a culpa de Hanna pela morte de prisioneiras judias, mas, em seguida, também a de Berg, culpado de omissão por não revelar a condição de analfabetismo da ré e que alteraria a sentença auferida. É a culpa que representa a tônica do filme, servindo como motor da história até o desfecho do filme quando, finalmente, Berg tenta realizar a sua purgação. O julgamento mais importante, contudo, é sobre a organização racional da irracionalidade, que se inicia com a reflexão sobre a vigência da lei. A lei pode ser retroativa ou não? Os guardas nazistas, que seguiam as leis da época, podem ser culpados?

A primeira indicação filosófica sobre esse julgamento é orientada pelo professor de direito (uma bela atuação de Bruno Ganz) – que acompanha os estudantes durante os processos nazistas. Ele afirma que “As sociedades pensam que funcionam através de conceitos morais, mas não. Elas funcionam através de algo que se chama lei. Ninguém é culpado de nada só porque trabalhou em Auschwitz”. “Para provar um homicídio tem que provar o dolo. Esta é a lei”. “A questão não é se foi errado, mas se foi dentro da lei. E não das leis atuais. Não, das leis da época”.

Apesar da tentativa de apreensão social e histórica sobre esses fatos, no fundo se descai em uma análise idealista, utilizando alguns princípios morais deslocados do tempo e do espaço como parâmetros para análise. Utiliza-se de um imperativo categórico para analisar outro: a lei pela moral. Não se consegue, assim, encontrar fundamentos ontológicos que permitam superar uma concepção idealista. A questão se Hanna, que cumpriu ordens, pode ser condenada, deve ser antecipada por outra que analise e fundamente os princípios históricos da própria lei. E são, contraditoriamente, as afirmações de Hanna que indicam os elementos para essa análise.

Ao ser perguntada por que ela ingressou na SS, a resposta de Hanna é simples: “Eu soube que havia vagas” e, assim, foi trabalhar como guarda no campo de concentração de Auschwitz. Além disso, Hanna assume a participação na morte de prisioneiras, quando realizou seleção daquelas que seriam escolhidas para morrer: “éramos seis guardas e decidimos que cada uma escolheria dez pessoas. Era o que fazíamos”. E, ao ser perguntada pelo juiz se ela não havia percebido “que estava mandando essas mulheres para a morte?”, ela responde burocraticamente: “Sim, mas novas prisioneiras chegavam a toda hora e as antigas tinham que dar lugar às novas”. O diálogo se intensifica e o juiz a questiona: “Para arranjar espaço você escolhia as mulheres dizendo: ‘Você, você e você serão mandadas de volta para morrer”. Mais uma vez a resposta de Hanna é operacional: “O que o senhor teria feito?”.

A pergunta produziu dois impactos, pois não apenas demonstrava à limitação das reflexões da ré diante da ordem estabelecida e, por isso, representava, para ela, uma pergunta inédita, como acarretou implicações para o juiz que, não sabendo o que responder, balbuciou respostas transversais. Tal anátema se amplia para o público quando um episódio genocida é narrado pela sua sobrevivente. Durante uma noite, quando ocorria uma travessia de 300 prisioneiras, o local onde estas estavam abrigadas começou a pegar fogo e, sendo mantido trancado pelas seis guardas, produziu o trágico acontecimento genocida. Ao ser questionada sobre os motivos de não ter aberto as portas, Hanna responde: “É óbvio. Por um motivo óbvio. Não podíamos abrir”. “Éramos guardas. Nossa tarefa era vigiar as prisioneiras. Não podíamos deixa-las escapar”. “Se abríssemos as portas, seria o caos. Como restabeleceríamos a ordem?”.

Essa é a grande reflexão colocada por O Leitor: a burocratização de práticas irracionais que, limitando-se ao cumprimento de ordens e padrões estabelecidos, serve para legitimar a mais absurda das ideologias. Pena que, aos poucos, o seu roteiro se encaminhe para uma naturalização e individualização do problema, ora apresentando a ré como portadora de patologia mental, consubstanciada de qualidades sádicas, ora como intelectualmente e cognitivamente incapaz de entender o que se passa em sua volta. Por isso que, conforme afirmamos, o suposto grande segredo do filme, de que Hanna era analfabeta serve, dentro desses termos, mais para fermentar essa postura escapista e idealista do escritor, do que para providenciar ingredientes de suspense para a trama.

E, dessa forma, não adentra na análise de elementos essenciais sobre os fatos acontecidos e, principalmente, sobre as possibilidades de transformar a irracionalidade em sistema racionalmente operacionalizado, estabelecida pela imediaticidade e pela manipulação das atividades práticas. Não tangencia para a questão sobre os limites da práxis imediata e manipulatória que, atendendo aos requisitos de uma organização racional pragmática, tende ao automatismo e ao imediatismo superficial e, dessa forma, impossibilita a reflexão entre meios e fins. Atendendo a uma organização racional autômata, descarta-se o vínculo entre os atos imediatos e as suas consequências futuras. Tais práticas, naturais em qualquer esfera da vida cotidiana, são dependentes da esfera moral que lhes fornece validação e, a depender do contexto social, essas se estabelecem sem reflexão sobre o real, tomando-se apenas pela sua aparência, com um circuito de adaptação e, portanto, de validação e legitimação do sistema vigente.

Nesse sentido, pode-se fazer outra pergunta, mais filosófica: é possível estabelecer uma organização racional de uma proposta de um sistema irracional? A lei positivista e instrumental pode servir para validar uma sociedade de exceção? Se o crime é – dentro dos cânones positivistas – um atentado à lei e essa, por sua vez, representa um fato social independente e superior, mesmo que oriundo de uma cristalização histórica de valores e regras morais, existe alguma impossibilidade dessas qualidades se vincularem ao irracionalismo? Como combater a maldição nazista com instrumentos de forma e conteúdo manipulatórios?

Inversamente, a única forma real de combater o irracionalismo e a sua possibilidade de organização racional não é pela adoção da razão manipulatória, mas com base no humanismo e, assim, com base no pensamento dialético. Da mesma forma, se o objetivo é extinguir as possibilidades prenhas de estados de exceção social e de teor irracionais, como o nazismo, a única solução é a extrema democratização da vida social, em todos os seus expoentes, desde a participação política até a produção e distribuição da riqueza social. É por essa via que o humanismo torna-se capaz de superar os imperativos da propriedade privada, uma vez que, por mais distante ou nebuloso que possa aparecer para alguns ideólogos de plantão, no horizonte do sistema burguês, especialmente em momentos de crise (como a vivenciada atualmente), encontram-se presentes vários ingredientes da exceção social e do irracionalismo, tendo como sua protoforma a vigência da mercadoria como fonte de mediação entre as pessoas.

Se a medida das relações sociais se dá pela craveira monetária e a mercadoria aparece como a síntese da sociabilidade, como negar que a desigualdade econômica, amplificada pela ideologia consumista não derive na adversidade entre seres humanos e, assim, estabeleça círculos limitadores da vida humana? E, a partir desse ponto, como se evitar a construção irracional de tipologias humanas, criando insulamentos grupos sociais em diferentes guetos? Nessa medida de adversidade humana, com a negação do humanismo, as pessoas são adestradas ao mais cínico egocentrismo e, entre essa concepção de mundo e uma ideologia de aristocracia humana, em que algumas pessoas são apresentadas como os eleitos, a fronteira é muito tênue.

Muitas vezes as duas perspectivas se misturam, sendo uma catalizadora da outra. A liberdade de mercado sobrepujando a igualdade de possibilidades e acessos a objetivações sociais, ou seja, subordinando a liberdade dos seres humanos, é um elemento central nesse processo ressuscitador de monstros não tão adormecidos. O capitalismo não é apenas o pai do imperialismo mas, nas suas crises permanentes e distintas, encontra-se o germe da besta nazista. Esse embrião pode até ter sido, em momentos anteriores, um ente bastardo, mas hoje se apresenta bem próximo de ter a marca do seu DNA.

Todavia, ainda que avance bastante em relação ao livro de Schlink, o filme de Daldry não introduz o expectador nesse campo de reflexões. Sua narrativa aparece mais como uma revolta pessoal – fixada em valores morais – de alguns indivíduos contra a passividade de seus atos. É a partir desse lugar que se situam as críticas das práticas nazistas; menos pela estrutura que sustentou os delineamentos desse sistema social e mais pelo trato das pessoas como desprovidas de autonomia da vontade. Como se as pessoas, se não fossem desconhecedoras dessas práticas, ao menos não teriam coragem e capacidade de atentar contra o status quo. Uma crítica idealista contra uma análise naturalista.

Mesmo avançando no argumento individual, como um plano importante da exposição artística, o filme fica ausente de mediações profundas nas relações entre indivíduo e sociedade, elegendo os valores morais de maneira categórica e, contraditoriamente, exigindo dos sujeitos que não sigam as determinações históricas. Ausente da crítica aos fundamentos estruturais da sociedade, O Leitor admoesta a culpa a partir de concepções moralistas. Também por isso a sua construção artística não resiste a uma apreciação mais crítica. O reflexo realista encontra-se ofuscado, ficando na porta de entrada e, assim, nem a amplitude da culpa é efetivamente julgada, nem os personagens conseguem expurgar o peso das suas consciências.

Fonte:
Revista Espaço Acadêmico - Mensal - Julho de 2013 – Ano XI - ISSN 15196186 – Editor: Antonio Ozaí da Silva (UEM).

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Um Homem Perfeito

Tenho-me encontrado muito com o Sr. Cesário, ultimamente. O Sr. Cesário, às doses espaçadas e discretas, faz bem. É desingurgitante, refrescativo, uma coisa assim entre o sal de frutas e sorvete de copinho. Mas, todos os dias, em todas as viagens, é demais.

Aquilo que, de quando em quando, e por momentos, nos encanta como um livro novo, folheado a furto, com a continuação se converte num símile dessas revistas atrasadas e revistas que se nos oferecem na sala de espera do dentista ou na loja do barbeiro.

Mas tudo tem o seu lado aproveitável. O lado aproveitável do Sr. Cesário é que ele me dá lições de estilo, do estilo estabilizado e conspícuo que convém às relações públicas entre funcionários e pessoas colocadas. Ele não é, mas devia ser diretor de uma repartição.

Fala como um bom minutador de ofícios. Tem a serena compenetração de autoridade, o senso das hierarquias, o tato diplomático, o respeito das fórmulas e a impersonalidade de julgamentos que se requer num chefe acabado. Por esse aspecto burocrático, o seu contato é útil. Boa pedra de amolar. O mau é que às vezes amola demais.

Que rico fundo de idéias honestas ele possui! Em poucos dias, assim como quem não se aplica, durante quinze ou vinte minutos de bonde, fiz uma boa coleta de opiniões do meu distinto amigo.

O que não lhe faltam são opiniões. O Sr. Cesário é um homem eminentemente opinativo sem contudo ser opiniático. Já houve mesmo um indivíduo maldoso, de cujo nome nem me quero lembrar, que uma vez mo definiu com escarninho intento, nestes termos: "um filho dileto da Opinião Pública."

O Sr. Cesário sentencia, por exemplo que "tudo nesta vida é questão de ponto de vista." Afirma, acentuando o tom de convicção, a corrigir a aparente leveza da frase paradoxal, que "o senso comum é o que há de menos comum entre os homens". Também costuma declarar, com um gesto fisionômico de aguda intuição, que "tudo é relativo".

Acerca de moral, só lhe ouvi por enquanto um conceito genérico nitidamente formulado: "Inteligência sem caráter é droga".

Sobre o Além, a vida e a morte, a crença, e assuntos correlatos, costuma ser mais explícito, provavelmente porque a sua situação de amigo do vigário da paróquia e de irmão do Santíssimo lhe tem permitido certa familiaridade com o mistério.

Concede que o Outro Mundo seja coisa duvidosa, mas acha que, em todo caso não convém brincar. A esperança e o temor que se ligam ao Além são necessários e são insubstituíveis.

O que lhe repugna é o inferno. Nesse, acredita "porque é seu dever de católico nato e praticante acatar as injunções da Igreja". Mas, afinal, o verdadeiro inferno parece que "e aqui mesmo" - "se bem que não se devam aceitar certos exageros de pessimismo".

Ontem, o Sr. Cesário saiu-se com esta frase: "Deixe falar, a religião é um freio, como dizia padre Miguel, meu padrinho."

As suas opiniões sociais e políticas são do mesmo feitio enxuto e corrente:

Todas as formas de governo são boas, desde que haja honestidade.
O nosso povo não estava preparado para a República.
Governar é uma questão de bom senso e de recursos.
É um grande mal a oposição sistemática.
Cada povo tem o governo que merece; mas nem sempre.
A política de hoje é eminentemente econômica.
A maior das nossas necessidades é a educação, - em termos.
O brasileiro é muito inteligente, mas indisciplinado e vadio.
Não há questão social no Brasil, pais novo, aberto a todas as iniciativas.
Somos um povo em formação.
A boa administração depende da estreita harmonia dos poderes.
A mulher deve permanecer no seu posto de rainha do lar.
A esmola deprime e nada adianta.
O empregomania e o bacharelismo são dois males nacionais.
A retórica é outro vício brasileiro.
A dissolução dos costumes caminha a passos de gigante.
O Brasil é uma terra de poetas.
A maior das nossas desgraças é a crise de caráter.
"A lavoura é a coluna mestra do nosso sistema arterial".

Ontem, acertou de falarmos a respeito de literatura, a propósito de um romance de Macedo, que Cesário me pedira emprestado. Declarou que não era para ele, mas para a senhora. Não gosta senão de romances históricos e instrutivos, como os de Júlio Verne e Vítor Hugo.

Passou a expender idéias sobre outros ramos. Não perde tempo com poesias, mesmo porque não as entende. Os dramas e tragédias já não são para os nossos dias; ninguém mais se resolve a ir ao teatro para ficar triste; e para tristezas bastam as da vida. O teatro deve ser humorístico e moral.

Os Lusíadas, a seu ver, foram feitos especialmente para exercícios de análise. A obra pode ser muito boa, mas para quem gosta. De resto, o Sr. Cesário está convencido de que todos os clássicos, que aliás nunca leu, são cacetes e intragáveis. Parece mesmo pensar que eles escreveram expressamente para deixar modelos de boa linguagem gramatical. E, um destes dias, exclamou com recacho de homem-do-seu-tempo: "Quais clássicos, quais nada! A língua também evolui, entendeu?"

Acha que a língua italiana é a mais suave, quando bem pronunciada; mas que a mais útil, na atualidade, é a inglesa. Quanto à nossa, acredita que seja a mais difícil de todas, a mais "cheia de dúvidas e encrenquinhas". Pois se o próprio Rui Barbosa, a "Águia de Haia", levou a vida inteira estudando português.

O que aí fica é resultado de uma colheita muito irregular, mas já basta a caracterizar as
qualidades fundamentais deste sólido e harmonioso espírito.

Quanto às expressões, o Sr. Cesário tem todas, todas quantas se acham consagradas pelo gosto das classes respeitáveis.

Se fosse capaz dos trabalhos seguidos, regulares e minuciosos da Filologia, eu poderia tomar o meu amigo como um compêndio vivo das filtrações eruditas e literárias de segunda mão na mentalidade média da burguesia nacional, e explorá-lo metodicamente. Daria para um belo estudo de Psicologia Idiomática, cheio de conseqüências para o literato, para o glotologista, para o educador, e até para o alienista, -um belo estudo que, sem dúvida, não seria lido senão pelos indivíduos que a Providência destacasse para lhe meterem a lenha.

As expressões frias do Sr. Cesário são algo de suculento e de opíparo. Algumas, as menos repolhudas, as meãs, ele as profere com plena serenidade. Mas como aprecia igualmente as mais pomposas, sempre arranja lá um jeitinho de as empregar, soltando-as com um certo ar brincalhão ou irônico, que lhe dá por vezes o aspecto original de um homem que acha graça nas crepitações do próprio pensamento.

Já lhe apanhei, não há muito, sem lhe mexer nas molas, referências às "trevas da ignorância", ao "santuário do lar", ao "punhal da calúnia", à "máscara do anonimato" e ao "dédalo das paixões". Foi um dia em que estava impressionado com a onda de crimes, suicídios e pouca-vergonhas que por aí vai "num crescendo assustador". Falava com tal abundância e tal veemência, que cheguei quase a desconfiar que me tivesse na conta de um dos responsáveis.

De uns dias para cá, tenho subitamente guiado o fio e dado o tom à conversação, e o Sr. Cesário se desata em chuveiros de preciosidades.

A propósito de política, lançou zargunchadas certeiras aos "eternos descontentes", que "vivem a semear a cizânia" com seus "cantos de sereia". Mas também, por um estríqueto "dever de imparcialidade", não podia deixar de "verberar o impatriotismo de certos homens colocados no galarim, que transformam em vacas de leite os postos de sacrifício a eles confiados pelo povo, a eterna besta de carga".

Terminou resumindo-se numa sentida peroração:

"Enfim, meu caro amigo! é a tal crise de caráter.

"Mas que quer? Nem a majestade da religião escapa a esse referver de paixões subalternas! Até no seio das irmandades se intromete a politicagem rasteira! Até lá, indivíduos sem entranhas vão pondo a garra, com. pés de lã, e... Homem! paremos por aqui.

"O tempora!"

De onde pude inferir que o Sr. Cesário andava às voltas com algum desaguisado na paróquia.

A um espírito assim ricamente organizado não podia faltar um certo aparelho de erudição leve. Consegui os seguintes indícios, apanhados foneticamente, como convém a coisas pescadas nas águas vivas da elocução oral:

"Laborônia vince -Cosivá ilmondo -Senon évéro... -Lemondemarche -Arraite! -Tâimismónei -Savá sandire -Via crúcis -Tante grácie, cabalhero! -Por mares nunca dantes navegados Festim de Baltazar -Ciumento como um Otelo -As trevas da Idade Média -Crueldade neroniana -Justiça imanente -Psicologia das multidões Os meio intelectuais -O poverélo de Assis -As lições da sociologia -A ciência de Ádan-Esmite -O último romântico -Os tonéis da Danaide - Vá derrétro!"

Enfim, grande caçador de frases perante o Eterno!

Fonte:
Domínio Público

Rita Jover-Faleiros (O conceito de gênero textual e seu uso em aula)

Para trabalhar com gêneros nas aulas, deve-se ter atenção às razões de sua escolha, às características e às funções do tipo selecionado. Isso é essencial para elaborar bons planos de aula e para que esses resultem em relatos de experiência excelentes

1. Fatores a considerar no trabalho em sala

Há cerca de dez anos, durante uma sessão de fechamento dos trabalhos do Congresso de Leitura (Cole), evento organizado a cada dois anos pela Associação de Leitura do Brasil na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), um eminente pesquisador da área dizia-se impressionado pelo modo como o conceito de gênero textual marcara presença entre os trabalhos apresentados naquele ano. Segundo o professor, a tendência era o conceito aparecer cada vez mais. Ele tinha mesmo razão. "Gênero" tornou-se uma referência comum em pesquisas, propostas curriculares e nas práticas de sala durante as aulas de Língua Portuguesa.

De fato, há grande consenso quanto ao interesse em se explorar a noção de gênero textual em contexto didático. Entretanto, para que essa atividade seja proveitosa, é necessário que o professor esteja bastante consciente de alguns fatores:

- Quais as razões para selecionar determinado gênero;

- Quais características o configuram;

- Quais as funções específicas do gênero selecionado;

- Quais objetivos de aprendizagem (específicos à área) o gênero selecionado propicia atingir junto a seu grupo de alunos;

- Que saberes prévios e estratégias de leitura ativa o gênero selecionado mobiliza.

A mim parece necessário que esses pontos estejam claros para os que se lançam à empreitada de desenvolver propostas de atividades com o uso do gênero. Nos capítulos deste artigo, proponho abordarei cada um desses aspectos, culminando com a ênfase em dois gêneros importantes para o professor: o plano de aula e o relato de experiências.

2. Uma breve história do conceito de gênero

Os Parâmentros Curriculares Nacionais (PCNs) atestam a importância do gênero para o ensino de Língua Portuguesa

Para começar, vale a pena expor uma breve história do conceito de gênero. Como nos ensina o linguista Luiz Antônio Marcuschi no artigo "Gêneros textuais: definição e funcionalidade" (presente no livro Gêneros textuais & ensino), os gêneros são formas presentes já em povos de cultura essencialmente oral, e passam a se multiplicar com o advento da escrita alfabética por volta do século 7 a.C.

Isso significa que tratar da gênese dos gêneros implica falar da relação com o homem com a linguagem ao longo de toda a história. Como defende o célebre filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin (1895-1975), só nos comunicamos por meio de gêneros.

A apropriação do conceito pelo ensino, porém, é bem mais recente. Nesse sentido, merecem destaque os trabalhos dos pesquisadores Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz, da Universidade de Genebra. No Brasil, um marco importante são os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), de 1998. No documento, a organização curricular em Língua Portuguesa dos anos equivalentes ao Ensino Fundamental 2 aparece estruturada sobre o conceito de gênero textual.

A partir de então, cresce o interesse pelo conceito e sua aplicação em sala. Tive uma mostra disso no ano de 2012, quando fui selecionadora do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10. Entre os trabalhos inscritos, realizados por professores de todas as regiões do Brasil - de escolas rurais ou urbanas, públicas ou privadas, resultando num quadro cultural e socioeconômico bastante heterogêneo -, é possível identificar traços comuns dentro da diversidade.

Uma das semelhanças diz respeito ao fato de que, em parte significativa dos projetos, havia interesse comum pelo desenvolvimento de propostas orientadas pela noção de gênero textual. Como reforcei anteriormente, quem deseja trilhar esse caminho deve ter consciência de suas escolhas, levando em conta aspectos que abordarei a seguir.

3. O que é um gênero textual

Do bilhete à poesia, a estabilidade de cada gênero se manifesta por suas características comuns

Como nos ensina Bakhtin, gêneros textuais definem-se principalmente por sua função social. São textos que se realizam por uma (ou mais de uma) razão determinada em uma situação comunicativa (um contexto) para promover uma interação específica. Trata-se de unidades definidas por seus conteúdos, suas propriedades funcionais, estilo e composição organizados em razão do objetivo que cumprem na situação comunicativa.

Explicando melhor: isso significa que, a cada vez produzo um texto, seleciono um gênero...

... em função daquilo que desejo comunicar;

... em função do efeito que desejo produzir em meu interlocutor;

... em função da ação que desejo produzir no meio em que me inscrevo.

Isso vale das trocas mais prosaicas do cotidiano, nos bilhetes registrados em post-its colados nas geladeiras, passando pelas mensagens eletrônicas, entrevistas (orais e escritas), bulas de remédio, orações, cordéis, dissertações, romances, piadas etc. Uma das principais características dos gêneros é o fato de serem enunciados que apresentam relativa estabilidade. É esse aspecto que permite, justamente, com que sejam compreendidos.

Um exemplo extremo disso está no gênero "bula de remédio". Nos idos dos anos 1980, a linguista francesa Sophie Moirand mostrou como a estabilidade desse tipo de enunciado permitiria que qualquer falante do francês sem conhecimento nenhum de grego pudesse localizar informações (nome comercial, princípio ativo e posologia, por exemplo).

4. Como um gênero dá origem a outros

Transmutabilidade: gêneros como o e-mail guardam "parentesco" com outros, como a carta

No capítulo anterior, enumerei uma série de gêneros (bihlete informal, bula de remédio, dissertações etc.) e poderia seguir numa lista virtualmente infindável, pois justamente uma das características dos gêneros textuais reside em sua transmutabilidade - ou seja, novas formas geradas a partir de formas já existentes.

Por exemplo: é possível considerar que um correio eletrônico guarda muitos traços comuns com a carta que costumávamos mandar pelo correio. Essa origem pode mesmo ser atestada pelo nome em português (correio eletrônico), em inglês (e-mail, abreviação para electronic mail) ou em francês (courriel, courrier para correio contraído com o adjetivo électronique).

A partir de uma disposição existente, a da carta, desenvolve-se uma forma relativamente nova, mas que guarda a familiaridade do gênero de que provém, adaptada às funções e objetivos do contexto em que é gerada. Se antes a carta estava contida em um envelope e, nele, algumas informações paratextuais (os endereços de destinador e destinatário), no gênero correio eletrônico essas informações passam a constar da mensagem, ainda que de forma periférica, mas com implicações na forma como redigimos.

Pensemos na data, que no correio eletrônico consta automaticamente dos cabeçalhos, ao passo que na carta era de responsabilidade do destinador indicar no texto ou à direita no papel. Todo sistema de referências temporais se articula a partir da informação dada, que não nos cabe inserir, nem alterar, pois ela é gerada pelo servidor que envia e recebe as mensagens.

5. O plano de aula e o relato de experiência como gêneros

Saber como analisar e usar os gêneros é o primeiro passo para produzir bons relatos de experiência

Proponho, agora, analisar como as características dos gêneros - em especial sua função social, a estabilidade de enunciados e a transmutabilidade - aparecem em dois tipos de texto de fundamental importância para o professor.

Imaginemos que tenho a tarefa de elaborar uma aula e que essa elaboração deve estar registrada em uma estrutura que permita com que eu e outros leitores compreendamos. Existe algum gênero que se ajuste a essa intenção comunicativa? Sim: trata-se de um registro de aula a ser dada, que deve conter, digamos, objetivos, suporte, tempo destinado à atividade e metodologia. A articulação desses elementos em contexto didático nos remete ao gênero plano de aula.

As formas de anotação de um plano de aula variam de acordo com o professor e instituição, principalmente de acordo com as razões para seu registro. Mas, como regra, podemos dizer que trata-se de um plano, logo, de algo a ser realizado. Por essa razão, os verbos indicando as atividades devem aparecer no infinitivo ("debater", "dividir o grupo em duplas", "distribuir o texto para leitura", "ler" etc.) ou mesmo (para as anotações mais pessoais) no futuro simples ("debateremos", "dividirei o grupo em duplas", "distribuirei o texto para leitura", "leremos").

Suponhamos, agora, que um professor muito contente com os resultados da aplicação de um plano de aula resolva se inscrever num concurso, por exemplo. Para que esse professor possa adequar-se à nova situação de comunicação que se apresenta a ele, é necessário que transforme o que era o registro de suas intenções (seu plano de aula) em um relato de experiência.

Em outras palavras, é necessário descrever que as ações realizadas em sala de aula resultaram em uma atividade rica e transformadora de aprendizagem para seus alunos e para ele, e um dos elementos para que seja operada essa transformação é justamente a passagem dos verbos do infinitivo ou futuro (originalmente no plano de aula) para o pretérito perfeito (relato de experiência).

Analisar nossos planos e registros da atuação em sala com consciência dos aspectos fundamentais do conceito de gênero é uma caminho frutífero para que se elaborem bons planos de aula e para que esses resultem em relatos de experiência excelentes. O convite está feito!

Fonte:
Revista Nova Escola. Março de 2013.

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 20

CAPÍTULO XII
Voltou de lá As três horas da tarde do dia seguinte.

— Mais um dia perdido! Considerava ele amargamente ao entrar em casa já ao cair da noite e depois de ter jantado em companhia de amigos.

Ainda no corredor foi detido pelo Coruja, que lhe disse com reserva:

— Acho bom que não subas agora! Aquela sujeita do Almeida, a Ernestina, está aí A tua espera. Não subas!

— Está aí? perguntou Teobaldo deveras contrariado. Que diabo quer ainda de mim essa mulher?

— Não sei; diz o Caetano que ela já aí está há quatro horas.

— Ora esta! E, logo hoje, que eu precisava dormir!

— Recolhe-te mais tarde; ela talvez não se demore.

— Qual! Vou despachá-la! Verás!

E, enquanto subia a escada acompanhado pelo amigo:

— Não faltava mais nada!... Estou mesmo muito disposto a aturar mulheres!... Já me bastam as maçadas que me dão as outras! Além dela ninguém me procurou?

— Depois de eu chegar, não.

Teobaldo tinha por costume perguntar sempre se alguém o procurara na sua ausência. É que esperava que a fortuna viesse um belo dia ao encontro dele, como vinham as mulheres; era uma espécie de vaga confiança no acaso; um modo preguiçoso de desejar ser feliz.

Assim, quando pilhava dinheiro, arriscava algum na roleta ou na loteria. Foi de mau humor que ele entrou na sua pequena sala, abriu a porta com um empurrão e dirigiu-se de cara fechada para a rapariga, que o esperava.

— Teobaldo! Exclamou esta, querendo lançar-se-lhe nos braços.

— Perdão! Disse o perseguido, afastando o corpo. Não estou disposto a dar abraços; venho incomodado. Faça o favor de dizer o que deseja, mas que seja breve!

— Oh! Não te reconheço! Não pareces o mesmo!…

— Diz muito bem! Eu com efeito já não sou o mesmo. Grandes transformações se deram na minha vida. — Adiante!

— Compreendo; é que amas a outra!

— Ai, ai, ai, minhas encomendas! Gritou o rapaz, sem poder dominar a impaciência. Teremos ainda discussões sobre o amor? Mas, minha senhora, há uma porção de dias que não ouço falar em outra coisa! Estou farto! O que se pode chamar farto! Oh!

Ernestina pôs-se a chorar.

— Então, então! Resmungou ele; deixe-se de asneiras e diga o que a trouxe.

— Ah! Já não me posso iludir; amas a outra!

— Engana-se! Não amo mulher alguma!

— Nem a mim?

— Mas que lembrança foi essa a sua de vir aqui? Há mais de dois anos que nos separamos, creio que sem protestos e sem juramentos!... E vê-la assim, sem mais nem menos, tirar-se dos seus cuidados e…

— É que então eu não era livre, não podia acompanhar-te: vi via meu marido!

— Marido?

— Sim. O Almeida afinal enviuvou, casou-se comigo, e três meses depois faleceu nos meus braços.

— Que não casasse... Respondeu Teobaldo, rindo.

— És cruel!

A mesma frase da outra, pensou ele, com um suspiro de tédio.

Ernestina circunvagou os olhos em torno de si, para certificar-se de que estava a sós, e acrescentou:

— Um dia ofereceste-me a tua proteção, não é verdade? Venho reclamá-la…

— Sim, mas é que os tempos se mudaram; já não tenho com que proteger ninguém, nem a mim mesmo! Estou na espinha!

— Teobaldo! Eu não vim pedir-te esmola!

— Então diga o que veio pedir.

— Vim em busca de amor! Para esquecer-me de ti fiz o que era possível; nada consegui e cá estou, disposta a afrontar o último sacrifício, contanto que fique ao teu lado. Amo! E, dizendo isto, tenho dito tudo!

— Sim?... Perguntou o rapaz, apertando os olhos. Mas não me fará o obséquio de dizer que culpa tenho eu disso?

— Não sei; amo-te, e nós, as mulheres, quando amamos deveras, somos capazes de tudo!

— Pois se é capaz de tudo, veja se consegue deixar-me em paz!

— Menos isso!

— Pois, olha, filha, custa-me a confessar, mas acredite que estou em uma tal situação que não me é possível absolutamente pensar em mulheres. Não imagina! Acho-me com a vida muito atrapalhada; falta-me tempo para tudo; os dias fogem-me por entre os dedos como se fossem minutos. Se a senhora é minha felicidade, não queira ser a primeira a criar-me novos obstáculos. Já tenho tantos!

— Não! Quero apenas saber se amas a uma outra mulher.

— Não! Já lhe disse que não, e acrescento que se não amo, é porque não posso, é porque não tenho jeito, não tenho tempo, e é porque agora me faltam recursos para isso! Está satisfeita?

— Pois, se não amas a outra, juro-te que hei de, a força de dedicação, fazer-me amada por ti! Verás!

— Aconselho-lhe que não tente semelhante coisa! Perderia o seu tempo! O que não falta por aí são rapazes em muito melhores circunstâncias do que eu. Experimente e verá!

— Mas se só a ti desejo e amo? Se ninguém é belo, forte, inteligente como tu?

— Sempre a mesma cantiga! Exclamou Teobaldo. Malditos dotes! Afinal, preferia ser mais feio do que o Coruja!

— Não blasfemes!

— Qual blasfemes, nem qual histórias! Quer saber de uma coisa? Errou a pontaria. Veio buscar amor? Pois bem — não há!

E, passeando de um lado para outro furioso:

— Oh! Oh! É demais! Não tenho obrigação nenhuma de aturar isto! Apre!

Ernestina defronte daquele transbordamento de cólera, principiou a soluçar, dizendo que era a mais desgraçada das mulheres; que amava um homem que a tratava daquele modo, e, enfim, que — Se Teobaldo não estivesse disposto a ser mais generoso, ela daria cabo da vida.

— Faça o que entender, minha senhora!

— Tu serás a causa. de minha desgraça!

— Paciência!

— Malvado!

— Não acho! A senhora é infeliz porque me ama; não me amasse!

Ela então lançou-lhe os braços em volta do pescoço e abriu a dizer entre beijos:

— Não! Não é possível que sejas tão mau! Sei que dizes tudo isso para me experimentar! Amo-te, adoro-te! Estou disposta a afrontar tudo!

Teobaldo desembaraçou-se das mãos dela grosseiramente, foi buscar o chapéu, enterrou-o na cabeça e saiu, dando-se aos diabos. A pobre rapariga, depois do esforço que fizera para dete-lo, deu ainda alguns passos, muito ofegante, até à porta e afinal caiu sem sentidos. Esta crise era promovida pelo despeito e em grande parte pela ausência do jantar.

Coruja, que no seu quarto aprontava com pressa um trabalho para o dia seguinte, ouviu-lhe o baque da queda e correu a socorre-la.

— Que significa isto? Perguntou ele, erguendo-a do chão e indo depo-la sobre a cama de Teobaldo, que ficava na alcova próxima.

— Fugiu-me! Disse a infeliz, abrindo os olhos e soluçando com mais ânsia; — fugiu-me, depois de dizer que não me amava e que nunca me amaria!

— Pois ele disse isso!... Murmurou André, sem saber o que devia fazer, muito perturbado com aquelas lágrimas e com aquele desespero.

— É um ingrato! É um homem mau! Exclamava ela nas curtas intermitências do choro. É um malvado.

— Veja se consegue ficar tranqüila... Aconselhava o professor a acarinhá-la. Faça por isso…

E, com uma idéia:

— Mas, agora reparo, a senhora está aqui há um bom par de horas e naturalmente precisa comer. Vou arranjar-lhe qualquer coisa.

— Não se incomode.

— É que por essa forma a senhora ficará pior. Vamos, procure tranqüilizar-se enquanto lhe arranjo a ceia.

Ela aceitou afinal e o Coruja afastou-se.

No fim de um quarto de hora voltava ele com uma bandeja nos braços.

— Veja se consegue sempre meter alguma coisa no estômago, dizia a arranjar a mesa; eu lhe farei companhia. Vamos.

Ernestina arrastou-se ainda muito chorosa até à mesa e, entre suspiros, principiou a comer. O Coruja ao seu lado desfazia-se em solicitudes, sem aliás conseguir animá-la.

— Oh! Mas é que dói muito semelhante ingratidão! Exclamava ela com a boca cheia. Um rapaz, por quem eu seria capaz de dar a vida, tratar-me deste modo, dizer-me cara a cara o que me disse e, afinal, sair como saiu, desprezando-me, nem que se eu fosse um cão tinhoso!

— É que ele estava hoje de mau humor, coitado! Arriscou André. Há de ver que amanhã já a tratará de outro modo...

— Qual! Amanhã fará pior; tola fui eu em mostrar-me apaixonada Ingrato!

O professor empregou ainda alguns esforços para tranqüilizá-la e depois confessou que estava muito atrapalhado de serviço e precisava continuá-lo.

— Não me posso descuidar um instante, acrescentou. É um trabalho com pressa. Olhe, a senhora fique a seu gosto, está em sua casa, se precisar de qualquer coisa é só chamar por mim. Com licença. Até logo.

E, enquanto ele se afastava, muito feio com o seu ar giguento e mal amanhado, Ernestina murmurava:

— Foi-se aquele ingrato e ainda por cima deixa-me aqui este maldito Coruja, que a gente só de olhar para ele parece que fica doente! Credo! Que estupor!
––––––––––-
continua…

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 19

CAPÍTULO XI

Resolveu não ir, mas no dia imediato, quando deu por si, estava defronte da casa de Leonília.

Tencionava não entrar, mas uma grande confusão de vozes que vinha das salas, prendeu-lhe a atenção.

— Que diabo significa isto? Pensou ele. Dir-se-ia que fazem leilão em cima. Pelo corredor viam-se entrar e sair negros e galegos carregados de móveis; ao passo que um formigar de homens sem bigode, cabelo curto, de jaqueta, sem gravata e sem colete, enchia todos os aposentos da casa.

“E” um leilão! Não há dúvida!... Considerou o rapaz, subindo até ao primeiro andar, e o seu raciocínio foi confirmado logo pela presença de um sujeito que, de martelo em punho, apregoava o preço dos móveis a um grupo de arrematantes:

— Vinte mil réis pelo espelho! É de graça, meus senhores! Vinte e cinco mil réis! Ninguém dá mais?.

Teobaldo, com esta música a perseguir-lhe os ouvidos, atravessou a sala e depois os quartos, até encontrar o criado que o recebera naquela noite do Lírico.

— Ah! É o Sr. Teobaldo?

— Sim, disse este.

— Aqui tem esta carta.

O rapaz tomou a carta, abriu-a e leu:

Mudei-me para Santa Teresa; agora já não tens razão para fugir de mim; espero-te, não te demores.
Tua Leonília.

Vinha escrito o nome da rua e o número da casa.

Teobaldo sem ânimo de entestar com as idéias que lhe trouxe a leitura dessas poucas palavras, desceu à rua e, quase que maquinalmente, foi seguindo a indicação do bilhete.

Chegou às três horas ao lugar marcado; era uma casinha nova, muito modesta e pequenina, escondida entre meia dúzia de árvores e coberta de trepadeiras, que lhe davam um aspecto encantador. Ele atravessou o pequeno jardim e bateu. Leonília veio em pessoa abrir a porta. Não parecia a mesma, tal era a transformarão porque passara; até a sua própria fisionomia parecia outra.

Trazia um singelo vestidinho de chita, apertado à cintura, que mal deixava perceber uma pequena parte do colo; os braços, porém, mostravam-se livres por entre a largura das mangas e o cabelo, enrodilhado sobre a nuca e seguro por um simples pente de tartaruga, já lhe não caía na testa como dantes, mas ao contrário dividia-se-lhe em dois bandós naturais fazendo ver uma fronte cor de mármore, cujos sutis reflexos de ouro mais pálida a torravam.

Por únicas jóias trazia ao pescoço a medalha que lhe dera Teobaldo e no dedo anular da mão esquerda uma aliança de casamento; em vez de caprichosos sapatos de peito aberto e grande salto, que ela até aí usava, tinha agora uma honesta botina, preta, de duraque, apenas guarnecida por um laço de fita da mesma cor.

O filho do barão, ao vê-la assim tão outra, ficou longo tempo a contemplá-la. perguntando com o gesto que significava aquela transformação. Ela, em resposta ao pensamento dele, sorriu e disse, indo colocar-se-lhe ao alcance dos lábios:

— Estás satisfeito?

— Eu?

— Sim, creio que não poderás dizer agora o que disseste ontem.

— Mas tu és doida?... Não te compreendo, filha.

— Isto quer dizer que em resposta à tua frase de ontem, resolvi separar-me de tudo que me prendia ao passado; vendi o carro, a mobília, as jóias, as roupas, e, com o produto dessas coisas, suponho que terei um pequeno fundo de reserva para o dia em que me abandonares.

E passando-lhe o braço no ombro:

— Aqui nada há que te possa fazer corar!... Nada disto foi pago ainda e não o há de ser sem ordem tua; também é tudo tão pouco que não tens que recear pela despesa...

Ficaram ambos calados por um instante.

— Vem ver a casa comigo, disse ela afinal, puxando-o brandamente para fora da pequena sala. É um verdadeiro ninho de noivos pobres... Aqui tudo é simples quanto  pode ser: mobília americana, louça de família... Vês?... Tenho até uma máquina de costura...

Teobaldo olhava para tudo aquilo, como se assistisse à representação de uma comédia; afigurava-se-lhe que, uma vez caído o pano do teatro, Leonília tornaria logo ao primitivo estado.

— Então? perguntou esta, — Não me dizes nada? Ficas assim, mudo, como se nada disto te interessasse?.

— É que ainda não voltei a mim, filha. Estou pasmo!

— Pois então prepara-te para ouvir o mais extraordinário: do princípio do mês que vem em diante vou trabalhar em casa do Gabardan.

— Que Gabardan?

— Aquele cabeleireiro da rua Direita.

— Tu?

— Sim. Meu pai, que era francês como já sabes, foi o primeiro cabeleireiro aqui da corte; eu aprendi a trabalhar com ele e, até o dia em que lhe fugi de casa, tinha as honras da sua primeira discípula; ninguém me excedia na oficina!... E juro-te que, se voltar ao serviço, hei de sair-me tão bem ou melhor do que nesse tempo! Ah! Não calculas! Eu fazia muito mais do que todas as minhas companheiras e apresentava sempre trabalho muito limpo; já ganhava um belo ordenado!

— É admirável! Respondeu o rapaz.

— Ora, prosseguiu Leonília, o Gabardan há muito que me fala em entrar para a casa dele; hoje lhe mandei dizer que aceito e, do princípio do mês que vem cm diante, é natural que…

— De sorte que tencionas fazer uma completa regeneração…

— Só depende de ti…

— É por conseguinte uma regeneração por meio do amor?

— Não! O amor servirá apenas para dar o primeiro impulso; depois o interesse e a ambição se encarregarão do resto.

— A ambição?

— De certo; trabalhando com vontade, é natural que apareçam lucros e com estes a febre de prosperar. Então, todo o meu ideal será ter uma boa casa, uma firma bem acreditada, um capital seguro e, para conseguir tudo isso, é indispensável uma conduta exemplaríssima; é necessário que não possam dizer a mais pequenina coisa contra mim. Compreendes?

— Sim, senhora; o plano é engenhoso e faz honra ao teu espírito, mas convém saber se terás bastante energia e bastante perseverança para realizá-lo…

— Não me conheces!

— Oh! Se conheço!... Vocês, pobres filhas do vicio, são como os ingleses: por mais que viagem, por mais que se demorem nos países estrangeiros, tem sempre o sentido, a alma e o pensamento voltados para a pátria! Veio-te agora a fantasia de dar um passeio pelo amor, mudaste de roupa, tiraste as jóias, tomaste para disfarce esse modesto vestidinho de chita, e desferiste afinal o vôo; mas, se quiseres falar com franqueza, hás de confessar, minha querida, que a tua alma não se prende a esta pobre casinha sem espelhos, sem tapetes e sem as fosforescências do luxo; tua alma ficou lá donde partis-te! Apenas trouxeste a imaginação para uso da viagem! Eu seria capaz de apostar a cabeça em como a tua primeira idéia, quando resolveste fazer tudo isto, não foi o amor, nem a ambição, mas pura é simplesmente calcular o efeito que semelhante fantasia iria produzir sobre as tuas companheiras e sobre os teus admiradores!... — Que dirá fulana quando souber?... Que dirão fulanos e beltranos?... “Com certeza hão de achar-me original, caprichosa, uma verdadeira heroína de romance...” E, se manhã suceder que as tuas companheiras e os teus amantes, em vez de enxergarem na tua regeneração uma fantasia original, entendam que te regeneraste por necessidade, que te fizeste sóbria e modesta por já não poderes ser extravagante e opulenta; se eles julgarem assim, filha, juro que a tua mal-entendida vaidade de cortesã despertará furiosa, e então tu, para provares que não és inferior a nenhuma das tuas competidoras, voltarás fatalmente ao primitivo estado!

— Cala-te!

— Ah! Bem sabes, minha Leonília, que as recaídas são sempre muito mais perigosas do que a própria moléstia!…

— És cruel!

— Não; sou apenas sensato!

— E de que pretendes me convencer com a tua sensatez?

— De que não acredito em semelhante reabilitação!

— Nem no meu amor?

— Nesse acredito. Não que ele dure muito tempo, mas acredito que ele exista agora. Toda a mulher ama sempre; algumas dedicam-se a um só homem durante a vida — São as constantes; outras gostam de variar — São as do gênero a que pertences. Mas, no fim de contas, todas elas amam, naturalmente, sem esforço, por uma fatalidade orgânica, sem haver nisso outro mérito mais do que se obedecessem a qualquer uma das funções fisiológicas do seu corpo.

— Pois então no amor que te consagro, cujas provas reais acabo de dar-te, pão há mérito algum?…

— Não digo isso, filha! Há um mérito relativo no que acabas de fazer; apenas sustento que o amor, qualquer que ele seja, não me causa entusiasmo nem admiração de nenhuma espécie. Se não me amasses, amarias a outro; amas-me, não porque eu seja forte, inteligente ou bom. mas sim por uma razão multo simples — Porque és mulher! O caso seria para espantar. se em vez de te apaixonares por mim, te apaixonasses por uma estatua ou por uma árvore ou por um elefante ou por esta bengala!

— Enganas-te! Amo-te, não pelo simples fato de ser mulher. mas porque tu reúnes em ti todos os dotes que nos seduzem; és nobre e altivo como um príncipe; és forte e corajoso como um homem; és belo como uma estátua; original como um gênio; e espirituoso como um parisiense; e tudo isso reunido: força, altivez, beleza, espírito e 0riginalidade, tudo Isso é o que eu amo e o que faz de mim a tua escrava!

— Logo, se eu fosse feio, estúpido e fraco, não me amarias?

— Não, decerto.

— E é esse amor que entendes tu, deve me entusiasmar?... Tem graça!

— Por quê?

— Nada conheço mais egoístico, mais buxo e mesquinho do que semelhante amor! No fim de contas não é a mim que amas, é a ti própria; não é a mim a quem pretendes contentar, é ao teu próprio gosto, e ao teu próprio coração! Se te sacrificas por mim, se me preferes a tudo e a todos, não é porque eu goze muito com isso, mas sim porque tudo isso é necessário para a tua felicidade; e se me desejas o bem, é ainda para que a minha ventura se reflita sobre ti; é para que tu a possas desfrutar, para que a possas saborear com delícia!., Não achas que isto é exato?…

— E conheces porventura algum amor que não esteja nessas condições? Perguntou Leonília. Olha em torno de ti; procura em todos os corações um amor que não tenha sempre por base o mesmo egoísmo!

— O amor materno... Respondeu Teobaldo, transpondo com a amante oportão da chácara e indo assentar--se ao lado dela sob um caramanchão. A mãeama sempre o filho, seja este feio, estúpido ou mau.

— Mas só ama o próprio, o seu, é esta idéia de propriedade só por si é já egoísmo. Vai dizer a qualquer mãe que faça pelos filhos dos outros o que a natureza lhe inspira por aquele que lhe saiu das entranhas; ela te responderá que "quem pariu Mateus que o embale". E se há uma dedicação sem a menor sombra de altruísmo é essa justamente, porque a mãe nunca ama o filho pelas qualidades que ele possui, mas tão somente porque ele é uma continuação dela, porque ele é um pouco de sua carne e porque é a conseqüência palpitante, por bem dizer a personificação do amor de quem a possuiu. No filho ela se vê a si e vê também o homem a quem amou; isto é, vê todos os gozos, todas as egoísticas venturas de que há pouco falavas; e, meu amigo, se penetrares no âmago de todas as outras afeições, hás de sempre encontrar lá dentro a mesma mola feita de egoísmo.

— E o amor filial?

— Não existe.

— Como não existe?

— Não existe, porque o amor filial é a convivência, é o hábito, é o primeiro beijo que recebemos, é a canção que nos embalou o berço, é a lágrima que se juntou à nossa primeira lágrima, o sorriso que se fundiu com a nossa primeira alegria e, mais tarde, é a recordação de tudo isso! Separa ao nascer um filho dos braços maternos e dir-me-ás depois qual é o amor que ele sente pela mãe. E assim são pouco mais ou menos todos os afetos; uns amam para gozar, outros por hábito, outros simplesmente por necessidade.

— Estás iludida, replicou Teobaldo, acendendo um charuto. Eu, pelo menos, tenho em minha vida uma afeição que se constituiu sem o concurso de nenhuma dessas circunstâncias; tenho um amigo, cuja única boa qualidade que possui e que me leva a estimá-lo, é ser bom; bom, não só para comigo, mas para todos, todos, seja lá quem for!

— Um amigo?

— Sim, o Coruja; não o conheces e bem provável que não chegues nunca a conhecê-lo.

— Por que não?

— Porque ele teria medo desse teu espírito diabólico e profanador. É uma alma imaculada, que se retrai e fecha ao mais leve rumor de tudo que é feliz, espetaculoso e barulhento, com a mesma facilidade com que se abre para tudo aquilo que chora e sofre. É uma triste criatura que vive silenciosamente para a dedicação e para o amor. Tanto é capaz de sacrificar-se pelo bom, como pelo mal; um estúpido ou um gênio, uma mulher monstro ou uma mulher encantadora, todos lhe merecem a mesma ternura, desde que há uma lágrima a estancar ou a mais ligeira sombra de sofrimento a desfazer. É capaz de despir o paletó para cobrir um cão que tem frio, e fica triste se em sua presença decepam uma árvore qualquer.

— É um santo, disse Leonília, a rir.

— Não, volveu Teobaldo; é simplesmente um homem feliz.

E, depois de descrever o tipo do amigo:

— Tenho inveja dele. Confesso.

— Tu?!

— Sim; tenho-lhe inveja...

— Ora essa!...

— Calculo quanto não gozará ele com ser tão dos outros e tão pouco de si mesmo; calculo a infinita volúpia da sua abnegação; o prazer supremo de não ter um vício, a consciência de não ter cometido uma ação má durante toda a sua vida.

— Há de haver um pouco de exagero de tua parte…

— Qual! Não disse a metade do que ele é…

— Que entusiasmo! Parece que o estimas mais do que a mim!…

— Pudera! Resmungou o rapaz, disposto a continuar o elogio do Coruja; mas foi interrompido pelo criado, que os chamava para jantar.

Teobaldo tinha as vezes dessas expansões; dava para discorrer com entusiasmo sobre alguém que na ocasião o impressionava; ao passo que no dia seguinte seria capaz de fazer o mesmo por uma pessoa completamente oposta.

Do meio para o fim do jantar, jantarzinho de hotel, porque nesse dia ainda não se havia acendido o fogão da casa, ele se mostrou menos pessimista a respeito do amor das mulheres e mais disposto a corresponder com os carinhos ao sacrifício de Leonília; entretanto, quando esta lhe falou em viverem juntos, Teobaldo protestou energicamente.

— Não! Isso não era possível!

Ele tinha lá as suas aspirações, precisava fazer carreira e não estava resolvido a começar com o pé esquerdo.

— És um ingrato!... Queixava-se ela, enxugando as lágrimas. És um ingrato! Até aqui fugias de mim, Porque eu não era só tua; pois abandono tudo, venho meter-me neste canto e tu, mesmo assim, declaras abertamente que não queres morar comigo!... Oh! Isto também é demais! Já passa à maldade!

— Não, filha; é impossível morarmos juntos! Não posso. Hei de aparecer-te de vez em quando, sempre, talvez todos os dias, mas…

— És um homem mau, um egoísta.

E multiplicaram-se as recriminações. Afinal Teobaldo, apesar do firme propósito em que estava de muscar-se depois do jantar, resolveu não ir; ficou.

— Também que diabo! Seria crueldade deixá-la ali, naquela casa, em companhia de um criado admitido na véspera.

E de mais, pensava ele, que posso eu recear?... Quando a coisa se torna perigosa, mando-a plantar batatas!
––––––––
continua…

III Concurso Literário “Literatura da Natureza 2013” (Resultado Final)

MENÇÕES HONROSAS

CATEGORIA “POESIA”

DOUGLAS MATEUS MELLO
(Fraiburgo-SC)
Cálido D’um Jamais Não!!!

EDÍLSON NASCIMENTO LEÃO
(Urandi-BA)
O Mar

EMILIANA MARIA DE SOUSA TEIXEIRA
(Itapipoca-CE)
Ecos da Natureza

HELENICE MARIA REIS ROCHA
(?)
A Onda

MARIA DOROTEIA TEIXEIRA SANTOS REIS
(Guanambi-BA)
Desafio e Esperança

ROZELENE FURTADO DE LIMA
(Teresópolis-RJ)
Natureza Completa

TERESA C. C. M. AZEVEDO
(Campinas-SP)
Acordai!

VINÍCIUS PÉRRISSÉ MAIA VERAS
(Rio de Janeiro-RJ)
Não Te Verei Amanhã

CATEGORIA “PROSA”

AUTA LEAL BARBOSA DA SILVA
(Divinópolis-MG)
Borboletinha Azul

GILDA MARIA MARTINS SOARES
(Rio de Janeiro-RJ)
As Flores e o Homem

 QUADRO DE MEDALHAS

CATEGORIA “POESIA”

MEDALHA DE OURO

:
LÚCIA PÉRRISSÉ MOREIRA VERAS
(Rio de Janeiro-RJ)
Chuva

MEDALHA DE PRATA:

ADRIANA APARECIDA DE OLIVEIRA PAVANI
(Barra Bonita-SP)
Bendita Seja a Água

MEDALHA BRONZE:

IRONI LÍRIO – TEREZINHA TEIXEIRA SANTOS
(Guanambi-BA)
O Rio da Minha Infância 

CATEGORIA “PROSA”

MEDALHA DE OURO:


AGLAÉ TORRES CRISTÓFARO
(São Paulo-SP)
Cortinas e Gritos de Água – A Viagem

MEDALHA DE PRATA:

FLÁVIO RENÉ KOTHE
(Brasília-DF)
Ondas do Mar

MEDALHA DE BRONZE:

MARIA RITA DE CÁSSIA PRETO MIRANDA
(São Sebastião do Paraíso-MG)
Vida à Vida