terça-feira, 13 de agosto de 2013

Eliana Ruiz Jimenez (Para Gostar de Trovas) vol.1

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS

Tem muito mais graça a vida
quando a gente tem com quem
repartir bem repartida
a graça que a vida tem.
A.  A. de Assis

Oh, linda trova perfeita,
que nos dá tanto prazer...
Tão fácil, depois de feita,
tão difícil de fazer!
Adelmar Tavares

O tempo é bom conselheiro,
do tempo eu não me desgrudo.
Quem faz do Tempo um parceiro,
encontra um tempo pra tudo!...
Ademar Macedo

A vida é feita de engodos
e as sinas não são comuns;
o Sol nasce para todos
mas a sombra é para alguns...
Antonio Juraci Siqueira

Felicidade é somente
uma visita apressada
que aparece de repente
e parte sem dizer nada.
Aparício Fernandes

Saudade, ponte encantada
entre o passado e o presente,
por onde a vida passada
volta a passar novamente!
Archimimo Lapagesse

Não queiras muito da vida...
Vê bem que a felicidade
muita vez é percebida
só depois de ser saudade...
Batista Nunes

As almas de muita gente
são como o rio profundo:
- A face tão transparente,
e quanto lodo no fundo!...
Belmiro Braga

Se amigo é o que escuta a queixa,
seca o pranto e ajuda a rir,
mais amigo é o que não deixa
sequer o pranto cair!
Carolina Ramos

Meus pobres sonhos, tão fracos,
a vida em escombro os fez,
mas, teimosa, eu junto os cacos...
e eis-me a sonhar outra vez!
Dorothy Jansson Moretti

Nas asas do desvario,
tentando um sonho alcançar,
eu despenquei no vazio,
mas... aprendi a voar!
Edmar Japiassú Maia

Neste mundo desigual
onde o mal suplanta o bem,
o contraste social:
cada qual vale o que tem!
Francisco José Pessoa
 

Sei que os motivos são poucos,
sei que as razões também são,
mas este amor nos faz loucos
e os loucos não têm razão!
Gerson César de Souza

Eu me recuso, tristeza,
a conviver com teu mundo:
- Rio que tem correnteza
não cria lodo no fundo!
Héron Patrício

Na distância, ao teu aceno,
quanta tristeza me invade...
O trem ficando pequeno
e, em mim, crescendo a saudade!...
Hermoclydes Siqueira Franco
 

Floresta amiga, perdoa
o fogo, a serra, a agressão:
a humanidade ainda é boa,
certos homens é que não!
João Freire Filho
 

Trovadores meus irmãos,
vamos viver de mãos dadas:
onde há correntes de mãos,
não há mãos acorrentadas!...
José Maria Machado de Araújo

A paz se faz com amor
e o que mais nos desafia
não é plantar uma flor,
mas regá-la todo dia!
José Ouverney
 

Enganam-se os ditadores,
que, no seu furor medonho,
mandam matar sonhadores,
pensando matar o sonho!
Joubert de Araújo Silva

Se o bem não podes fazer,
o mal não faças também,
que o bem já faz sem saber,
quem não faz mal a ninguém.
Lilinha Fernandes

Às vezes o mar bravio
dá-nos lição engenhosa:
afunda um grande navio,
deixa boiar uma rosa!
Luiz Otávio

Se houver um conflito cala,
porque em plena discussão,
quanto mais a gente fala,
tanto mais perde a razão.
Maria Nascimento

Que a lei, com todo o seu porte,
seja um escudo do bem...
E que a justiça do forte
seja a do fraco também!
Mara Melinni

Por mais simples, mais modesta
que nos possa parecer,
a vida é sempre uma festa
para quem sabe viver.
Maria Madalena Ferreira

No amor é bom ter cuidados
para evitar dissabor...
Nem sempre em beijos trocados
trocam-se beijos de amor.
Milton Nunes Loureiro
 

Quem cultiva uma amizade
dentro do seu coração
pode morrer de saudade
mas nunca de solidão.
Olympio Coutinho
 

Seria a vida enfadonha
sem as dúvidas que tive.
Quem tem certeza não sonha,
e quem não sonha não vive...
Orlando Brito

Ninguém é pedra polida,
se não mudar de conduta;
pois, a pedreira da vida
é feita de pedra bruta!
Prof. Garcia

Vou sorrindo com cuidado,
sondando bem a pessoa,
pois ser feliz é um pecado
que pouca gente perdoa!
Zálkind Piatigorsky
 
 TROVAS SATÍRICAS E HUMORÍSTICAS
 Enquanto o Zé se arrebenta
sonhando em se aposentar,
deputado se aposenta
antes mesmo de sonhar.
Dorival C. da Silva

Cabelo é um negócio louco...
Há divergências fatais:
- Na cabeça, um fio é pouco;
mas... na sopa... ele é demais!!!
Elisabeth Souza Cruz.

Lá em casa, a bagunça é boa,
tudo de pernas pro ar,
e o analista da patroa
ainda a manda relaxar...
Elton Carvalho

Parece humor, ou piada,
mas é vero o conteúdo,
pobre diz que não tem nada,
mas, se chove, perde tudo...
Fabiano M. Wanderley

Vendo a perua chegar,
pergunta logo a vizinha:
Querida, o que vai tomar?
Seu marido, queridinha...
Istela Marina G. Lima
 

Caindo do nono andar,
o otimista diz a alguém
que, no quinto, o vê passar
- "Até agora... tudo bem!!!
lzo Goldman

Marido que à noite escapa
com mulheres e aguardente,
o remédio é chá de tapa,
sem açúcar, forte e quente!
José Lucas de Barros

Foi graças a seu gingado,
que a garota, um "avião",
ganhou do "seu" deputado
"baita" cargo em comissão!
Lisete Johnson

Faz regime... e, por fazê-lo,
se desespera a coitada,
pois sempre tem pesadelo
com rodízios... de salada!...
Pedro Mello
 

Mil livros já devorei,
mas neles não achei graça:
até hoje eu nada sei...
- Muito prazer! Sou a traça!
Renato Alves

De político do “avesso”,
a gente já tem calombo...
pois, quando ele dá tropeço,
é o povo que leva o tombo!!!
Roberto Tchepelentyky

Nas lojas sempre envolvido,
não tem crédito jamais...
- ou por ser desconhecido,
ou conhecido demais !...
Rodolpho Abbud
 

Originário de um surto
de inspiração impudica,
o plágio é o único furto
que o próprio ladrão publica...
Rodrigues Crespo

Na "guerra" pela conquista
de um bom salário, valentes,
a manicure e o dentista
lutam "com unhas e dentes"!
Therezinha Dieguez Brisolla

O meu marido é carteiro;
porém bem cedo aprendeu
que no lar, o tempo inteiro,
quem dá as cartas sou eu.
Wanda de P. Mourthé

Fonte:
http://poesiametrovas.blogspot.com

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) O Soneto

Deus de misericórdia, como eu tenho pena dos poetas, meus irmãos! Apesar de ser eu o pobre da irmandade.

Pelo trabalho que me tem custado o soneto que empreendi há três meses, calculo as torturas em que voluntariamente se enredam os que ainda fabricam esses objetos de arte.

Dizem, que há indivíduos que sonetizam com facilidade, sem prejuízo da perfeição. Não descreio disso. Mas essa espontaneidade para fazer um soneto só se adquire depois de muito e duro labor de aprendizagem e prática do soneto. Também os ginastas fazem com a máxima facilidade e economia de esforço os mais complicados e arriscados giros no trapézio, na barra e nas argolas, -e isso está muito longe de provar que tais habilidades lhe sejam naturais como a nós outros o uso do guarda-chuva ou o trepar no estribo dos bondes.

Quanto a mim, vou desistir de concorrer aos futuros florilégios. Mas, em vez de fazer como o outro, que despreza essa forma de poesia, alegando que é velha de seiscentos anos, que o mundo está cheio de sonetos, e que os sonetistas são muito mais numerosos do que os poetas, continuo a achar que a fabricação deste gênero de peças é um útil e nobre exercício de engenho, além de ser o mais justificável dos quebra-cabeças.

Quanto a serem milhões os que se produzem, hoje em dia, em todo o mundo, e contarem-sepelos dedos os capazes de sobreviver, não vejo nisso razão para se condenar o soneto. É igualmente certo que o mundo produz cada dia milhões de rosas, e que essas rosas ainda vivem apenas, como no tempo de Malherbe, -d'un matia -isto é, três ou quatro dias; contudo, daí não se segue que a rosa se tenha tornado indigna do nosso apreço. Ao contrário, a brevidade fatal da sua melindrosa vida é um dos elementos do sutil encanto que elas desprendem, como um outro perfume.

Cosa bella e mortal...

Creio que não há nada mais difícil, ou pouco haverá, do que armar, travar e concluir um soneto de modo que ele fique cheio e redondo como uma bola maciça. Digo bola, porque o soneto, graficamente quadrilateral, é mentalmente esférico. Não tem na sua transcendente realidade, princípio nem fim: o termo aparente é que, a certa luz, se pode considerar começo, porque ninguém se inicia na compreensão justa da peça antes de ter chegado ao "final", antes de haver este lançado a projeção anímica do seu conteúdo até às primeiras palavras do primeiro verso. Assim, todas as partes idealmente se alongam num único sentido, e repassam sobre si mesmas, girando em redor de um eixo gerador, buscando mecanicamente a esfericidade a que tendem as massas em revolução.

Será isso poesia pura? Parece que não é. Mas, dado que se saiba o que venha a ser poesia pura, é evidente que essa essência, como certas substâncias delicadas e voláteis, precisa sempre de uma liga mais ou menos grosseira para subsistir.

De resto, a mim pouco me importa o nome da coisa, ou os quadros em que ela entre ou deixe de entrar. Quando, aí pelos caminhos, eu topo com uma bela teia de aranha, estendida ao sol da manhã como uma roupa de fada, para que se lhe seque o relento da noite, a mim pouco se me dá de saber se aquilo está bem construído, se não está, se o material é puro ou impuro (a natureza sabe o que seja puro ou não o seja), e se a aranha devia ou não devia fazer outra coisa.

Aceito-lhe a teia como está; e se ela palpita e cintila ao sol, toda tecida de filetes impalpáveis colhidos ao luar, às fosforescências noturnas, às azulejantes fluências matinais do córrego, à casca metálica dos besouros e se ela parece bulir no mato como um enxame de estrelinhas tontas, -paro, olho, sorrio, vou andando, e ainda volto a vista para trás. Aquilo é bonito, e acabou-se.

No soneto, como os fizeram Petrarca ou Santa Teresa, Du Bellay ou Shakespeare, a liga em que se aprisiona a essência de poesia é sutil e engenhosamente intelectual. Todos os bons sonetos são obras-primas de engenho discursivo, tocadas de um raio de poesia. Puzzle, envernizado de sonho. Gaiolas dialéticas nas quais, pelo menos, parecem revolutear penugens do pássaro que fugiu, - o tal pássaro fantástico da poesia verdadeira.

Engenho, eis o que me tem faltado para levar a cabo a minha obra-prima. Também tem faltado oportunidade. Feitas as quadras no bonde, entendeu o meu subconsciente que no bonde eu havia de fabricar os tercetos.

Fora daí, no meu gabinete, na repartição, no teatro, não me acode nem fiapo de idéia; mas no bonde nem sempre consigo a calma nem os vagares indispensáveis a esta classe de serviço.

Como este mundo anda desconcertado!

Mas ainda bem. Se os homens tivessem tempo para meditar, decerto deixariam de fazer muitas asneiras - das pequenas; mas como as premeditariam grandes e terríveis!

Hoje, depois de várias tentativas, entrei no bonde decidido a conquistar o meu sossego.

Dei logo de cara com o Sr. João Cesário, esse risonho pirata que infesta a nossa linha e assalta pobres passageiros para lhes arrancar o único money que eles têm, o tempo. Mas o Sr. Cesário não me viu, porque estava despojando a um outro. Fui para o banco mais plebeiamente preenchido, entre uma preta de xale e um cabo de polícia.

Cerrei os olhos, evoquei a imagem flutuante e delgada de Gabriela, recordei as quadras, fui avançando o pé pelo escuro da inspiração informe.

Gabriela, como ficou assentado, era uma jovem que tinha perdido todas as ilusões, coitada! Por necessidade de rima e falta de espaço, não foi possível precisar de que ilusões se tratava, sendo certo que em tudo, na vida, a ilusão desempenha um papel muito sério e ninguém pode jamais gabar-se de as haver perdido por completo. Já se disse mesmo que o homem vive de ilusões. Mas essa imprecisão de idéias é muito própria da poesia; e tem a vantagem de dar largueza bastante para as imaginações se moverem ao sabor de cada temperamento.

Gabriela perdera as suas ilusões de moça ardente e sequiosa, porque se atirara aos chamarizes e às insídias do mundo com excessiva sofreguidão e nenhuma cautela. Isto ficou registado na segunda quadra.

Agora, os tercetos é que eram elas!

Conviria acentuar que, tendo perdido as suas ilusões, a menina estava como quem tivesse perdido a túnica através de matos e pedernais, ou em luta com bichos assanhados. Esta idéia é velha, mas pondo-se-lhe um revestimento novo, ainda serve. As comparações poéticas essenciais, referentes às verdadeiras situações em que se pode encontrar uma alma nesta vida, são bem pouco numerosas, no fundo; e os poetas, por mais que façam, hão de sempre voltear-lhes em redor.

Hoje, aí vais....................
........... inteiramente nua

Repeti essas palavras vinte vezes, preenchendo os espaços vagos da pauta com sílabas soltas sem significação nem consistência, só para acentuar o ritmo e provocar a idéia. Uma espécie de massagem sobre um tumor maduro.

Mas na verdade o tumor ainda estava um tanto verde. O que sobretudo me impedia de chegar a um resultado, era o final.

O soneto, hoje estou disso convencido, tem uma causa final -o fecho deve ser achado antes domais. É o verdadeiro princípio. Então, tudo para lá se encaminha, como no ovo se forma com segurança e tranquilidade o pintainho prefigurado.

Enquanto eu ia fazendo estas reflexões, o bonde se aproximava mais depressa do termo, e tive de adiar mais uma vez a conclusão da minha tarefa poética.

Mas hei de concluí-la. Tenho diante de mim todo o resto da minha vida. Tudo me indica que ainda poderei vir a ser o Arvers de um soneto, não direi tão acabado, mas pelo menos tão difícil de acabar.

Sainte-Beuve disse que il existe chez les trois quarts des hommes un poète mort jeune à qui l'homme survit. Mas isso não é um achado: a poesia sempre foi tida como particular companheira da juventude, nos homens e nos povos. O mais curioso é que muitos trazem consigo poetas que nunca chegaram a nascer e que são como revenants do futuro.

Fonte:
Domínio Público

Luiz Eduardo Caminha (Livro: História do Stammtisch)

“Stammtisch, reinventando tradições” conta toda a história do resgate da tradição dos Stammtisch em Blumenau e no Estado de Santa Catarina, a partir do ano 2000, por ocasião dos 150 anos de fundação da cidade, além de relatar a história de invenção da festa conhecida como Encontro de Stammtisch (Strassenfest mit Stammtischtreffen) – sem precedentes no mundo – ou, simplesmente, Stammtisch, como ficou popularmente conhecida.

O autor, que é médico, escritor e comunicador, tem uma estreita ligação com os Stammtische já que foi através de seu Programa Stammtisch, na TV Galega de Blumenau, que a história da re-invenção desta secular tradição germânica começou na cidade. Hoje os Encontros de Stammtisch tomaram tal vulto que já ocorrem em mais de 60 municípios catarinenses.

Na grande Florianópolis a festa foi trazida pelo Promotor Cultural Mário Milton Müller, Presidente da Associação Cultural Deutsche Welt, e já se encontra presente em 10 municípios da região. Em São Pedro de Alcântara, Mário Müller contou com o incansável apoio de Diego Silva um dos responsáveis pela implementação da festa neste município.

Segundo o autor “fui convidado, durante um Stammtisch da Associação Deutsche Welt, em 2010, na Ponta de Baixo, em São José, pelos amigos Mário e Diego, com a anuência do Prefeito Municipal, Sr. Ernei Stähelin, para fazer o lançamento do livro, em São Pedro. Entretanto, face a problemas de saúde, em que acabei submetido a um transplante de fígado, tive que transferir toda a agenda de lançamentos e estou retomando-a a partir de agora. É uma grande honra comparecer à primeira cidade colonizada pelos alemães em Santa Catarina, uma das primeiras do Brasil, até porque foram eles que trouxeram, em sua bagagem, toda a rica gama de tradições germânicas da qual faz parte o Stammtisch”, afirma Caminha.

Segundo o autor e pesquisador, “a festa não tem precedentes no mundo, é uma invenção nossa, de Blumenau, e nasceu de uma simples idéia do jornalista Horácio Braun de um dia reunir os grupos existentes anonimamente na cidade para um encontro etílico-gastronômico nas dependências da Proeb (atual Vila Germânica). A festa nunca aconteceu até que, por ocasião dos 150 anos de Blumenau, a ideia ressurgiu e decidimos apoiá-la, através do Programa Stammtisch. O Encontro aconteceu na Rua XV em 26 de Agosto de 2.000 com 17 grupos durante a Strassenfest do Sesquicentenário da cidade”.

Fruto de uma pesquisa de 10 anos em 1068 documentos, dos quais foram referenciados 275, o livro está estruturado em três partes:

1 – A história do Stammtisch e dos Encontros de Stammtisch contada em relato jornalístico, com o testemunho dos personagens que vivenciaram a tradição no passado ou nesta sua nova re-aparição em Blumenau e no Estado de Santa Catarina;

2- A história das tradições desde que surgiram no mundo (800 anos a.C.), passando pelo surgimento do Stammtisch na Alemanha - criado pelo Rei Friedrich Wilhelm I, o Rei-Soldado, (Soldatenkönig), Rei da Prússia (1713 – 1740), mais de um século antes de se constituir o Império Alemão – até chegar aos Encontros de Stammtisch, em Blumenau,

3- As entrevistas de inúmeros blumenauenses e alguns personagens de outras cidades onde a tradição foi revivida, registrando um memorial da história oral desta tradição.

Além disto o livro é ilustrado por um encarte de fotos antigas e recentes extraídas do acervo do próprio autor.

Sobre o autor:

Luiz Eduardo Caminha é médico, escritor e exerce atividades  de jornalismo.Nasceu em Florianópolis, SC. Foi um dos responsáveis pelo resgate da tradição germânica do “Stammtisch”, de seus Encontros e dos Encontros de Amigos e Patotas, em Blumenau e em Santa Catarina.

Membro da Organização dos Encontros de Stammtisch, em Blumenau e em Santa Catarina. Escreve poemas e crônicas desde a adolescência, mas só resolveu publicar seu primeiro livro, “Reflexos” (poesias), em 1997; Depois vieram um “e-book” Poemas, em 2007, “Saboreando Crônicas” em 2008 e “ “Stammtisch, Reinventando Tradições”, em 2010. A par disto, publicou inúmeros artigos e crônicas na internet e na imprensa. Já teve alguns de seus escritos destacados e premiados em Concursos de Poesias e Crônicas Nacionais. Foi colunista de opinião e política da Folha de Blumenau. É mentor e editor do site “Stammtisch, Confrarias e Patotas” http://www.stmt.com.br , que permaneceu durante 10 anos em 1º. Lugar na referência do termo Stammtisch no mundo, nos principais sites de busca da internet. Hoje, perdeu esta posição para a Wikipédia e tem o site colocado nos 2º. e 3º lugares dos principais sites de busca.

É acadêmico – Cadeira nº. 18 da Academia Catarinenses de Letras e Artes, membro fundador do Capítulo Santa Catarina da SOBRAMES - Sociedade Brasileira de Médicos Escritores; membro da Sociedade de Escritores de Blumenau; de “Os Confrades da Poesia” e do Portal CEN - “Cá Estamos Nós”e da Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores. Ocupa a Cadeira nº. 11, Academicus Praeclarus, do Clube dos Escritores de Piracicaba. É membro titular do Conselho Estadual de Cultura de Santa Catarina.

Foi Coordenador do III Encontro Luso-Brasileiro de Escritores do Portal CEN em 2008.

Contatos com o autor:

(48) 3369.3115
(48) 9111.5550 (TIM)
e-mail: luizecaminha@gmail.com

Fonte:
Luiz Eduardo Caminha

Isabel Pakes (Poesias Avulsas)

A SÓS

Estendo-me diante de ti
acolhida no leito das tuas mãos serenas.
Neste momento não quero ser apenas poemas,
quero ser também parte da tua essência.

Quero transpor a vidraça dos teus olhos,
mergulhar no rio das tuas veias
e percorrer-te ponta a ponta,
levada pelas ondas das tuas emoções,
flutuar no teu pensamento
e repousar depois,
na alcova do teu peito.

E mesmo que não possa
perdurar-me em tua memória,
eu cantarei a glória de estar a sós contigo
por alguns instantes,
no aconchego do teu coração.

VENHA COMIGO

Venha comigo.
Acomode-se nas asas destes versos sonhadores,
libere seus pensamentos cotidianos
- que se evadam pelas entrelinhas -
e desaperte o cinto do seu coração.
Vamos voar! Voar!
Provar do vento o sabor natural da liberdade!
Singrar o azul... Pairar no ar.
Esculpir nas nuvens sorrisos de crianças
e deixá-los ir céu afora...
E possa a inocência derramar-se sobre os homens.

Voar! Singrar o azul, desfrutar da paz absoluta!
E quando o dia se for, adentrar o portal da noite
e acender as luminárias da Via-Láctea.
Flutuar junto a poeira dos astros e colher estrelas,
miríades de estrelas e agrupá-las num imenso coração -
- Constelação do Amor - Signo da Terra!
Depois, na euforia desse feito criador, bailar!
Bailar com as luzes, bailar!
Bailar no éter, bailar!
Bailar... Bailar... Vertiginosamente!
E, cadentes, nos incandescer para não despertar...

SE VOCÊ QUISER...

Se você quiser,
eu desenho risos nos seus lábios
e salpico estrelas nos seus olhos.

Se você quiser,
eu deponho flores em suas mãos
e acendo luzes no seu pensamento.

Se você quiser,
eu faço festas dentro do seu peito
e embriago de amor o seu coração.
Bailar... Bailar... Vertiginosamente!
E, cadentes, nos incandescer para não despertar...

ENTRELACES


Eu vi a moça na janela,
desbotada, estática,
como que parada no tempo,
como se num retrato antigo.
E ouvi do outro lado da rua
um trinado de pássaros
musicar uma árvore.

A moça tinha o rosto apático
e olhos escuros e frios e opacos,
como se condutores telúricos,
vazassem abismos.
Tentando um alento
armei meu sorriso e lhe disse:
- Bom dia!
Ela desconversou.
Alegou mau humor, fadiga, fastio...
Funesta!

A árvore era linda!
Amante da vida,
proliferava raízes e folhas e folhas
e folhas;
frondosa abria-se aos céus!
Não dava flores nem frutos,
mas dava... pássaros!
Precursores da primavera.

Apiedei-me da moça, eu juro!
mas mudei de calçada
e abracei a árvore.

UM SEM FIM

O tempo traça em meu rosto o seu percurso,
circundante, acentuando os sulcos,
colhendo noites e replantando dias,
sorvendo o orvalho e absorvendo os raios...
Dentro do espelho me agastando.

Porém, porquanto em mim
registre o seu transcurso,
guardo-me eterna em sua razão
e entremeando crepúsculos e auroras,
trespasso o espelho
e me refaço - caminho de transmigração.

Que o tempo em mim é um
sem fim.

ÀS TARDES

Às tardes, o horizonte pintado de sol poente
é o porto onde ancoram meus olhos,
barcos de esperanças.

As nuvens franjadas de ouro, súditas fiéis,
reverenciam o grande rei que é posto.
A primeira estrela aparece prenunciando o luto.
Pesaroso o céu se despe de sua veste azul.
A luz se ausenta.
O dia é morto. Mais um...

Meus olhos, nascidos pranteadores,
envolvidos nesse rito, fazem água.
Náufragos crepusculares, retornam a mim vazios,
porém ávidos de uma nova razão...

E tudo recomeça.
Lá se vão estes barcos contumazes
navegar por entre estrelas,
içar dos sonhos o novo amanhecer.

APATIA

A noite me viu tão triste que chorou estrelas...
E enviou-me a brisa que me sussurrasse um acalanto,
adormecesse em mim tanto quebranto, tanto desejo de não ser...
(Tanta querença e este desencanto!)

Mas o meu ego, surdo e cego, recoberto por escamas,
dessas que a alma tece para abafar as chamas, custava serenar.

Então veio a alvorada!
Adiantou-se em sua hora em meus cuidados,
beijou-me a boca, a fronte, os pés...
Que a luz viesse dissipar-me as brumas,
se infiltrasse em minhas amarguras e me sanasse, enfim.
Minúsculos sóis se pontilharam, às dezenas,
na transparência das gotas orvalhadas e em mim... em mim, nada!
(Tanto ardor e este frio!)

E me encontraram as Onze-Horas ainda recolhida ao desconforto.
Essas florinhas tímidas se me abriram com uma humildade santa
que quase, quase me alentaram,
não fosse em mim a dor maior que a fé, neste instante.
(Tanto néctar e este acre!)

Tanta vida e esta apatia!
Aonde foi a seiva que me vicejava e o mel que me adocicava?
Aonde foi você?

ASCENSÃO

Do horizonte remoto
o ser - cravado - observa
e, serenamente, aguarda
o supremo sopro cósmico.

Restam poucas pedras.
Já os fiéis se aproximam.
Luminárias às mãos se identificam
e se multiplicam ao largo do grande templo
que a seu tempo se conclui.
E à dispersão da noite, se possibilitam
ascender os degraus para o imenso portal!

A escadaria é íngreme, eles sobem...
 O patamar estreito, eles avançam, eles alcançam...
Eles crêem! E, na escalada, um a um, se agigantam!

DESCARTE

Li o teu poema mais recente, sequiosamente!
Cuidava que seria para sempre a tua musa
e vaidosa me encontrar, como de costume,
envolta às carícias de teus versos.
Li com o coração aos pulos, sofregamente
e ao fim...
Salgou-me o riso inda latente o pranto inesperado.
Mas não pude, em meu orgulho,
admitir-me em meios aos teus descartes,
mesmo porque (pensei)
não poderias arquivar-me em teu passado,
simplesmente.
Não a mim, que do amor te preparei a melhor mesa
e ambrosias te servi. Não a mim...
Tranquilizei-me à mão desse argumento
e como quem sai a procurar algo perdido
reli o teu poema, desta vez com mais vagar.
Vasculhei-o palavra por palavra buscando qualquer coisa,
qualquer coisa, mesmo que de leve me lembrasse
e ao fim...
Ao fim se me rompeu o riso represado
num espocar ruidoso e convulsivo.
De um modo bem discreto, quase escondido,
meu nome desfiado iniciava
cada verso que compõe o teu poema,
onde me enalteceste como jamais me pensaria.
Porém nada disseste do amor, nem da saudade,
num jeito bem sutil de me dizer adeus.

AONDE VAI

- Aonde vai, menino?
- Aonde me leva o sonho.

- Aonde vai, rapaz?
- Aonde me leva a ilusão.

- Aonde vai, senhor?
- Aonde me leva o destino?

- Aonde vai, vovô?
- Pegar carona no sonho do menino.

Fontes:
Portal CEN
Blog da Autora.

Isabel Pakes (1947)

Nascida em Araçoiaba da Serra/SP aos 26/09/1947. Professora aposentada, residente em Cerquilho/SP.

Poeta e declamadora:

1º prêmio no I, II e III Festival de Poemas de Cerquilho (1986 a 1988)

1º prêmio no I Concurso de Poesias Fernando Pessoa de Juiz de Fora - MG - participação no livro “Poesia e Liberdade” das Edições Maria (1989)

1º prêmio no  I Concurso de Poesias de Juquitiba - SP (1990)

1º prêmio na categoria "outra cidade" no V Concurso de Poesias de Capivari - SP (1990 )

1º prêmio no I e II Festival de Poesias de Tietê - SP (1991 e 1992)

1º prêmio no I Concurso Mário Gemignani de Poesias - Capão Bonito - SP (1992 )

Trabalhos literários voluntários:
- “Poesia e declamação”, com crianças assistidas pela Casa de Maria, em Tietê/SP (2005 a 2008)

- “Caminhos da Poesia”, com crianças e adolescentes assistidos pela Promoção Social, em Cerquilho (2007)

Outras atividades literárias:

- Participação da "Noite e Poesia" - Palco Livre - na Faculdade de Tatuí (anos 90)

- Participação da "Poesia na 4ª Capa", evento promovido e realizado pelo Jardim das Artes de Cerquilho (2004)

- Integrante do corpo de jurados do “Torneio Municipal De Poesias”, do “Festival de Poemas de Cerquilho” e do “Mapa Cultural Paulista - Fase Municipal”, organizados e realizados anualmente pelo Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de Cerquilho.

- Palestra “Poema ou Poesia?” nas Escolas de Ensino Fundamental de Cerquilho/SP

- Participação na comemoração dos 40 anos da “Biblioteca Pública Municipal Guilherme de Almeida” de Cerquilho, com exposição de seus trabalhos (06/2011)
Condecorações:

- Medalha “Cidade De Cerquilho” conferida pela Câmara Municipal de Cerquilho, em 1992.

- Medalha “Filhos Ilustres Da Cidade Das Rosas” conferida pela Prefeitura Municipal de Cerquilho, em 2008.

- Madrinha Do “Festival De Poemas Da Escola Plínio R. De Moraes”, realizado anualmente em Tietê/SP.

Web: http://belpakes.blogspot.com/

Livros publicados:
– Transcendência.
– Era uma vez um grão de areia.

Fontes:
Portal CEN
Blog da Autora.
Clube de Autores

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 23

CAPÍTULO XV

Enquanto para Teobaldo a vida corria desse modo, oscilando entre amarguras e contrariedades de todo o gênero; enquanto ele sofria por não ter coragem para abrir por uma vez contra os seus hábitos e tomar energicamente um novo caminho, o Coruja ralava-se de serviço, preocupado apenas pela ideia de que nada viesse a faltar ao seu amigo.

Daí começou para André uma triste época de sacrifícios ignorados e obscuras privações. O diretor do colégio chegou a dizer-lhe que não se apresentasse tão mal trajado; ele, com efeito, trazia agora um fato que, à força de uso, perdera de todo a cor primitiva e já em certos lugares se mostrava transparente.

A sua economia, depois que Teobaldo precisava de socorros, parecia milagrosa: só comprava roupa já usada e calçado já servido, e com este regime, e mais sem ter nenhum vício e comendo a expensas do colégio, passava semanas inteiras sem gastar um vintém com a sua pessoa. Entretanto, não vivia alegre, porque, apesar de tamanho heroísmo, Teobaldo ainda sofria privações.

Um outro motivo do seu desgosto era D. Margarida. A velha, desesperada com a demora do casamento da filha, acabara por perder de todo a paciência e desabafou uma vez defronte do Coruja:

— Ele, se não tinha intenção de casar, por que iludiu a pobre rapariga?

— Eu não a iludi... Explicou André, corando. Pelo menos nunca tive a ideia de iludir pessoa alguma...

— Então por que não casou já por uma vez?

— Porque tenho encontrado dificuldades com que não contava...

— Ora! É sempre a mesma cantiga! Dificuldades! E afinal de contas o senhor não é capaz de dizer que dificuldades são essas!? Eu, por mim, confesso que já desconfiei do negócio e, quando dou para desconfiar, é o diabo! Para o que, veja-se: dantes, quando o senhor ainda não estava tão ligado a nós, trazia-nos quase sempre algum presente: eram cortes de chita, eram lenços, latas de doce, camarotes de teatro... e hoje?! Hoje é isto que se vê! O senhor esbodega-se lá por fora e já faz muito quando nos traz uma desgraçada libra de café! Ainda se gastasse consigo, vá! Mas nem isso, que o senhor anda mais bodega que um cigano! Tem a roupa a cair aos pedaços, os sapatos que é uma vergonha, só a camisa é decente, porque a engomamos nós! Ora, pois, a coisa está a entrar pelos olhos! Pois então, quando o senhor ganhava muito menos, podia gastar consigo e conosco, e agora, que faz por mês o dobro do que fazia, não tem com que comprar um chapéu, para não se apresentar com essa rodilha de limpar panelas, que até encalistra a quem se dá com o senhor?

— É exato... É exato, dizia o Coruja, envergonhado de si mesmo.

— Ora, pois! Isto é coisa! Gato ou raposa! Quanto a mim, digo-lhe com franqueza, ninguém me tira da cabeça que o senhor o que tem é por aí algum diabo de uma mulher que lhe come até à última!

O Coruja, ao ouvir, fez-se cor de sangue e balbuciou escandalizado:

— A senhora está enganada, Sra. D. Margarida!...

— Pois, então, se não é uma mulher que o está depenando, o senhor deu para jogador...

— Jogador! Eu?

— Sem dúvida!...

— Deve duvidar, sim, senhora! Eu nunca joguei!...

— Então deu para avarento!

— Se eu tivesse pecúlio ajuntado já não estaria solteiro.

— Pois então não sei! A verdade, porém, é que o senhor ganha e o dinheiro não aparece!...

E essas recriminações iam longe. Inezinha em compensação fazia justamente o contrário:

— Não se de por achado, seu Miranda, dizia-lhe ela, sempre muito mole e muito por tudo — aquilo em mamãe é gênio...

— É que não me convém casar, sem a certeza de que nada faltará à minha mulher... respondeu ele.

— Decerto.

— Acho que é um crime obrigar uma menina a sofrer necessidades.

— Acho que ninguém tem o direito de oferecer-se para marido, enquanto não pode ser pai…

— A senhora, se quiser esperar que eu melhore de condições, espere; se não pode, então o caso muda de figura.

— Eu estou por tudo, seu Miranda.

— Visto isso é preciso fazer com que sua mãe se deixe daquelas coisas…

— É gênio, coitada! Olha, a mim nunca o senhor ouvirá dizer nada... O que tem de ser, traz força. Do que serve a gente se amofinar?... Consumações não adiantam nada…

E, como sempre, terminava com a sua invariável frase:

— Mais vale a nossa saúde...

O Coruja, todavia, mortificava-se deveras com a situação. Por coisa alguma ele seria capaz de confessar o verdadeiro motivo da sua penúria, e só a ideia de passar por um impostor aos olhos da velha era o bastante para lhe tirar todo o sossego do espírito. O fato de haver prometido casamento a uma rapariga e não ter certeza de poder cumprir honestamente com o prometido tomava naquela imaculada consciência as proporções de um crime monstruoso.

Vinham-lhe ímpetos, às vezes, de escrever uma carta a Margarida, dizendo que não contasse com ele e desse a filha a um outro que a desejasse; mas o Coruja ao lembrar-se disto já estava a ver defronte de si o tremendo vulto da velha, a gritar, com as mãos nas cadeiras:

— Então! Que é que eu dizia?! O homem esteve ou não esteve divertindo-se à nossa custa? É ou não é um impostor? Ora pois isto tem jeito?... Enganar assim uma pobre rapariga, fazê-la perder o seu melhor tempo e depois virar-lhe as costas!

Além de que, sendo ele tão geralmente antipatizado e desquerido, prezava do fundo da alma aquela condescendente afeição de Inês, como um bem inesperado e singular que lhe viera quebrar o monótono abandono em que vivia. Posto que a sua extrema bondade o levasse constantemente a se esquecer de si mesmo para só cuidar dos outros, não podia ficar indiferente à vista daquele fato, que lhe enchia o coração com esta frase: — Eu também tenho uma mulher que me ama! Amá-lo-ia?

Talvez não; mas o que para qualquer outro não passava de simples afabilidade vulgar e obrigada, para ele era a extrema manifestação da ternura feminil, tão habituado estava à indiferença e ao desamor dos seus semelhantes. Para quem se acha nas trevas qualquer claridade que chega é um belo foco de luz.

— Pela primeira vez julgou possível ter uma companheira ao lado de sua vida, e essa ideia o transportou de júbilo; ser bom para todos, indiferentemente, é um gozo, mas ser bom para quem nos retribui os sacrifícios com amor e caridade, isso já é o que se chama a felicidade. E amou-a, idolatrou-a com a alma ajoelhada, cheia de reconhecimento e respeito; amou-a com os crentes amam Deus, pedindo que os não repila nunca do seu seio.

No casamento. entretanto, ele não via apenas o caminho mais curto para chegar à felicidade, via também um meio de dirigir e regular as suas qualidades morais, dando-lhes um objetivo; o casamento era por bem dizer o modo de reunir em uma só criatura a humanidade inteira, por quem o Coruja ter-se-ia dedicado se pudesse.

Ou quem sabe se ele, considerando a grandeza exagerada do seu coração não queria dividi-lo com Inês, à semelhança de um milionário pródigo que, receoso de não poder sozinho gastar o seu tesouro, convida uma mulher para ajudá-lo?

— Por conseguinte, a idéia daquele amor, ao mesmo tempo que o consolava o constrangia.

— Mas, que fazer?... pensava. — Casar, sem dispor de meios para isso?

—Não! — Negar a Teobaldo o seu auxílio — Nunca! Logo, o melhor e mais acertado era ir protelando o seu desígnio, até que chegasse a ocasião oportuna para realizá-lo condignamente.

Essa ocasião, porém, só chegaria com uma grande transformação na existência de Teobaldo.

André esperava que, de um momento para outro, o amigo encontrasse trabalho, modificasse os seus hábitos e endireitasse a vida.

— O que mais o atrapalha, dizia consigo — São as mulheres... Ele, coitado, não tem culpa, porque até lhe foge, como tenho já observado, mas as malditas não se lhe despregam nem à mão de Deus Padre! Não sei que diabo tem o rapaz para as enfeitiçar deste modo!... São bilhetes, recadinhos, visitas, uma verdadeira perseguição! Ah! Se eu fosse assim querido!.

E aquelas duas criaturas, inteiramente opostas, invejavam-se em silêncio, não com essa inveja mesquinha que se transforma em raiva, mas nessa outra que produz admiração e respeito.

— Se eu fosse feliz como ele... Dizia cada um por sua vez, quando falava no outro.

E tinham-se ambos na mesma conta de infortunosos: um por ser desejado demais e o outro por bem em demasia. Em demasia, está claro, porque o Coruja, naquela aberração, inculpado e santa, do seu amor pelos semelhantes, compadecia-se indistintamente de todo e qualquer desgraçado, fosse um faminto ou um assassino, um ladrão ou uma prostituta.

Uma noite, já tarde trabalhava ele, como de costume, na sua secretária, quando ouviu um forte rumor na janela que dava para o telhado, e logo depois aparecer aí uma cabeça de homem, cujos olhos brilhavam como os do tigre.

Espantou-se, mas, tornando a si, disse com toda a calma:

— Entre.

Não era necessário semelhante permissão, porque o homem de olhos de tigre acabava de transpor a janela e deixava-se cair no soalho, ofegante e prostrado de fadiga.

— Deixe-me descansar primeiro, disse, quase sem poder articular as palavras; depois o senhor fará de mim o que entender!...

Só então o Coruja, correndo a uma das janelas da frente, deu pelo motim em que estava a rua. Aquele homem vinha naturalmente perseguido por soldados e talvez pelo povo; e, de telhado em telhado, conseguira chegar até ali. Pela atitude dos que se aglomeravam lá fora, compreendeu que ninguém desconfiava do destino do fugitivo, pois a atenção deles voltava-se para o telhado de uma casa, donde, a julgar pelas exclamações e pelas pedradas que lançavam, esperavam sem dúvida ver surgir o perseguido.

— Bom, disse o Coruja; não sabem que você está aqui.

E fechou as janelas.

O sujeito vinha completamente esfarrapado, a ponto de se lhe perceber a carne das pernas e do tronco, cheia de contusões e esfoladelas que vertiam sangue. Uma enorme cabeleira, hirsuta e destratada, cobria-lhe a cabeça e ligava-lhe às grandes barbas grisalhas, dando-lhe um aspecto terrível de facínora. Viam-se-lhe as palmas das mãos rasgadas e ensanguentadas, porque o desgraçado fizera talvez um quarto de légua de gatinhas pelos telhados. De tão cansado que vinha não podia respirar sem abrir de todo a boca, a patentear a dentadura enegrecida de fumo e embaciada pelo álcool.

Logo que se achou menos convulso, volveu em torno os olhos, com o assombro de uma fera perseguida, e pediu um pouco d’água — Por amor de Deus. O Coruja, que estava a contemplá-lo silenciosamente, foi buscar uma bilha cheia e trouxe-lha, dizendo:

— Aqui tem, amigo.

Então o homem, tomando a bilha entre as mãos enormes e sangrentas, olhou-o espantado, luzindo nos seus grandes olhos, verdes e arregalados, uma expressão de terror e de pasmo.

— Beba, acrescentou o Coruja, batendo-lhe no ombro; não tenha medo, que aqui não será perseguido. Beba sem receio e descanse, que ao depois eu lhe darei de comer, se você tem fome

Ao ouvir isto, o homem, que nesse instante acabava de despejar de um trago a pilha inteira, começou a fitar o Coruja e a rir apalermadamente. Este arrastou para junto dele uma poltrona que havia no quarto, e disse-lhe com um gesto que se assentasse.

Não se ergueu o foragido e, cada vez mais admirado, engatinhou-se para a poltrona e ia assentar-se nela, olhando de esguelha para o Coruja, quando um rumor no corredor fê-lo dar um salto e, de mãos abertas, os dedos espetados, os olhos com a mesma primeira expressão da janela, regougou assombrado:

— Quem é? Quem é?!

E precipitou-se para um dos cantos do quarto.

— Não é nada, volveu o Coruja. Talvez algum vizinho que se recolhe. Pode ficar tranquilo que aqui não lhe acontecerá mal de espécie alguma. Vamos, assente-se e descanse.

Para melhor o tranquilizar, foi à porta da entrada e fechou-a por dentro, a chave. Depois, ao voltar de fazer isto, foi que notou deveras a estranha figura do seu protegido.

Este agora, de pé, com a sua grande cabeleira caída sobre os olhos, estava medonho. Era de enorme estatura, magro, mas vigoroso; peito cabeludo e punhos grossos, que pareciam raízes de árvore.

O Coruja sentiu-se pequeno defronte daquele colosso. Foi quase intimidado que se aproximou dele novamente, para lhe repetir que se assentasse. O homem acompanhava-lhe todos os movimentos sempre com o mesmo desconfiado espanto. André foi ao interior da casa, andou por lá remexendo nos armários e voltou afinal com uma travessa de carne assada e um pão. Pôs isto sobre uma mesinha, que ele mesmo desocupou para esse fim, foi ainda buscar lá dentro uma garrafa de vinho e disse ao hóspede:

— Coma.

O foragido, sem deixar de lhe acompanhar os menores movimentos, encaminhou-se logo para a mesa e ia lançar-se sofregamente sobre a comida, quando uma explosão de soluços lhe tomou a garganta; e, escondendo a carranca nas suas mãos enormes, ele soluçava com tal ímpeto, que o corpo todo se lhe sacudia nos arrancos do choro.

Coruja não deu palavra, deixou o homem chorar à vontade e pôs-se a fingir que lia um livro junto à secretária; depois foi fazer café.

Passada a crise das lágrimas, o desgraçado principiou a comer, a comer muito, como quem traz uma velha fome de muitos dias. Deixou os pratos limpos e a garrafa enxuta.

— Sente-se agora melhor? Perguntou o rapaz.

O outro tomou-lhe a mão e beijou-lha, enquanto dois grossos lhe corriam dos olhos pela aspereza das barbas.

— Está pronto o café, disse Coruja indo buscar a máquina e enchendo duas xícaras.

— Nisto eu lhe faço companhia.

E, depois de lhe passar uma delas:

— O senhor talvez esteja habituado a fumar...

O hóspede fez um gesto afirmativo e ele apressou-se a ir buscar um dos charutos que comprara para Teobaldo.

Durante o café conversaram. O homem declarou que era muito desgraçado: fora trabalhar, tinha o ofício de ferreiro, mas estava preso havia mais de três anos e só agora conseguira fugir, depois de frustradas tentativas, que só lhe renderam novas penas e novos castigos.

— Por que o prenderam?

— Porque eu matei minha mulher. Havia muito tempo que andava desconfiado dela, um dia escondi-me, e vi entrar um homem no meu quarto e, quando a descarada apareceu para se deitar com ele, meti-lhe uma faca na barriga!

— E o sujeito?

— O sujeito ficou atrapalhado, atirou-se, sem saber o que fazia, por uma janela e foi cair embaixo meio morto. Um diabo de um vizinho que eu tinha, foi quem me entregou à Polícia. Fui preso na mesma ocasião.

— E agora, você o que tenciona fazer?

— Não sei. Dizem que o Brasil vai ter guerra com o Paraguai, eu marcharei para a guerra. Fugi. Porque todos os dias pensava em fugir e afinal apareceu uma ocasião. Anteontem, às Ave-Marias, o carcereiro foi à minha célula buscar como de costume a tigela em que ele dá comida à gente; mas, em bem o cabra não se tinha abaixado para a apanhar, ficou mais roxo que uma beringela e caiu de focinheira no chão, sem tugir, nem mugir. Eu peguei-lhe assim pelo braço e vi que o bruto estava mole; então saquei-lhe fora esta farda, que é a que ele lá usam, vesti as calças do bicho, pus o boné na cabeça, e por aqui é o caminho! Mas um diabo de um guarda desconfiou da marosca e eu — Pernas para que te quero! Foi o meu mal! Abri pelo corredor, ganhei a rua, mas o demônio do guarda atrás. Enfiei pela primeira porta que encontrei, era a casa de uma quitandeira, varei até o quintal, havia um muro, saltei-o, estava em um cortiço, havia um cercado, atravessei-o nem sei como, e vi-me de repente em um curral; havia um telheiro, trepei-me para ele e dai passei a um telhado mais alto. Atravessei quatro ou cinco telhados, correndo como um gato e em risco de me levar o diabo a cada instante! Afinal ouvi gritar na rua: "Ali está ele!" E vi seis soldados que escoravam a casa. Então, segurei-me a uma goteira, desci, pilhei-me em outro telhado e deste passei adiante; mas os policiais me acompanharam da rua, apitando, cercando os quarteirões, entrando pelas casas e, quando eu dei fé havia povo por toda a parte, nas chaminés, nas árvores, nos muros, e atiravam-me pedras e pedaços de pau enquanto outros se divertiam com a minha pelotica! Já estava para ser agarrado, porque não tinha mais forças e via-me cercado, quando por um acaso do céu escorreguei pelo telhado dessa casa que fica ali ao pé e vim ter àquela janela por onde entrei!

O assassino tomou fôlego e acrescentou depois, mudando de tom:

— Quis Deus que eu encontrasse uma alma boa; aqui estou e não me vexo de dizer a verdade. Vosmecê pode agora fazer de mim o que entender; não lhe fico querendo mal por isso!

— Pode ir em paz, respondeu o Coruja; mas, se quiser ouvir o meu conselho, espere um pouco, não saia já. Olhe, ali tem uma bacia com água; lave-se, que você está sujo de sangue; depois tire essa roupa que o compromete, e vista a que lhe vou dar. Naquele toucador há pente. escova e óleo para o cabelo; arranje-se, durma um pouco e depois então saía. Para a sua viagem não lhe posso dar muito, mas aqui tem cinco mil réis.

— Vosmecê algum dia foi criminoso? perguntou o assassino.

— Criminoso somos todos nós, respondeu o Coruja.

— Mas nunca matou ninguém?

— Creio que não...

— Deus o conserve assim, moço!

O assassino lavou-se e vestiu uma roupa do Caetano e, depois de guardar o dinheiro que lhe dera André, beijou as mãos deste e saiu.

— Olhe, disse-lhe o rapaz que o fora acompanhar até à escada. Faça por ser bom e, quando precisar de qualquer coisa, apareça. Adeus.
–––––––-
continua…

XXII Jogos Florais de Porto Alegre (Resultado Final)

CONCURSO NACIONAL-INTERNACIONAL DE TROVAS

TEMA ÁGUA (L/F)

VENCEDORAS



ERCI MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru-SP


JOSÉ VALDEZ DE CASTRO MOURA
Pindamonhangaba - SP


DARI PEREIRA
Maringá-PR


MARINA BRUNA
São Paulo-SP


OLYMPIO COUTINHO
Belo Horizonte - MG

MENÇÕES HONROSAS

JOSÉ LUCAS DE BARROS
Natal-RN

ANTONIO AUGUSTO DE ASSIS
Maringá-PR

ALBA HELENA CORREA
Niterói - RJ

GERSON SILVESTRE GONÇALVES
Belo Horizonte - MG

EDUARDO TOLEDO
Pouso Alegre- MG

MENÇÕES ESPECIAIS

SÉRGIO FONSECA
Rio de Janeiro-RJ

DIVENEI BOSELI
São Paulo - SP

ELIANA RUIZ JIMENEZ
Balneário Camburiu - SC

ADILSON MAIA
Niterói - RJ

ANTONIO AUGUSTO DE ASSIS
Maringá-PR

CONCURSO NACIONAL-INTERNACIONAL DE TROVAS

TEMA VINHO (H)

VENCEDORAS



GIOVANELLI
Nova Friburgo-RJ


EDMAR JAPIASSU MAIA
Nova Friburgo-RJ


RENATO ALVES
Rio de Janeiro-RJ


ERCI MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru-SP


JOSÉ OUVERNEY
Pindamonhangaba - SP

MENÇÕES HONROSAS

ANTONIO CARLOS TEIXEIRA PINTO
Brasília - DF

PEDRO MELLO
São Paulo - SP

WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte-MG

JOSÉ GILBERTO GASPAR
São Bernardo do Campo - SP

MARIA MADALENA FERREIRA
Magé - RJ

MENÇÕES ESPECIAIS

JOSÉ VALDEZ  DE CASTRO MOURA
Pindamonhangaba-SP

DILVA MARIA DE MORAES
Novo Friburgo - RJ

IVONE MARQUES MOREIRA
Nova Friburgo - RJ

AILTO RODRIGUES
Nova Fiburgo - RJ

ARLINDO TADEU HAGEN
Belo Horizonte – MG

CONCURSO ESTADUAL(RS) DE TROVAS

TEMA FONTE (L/F)

VENCEDORAS

 

MARIA DORNELLES
Itapuã


FLÁVIO ROBERTO STEFANI
Porto Alegre


NEOLY DE OLIVERA VARGAS
Sapucaia do Sul


JAQUELINE MACHADO
Cachoeira do Sul


CLÊNIO BORGES
Porto Alegre


LUIZ MACHADO STABILE
Uruguaiana

MENÇÕES HONROSAS

GISELI BUENO PINTO
Dom Pedrito

DELCY CANALLES
Porto Alegre

LUIZ DAMO
Caxias do Sul

MILTON SOUZA
Porto Alegre

MARLÊ BEATRIZ ARAÚJO
Viamão

MENÇÕES ESPECIAIS

ZÉLIA DE NARDI
Caxias do Sul

FLÁVIO ROBERTO STEFANI
Porto Alegre

AMÁLIA MARIE BORHEIN
Caxias do Sul

GISELI BUENO PINTO
Dom Pedrito

DELCY CANALLES (2)
Porto Alegre

CONCURSO ESTADUAL (RS) DE TROVAS
TEMA SEDE (H)

VENCEDORAS


NEOLY DE OLIVEIRA VARGAS 
Sapucaia do Sul


MILTON SOUZA
Porto Alegre


DELCY CANALLES
Porto Alegre


CLÁUDIO DERLI SILVEIRA
Porto Alegre


NEOLY DE OLIVEIRA VARGAS
Sapucaia di Sul

MENÇÕES HONROSAS

CLÁUDIO DERLI SILVEIRA (2)
Porto Alegre

IALMAR PIO SCHNEIDER
Porto Alegre

JOMAR DALOSTO
Porto Alegre

AMÁLIA MARIE BORNHEIN
Caxias do Sul

MENÇÕES ESPECIAIS

FLÁVIO ROBERTO STEFANI (2)
Porto Alegre

DELCY  CANALLES
Porto Alegre

MILTON SOUZA
Porto Alegre

LUIZ MACHADO STABILE
Uruguaiana

CONCURSO INTERNACIONAL DE TROVAS  EM LINGUA HISPANICA

TEMA: JUVENTUD (L/F)

VENCEDORES



STELLA MARIS TABORO
Argentina


DIOSELINA IVALDY DE SEDAS
Panamá


BLANCA LUZ RAMIREZ
Colombia


CRISTINA OLIVEIRA CHÁVEZ
USA

MENÇÕES HONROSAS

MARIA ORETO M. SANCHES 
Espanha

RAMÓN ROJAS MOREL
Argentina

NELLY NOEMI NICOLOSI
Argentina

CLAUDIO  GARIBALDY MARTÍNEZ
Rep. Dominicana

MENÇÕES ESPECIAIS

HÉCTOR  JOSÉ  CUERVO
Argentina

ÁNGELA DESIRÉE PALACIOS
Venezuela

 MARIA ORETO M. SANCHIZ
España

 JOSÉ HÉCTOR RODRIGUEZ
Argentina

DESTAQUES

CATALINA MARGARITA MANGIONE
Argentina

 DANIEL SALVADOR NICOLOSI
Argentina

ELIZABETH LEYVA RIVERA
México

JOSÉ HÉCTOR RODRIGUEZ
Argentina

LÍBIA CARCIOFETTI
Argentina

MARIA CRISTINA FERVIER
Argentina

MARIA CRISTINA FERVIER
Argentina

MANUEL SALVADOR LEYVA MARTINEZ
Argentina

CONCURSO ESTUDANTIL DE TROVAS
ESCOLA DÉCIO MARTINS COSTA


TEMA ATITUDE (L/F)

VENCEDORAS


NATASCHA SANTOS


EZEQUIEL TRINDADE

MENÇÕES HONROSAS
MARIA EDUARDA GAMA

EZEQUIEL TRINDADE

BRUNA PIRES CAPELLETTI PERES

MENÇÕES ESPECIAIS
FLÁVIA ALESSANDRA JESUS BUENO

JOÃO VITOR CRUZ DA CUNHA

BRUNA PIRES CAPELLETTI PERES

Fonte:
A. A. de Assis

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Francisco Sobreira (Isa)

Ele a viu aparecer em uma das duas entradas que davam acesso ao bar, de repente estacar, movendo os olhos na direção dos poucos fregueses ali presentes naquele começo de noite. Ele estava em uma mesa perto da entrada de onde ela surgira, na parte do bar que não era coberta, e o rosto voltado para o mesmo local, de maneira a ser facilmente reconhecido. Ainda assim, achou necessário acenar-lhe com a mão, e o gesto, ele não deixou de perceber, apesar de estar tão atento à chegada dela, chamou a atenção dos outros fregueses. Ela acenou também, talvez mais para demonstrar que o vira, e apressou o passo na direção dele, que se levantou para recebê-la. Trocaram beijinhos, ela sentou-se e ele perguntou se o acompanhava na cerveja. Ela preferiu um refrigerante diet.

“Pensei que não viesse mais.”

“Quase que eu não vinha. Relutei muito, antes de me decidir a vir.”

“É, já pelo telefone você resistiu muito à minha proposta de nos encontrarmos. Por que, Isa?”

Ela, que estava com as mãos juntas, afastou-as com um gesto largo, como a sublinhar a resposta.

“Mas eu lhe disse por quê. Achava e continuo achando inútil este encontro.”

“Tudo bem. Mas o que quero ouvir de você é uma razão plausível para não continuarmos. Por que você diz que não dá certo continuarmos?”

Ela ia começar a responder, mas reteve a fala quando notou o garçom se aproximar da mesa, trazendo o refrigerante e um copo. Puxou a argola da latinha, despejou parte do conteúdo no copo, quase o enchendo, sorveu um longo gole, depois do que pôde responder a pergunta.

“Você disse que queria que lhe desse uma razão plausível, não foi? Pois muito bem. O caso é que não sou livre.”

“Não é livre? Como assim?”

Ele alteou a voz, outra vez atraindo a atenção das pessoas sentadas nas mesas próximas. Ela encostou o indicador nos lábios e moveu os olhos para os lados.

“Desculpe, Isa (ele baixou sensivelmente a voz). É que fui surpreendido pelo que você acabou de dizer. Explique­-se melhor.”

“Eu não sou livre. Já lhe disse”

Ele bebeu um longo gole, depois tirou um cigarro da carteira sobre a mesa e o acendeu. Parecia buscar na bebida e no fumo o apoio necessário para não perder a calma.

“Mas, Isa, você não me garantiu que era sozinha? Não foi você que quis que ficássemos na sua própria casa, com aquele papo de que não se sentiria à vontade num motel? Não foi?”

Ela não respondeu, ele repetiu não foi? ela disse foi.

“E então? Que história é essa de que não é livre?”

“Eu menti pra você. Mas agora vou dizer a verdade: eu vivo com um homem há muitos anos. E eu amo esse homem.”

Ele soltou uma risada curta, sem ligar para a curiosidade dos fregueses, nem para a censura gestual que ela podia fazer, mas que não fez. Em seguida ele disse:

“Você tá querendo gozar com a minha cara.”

“Bom, se você não acredita, não posso fazer nada. Acho que não tenho mais nada a fazer aqui.”

Ela fez menção de se levantar, mas ele a reteve com um gesto de mão.

“Queria que você me respondesse com toda a sinceridade de que for capaz. Eu não signifiquei nada pra você?”

A mirada de Isa teve a duração de um piscar de olho. Logo em seguida ela baixou o rosto e não disse uma palavra.

“Não é mais preciso responder. Está muito claro pra mim. Só não está claro é você ter aberto a sua casa para alguém que não representou nada pra você, já que você ama o homem com quem habita nessa mesma casa. Seria pedir demais, Isa, que esclarecesse pra mim essa parte obscura do nosso relacionamento?”

“Você quer mesmo saber?” (Ela tinha levantado o rosto e de novo o encarou.)

“É tudo o que quero saber.”

“Será que vai suportar ouvir a verdade?”

“Vá em frente, Isa.”

Ela esfregou uma mão na outra, como se as mãos estivessem úmidas e precisassem ser aquecidas.

“Não sei como dizer isso.”

“Vá em frente, Isa,” ele repetiu, já com uma certa impaciência.

“Bom. Você foi um... uma... digamos... uma espécie de instrumento...”

“Instrumento?”

“Como os outros...”

“Outros? Houve outros homens?”

Ela estava de novo curvada, insistindo em atritar as mãos.

“É ele, sabe? Precisa que eu faça... O caso é que ele... Eu tenho... tá entendendo?... que ter contato com outros homens...”

Calou-se de repente, como se aquelas palavras lhe tivessem exigido um esforço sobre-humano, deixando-a sem fôlego para prosseguir. Também calado, ele olhava para aquela mulher com a cabeça quase derreada sobre a mesa, indeciso entre a compaixão e o desprezo. Por fim disse:

“Você já pode ir.”

Ela se ergueu, sem olhar para ele, e, sem um mínimo gesto de despedida, afastou-se em passos rápidos. Já ele não tirou os olhos de Isa, até vê-la desaparecer.

Fonte:
http://contosbrasileiros.blogspot.com.br/2007/10/francisco-sobreira.html

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Rufina

O homem é um ser tão mesquinho, que onde quer que ele se ajunte logo lhe sobrevem, pelo número, uma alma coletiva, embora muito rudimentar.

A multidão que se ensardinhava em redor do orador tinha visivelmente a sua; toda ela se agitava num só ritmo, gritava com uma só voz e se enchia de braços erguidos como um só bicho a eriçar-se numa só contração momentânea. O bonde também a possuía mas indiferente, comodista e escarninha.

Uma contava o seu tempo pelo mostrador pequeno, a outra media o dela pelo quadrante maior. Eram duas entidades inconciliáveis, vivendo em duas esferas distintas e irredutíveis da duração.

As duas almas se olhavam sem se compreender: nem a da rua se aplacava, nem se inflamava a do bonde. Dois mundos com trajetórias opostas, um em ebulição, outro frio.

Um começo de automática hostilidade pairava entre um e outro. Viesse um pequeno impulso, e os dois sistemas talvez se engalfinhassem com cega violência, como dois içás colocados rosto a rosto mecanicamente assumem o papel de inimigos de morte, e se agarram e se estraçalham com um santo e inconsciente heroísmo.

Não me esquecerei tão cedo de um casal de namorados que vinha hoje no bonde.

Gente do povo, gente humilde, dessa que não transpôs ainda o limite em que o indivíduo ignorante e simples começa a ver e a querer copiar atitudes, maneiras e atos de uma camada superior. Era, portanto, de uma espontaneidade inocente e quase animal a ternura com que os dois se enlaçavam, tecendo cada um, em redor de ambos, uma teia isolante de carícias, -mãos dadas, olhos compridos, falas em tom velado e plácido, e um permanente sorriso da mais pura e imbecil felicidade.

Ele, um latagão carpintejado à larga; ela, uma bezerrinha forte e carnuda, com uma pele esticada e quente e uns cabelos ásperos e crespos de lavadeira tostada ao sol. Simpáticos. Talvez belos, não tanto dessa "beleza do diabo" (dizem os italianos), mero efeito da mocidade e da saúde, como dessa espécie de beleza promissiva, que não entra pelos olhos, que se entrevê, que é como um esboço deixado de mão quando se encaminhava para a forma perfeita.

O meu prazer foi imaginar que o latagão era eu, que a moça era Rufina. Estávamos entregues um ao outro.

Tinha-me apropriado dela com a naturalidade com que me apropriaria do meu duplo, se ele surgisse a meu lado. Fechara-a no âmbito da minha personalidade e um desdobramento, um acréscimo, uma projeção do meu ser.

Que me importava o seu passado? A mulher que se ama não tem passado. Nasceu na véspera. É a objetivação de um acontecimento interior. Não é um ser: é um fato. É um episódio novo de uma história que vem de longe. A história, com o seu ritmo, a sua lei, a sua necessidade, a sua marcha, o seu destino, engloba, arrasta, dissolve e tinge de sua cor tudo quanto colhe através do seu derrame fluvial.

A mulher que se ama começou com o nosso amor; como disse o catalão Maragall da poesia.

... tot just ha començat
i es plena de virtuts inconegudes.

De repente, o casal desceu. O rapagão foi o primeiro à saltar, e, instintivamente, voltou-se com galante dónaire e estendeu a mão à juvenoa.

Esta pulou rápida e leve, como se tivesse recuperado instantaneamente uma aptidão perdida.

Nesse momento, aquele tosco rapaz, cabouqueiro ou lavrador, nos seus sapatões entorroados, sob o seu chapéu sujo, e aquela moça que mal e superficialmente se alindara, como uma batata apenas cozinhada e descascada, me deram a impressão de duas criaturas saturadas por séculos de galantaria e de cultura.

Eram duas sementes, e já me pareceram duas flores. Eram dois bichos do chão e pareceram-me dois pássaros esguios.

O amor gera e regenera desde que surde. A função generatriz não é um acidente da sua história, nem é a causa da sua aparição: amar e gerar é tudo um, e produz partos mais temporãos e mais estranhos do que os do ventre. Tudo começa ou recomeça, e todas as fecundidades se concentram na carne e na alma dos amantes, e o próprio mundo aparece de repente refeito, banhado das claridades e tocado da magnificência de um gênesis.

Rufina...

Ora, ora, Rufina, uma simples passageira de bonde com quem eu, passageiro de bonde, me encontrei duas vezes por acaso!

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 22

CAPÍTULO XIV

Voltou a casa às horas de jantar, e mais aborrecido do que nunca. Para isto contribuía em grande parte a insociável catadura com que o tio recebeu.

Ao entrar na alcova soltou uma exclamação:

— Pois a senhora ainda está aí? Perguntou ao dar com Ernestina estendida na cama.

— Ora esta!

— Você é um malvado! Respondeu ela com dificuldade, por causa de uma formidável rouquidão. Você é um judeu!

— Está incomodada?

A teimosa meneou a cabeça afirmativamente e explicou, mais por mímica do que por palavras, que aquela sua ida à janela a pusera naquele estado.

— Estou ardendo em febre, disse. — Seu amigo chamou um médico, foi buscar os remédios e deu-me um suadouro. Creio que vou transpirar. É preciso não abrir a janela.

— Pois eu hei de ficar fechado aqui com este calor? Ora, minha senhora!

E o pior, pensava ele, é que estou sem vintém.

Entretanto, desceu ao banheiro, lavou-se, mudou de roupa e, antes de assentar à mesa de jantar, chamou pelo Caetano e, entregando-lhe o seu relógio e a sua corrente, ordenou-lhe que levasse esses objetos a uma casa de penhores.

— Irei depois, objetou o criado: — Por enquanto tenho de servir o jantar.

— E o Sabino?

— O Sabino desapareceu há três dias.

— Bem, nesse caso irás depois.

E mais baixo:

— A Ernestina almoçou?

— Bebeu um caldo. O médico recomendou que não lhe dessem nada de comer.

— Bom. Não te descuides dela.

— É verdade, acrescentou o criado, — Aqui está urna carta de Minas para vossemecê.

— Por falar nisso: o Hipólito chegou; já sabias?

— Ainda não senhor. Vossemecê falou com ele? Como ficou sinhá Gemi?

— É dela justamente esta carta. Vejamos.

Querido sobrinho — Teu tio segue amanhã para aí, vai tratar da compra de um engenho e conta demorar-se um mês ou mais: desejaria eu que o 'procurasse logo que esta recebesses. Ele há de falar-te sobre um pedido que lhe fiz a teu respeito: é uma questão de mesada, visto que, segundo me consta, tens, aí, depois da morte de teu pai, lutado com grandes dificuldades. Eu, se há mais tempo não fui ao teu socorro, é porque teu tio está cada vez mais apertado em questões de dinheiro e não queria por coisa alguma entrar em acordo comigo Mas agora consegui dele prometer-me que te havia de procurar e que te daria 50$ por mês; não é muito, bem sei, mas com esse pouco e alguma boa vontade poderás continuar os estudos, que muito lamento haveres interrompido.
Acredita, meu filho, que, se a coisa dependesse só de mim, não chegaria a sofrer a menor privação; posto que nunca te lembres desta tua pobre tia, que muito te ama e quer.
Adeus.
Receba um abraço, dá lembranças ao Caetano e, quando puderes, vem fazer um passeio à fazenda.

O criado, que ouvira atentamente a leitura, chorava de alegria, quando o amo acabou a carta.

— Sim senhor! Gostei! Exclamou ele — não esperava outra coisa de sinhá Gemi!

— E no entanto, respondeu Teobaldo, nada disto me adianta, pois já estive hoje com meu tio e recusei de antemão a mesada!

— Pois vossemecê recusa a mesada de sua tia?

– Não é por ela, é por aquele malcriado do Hipólito.

— Vossemece faz mal.

— Embirro com ele. Acabou-se! E erguendo-se da mesa: — Mas que ainda fazes aí? Dá-me o café e vai onde mandei. Anda! — Então! Não te mexes?

Caetano dirigiu-se para a porta, mas voltou hesitando

— Então! Fez Teobaldo.

— É que, se vossemecê permitisse... Eu tenho aí algum dinheirinho, que...

— Não, não, obrigado, meu amigo, não te incomodes; desejo mesmo empenhar o relógio... Anda! Vai!

— Então faça ao menos uma coisa...: empenho-o em minhas mãos; sempre é mais seguro...

— Ah! Que és mais impertinente do que o próprio Samuel! Disse o rapaz.

E o Caetano, aproveitando esse bom humor, correu ao seu quarto e voltou com uma pequena caixa de folha.

— Vossemecê tenha a bondade de servir-se...

Teobaldo retirou duas notas de vinte mil réis.

— Estás satisfeito, usurário? Não sabia que era essa a tua vocação!

— Agora, Vossemecê faz-me um favor...

— Ainda?

— É de guardar-me esses objetos; podem roubá-lo e...

— Mas, que diabo! Eu não devo ficar com o dinheiro o com o penhor!

— Vossemecê pagará depois os juros...

— Também já entendes de juros, hein?...

— Oh! Se entendo... Fosse vivo nho Miló, coitado! Que ele lhe daria as contas que eu sabia fazer de cabeça?... Nunca me passaram a perna num vintém!

— Pois olha, se com todos fazias negócios desta ordem, podes limpar as mãos à parede!

O velho, satisfeito com o que acabava de dar-se, prendeu por suas próprias mãos a corrente ao colete do amo, meteu-lhe o relógio na algibeira e afastou-se receoso de comove-lo com a sua presença.

Logo depois Teobaldo saiu e dirigiu-se diretamente para o colégio onde trabalhava o Coruja.

Encontrou-o ainda ocupado com a última aula e dispôs-se a esperar por ele.

— Tu por aqui? Disse André, quando lhe apareceu no fim de meia hora.

— É verdade, procurei-te para te pedir um obséquio.

— Estou às tuas ordens.

— Quando fores para casa, se ainda encontrares lá aquele estafermo, despede-o por uma vez e dize-lhe que eu não voltarei enquanto me constar que ela não se foi embora.

— A Ernestina? Mas sabes que ela está doente?

— Apenas constipada; não é motivo para não ir.

— Coitada. Ela parece gostar tanto de ti...

— De acordo, mas eu é que não tenho nada com isso. São muito engraçadas estas senhoras: entendem que um homem, pelo simples fato de que as agrada e lhes merece amor, deve ficar submisso às ordens delas.

— Mas...

— Imagina tu que vinte mulheres pensam do mesmo modo e ao mesmo tempo a meu respeito; algumas, pelo menos, ficarão fatalmente sacrificadas, porque a gente não pode dedicar-se a tantas... E note-se que nenhuma delas admite divisões de ternura; cada uma quer tudo para si e leva o egoísmo ao ponto de não consentir que o objeto do seu amor pense em outra pessoa que não seja ela! Ah! É uma bela coisa, não há dúvida!

— Escolhe uma entre todas e dedica-te só a essa. A Ernestina, por exemplo...

— Não, não quero Ernestina, como não quero nenhuma. Trata tu de despachá-la, que eu me encarrego das mais. Daqui, vou já principiar a cuidar disso; é preciso não perder tempo. Adeus.

Coruja quis ainda dete-lo:

— Olha, ouve!

— Nada! Faze-me o que te pedi e, se ela de todo não quiser sair, amanhã mesmo nos mudaremos. Adeus.

E ganhou a rua, tomando logo a direção da casa de Leonília. Durante o caminho fez ainda várias considerações sobre aquela "terrível fatalidade" que lhe prendia aos calcanhares uma inevitável cauda de mulheres. Suplício estranho, contra o qual não havia remédio possível, a não ser que ele fugisse para um lugar onde só houvesse homens.

 Teobaldo tinha um desses tipos de que em geral gostam infinitamente as senhoras de moral fraca. Nele tudo parecia feito de propósito para cativá-las: os seus grandes olhos apaixonados, ora ternos, ora atrevidos, tão prontos a desmaiarem de amor como a ferirem com arrogâncias; o seu pequeno bigode crespo, arrepiado; a sua boca desdenhosa, aristocrata e sensual a um tempo; a sua fronte de homem de talento, sobre a qual uma bela cabeleira caía em anéis que se agitavam ao menor movimento da cabeça; o seu largo pescoço de estátua, pálido e rijo como o mármore; o seu perfil sereno e firme, orlado pela fina transparência da epiderme; as suas mãos longas e formosas; o seu porte gracioso e desafetadamente altivo; a sua voz Insinuante e ligeiramente irônica; a sua verbosidade original, cheia de espírito e alheia aparentemente ao efeito que levantava; tudo isso, e mais os pequeninos nadas do seu todo, que ninguém poderia determinar, mas que todos sentiam como se sente um perfume sem saber donde ele vem: tudo isso parecia destinado a encher de sonhos a fantasia das mulheres ávidas de ideal. E cada uma delas via nele o homem ambicionado; e cada uma, por amá-lo como as outras, entendia-se com o direito exclusivo de persegui-lo.

Triste martírio para quem, como Teobaldo, não queria aceitar favores de qualquer gênero que fosse, e para quem era necessário cuidar seriamente do futuro. E a graça é que a pobreza, a que ele se via agora reduzido, longe de ser uma barreira de resguardo contra aquela invasão, era como que um novo atrativo ajuntado aos seus encantos. E quanto mais fugia delas, com tanta mais insistência o rebuscavam; quanto era maior a sua indiferença, tanto maior o empenho que elas faziam. Se as tratava pelo modo por que tratou Ernestina, se as ameaçava, se lhes chegava a bater, como fizera a diversas, então é que o não deixavam de todo e a perseguição contra o belo desgraçado tomava um caráter horroroso.

E ele, que a princípio com isso se divertia, chegando até a julgar-se lisonjeado no seu amor-próprio, já por último andava sinceramente aborrecido com tanto amor; já o irritavam os beijos soluçados e as delirantes palavras de ternura. — Ah! Não queria ouvir falar em paixão, e fugia de certas mulheres como um criminoso foge da polícia.

A Ernestina, então, uma atriz de segunda ordem em tudo, mas que não perdia as esperanças de conquistá-lo, essa o trazia num cortado. Era bispá-la, quebrava ele a primeira esquina, metia-se no primeiro corredor, enfiava pela primeira escada, e, apesar disto, não conseguia escapar-lhe, porque o demônio da mulher parecia ter faro de cão matreiro.

Quando ele chegou à casa de Leonília, disseram-lhe que esta havia-se mudado para um hotel na Tijuca, porque o médico assim lho ordenara.

— Está doente? Perguntou Teobaldo.

Responderam-lhe que sim, que lhe aparecera febre, uma enorme sobreexcitação nervosa, fastio e dores na caixa do peito.

Entrou na alcova: O isolamento desta, em vez de o impressionar desagradavelmente, trouxe-lhe ao contrário um certo prazer íntimo de quem se vê livre de uma maçada que já tinha como inevitável.

Deitou-se na cama e tomou um livro que estava sobre o velador. Dentro do livro havia uma carta sobrescritada para ele.

— Escreveu-me, mas não se animou a remeter-me a carta, pensou, abrindo-a. Teobaldo.

“És um miserável. Melhor seria que, em vez de procederes infamamente para comigo, como acabas de proceder, me houvesse falado logo com toda a franqueza e tivesse me mandado para o diabo. Seria mais simples e muito mais digno. Até hoje homem nenhum teve a petulância de fazer-me a vigésima parte do que tens feito; envergonho-me de me haver iludido ao ponto de contar, já não digo com o teu amor, que tu só amas a ti próprio, mas ao menos com o teu reconhecimento, que era dever teu para comigo.

Saíste-me vulgar e mesquinho como os outros — Paciência!

Ontem fui â tua casa; mas, ao subir as escadas ouvi uma voz de mulher, espiei pela fechadura, vi-te a discutir e a ralhar com uma sujeita; alguma cena de ciúmes! Quis entrar e confundir a ambos, resolvi, porém, não ligar tanta importância a um fato que afinal não a merecia, e sal com a intenção de nunca mais te procurar. “Ao chegar á casa, ardia em febre; à noite não pude me levantar da cama; veio o médico, aconselhou-me todo o repouso, e que eu evitasse contrariedades e que, mal me achasse em estado de sair, procurasse um arrabalde bem tranqüilo e salubre”.

“Não sei qual é a minha moléstia, posso apenas afiançar que estou muito doente, nervosa a um ponto de fazer lástima, sem poder comer e sem poder dormir; a boca muito amarga, a caixa do peito muito dorida, e que a causa de tudo isso, — És tu”.

“Não obstante perdôo-te, porque não és o culpado de te amar eu tanto”. Só desejo que nunca te façam passar pelo que me tens feito sofrer.

“Adeus”.
Amanhã sigo para a Tijuca, e é natural que em breve esteja de viagem para a Europa. Se quiseres me ver antes disto procura-me e, se não queres, remete-me o teu retrato. Adeus.

Assinara o nome dela.

— Sempre a mesma coisa!... Pensou Teobaldo com um gesto de aborrecimento; mas foi interrompido pelo criado, que vinha fazer entrega de uma carta que deixara a senhora.

— Uma carta!... Para mim!... Perguntou o rapaz.

— Sim, para o Sr. Teobaldo.

Lembrou-se este então de que a outra, que acabava de ler, não lhe tinha sido remetida e abriu a nova com uma certa curiosidade.

Querido Teobaldo.
Peço-te que não me procure. Deixo esta casinha por interesses particulares e é natural que do lugar a que me destino siga logo para a Europa. Sou inconstante, perdoe, é uma questão de temperamento
Adeus. Seja feliz!

Teobaldo sorriu ao terminar a leitura.

— Coitada! Disse consigo. — Foi infeliz! Esqueceu-se de inutilizar a outra carta, sem o que talvez produzisse esta o efeito a que se destina. Definitivamente não nasci para sofrer pelas mulheres!…

E ganhando de novo a rua:

— Daqui nada mais tenho a recear! Desta estou livre!

Ao entrar na cidade encontrou logo o Aguiar.

— Amanhã, hein? Disse-lhe este, não te esqueças!

Teobaldo já se não lembrava de que.

— Oh! Homem, da festa de meu tio! Amanhã é o dia dos anos de Branca.

— Ah! Sim! É bem possível que eu vá.

E seguiram juntos para tomar alguma coisa.
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continua...

Anderson Soares Gomes (“As aventuras de Pi”: fé na ficção e os limites da narrativa)

Título: As Aventuras de Pi
Diretor: Ang Lee
Roteirista: David Magee
Atores principais: Suraj Sharma, Irrfan Khan, Rafe Spall
Ano: 2012
País: EUA/Taiwan
Duração: 127 min


Lançado em 2012, As Aventuras de Pi foi uma das mais premiadas produções cinematográficas do ano. Vencedor de quatro Oscars, o filme do diretor Ang Lee atingiu um nível de popularidade igual ou maior ao do beste-seller A Vida de Pi, de Yann Martel, que serviu de fonte para a adaptação para o cinema. O romance A Vida de Pi pode ser resumido em apenas uma frase: um garoto e um tigre estão em um bote salva-vidas no meio do oceano. A engenhosidade narrativa com que Martel conduziu a história rendeu ao autor inúmeros prêmios literários (inclusive o prestigioso Man Booker Prize) e um sucesso de vendas, mas também uma acusação de plágio por parte da crítica ao serem notadas semelhanças indiscutíveis entre o enredo de A Vida de Pi e o livro Max e os Felinos, de Moacyr Scliar, lançado vinte anos antes. Inicialmente relutante em confessar a (mais do que) inspiração, as edições atuais de A Vida de Pi têm um agradecimento especial a Scliar.

É bastante curioso que A Vida de Pi, para além de suas qualidades literárias, tenha suscitado uma polêmica tão grande com relação aos limites da criatividade e da originalidade quando esse é justamente um dos temas centrais de seu enredo. A jornada individual pela qual passa o protagonista tem relação direta com sua habilidade de criar histórias que ultrapassem a discussão sobre o que é possível ou verdadeiro. Se a moldura narrativa de Martel foi construída a partir da ideia de Scliar, a moldura narrativa das histórias de Pi são sua própria existência.

O filme As Aventuras de Pi (a “vida” sem “aventuras” parece ter sido insuficiente para o título em português) traduz tais discussões, para além do terreno literário, de maneira brilhante. Em primeiro lugar, o filme faz uso bastante criativo da linguagem 3D. Recurso dos estúdios norte-americanos atualmente para aumentar a renda da bilheteria, o 3D acabou se tornando uma espécie de estratagema para seduzir o público a ir ao cinema (cada vez mais ameaçado como modelo negócios com o avanço das TVs de alta definição e da banda larga de internet). Todavia, As Aventuras de Pi é uma feliz exceção: o filme se junta a uma pequena lista de produções (Avatar e A Invenção de Hugo Cabret são outros notáveis exemplos) que realmente usam dessa tecnologia para inovar a narrativa. O prólogo com um quê de realismo mágico que envolve o protagonista em um zoológico na Índia, a história da surrealmente límpida piscina pública de Paris e, obviamente, toda a sequência com o tigre no meio do oceano, adquirem uma atmosfera de hiperrealismo com o efeito 3D. Ao explicitar uma transposição fantástica que mimetiza o real, As Aventuras de Pi indica, de forma auto-reflexiva, a categoria de (meta)ficção nas histórias contadas por seu protagonista.

As Aventuras de Pi também sugere suas origens literárias de diferentes formas. O protagonista, por exemplo, aparece lendo livros em três fases distintas de sua vida. Quando criança, na escola, lê A Ilha Misteriosa, de Júlio Verne. Já na adolescência, aparece lendo em uma cena Notas do Subsolo de Dostoyevsky e, em outra, O Estrangeiro de Albert Camus. Na sequência em que aparece lendo os dois últimos livros, Pi afirma que se sentia inquieto, dizendo que procurava algo que desse significado à sua vida.

Inicialmente, esse sentido para a existência é proporcionado por uma imensa fé, ilustrada pelo fato de Pi se tornar devoto de três religiões diferentes: o Hinduísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Enquanto sua mãe apoia esse sincretismo inusitado, o seu pai vê nas religiões um artifício para enganar o homem, baseando suas decisões inteiramente na lógica e na razão – como afirma o Sr. Patel, “acreditar em tudo ao mesmo tempo é o mesmo que acreditar em nada.

A principal qualidade de As Aventuras de Pi consiste em mostrar, entre uma vivência mais racional ou mais religiosa, um terceiro caminho: o da ficção. É apenas quando narra o real de forma imaginativa que Pi consegue afirmar a sua identidade. Não é à toa que ele se pergunta sobre um significado para a vida no momento em que lê os romances – é a ficção que dá a Pi o estofo para suportar a carga da realidade. Até mesmo a sua devoção religiosa na infância ilustra isso, pois o que o atraíam eram justamente as narrativas das diferentes versões de Deus e da Criação. Após 227 dias em um bote no meio do oceano, tendo um tigre de bengala chamado Richard Parker como companhia, abandonado por Deus e pelo racionalismo, Pi encontrará na ficção o sentido máximo da existência.

Contar histórias faz parte da existência diária do protagonista. Desde o momento em que inicia a conversa com o escritor canadense, Pi o inunda de histórias: como seu tio, Mamaji, teve seus pulmões superdesenvolvidos; o episódio de Mamaji na piscina pública de Paris e como isso se relaciona com seu nome, Piscine; toda a sequência de como ele conseguiu convencer de que o chamassem apenas de “Pi” na escola; o erro na documentação que fez o tigre se chamar Richard Parker; e, claro, a história do bote no oceano.

Mesmo sendo storytelling parte constante de sua vida, Pi também deixa transparecer um lado racional e lógico que demonstra que “ficção” está longe de significar o mesmo que “mentira”. O seu próprio nome, “Pi”, vislumbra isso. Não é apenas o nome que Pi partilha com o número da constante matemática. Assim como o número irracional, Pi também é inconstante, não está na Índia nem no Canadá, vai além dos limites da razão e, especialmente, tem uma carga reflexiva que se estende até o infinito. O racionalismo também se faz presente na própria profissão de Pi: ele é um professor de teologia que procura, academicamente, ensinar os princípios de cada religião. Não satisfeito em ser cristão, hindu e muçulmano, o Pi adulto confessa que também dá um curso sobre Cabala na universidade.

Quando o bastante imaginativo Pi começa a contar sua jornada épica pelo oceano ao escritor (que, ironicamente, está passando por um bloqueio criativo), não parece ser coincidência que o nome do navio que afunda é Tsimtsum, um termo cabalístico. Na Cabala, tsimtsum é a manipulação da energia criativa para a criação de mundos, o que sugere que, a partir daquele momento da narrativa, estaremos embarcando, junto com o protagonista, em um mundo concebido pela imaginação. O nome dado ao tigre – Richard Parker – também é resultado de uma elaboração bastante engenhosa. Primeiramente, o nome remete à história real do naufrágio de um navio inglês em 1884, onde apenas quatro membros da tripulação conseguiram sobreviver em um barco salva-vidas. Desesperados e sem suprimentos, eles matam o mais jovem entre eles e o devoram. O nome do rapaz morto era Richard Parker. Outra origem para o nome é o romance A Narrativa de Arthur Gordon Pym, publicado por Edgar Allan Poe em 1837. Em um episódio do romance, o protagonista Pym e um amigo, tomados pela fome e desesperança, alimentam-se de um homem chamado Richard Parker. O curioso é que o romance de Poe foi publicado aproximadamente cinquenta anos antes do naufrágio do navio inglês. A presença de um tigre chamado Richard Parker em As Aventuras de Pi serve como indicador dessa aproximação entre ficção e realidade, tão importante para compreender a narrativa contada por Pi.

Após o naugrágio do Tsimtsum, Pi se encontra no bote salva-vidas, tendo como companhia uma zebra, uma hiena, um orangotango e um tigre de bengala (é a “arca de Pi”, tal como o próprio protagonista descreve a situação). Quando os imperativos da cadeia alimentar se fazem presentes, Pi passa a ter apenas Richard Parker como companheiro de sua jornada pelo oceano. A presença do elemento água em toda a narrativa de Pi tem uma carga simbólica em diversos momentos: em seu próprio nome, Piscine; quando é apresentado ao Hinduísmo, vendo os barcos iluminados na água; quando é apresentado ao Cristianismo, bebe a água benta e depois o padre lhe oferece água; na piscina de água doce da ilha misteriosa; e, é claro, na água do oceano que o rodeia. Essa fluidez da água reflete a própria maneira como Pi conta a sua história: maleável, contínua, mas sinuosa.

O oceano em si pode ser lido como a representação desse espaço altamente liminar, levando-nos para além da rigidez de identidades. O oceano é um espaço, não um lugar, terreno do transporte e da transformação, que constantemente mistura e combina seus próprios elementos. Dessa forma, não há espaço, na narrativa, para Pi se considerar um rei ou colonizador. Pi é um Robinson Crusoé contemporâneo, que a qualquer momento pode ser devorado pelo seu Sexta-Feira felino.

Quando está no bote, Pi busca novamente refúgio na narrativa para superar o fardo de uma situação extrema. Ele escreve um diário de bordo descrevendo seu cotidiano e seus pensamentos, assim como uma tradicional mensagem na garrafa (no seu caso, um lata de água) pedindo por socorro. O personagem afirma que “palavras são tudo que eu tenho para me agarrar”. Na condição de náufrago, pode se entender que as palavras de sua narrativa são o verdadeiro bote salva-vidas de Pi. Da mesma forma, o Pi adulto – sujeito diaspórico entre a Índia e o Canadá, sem origens, sem família, sem raízes – tem apenas as suas palavras (histórias) para se agarrar no meio do oceano da existência.

Uma das passagens mais interessantes do filme é quando Pi chega a uma ilha misteriosa (ecos de Júlio Verne) surgida no meio do oceano. A ilha, na verdade uma grande formação vegetal, serve de porto seguro para Pi quando achou que tudo estava perdido. Aparentemente paradisíaca, a ilha, porém, possui um lado letal: à noite, ela se torna carnívora, devorando todos os animais que nela se encontram.  Visualmente, essa é uma das sequências mais espetaculares de As Aventuras de Pi, repleta de momentos encantadores (os lêmures), mas também sinistros (o dente na fruta). O fato de a ilha ter o formato de uma pessoa deitada (morta?) realça o seu aspecto estranho.

Ao final de As Aventuras de Pi, após ser resgatado na costa do México, o protagonista é confrontado por burocratas japoneses, representantes da empresa dona do navio Tsimtsum, que querem saber a razão do naufrágio e a verdade dos fatos. Os japoneses se recusam a acreditar no relato de Pi sobre sua sobrevivência com os animais no bote, achando-a fantástica demais e repleta de incongruências. Os japoneses dizem que não podem escrever essa história no relatório, demandando a Pi uma história “em que pudessem acreditar”. Pi então conta uma outra versão, bem mais realista: ele teria sobrevivido no bote com sua mãe, um cozinheiro de má índole (vivido em cena breve por Gerard Depardieu) e um marinheiro amigável. O cozinheiro teria assassinado o marinheiro e também a mãe de Pi que, para se vingar, o mata. Essa história é análoga à dos animais, sendo os personagens entendidos de forma dupla: marinheiro/zebra, cozinheiro/hiena, mãe/orangotango e Pi/tigre. Após ouvir a versão brutal e factual de Pi, os japoneses preferem escrever no relatório a versão dos animais. Conversando com o escritor canadense, Pi pergunta qual seria a “melhor história”: a com os animais ou aquela com os humanos. O escritor diz, então, que prefere a história com os animais, ao que Pi responde: “com Deus é a mesma coisa”.

Tanto o romance A Vida de Pi quanto sua adaptação cinematográfica enfatizaram muito, em sua estratégia de divulgação, o mesmo discurso usado por Mamaji para convencer o escritor canadense a procurar Pi: a história dele o fará acreditar em Deus. Na verdade, Pi usa duas versões do mesmo episódio para ilustrar duas abordagens com relação à realidade: uma mais coerente e lógica; outra mais fantástica e imaginativa. Ao final, ele pergunta qual é a “melhor história”. Ao escolher a versão com os animais como a melhor, o escritor canadense percebe que é melhor entender a realidade por meio da ficção do que buscar sentido apenas na crueza dos fatos.

A partir desse ponto de vista, se faz necessária a narrativa religiosa, repleta de símbolos, alegorias e parábolas. Afinal, Pi suporta a dor de tudo pelo qual passou justamente por representar as suas perdas e traumas por meio de uma narrativa de sobrevivência de cunho fantástico, ou seja, diferentemente de seu pai, Pi prova que a existência também se torna mais serena quando se acredita em algo que foge à razão. Dessa forma, As Aventuras de Pi aproxima a religião da ficção, já que ambas são formas de contar essa “melhor história”.

Ao mesmo tempo filme de aventura, reflexão filosófica e estudo metaficcional, As Aventuras de Pi é uma das mais tematicamente ricas produções do cinema recente. Apresentando um deslumbre visual e questionando a natureza da própria narrativa, é um filme que indaga sobre os limites da fé, da ficção e da forma como que compreendemos a realidade.

Fonte:
Revista Espaço Acadêmico - Mensal - Ano XI – Julho de 2013 – Ensaios sobre Cinema
Editor: Antonio Ozaí da Silva (UEM).

domingo, 4 de agosto de 2013

Francisco Sobreira (A Pantera)

Bonita. Muito bonita. Os olhos bem abertos, agateados, que davam ao rosto um ar de pantera, a boca parecendo ter o tamanho certo – nem grande, nem pequena. Os braços – e aí um pequeno senão na sua beleza – eram um pouco musculosos, assim formados, certamente, por exercícios em uma academia. Quando a viu pela primeira vez, ela surgindo de repente, com o olhar provocador, foi tomado por uma sensação estranha. Um impacto. Ou, antes, um susto pelo inesperado da presença da moça, como algo ameaçador, embora revestido de beleza. Ela estava colada à vitrine da parte lateral de uma perfumaria, localizada num centro comercial. O que sentiu, de tão forte, quase como se percebesse uma ameaça de agressão (e a beleza dela tinha um quê de agressivo), o fez olhar rapidamente para a moça e continuar a caminhada de todo final de tarde, dando várias voltas pelos dois longos quarteirões, no primeiro dos quais se situava aquele centro comercial. Seguiu com a imagem da moça na cabeça. Atingiu o fim do segundo quarteirão, dobrou à direita, passou em frente a um antigo colégio, depois pegou outra vez a direita e foi percorrendo os dois quarteirões do lado oposto, até alcançar outra vez o centro comercial. Era assim todas as tardes, quando começava a escurecer. Ao se aproximar da farmácia, já se sentia preparado para não sofrer o mesmo efeito de minutos antes e foi até a vitrine, para examinar a moça. E, embora tocado pela agressividade de sua beleza, permaneceu uns dois a três minutos observando detalhadamente o rosto e a mão que segurava um frasco de perfume de nome inglês.

Ao voltar para o apartamento vazio, desfez-se da bermuda, do tênis, da camiseta, enxugou o suor do corpo, escolheu um cd, deitou-se na cama para ouvi-lo. Como fazia todas as tardes, antes de tomar banho e depois comer o jantar frugal. Mas daquela vez ocorreu uma quebra na rotina. Ele ouvia as músicas, mas sem a mesma concentração. Em algumas músicas até que a concentração era inteira (talvez porque fossem as de que gostasse mais), já em outras a imagem da moça se sobrepunha e ele não tinha força para rejeitá-la. Quando mais tarde foi ler, em muitos momentos parecia “ver” a moça presente no relato. Houve uma vez que ao ler a descrição dos olhos de um personagem feminino, imaginou que eles fossem iguais aos dela. Interrompeu a leitura e, com o livro seguro na mão, pôs-se a pensar na moça. E pelo resto da noite não conseguiu livrar-se da sua imagem e teve a certeza, ao deitar-se, de que ela apareceria num sonho, mas isso não ocorreu.

No dia seguinte, ao despertar, o primeiro pensamento foi para ela. Rápida, veio a resolução de tomar a providência de evitá-la, alterando o itinerário da caminhada. Ficou cada vez mais distante da perfumaria, na certeza de que, não vendo a moça, ela sairia da sua cabeça. A providência deu resultado, mas não imediato, por alguns dias a imagem da moça, o ar de pantera, o rosto de uma beleza perfeita surgiam, de repente, por entre as páginas de um livro, no meio de uma música, na tela da televisão. Até que um dia ela desapareceu, afinal. Experimentou uma grande satisfação, como se tivesse ganho um prêmio. Com o passar do tempo, livre dela, chegou a pensar em vê-la outra vez, pois acreditava que não iria lhe acontecer mais nada, a não ser a indiferença. Saiu uma tarde disposto a retomar o antigo itinerário, mas, ao chegar a poucos metros da perfumaria, algo estranho o dominou, impedindo-o de seguir. Voltou, então, pelo caminho que o levara até ali, continuando a caminhada no sentido das outras tardes. Enquanto andava, percebeu, num misto de decepção e raiva, que não estava de todo livre dela.

Um dia foi ao centro da cidade. Fazia anos que não ia lá, para não ser incomodado pelo barulho dos carros de propaganda e do número excessivo de pedintes e de pessoas oferecendo cartões de crédito, empréstimos, entregando papeizinhos de serviços diversos. Mas um amigo lhe dissera que tinha visto numa grande loja o cd que ele procurara, sem sucesso, em outros locais da cidade. Encontrou o cd, após uma busca que levou uns dez minutos, uma única unidade, escondido por outros discos, como se estivesse à sua espera. Pagou-o e, em vez de sair pela entrada, preferiu a porta dos fundos. Ao passar pela seção de perfumaria, sem um razão que justificasse o ato, como impelido por alguma coisa da qual não pudesse escapar, desviou a vista para a parede ao lado. E viu. No alto da parede, ela, os olhos parecendo mais agateados, a expressão no rosto parecendo ainda mais agressiva, olhando desafiadora para ele, dando-lhe a impressão de que quisesse saltar do pôster para cima dele. Virou-se com tanta rapidez que o corpo perdeu um pouco o equilíbrio e precisou apoiar-se numa prateleira para não cair. Logo em seguida, retomou a caminhada, apressado, esbarrando nas pessoas, sem se desculpar, ansioso para encontrar a saída. E mesmo depois de sair da loja, continuou a andar veloz, quase correndo, como se achasse que a moça, tinha de fato, saltado do pôster e, tão rápida quanto ele, viesse em seu encalço. Nem quando entrou no carro, sentiu-se livre. Em disparada voltou para o apartamento.

E, à noite, sonhou com ela.

Fonte:
http://contosbrasileiros.blogspot.com.br/2007/10/francisco-sobreira.html