quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas “Trovia” – n. 170 – fev. 2014)



Coração, nunca se vingue
de quem tanto te ameaça...
É fácil ser estilingue,
difícil é ser vidraça.
Dias Monteiro

Tu tão moça, eu tão vivido...
tantos anos de permeio.
Bem poderias ter sido
o grande amor que não veio...
J.G. de Araújo Jorge

Que falta me faz, Senhor,
um anjo de intenso brilho,
que foi exemplo de amor...
e me chamava de filho!
João Freire Filho

Meu velho criado-mudo,
minha discreta almofada,
vocês, que sabem de tudo,
por favor, não contem nada.
Lucy Sother Rocha

No cantar de uma cigarra
há tanta melancolia,
que parece ser a tarde
chorando a morte do dia...
Pedro Emílio

Ao labor ergue um tributo!
Semeia o bem, vai, semeia!
Nem que a colheita do fruto
venha a ser de mão alheia! 

Rodolpho Abbud


“Não há pão? Comam brioche!",
disse a rainha ao seu povo.
Antes um pão que o deboche,
de preferência... com ovo.
Diamantino Ferreira – RJ

Muito esquisito esse "muso",
o ancião com quem se casou:
da fortuna ela faz uso,
mas o resto... nunca usou!...
José Ouverney – SP

Que pena que uma pequena
não teve pena de mim.
E eu que dela fui ter pena
fiquei depenado assim...
J. Revoredo Neto – RN

Quando a mulher não sacia
sua “fome de leão”,
come na sogra ou na tia...
boas de forno e fogão!
Maria Madalena Ferreira – RJ

A trova se desapruma,
e dela não há quem ria,
se a rima que a gente arruma
rema rumo à baixaria...
Osvaldo Reis – PR

Meu pai, comprando fiado,
que tem palavra provou...
Prometeu ao ser cobrado:
“Eu não pago!” – e não pagou!
Pedro Ornellas – SP

O gajo, sendo um velhaco,
engajou-se bem no ofício:
– um cargo de puxa-saco
pra puxar palma em comício!
Renato Alves – RJ

A ratazana e o ratinho
brigaram feio, de fato:
foi ciúme do vizinho...
que, na verdade, era um “gato”!
Selma Patti Spinelli – SP


  

Tal qual dois rios se abraçam,
formando um só rio após,
dois “eus” pelo amor se enlaçam,
passando a chamar-se “nós”!
A. A. de Assis – PR

Lutando em favor do bem,
nossa fé nunca se abate.
Que eu possa dizer também:
“Combati o bom combate”.
Almir Pinto de Azevedo – RJ

A vida é lição constante
em tudo o que se executa,
mas só se aprende o bastante
quando chega o fim da luta.
Amaryllis Schloenbach – SP

Quando sozinhos, vigiemos
sempre o nosso pensamento;
na rua a língua que temos,
e em casa o temperamento.
Amilton Maciel – SP

Rasguei minha fantasia
nas cinzas do carnaval.
Abandonou-me a alegria,
volto agora ao meu real.
Angela Stefanelli – RJ

O amor, para muita gente,
é diversão perigosa.
Quem não sabe ser prudente
transforma em espinho a rosa.
Arlene Lima – PR

Não tema que o tema eu tema,
temas não temo, porque,
que importa qual seja o tema,
meu tema é sempre: "Você"!
Carolina Ramos – SP

Entre o sonho e a realidade,
vendo o meu filho eu pensei:
eis a mais bela verdade
de tudo quanto sonhei!
Conceição de Assis – MG

Uma prece eleve a Deus,
com fé peça hoje a cura
para alguém junto dos seus
e cure essa criatura.
Cônego Telles – PR
 

Yo llevo la primavera,
dentro de mi corazón,
por tu amor que a él le diera,
¡Su única eterna ilusión!
Cristina Olivera Chávez – USA

A noite caminha torta,
sem estrelas, sem luar...
Mesmo assim eu abro a porta
querendo te ver chegar.
Dáguima Verônica – MG

Não tens culpa, velha enxada,
desbeiçada, cabo torto,
por só colheres o nada
do ventre de um solo morto...
Darly O. Barros – SP

Eu ergo a taça a brindar
a noite que o quarto invade
e, no cristal do luar,
bebo o vinho da saudade!
Domitilla Borges Beltrame – SP

Chuvas mansas ou granizos
agradecemos em prece,
que é de lágrimas e risos
que consiste a nossa messe.
Dorothy Jansson Moretti – SP

Bendigo a mão calejada
que, num trabalho fecundo,
presa ao cabo de uma enxada,
dá cabo à fome do mundo!
Edmar Japiassú Maia – RJ

Da janela do avião
aos receios dei um fim;
Deus está na imensidão
e também dentro de mim.
Eliana Jimenez – SC

Sempre que a lágrima desce
e insiste em molhar-me a face,
eu uso o lenço da prece...
e é como se eu não chorasse...
Ercy Marques de Faria – SP

Cascata, teu pranto triste
parece que não tem fim...
Comparo ao pranto que existe
doendo dentro de mim!
Francisco Garcia – RN

Aquela rede que um dia
foi nosso ninho perfeito
hoje balança vazia
na varanda do meu peito.
Francisco Pessoa – CE

No tronco de uma mangueira
escrevi: Felicidade...
Mas alguém, por brincadeira,
riscou e escreveu: Saudade!
Gasparini Filho – SP

Nosso romance de amor
começou bem diferente...
Foi nosso computador
que aproximou mais a gente.
Gislaine Canales – RS

Nosso amor é uma certeza
dentro do meu coração;
e a luz da paixão, acesa,
apaga a luz da razão!
Istela Marina – PR

A velhice, meu irmão,
não é uma questão de idade.
É quando vai-se a ilusão
e vem chegando a saudade.
Jaime Pina da Silveira – SP

Gotinhas em cada galho,
a natureza brilhante.
Pois cada gota de orvalho
mais parece um diamante.
Janske Schlenker – PR

Hoje trago na lembrança
uma dor que sobrevive
num fiapo de esperança
pelo amor que nunca tive
JB Xavier – SP

Resto de sonho – confete –,
abandonado no chão,
na quarta-feira reflete
a amargura do salão.
Jeanette De Cnop – PR

Quando a mente se alvoroça
e vocifera no entulho,
arremeda uma carroça:
mais vazia...mais barulho.
João BX Oliveira – SP

Não há dizer que defina
o doce amor da mulher;
quando toca, mescla, ensina,
faz do homem o que quer!
Jorge Fregadolli – PR

Amor... dois copos de vinho
são nossos dois corações,
cujo sabor é o carinho
transbordando de emoções!
José Feldman – PR

Não sou pobre, sou risonho,
Tenho amor, paz e guarida.
Não tenho a vida que sonho,
Mas tenho os sonhos da vida.
José Lucas de Barros – RN

Leve toque em tua mão
revela tanto segredo:
faz bater o coração
no calor de cada dedo.
José Roberto P. de Souza – SP

Velho rio que recolhe
tantas lembranças sem fim...
És um mundo que me acolhe
no mundo que resta em mim...
José Valdez – SP

Enquanto a chuva, lá fora,
escorre pela vidraça,
choro meu pranto que, embora
passando a chuva, não passa.
Laérson Quaresma – SP

Un amigo es un hermano,
obra de amor en la tierra.
Nunca le niegues tu mano,
busca laz paz, no la guerra.
Líbia Carciofetti – Argentina

Sou criança, sou poeta,
sou menina, sou mulher.
Nesta vida a minha meta
é ser o que eu bem quiser.
Lucélia Santos – RN

Sonatas intercaladas
antes, durante e depois...
E em nossa pele, trocadas,
as digitais de nós dois!
Lucília Decarli – PR

A paz que tanto almejei,
em sonhos que não têm fim,
estava onde não busquei:
-– perdida dentro de mim!
Luiz Antonio Cardoso – SP

Do simples pó eu procedo,
sei que a ele hei de voltar;
a vida não tem segredo:
é um eterno retornar.
Luiz Carlos Abritta – MG

Palabras aún en distancia
son vida para quien ama;
pueden saciarnos el ansia
amándonos con su llama.
Maria Cristina Fervier – Argentina

Pobre vai de pé no chão,
de carona, só por sorte.
Rico estaciona o carrão
e caminha por esporte...
Marina Valente – SP

Não navego em calmaria,
minhas velas querem vento!
Se pudesse, (in)ventaria
um verso mais turbulento!
Mário Zamataro – PR

Segue, meu filho, na estrada,
os trilhos da retidão;
sê firme, em cada pisada,
que as honras te seguirão.
Maurício Friedrich – PR

Deus, com seus poderes plenos.
fez todos homens iguais.
Mas sabe que valem menos
os que pensam valer mais...
Milton Souza – RS

Revendo os porta-retratos,
que o tempo guarda, sem fim,
eu vejo, em tempos exatos,
cada pedaço de mim.
Nei Garcez – PR

Xeroquei a sua imagem
e guardei na minha mente;
sempre na minha abordagem
é você que está presente.
Neiva Fernandes – RJ

A rotina e os desencantos,
que fazem da vida um tédio,
têm alívio em nossos cantos
e, na trova, um bom remédio.
Olga Agulhon – PR

Em teu olhar fascinante,
meu coração se perdeu,
e mantém minha alma errante
plena do amor que é só teu...
Olga Maria Ferreira – RS

Pegas da pá, da marreta,
da picareta, do malho...
Pego papel, a caneta,
o pensamento... e trabalho.
Olympio Coutinho – MG

Tanto a paixão nos deslumbra
e o seu ardor nos seduz,
que, em nosso quarto, a penumbra
é pontilhada de luz...!
Pedro Melo – SP

Confesso-me um trovador,
sei que não sou dos melhores;
meu segredo é pôr amor,
para não ser dos piores.
Raymundo Salles – BA

Para ter felicidade,
ao buscá-la eu pressuponho
que, seja qual for a idade,
felicidade é ter sonho.
Rita Mourão – SP

Todo milagre é um encanto;
não há outra explicação.
Da natureza, de um santo,
da ciência ou da paixão.
Roberto Acruche – RJ

Desde criança a poesia
é a minha grande riqueza:
minha fonte de alegria,
minha eterna fortaleza.
Roza de Oliveira – PR

Grata sou profundamente
por ter na vida encontrado
o mais caro dos presentes:
bons amigos a meu lado!
Sinclair Casemiro – PR

Do nascer à despedida,
ele é sal e sol na estrada,
ele é luz em nossa vida,
sem amor não somos nada...
Sônia Ditzel Martelo – PR

Entre as pedras do caminho,
deixei um sonho disperso,
que morreu longe, sozinho,
nas rimas tristes de um verso!
Sônia Sobreira – RJ

Se  a tristeza me confina
e apaga meu brilho assim,
a   luz  da fé  me ilumina
e me defende... de mim!
Thereza Costa Val – MG

Sei que viver é lutar,
mas luto em desigualdade.
Eu sou concha e a vida é o mar
em noite e tempestade.
Therezinha Brisolla – SP

Pelos caminhos plantei
as sementes de amizade,
e um patrimônio eu herdei
colhendo a felicidade.
Vanda Alves da Silva – PR

O pai de mão calejada
bendiz ao árduo labor
pela caneta dourada
na mão do filho doutor.
Wandira Fagundes Queiroz – PR

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Jaime Vieira (Nas Asas da Poesia)


AMANHECER I

O sol amarrado
no porão da noite
escapa.
Afugenta a lua
espanta as estrelas.
Decidido vai para rua
e anuncia
um novo dia.

AMANHECER II

A madrugada vem a galope
no alazão da noite.
No céu, entre as nuvens,
o rasto que fica,
são estrelas.

AMANHECER III

o sol sonolento
lentamente
desperta
e com agulhas certas
tece o amanhecer.

AMANHECER IV

o amanhecer é
um pássaro ligeiro
leva nas asas
a escuridão
da noite.

ASSALTO

Eu só não te devolvo
estes anos de ti roubados,
porque os meus sonhos guardados,
estes sim,
num assalto, por ti
foram levados.

Roubaste-me o tempo.
Roubaste-me o sono.
Já nem sou mais dono
do meu coração.

CAIS I

Gaivotas já não
acordam a paisagem.
A tarde ancora
no porto.
Fecham-se os olhos do dia,
anoitece.

Chega a noite
em negrito,
debulha estrelas
no infinito
enquanto no porto,
ancorada em mim,
a paisagem agora
dorme.

CAIS II

Meus sonhos
adormecidos
levantaram
âncoras.

Veio a noite
veio o dia
e se atracaram
nos meus cais.

Fiquei no porto
apregoando versos
de um poema torto
ancorado em mim.

INDIFERENÇA

pêssegos ásperos
lâminas frias
estilhaços
quem diria?,
a tua frieza
aquece meu coração.

INTIMIDADE

o acordo
nosso
é tão
íntimo
que a cor do
nosso íntimo
revelar,
não posso.

MOVIMENTO

Voo da ave ferida
paisagem aberta – amplidão.
Há uma espécie de conspiração
movendo as coisas:
a vida!

NEON

quando a noite vem
uma teimosa ilusão
inventa uma lua,
é no meio da rua
que os sonhos ainda estão.

NOVO AMOR

Todo novo amor
é um conto de fada.
Pode ser tudo
pode ser nada.
Água corrente
de morro abaixo,
diante deste riacho;
refrescar os pés,
olhar as nuvens
e sonhar.

NUDEZ

atrás do biombo
das minhas ilusões
dispo-me
das decepções
que querendo ou não
a vida sempre me veste.

OS LENÇOS

pendurados no varal
meus lenços ainda úmidos
de um recente adeus
esperando o sol
ainda respingam
lentas lágrimas.

RACHADURAS

o desprezo
é uma arma dura
fere fundo,
atravessa
as armaduras
de qualquer
coração.

Fonte:
Jaime Vieira de Souza Filho. Asas. SP: EDICON, 1989.

Irmãos Grimm (Os Emissários da Morte)

Em tempos remotos, em certa ocasião, um gigante estava viajando por uma estrada muito grande, quando de repente um desconhecido apareceu diante dele, e disse, "Alto lá, nem mais um passo adiante!"

"O quê é isso!" exclamou o gigante, "uma criatura que eu posso esmagar no meio dos meus dedos, quer impedir o meu caminho? Quem és tu que te atreves a falar com tanta ousadia?"

"Eu sou a Morte," respondeu a criatura. "Ninguém pode comigo, e tu também deves obedecer às minhas ordens."

Mas o gigante se recusou, e começou a lutar com a Morte. Foi uma luta longa e violenta, mas finalmente o gigante levantou sua mão, e golpeou a Morte com um soco, e ela caiu que nem uma pedra.

O gigante seguiu o seu caminho, e a Morte ficou ali desolada, e estava tão fraquinha que não conseguia se levantar novamente.

"O que será que vai acontecer agora," disse a morte, "se eu ficar deitada aqui num cantinho? Ninguém mais vai morrer no mundo, e ele vai ficar tão cheio de pessoas que não vai haver mais espaço e eles terão de ficar um ao lado do outro."

Enquanto isso, um jovem passava pela estrada, ele era forte e saudável, e cantava uma canção, e olhava para todos os lados. Quando ele viu a criatura meio desmaiada, ele ficou tomado de compaixão, levantou o infeliz, ofereceu-lhe uma bebida restauradora que trazia num frasco, e esperou que ele se recuperasse.

"Tendes noção," disse o estranho, enquanto se levantava, "de quem sou, e de quem se trata aquele a quem ajudaste a se levantar novamente?"

"Não," respondeu o jovem, "Não conheço a ti."

"Eu sou a Morte," respondeu a criatura. "Eu nunca poupo ninguém, e não posso fazer uma exceção para você, — mas podes ver que sou grato, e te prometo que não irei te buscar inesperadamente, mas enviarei meus mensageiros para ti antes de chegar a tua hora."

"Bem," disse o jovem, "já é uma grande vitória o conhecimento de que saberei o dia da tua chegada, e que de qualquer forma estarei livre de tua presença por tempo tão longo."

Então, o jovem tomou seu caminho, e estava aliviado, e feliz consigo mesmo, e viveu despreocupado. Mas juventude e saúde não costumam viver juntos por muito tempo, logo as doenças e as preocupações começaram a aparecer, as quais o atormentavam durante o dia, e o tomavam conta dele durante o resto da noite.

"Morrer não vou," dizia para si mesmo, "pois a Morte me enviará seus mensageiros antes que isso aconteça, mas eu gostaria que estes infelizes dias de doença tivessem acabado."

Assim que ele se sentiu bem novamente ele começou a viver feliz outra vez. Até que um dia alguém bateu levemente em seus ombros. Olhou de lado, e a Morte estava diante dele, e disse,

"Segue-me, pois é chegada a hora de tua partida deste mundo,"

"O quê," respondeu o jovem, "estais descumprindo tua palavra? Não me prometeste que enviarias teus mensageiros antes que vieste definitivamente? Não vi nenhum deles!"

"Silêncio!" respondeu a Morte. "Não te mandei eu um mensageiro após o outro como prometi? A febre não veio e te castigou, te sacudiu, e te deixou prostrado? As tonturas não te povoaram a cabeça? A artrite não contraiu todos os teu membros? Os teus ouvidos não ficaram zunindo durante algum tempo? A dor de dentes não te visitou todos os dias? A escuridão não te molestou a visão? E além de tudo isso, será que o meu irmão o Sono nunca te fez lembrar todas as noites de mim? Nunca deitaste durante a noite como se já tivesses morrido?"

O jovem não conseguia responder; se resignou diante do destino, e seguiu o seu caminho em companhia da Morte.

Fonte:

Sonetos Satíricos III

AMADEU AMARAL (SP)

Um fidalgo na neblina


Uma noite, a vagar entre a neblina,
Enxergo um vulto sobranceiro e nobre,
Que de um gabão romântico se cobre
E sob um largo feltro a testa empina.

Nem a chuva a cair faz que se dobre,
Nem à rajada mais cruel se inclina.
Avanço; e, no halo de um lampião de esquina,
Vejo de perto meu fidalgo: é um pobre...

Dou-lhe uma esmola e sigo. Continua
Pisando a lama parda o Cavaleiro,
Na praça morta, sob o céu sem lua...

E eis como um triste, amargado e esquivo,
Com um pouco de distância e de nevoeiro,
Pode passar por um fidalgo altivo.

LISINDO COPPOLI (SP)

Arte moderna

(a propósito da I Bienal, em 1951)

Leonardo?!... Rafael?!... Tenham paciência!
Tudo isso não passa de bobagem.
Dom Ciccillo andou bem: teve a coragem
De acabar de uma vez co'a decadência.

A pintura moderna é arte e ciência
Das mais sublimes, pois não tendo imagem
Nem natureza morta nem paisagem,
Mais que aos sentidos, fala à inteligência.

E convém dizer isso: uma obra-prima
Das mais modernas fica muito acima
Das antigas por mais esta razão:

Que, sendo um quadro, p'ra gozar-lhe o efeito
Pode-se pendurar de todo jeito:
É a mesma coisa em qualquer posição.

MOACIR PIZA (SP)

O Botelho


Alto, ossudo, feioso; bigodeira
Farta, cobrindo a boca desdentada,
Onde fizeram túmulo, ou morada,
O Despropósito, a Tolice e a Asneira.

Cara de esbirro, amarelenta, ornada
De chato narigão, que tudo cheira;
Mole pelanca, à guisa de papeira;
Cabeça de urubu, cheia de... nada.

Olhar inexpressivo; gesto brusco;
Pirrônico, turrão, todo arrelia;
Rindo, — apavorador; sério, — patusco.

Eis o que refletira um bom espelho,
Se diante dele se postasse um dia
O papão da Estatística — o Botelho.

RAIMUNDO CORREIA
(Raymundo da Motta de Azevedo Corrêa)
São Luis/MA (1859 – 1911) Paris/França

HÓS! E AIS!

(sobre a Garota de Ipanema)

Há um certo Demócrito que chora
Vendo-a e há muito poeta que se enleia;
E um, cujo nome não me vem à idéia,
Vive a rondar a casa em que ela mora.

Até o santo apóstolo anda fora
De si e do jornal, pela sereia:
Adorou-a o Fontoura, eu adorei-a,
E o Filinto de Almeida inda hoje a adora.

Quando ela passa, abre o Silvestre a boca
E o Luís suspira as formas dela vendo
Amplas, redondas, fartas, sensuais.

Hós de espanto e ais de dor ela provoca,
Mas entre os ais e os hós passa, fazendo
Tanto caso dos hós como dos ais.

RAIMUNDO CORREIA

À mesa da gazetilha

[desafio de Correia a Lopes Cardoso]

O Maia, o Ramos, o Cardoso, o Lemos
E eu — da mesa em redor estamos;
E vários livros sobre vários ramos
Da ciência, em frente, sobre a mesa, temos.

Mas livros tão insípidos não lemos
Nós: eu, Lemos, Cardoso, Maia e Ramos;
Porquanto às letras só nos dedicamos
E só às letras nos dedicaremos.

Prosa-se. Ramos diz: "Como é grandioso
Um poema!" — Lemos diz: "Nada há que atraia
Mais que um fino dito espirituoso!"

"Mas eu prefiro um 'calembour'!" (diz o Maia)
Desmaia! É tua vez, Lopes Cardoso!
Tens a palavra! O 'calembour' que saia!

RESPOSTA DE LOPES CARDOSO

Eu e o Lemos, e o Raimundo, o Ramos...
Urramos? Isso não! apenas lemos
Lemos (o João de), que em frente temos,
E os seus versos piegas criticamos.

D'estrofe em estrofe, a chalaçar, erramos,
E Ramos, o Raimundo, o próprio Lemos...
São o diabo! uns verdadeiros demos,
Com cujos ditos gargalhadas damos!

Quanto deles o espírito eu invejo!
São inacompanháveis no gracejo,
Na pilhéria sutil, no calemburgo!

Eles, nas suas frases põem a gala
Da fina graça, que na Corte cala,
Eu, na chalaça, que só cala em burgo!

Fontes:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/satirico.htm
Imagem = Libreria Fogola Pisa (Facebook)

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) A Filha do Rei Mouro

Recolhido na Estremadura e no Algarve
===============
Um rei mouro tinha duas filhas. A mais nova queria aprender a religião e andava às escondidas com o camarista, que a ensinava. A mais velha vendo-a uma vez sair do quarto do camarista, disse-lhe:

– Deixa estar, mana, que o pai há de saber tudo.

– Ai menina! Disse o camareiro, se o rei sabe que anda a aprender a rezar comigo, estamos perdidos.

– Não tenhas medo; levanta-te de madrugada, aparelha dois cavalos e vamos para a tua terra.

Assim fez; ela encheu três sacos, um de cinza, outro de sal, e outro de carvão, e foram-se ambos por esse mundo fora. Quando o rei soube da fugida, mandou a sua tropa para agarrarem o camarista e a filha, e que os matassem onde quer que os encontrassem. A cavalaria correu a toda a brida, e estava já quase a pilhá-los, quando o camarista, olhando para trás, gritou:

– Ai menina, estamos perdidos.

– Não tenhas medo.

E a menina despejou o saco de cinza e fez-se logo um nevoeiro tão cerrado, que a tropa não pôde dar mais um passo, e voltaram para trás a dizer ao rei:


– Armou-se tamanho nevoeiro,

Que não víamos caminho nem carreiro.


O rei mandou-os avançar de novo, e que lhe trouxessem a princesa e o camarista presos.

– Ai menina, estamos perdidos! Disse o camarista vendo a cavalaria quase a alcançá-los.

– Não tenhas medo.

E despejou o saco de sal, e fez-se logo ali um grande mar, que os soldados não puderam atravessar. Voltaram outra vez para trás e foram dizer ao rei:


– Real senhor, achamos um grande mar

Que os cavalos não puderam passar.


O rei deu outra vez ordem de ir agarrar a filha e o camarista:

– Ai menina, estamos perdidos.

– Não tenhas medo.

E despejou o saco do carvão, e logo se fez uma noite muito escura, com grandes trovoadas e relâmpagos. As tropas voltaram, e foram dizer ao rei:


– Real senhor, fugimos em debandada

Com tantos raios e tamanha trovoada.


O camarista já estava perto da sua terra, e a princesa disse-lhe:

– Eu salvei-te da morte; mas agora em chegando à tua terra já te não lembras mais de mim.

Assim aconteceu. Ela com tristeza vestiu-se de viúva, e pôs uma estalagem para poder viver. O camarista convidou três amigos, e disse-lhes:

– Havemos ir cada um por sua vez pernoitar àquela estalagem.

Foi o primeiro, e disse que desejava ficar ali aquela noite. A estalajadeira disse que sim. Ele ficou muito contente. Quando foi para o quarto, começou a despir-se e a vestir-se, a despir-se e a vestir-se e ficou nisto até de manhã, em que já estava muito cansado. Assim que foi dia a estalajadeira, que tinha visto tudo do andar de cima, disse-lhe que se pusesse no meio da rua, porque tinha estado a fazer zombaria da casa. Veio o segundo, e também pediu para pernoitar; levou toda a noite a despir e a vestir a camisa, sem poder parar. Pela manhã também foi posto fora com igual descompostura. Veio o terceiro; pediu para pernoitar, e ela deu-lhe licença. Quando se ia deitar, disse que tinha muita sede:

– Pois vá ao quintal, e tire água daquele poço.

Toda a noite o pobre do homem esteve dando à nora, e só quando foi de dia é que apareceu a estalajadeira, que o fez parar e o pôs fora, dizendo que tinha vindo fazer zombaria da sua casa. Chegou o quarto amigo, e também pediu para pernoitar; ficou muito contente com a licença, porque os outros guardaram sempre o segredo do que lhes acontecera. Quando a estalajadeira estava deitada, disse:

– Ai que me esqueceu fechar a porta da rua.

– Vou eu fechá-la.

E toda a noite o hóspede andou para cá e para lá a fechar a porta da rua, até que pela manhã estava estafado, e a estalajadeira o pôs fora, por lhe querer quebrar a porta.

Os quatro amigos reuniram-se e contaram uns aos outros o sucedido. Mas ainda assim o camarista, que era um deles, não se lembrava nem por nada da amante que abandonara com tanta ingratidão. Como ele estivesse para casar na sua terra, segundo o costume, tinha de dar um jantar três dias antes do casamento às pessoas com quem vizinhava. Foi também convidar a estalajadeira viúva. Ela foi ao jantar. Quando estavam todos à mesa, combinou-se que cada um contaria a sua história:

– A senhora, apesar de estar com esse desgosto, há de também contar o seu conto.

A estalajadeira pediu que lhe apresentassem duas tigelas. Bateu com uma na outra, e apareceram um pombo e uma pomba. E disse a pomba:

– Não te lembras quando me ensinavas a rezar às escondidas de meu pai?

Disse o pombo:

– Lembro-me.

– E não te lembras quando minha irmã disse que ia contar tudo ao pai, e que disseste: Ai que estamos perdidos?

E assim foi perguntando, e o pombo respondeu a tudo o que se tinha passado com a filha do rei mouro. Só ao fim de muitas perguntas é que os convidados começaram a reparar em circunstâncias que se tinham dado com os quatro amigos, e o camarista conheceu a sua ingratidão:

– Real senhora, eu é que sou esse esquecido; e já desfaço aqui este casamento, para receber quem por mim deixou pai e mãe e a sua terra.
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Notas Comparativas

Há uma outra versão intitulada Grisme e Guiomar, nos Contos nacionais para crianças, n.º XV, Porto, 1883.

No Violier des Histoires romaines (Gesta Romanorum), cap. V, vem esta situação sem o maravilhoso da fuga dos dois amantes.

No Pentamerone de Basile, é Petrosinella, que foge lançando sucessivamente três nozes, que recebem várias transformações.

Nos Contos Zulus, de H. Callaway, há o de uma rapariga perseguida pelos canibais, que vai deixando cair atrás de si grãos de sésamo.

O mesmo em um conto russo em que a Baba Yaga corre atrás de uma rapariga.

O mesmo episódio aparece no Aprendiz do Mago, n.º 11.

O conto n.º17, o Cavalinho das sete cores, é uma variante notável, pelo episódio do esquecimento produzido pelo abraço em uma pessoa de casa.

As transformações dos amantes que fogem, acham-se nos contos estonianos, citados por Gubernatis, de Kreuzenwal. (Myth. Zoologique, t. I, p. 180).


Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 31 – 11 de outubro de 1887

Na semana que lá foi,
Houve cousas do diabo,
Já de vaca, não de boi,
Já com rabo, já sem rabo.

Sem rabo o que apareceu,
Foi a grande tartaruga,
Que naufragou e morreu
Em praia onde o mar se aluga.

Espécie nada comum,
Foi logo classificada,
Sem nenhum erro, nenhum,
E está no Museu guardada.

Ora, é muito de saber
Que a bicha, ao pousar na praia,
Sorriu consigo de ver
Tanta senhora sem saia.

E consigo murmurou,
Porque é animal sabido,
Tanto que Deus lhe botou
Nome latino e comprido:

— “Mostra a gente ao pé do mar
O que numa sala esconde.
Tudo é conforme o lugar,
Preciso é saber aonde.

“E tais encantos em flor,
Que ninguém arrastaria
Pela rua do Ouvidor
De noite, e menos de dia,

“Aqui publicados são
Sem bulha, nem matinada,
Aos olhos do camarão
Que nada, e do que não nada.

“Pascal é que disse bem
Quando da justiça ria:
“Verdade aqui, erro além “.
Cabe o dito à rouparia.”

Com rabo, houve o edital
Da câmara, um documento
Que apareceu no Jornal
No mesmo dia e momento

Em que deviam abrir
As propostas que acudissem ...
Aos que ficaram a rir,
Bradaram que se não rissem.

Que o tenente-coronel
Presidente é que mandara
Compor aquele papel
Que a folha não publicara,

Conquanto a tempo o doutor
Secretário o remetesse...
Não sei se o comendador
Tesoureiro andou com esse.

Pode ser que o general
Procurador da fazenda,
Como é muito bom fiscal,
Não gostasse da encomenda.

Pode ser; mas pode ser
Também que o protonotário
Escrivão, em vez de ler
O Jornal, lesse o Diário.

Ora, em verdade, foi bom
O caso: fico inteirado
Que é de rigor e bom tom
Cargo com título ao lado.

E não escrever papel
Em que venha o presidente
Sem tenente-coronel,
Seria pouco e insolente.

Quanto ao que houve, não de boi,
Mas só de vaca, naquela
Semana que lá se foi,
Certo não foi bagatela.

Foi um projeto que quer
População vacinada,
Seja homem ou mulher,
Gente grande ou criançada.

E não mais se casará
Sem se provar que a menina
E o noivo tiveram já
Ultimamente vacina.

Mas, como falasse alguém
Na câmara contra isto,
Dizendo que a cousa tem
Pecha contra a lei de Cristo,

Responderam-lhe que sim,
Que os noivos terão dispensa
Bastará ao grande fim
Toda a mais lei, que é extensa.

Pois manda revacinar,
Além dos tenros infantes,
Soldados de terra e mar,
Funcionários e estudantes.

Mas por que se há de excluir
Desse dever mal cruento
Quem vai à gente pedir
Um lugar no parlamento?

Quero crer que as ambições
Hão de vir em grande malta,
Suprindo as vacinações
O mérito que lhes falta.

Dir-se-á de um legislador
Morto, que era homem honrado,
Bom caráter, bom senhor,
Modesto e revacinado.

E, pois que um caso esqueci
Da outra semana, digo
Muito à puridade aqui,
Que falta à lei outro artigo.

Falta artigo, pelo qual,
Em caso de desafio,
Pudesse um homem mortal
cortar à pendenga o fio.

Corta deste modo: ouvir
O outro, em lances extremos,
E responder-lhe a sorrir:
“Vacine-se e falaremos”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Rinaldo de Fernandes (Oferta)

para Mário Chamie

I

Vou parando o carro, encostando-o embaixo da árvore, a sombra extensa. A cena parece que eu já vi, a cena do casebre beirando a estrada. Eu já vi, sim, naquela propaganda na TV, era uma casa muito pobre, o rapaz desce da camionete de carroceria já apodrecendo, a madeira fendida em várias partes. A camionete segue, o rapaz fica na beira da pista olhando o tempo, o espaço em volta. O sol forte, ele olha outra vez em volta, desce a rampa que dá acesso ao casebre. Um homem de chapéu de palha, pele escura, o espera no casebre, no bar ao lado do alpendre. O homem, sério, está atrás de um balcão rústico. O rapaz vai chegando, o suor pingando-lhe do rosto, e vê do outro lado do balcão, por trás do homem, o refrigerador vermelho. A um gesto do rapaz, o homem abre o refrigerador, tira de dentro uma cerveja bem gelada, a fumaça do gelo fugindo em torno. O rapaz toma um copo da cerveja de uma vez, estala a língua, o olhar parado no teto. Depois deixa o bar, a pobreza do ambiente, a cara satisfeita.

Agora, novamente, o casebre. Sou o rapaz caminhando no trecho de terra antes de chegar à parte do casebre onde há uma venda. Eu ando, a barba por fazer, a mochila nas costas (por que desci do carro com a mochila?), os cabelos sobre o rosto, o olhar duro, eu ando do mesmo jeito que o jovem da propaganda e já vou me aproximando da porta da venda. Encosto-me no balcão, onde já estão as mãos enrugadas para atender a cerveja que eu penso, a voz rouca da velha que, ao me ver, com um gesto impreciso, indica-me o rumo da porta que dá para uma pequena sala na outra parte do casebre, onde há um sofá sujo (a mesinha de centro com manchas) e uma geladeira de porta rebentada. Ela oferta-me o sofá desconfiando que eu vim de longe, sabendo que cheguei cansado.

Pela janela olho em volta, procurando o mar, sim, o mar, pois na propaganda o casebre ficava à beira-mar, a pista seguia beirando a praia onde, fechando a cena, o rapaz se perdia nas areias alvas. Não há mar, mas uma paisagem rubra, de pedras pretas e raros arbustos, paisagem seca, de muitos gravetos. Sim, afinal reconheço, longe, as toscas casas de pau-a-pique do sertão. O calor é forte e, ao espiar a geladeira, sinto que a fria fumaça dorme ali dentro, espera que eu a solte pela sala. Adianto-me um pouco, puxo a porta e vejo as cervejas (qual a marca daquelas outras?) bem postas dentro da geladeira. É necessário que, além do sofá, a velha me ofereça um abridor para eu espocar uma das cervejas, eu preciso muito, como o jovem da propaganda, pois a sede dói. Porém, eu percebo que a velha sumiu, deixou a venda por algum motivo, indo para o interior, para o mistério que é o restante desse casebre. Não vem o vento do mar, mas um bafo quente misturado ao cheiro do asfalto onde, vez por outra, passa um caminhão. Não brilha a onda, mas a grande pedra fincada ao lado do cercado, perto das bananeiras.

Uma dormência invade-me as pernas, o corpo amolecendo com o calor, as costas suando contra o tecido do sofá. Ajeito melhor as costas, estico-me, vou afundando no sofá rasgado, vou descendo o corpo para um descanso, para um pouso merecido, enquanto não chega minha cerveja, enquanto não escapa da geladeira a fumaça que, se intensa, certamente irá roçar na cumeeira e nas paredes com rachaduras da sala. Sem que ouça mais um movimento da velha (há pouco ela tossiu lá dentro), vou baixando cada vez mais meu corpo nessa paz de cigarra no bico de alguma pedra próxima, vendo através da janela que dá para a lateral da casa as bananeiras pensas, as folhas brilhando ao sol do meio-dia. Tanta sonolência não abafa um latido distante de um cachorro, um berro lento de um boi, aviso de que, além do vento agora balançando a cortina de fitas sebentas onde zune uma mosca, algo sobrevive a esta casa. Ponho a cabeça nas mãos, os olhos vão se fechando, o latido vai ficando cada vez mais próximo e, no sono, o cachorro espanta a velha, que fecha a venda e foge sem me trazer um suco bem gelado que ela preparava, o boi põe a cabeça na porta e me pergunta, com uma voz de mulher (voz de velha?), por que eu tenho tanta sede.

O sono é interrompido por uns passos no pequeno corredor, passos que trazem uns olhos que de repente eu descubro por trás da cortina, olhos que me vigiam atentos, como quem não quer perder a presa. E, também atento, nada me escapa nesse instante, nem os olhos escondidos nem o voo rápido da mosca da parede para a porta da geladeira e, em seguida, da porta da geladeira para a fita verde da cortina. Quem me olha? Ah, como ele, ter tomado a cerveja em goles firmes, o líquido descendo no canto da boca. Como ele, ter retomado a pista, seguido para a praia ao fundo, voltando apenas um olhar vago, satisfeito, para o bar, o homem já no alpendre. Quem me olha não olha como se eu fosse um desconhecido, mas alguém esperado. Desde quando? Alguém mexe em algo lá na venda, o cheiro de cachaça espanta a mosca na vareta de pescar. A velha afinal reapareceu? A mosca pára um pouco na foto na parede, anda no rosto do candidato, mas retorna à vareta. Quem pesca aqui? Em que águas? Um açude, sim, deve existir um açude por estas bandas, o mar à beira do qual deverei seguir após a minha gelada. Quem me olha? O cheiro de cachaça agita a mosca, que foge da vareta para a folha da bananeira, lá fora.        

II

Ainda sonolento, fico olhando os pés com nódoas atrás da cortina, as unhas azuladas. A perna, com o vento que de repente afasta a cortina, se apresenta – e vejo o joelho magro. Quem me oferece essa coxa? Os olhos me vigiam, atentos em minha mochila ao lado do sofá. Seguro a mochila, puxo-a para perto de mim. A cortina balança – desaparecem os pés, a perna, o joelho. Quem me espiava?

Fico vendo as folhas da bananeira lá fora, a cigarra quebrando na pedra um canto fino, em ziguezague. A rocha onde pousa um anum faísca. A voz da velha pula lá de dentro:

– Tem bebida aí na geladeira! Se quiser logo, pode ir pegando...

Sim, agora entendo, aqui nesta sala se descansa, mas também se bebe, sentado ou recostado no sofá, a garrafa posta na mesinha. Aqui é o recanto dos fatigados, dos que, como eu, velho vendedor, merecem uns minutos para pôr os pés sobre a mesinha com manchas esverdeadas. Aqui a sombra amolece o viajante, mas também lhe dá vigor, repõe-lhe as forças.

Ouço um barulho atrás da parede do único quarto (é mesmo um quarto?), alguém abre alguma coisa, a gaveta de uma cômoda, a porta de um guarda-roupa. É isso? Da venda parte a voz rouca da velha:

– Vai logo, Rosa!

Alguém volta a se movimentar do outro lado da parede, sobe um cheiro doce de desodorante. Passados alguns minutos, sai, de trás da cortina, uma menina segurando um abridor de garrafas, o short curto, os lábios brilhosos de batom.

– Cerveja ou refrigerante? – quer saber.

Em pouco tempo, diligente, ela empurra a cerveja na mesinha, passa o pano na borracha da geladeira, encosta-se na porta, fica mexendo nas fitas da cortina – vez por outra manda um olhar para a mochila. Reconheço a perna, o joelho, mas os pés agora estão num tênis laranja. A velha vem, mete o rosto na porta, lança um olhar para a menina e, após dizer que já está saindo, desaparece. O anum, voo torto, desce na pedra. A cortina balança – a menina me sorri.

Quando peço a segunda cerveja, a menina, após abri-la, cata com a mão um dos seios, deixa-o exposto diante de mim. Gira o dedo na extremidade dura, arroxeada. E encara-me sorrindo. Se eu fosse o rapaz, aqui, sozinhos, pegaria-a rapidamente pelo pescoço, partiria-a num beijo. Mas na propaganda não aparece a menina, só o jovem, o homem atrás do balcão. E a estrada, o casebre, a praia. Vejo pela janela que a velha já vai longe, na pista.

Não peço, mas ela se senta do meu lado, fica olhando a mochila.

– Quem é ela?

– Minha avó.

As duas moram juntas há 3 anos, sozinhas nesse recanto de estrada. Tenho 48 anos e a menina tem idade de também ser minha neta. Digo que preciso de mais uma cerveja, ela diz, sem maiores rodeios, que está lhe faltando uma mochila. Sinto vontade de cantar.

Assim que a cigarra pára de zoar, a menina vem, ergue a perna, senta-se no meu colo. Passa a mão na minha barba, põe a língua na minha boca, toca-a na minha orelha. A folha da bananeira treme lá fora.

Ela me leva pelo braço para o quarto quente, com um buraco ao pé da parede (e se vem um cachorro?). Sobre o colchão, um lençol azul, um travesseiro esfiapado. Sinto como se estivesse deitando com a minha filha mais nova (...)

Após pagar as cervejas, estico-lhe uma nota. Retiro alguns papéis, enrolo-os nas bermudas e camisas que trago, ofereço-lhe a mochila de presente. Ela beija minha mão. Quando vou para o carro na sombra, vejo-a abraçada com a mochila, dando-me adeus. Definitivamente, não há mar aqui para eu contornar, não há praia onde, depois dessas cervejas, eu possa pôr os pés – apenas a pista tremulando entre as rochas. A velha deve perambular por alguma vereda. Entro no carro, parto. Ainda vejo pelo retrovisor o caminhão parar na sombra, o motorista, um gordo, apeando para o seu bom e merecido descanso.

Começo a assoviar.

(Rinaldo de Fernandes, O Perfume de Roberta)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Rinaldo de Fernandes

Rinaldo Nunes Fernandes (Chapadinha, MA, 1960), embora maranhense, morou durante dez anos em Fortaleza, onde se graduou em Letras (Universidade Federal do Ceará). Tem contos em jornais de Fortaleza e João Pessoa. Em 1997 teve editado o volume O Caçador (Editora Universitária da Paraíba). Doutor em Letras pela UNICAMP e professor de literatura na Universidade Federal da Paraíba. Começou sua atividade de escritor publicando contos e artigos nos suplementos literários dos jornais O Povo e Diário do Nordeste, de Fortaleza/CE. O perfume de Roberta, seu segundo livro de histórias curtas, saiu em 2005. O conto “Negro”, do livro “O Caçador”, virou curta-metragem, do cineasta paraibano Renato Alves. Como pesquisador, escreveu os textos da antologia Os cem melhores poetas brasileiros do século, organizada por José Nêumanne Pinto (São Paulo: Geração Editorial, 2001). Organizador dos livros O Clarim e a Oração: cem anos de Os sertões (São Paulo: Geração Editorial, 2002), Chico Buarque do Brasil (Rio de Janeiro: Garamond/Fundação Biblioteca Nacional, 2004), Contos cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea (São Paulo, Geração Editorial, 2006) e Quartas Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa (Rio de Janeiro, Ed. Garamond, 2006).

O Caçador é composto de peças de variados tamanhos e feitios. Algumas não chegam a dez linhas. São tão sintéticas que mais parecem flashes ou desenhos simples (“Folha seca”), embora não se confundam com rascunhos. Pois há nelas os ingredientes básicos do chamado conto tradicional: personagens, enredo, desfecho, etc. Aliás, remates saborosos, porque inesperados. A matéria-prima dos dramas narrados é quase sempre a solidão. A narradora de “Carpinteira” aperta bem a torneira da pia que teima em pingar, olha-se “no grande espelho”, enquanto o filho dorme e o marido não vem. Rumina o dia da libertação, constrói “um barco com as tranças nuas de cebola”, para nele fugir sobre as águas que estouram da biqueira. Solidão e desespero, como se vê também no pai cujo filho morreu (“A Roda-Gigante”). Ou em “A Viúva”, cuja protagonista vive “na lenta tarde” e molha com choro “a camisa da saudade”.

                Alguns dos personagens de Rinaldo são jovens estudantes urbanos em permanente conflito existencial, sexual, social e político. Os protagonistas estão quase sempre perdidos em si mesmos, solitários, embora às vezes acompanhados de amigo ou amiga. Em “Procurando o carnaval” nada de importante acontece durante a narração. Ou nada de importante é narrado. O leitor perguntará: onde está, então, o enredo? Pois o enredo é justamente isto: um jovem viaja num ônibus em busca do carnaval numa pequena cidade da orla marítima e nenhuma diversão encontra. Vaga por ruas e praias, até compreender que naquele lugar não haverá carnaval. O narrador onisciente poucas vezes dá voz ao personagem, mas segue-lhe os passos e pensamentos, como se sua sombra fosse.

                O carnaval reaparece como pano de fundo no pungente “Bloco & solidão”. O narrador também busca diversão em Olinda. Mas busca, sobretudo, se livrar da solidão e da morte: “Fiquei triste, porque eu achava que as pessoas viam que eu tinha o vírus”.

                Solidão, droga e sexo são substâncias essenciais de outras composições do livro de Rinaldo. Como em “O besouro”, no qual o narrador “vê” uma festa no campus. Na ação seguinte (principal), aproxima-se de um umbuzeiro e, com mais três estudantes, passa a se drogar, até sentir as primeiras sensações alucinógenas. Delírio se vê também em “Suspeitas”. Não mais o campus, mas um acampamento de jovens.  O narrador ouve “um som do Pink Floyd” e passa a se imaginar “numa praia distante”. Até perceber a aproximação ameaçadora das “palmeiras com finas espadas nas palhas”. Em “A tragédia prima de Sílvia Andrade”, um dos mais longos do volume, os personagens são também jovens estudantes às voltas com drogas. Olinda reaparece, embora de relance, no volátil “Chuva e fogo”. Jovens de esquerda estão em “A carta”.

Há, ainda, na obra de Rinaldo de Fernandes o chamado conto de denúncia social e, em menor escala, o conto enigmático ou parabólico. Entre aqueles situam-se “Negro”, também de feição kafkiana; “Um homem, na janela, de óculos escuros”, em que o real social se mistura ao irreal e ao enigmático; “Vozes de maio”, dedicado ao Grupo Tortura Nunca Mais; “Mulheres fugitivas”; “Tempo de fezes”, composto à maneira dos contos de fadas e como parábola; e “Pulseiras coloridas”. Os personagens são tipos urbanos. Entretanto, o leitor é seduzido muito mais pelos dramas narrados do que propriamente pelos seres fictícios.

Hábil forjador de variadas técnicas de elaboração do conto, Rinaldo se sobrepuja quando parte da aparente lógica dos fatos para chegar ao sombrio mundo do enigma. Em “O estampido” há uma série de pequenos atos, como nos sonhos, com cenas rápidas, narradas pelo protagonista. A visão de uma mulher numa janela atrai o narrador. O surgimento, de inopino, de um delegado, num carro, num ir e vir maluco, à procura de um agente, dá ao conto um ar de mistério. É como se os personagens, os visíveis e os invisíveis, representassem entidades não identificadas. E ocorre um fenômeno que se repetirá em mais de uma narrativa: um personagem toma o lugar de outro. Trocam de lugar ou se substituem. Assim, um homem, na rua, vê uma mulher na janela de um primeiro andar. Seduzido, decide ir ao encontro dela, mas, ao entrar na casa, não a vê. Da janela observa a mulher no bar onde ele estivera. Ou seja, ele se torna o ser visto, enquanto ela se faz o ser que vê. Em “Os gafanhotos” o real vai aos poucos cedendo lugar ao irreal. O narrador gosta de pintura, passa férias em Miami, tem mulher e secretária, mora numa cobertura à beira da praia. Ou seja, um pequeno burguês urbano, como outros milhares. Súbito dá-se o inusitado: “De repente veio o vômito. Os coqueiros da orla começaram a largar as palhas em grandes golfadas”. Instaura-se o enigma ou o fantástico: as palhas são enormes gafanhotos. 

Em “Antes que acabe” verifica-se mais uma vez o fenômeno da troca de lugar. Dalva e Carlos conversam em casa. Ele se banha, ela lê anúncio de jornal. Terceiro personagem surge na praça diante da casa. A seguir, outra mulher aparece na rua e vai ao encontro do homem. No entanto, este homem é Carlos. Logo, o personagem do banheiro não é Carlos. Em “Um homem, na janela, de óculos escuros” (observe-se a presença de janela mais uma vez) repete-se o fenômeno de um personagem trocar de lugar com outro. Menino cata lixo, em aterro, com a mãe. Do alto de edifício, homem observa a cena e chama com o indicador o garoto, que se retira e sobe ao apartamento. Nesse momento se dá a troca de posições dos personagens: o homem desce e vai se sentar numa pedra no meio do aterro. Minutos depois o menino chamará o homem, que voltará ao escritório. O desfecho é uma pintura, um poema: “E os urubus, que, revoando sobre o menino, num lerdo balé, agora bicam o salame do crepúsculo”. 

Outra peça enigmática é “O livro verde”, relato de narrador não identificado. O mesmo se há de dizer de “O chapéu”. O conto que dá título ao volume pode ser visto como uma alegoria, a lembrar ora Murilo Rubião, ora Julio Cortázar. Para explicar esse tipo de narrativa há um conto que se mostra como um metaconto: “Conversando sobre a arte do conto (ou a obsessão pela goiaba)”. Um contista conversa com alguém de nome Ricardo, que está mais preocupado em comer goiabas do que em ouvir leitura de contos. Entre um diálogo e outro são inseridas quatro composições curtas, tendo título apenas a primeira. O contista se diz incompreendido; as pessoas chamam de herméticos os seus contos. Lido o primeiro, o interlocutor diz não ter entendido nada. O escritor assegura tratar-se de uma “alegoria do imperialismo”. Após a leitura do segundo, Ricardo afirma: “não entendi de novo”. O outro então pergunta: “Você já leu alguma coisa do Julio Cortázar?” E passa a explicar o que é o fantástico do escritor argentino.

Rinaldo de Fernandes foge do fácil, do óbvio, do tradicional, embora não se aventure em experiências formais. Não se contenta com a história bem contada, de começo, meio e fim, enredo linear. E utiliza ingredientes inovadores há algum tempo praticados, como recorte de jornal fictício; frases curtas e entrelaçadas, como em “Viagem (ainda um conto beat)”; frases recortadas, como se fosse um poema (“A orgia vermelha do poeta”); multiplicação de vocábulo solto na página, à maneira do poema concreto; inserção de poemas de autoria de personagem e de letra de música fictícia; contos dentro de um conto, etc.

A linguagem de Rinaldo de Fernandes não se prende ao coloquial nem ao artificial ou ao erudito. Vocábulos ditos populares aparecem naturalmente nas frases: “alcançar um jornal”. São muitas as frases de efeito ou que evitam descrições inúteis: “despenquei no coração persa da sala”; “espionava estrelas por trás da cortina”. Às vezes lembra Graciliano Ramos, não na linguagem, mas na apresentação de personagens complexos, doentios. Em resumo, Rinaldo de Fernandes, com O Caçador, caminha felinamente, sorrateiramente pelos “múltiplos caminhos do conto”, para usar a expressão de Amador Ribeiro Neto, na apresentação do livro.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Trova 267 - Ademar Macedo (RN)


Irmãos Grimm (Rumpelstitskin)

Era uma vez um moleiro que era muito pobre, mas que tinha uma filha muito linda. E então de certa feita ele tinha que ir falar com o rei, e para que ele parecesse ser uma pessoa importante, ele disse ao rei:

— Eu tenho uma filha que pode transformar palha em ouro.

O rei disse ao moleiro:

— Essa é uma qualidade que me agrada muito, se a tua filha for tão inteligente como dizes, traga-a amanhã até o meu palácio, e faremos um teste com o poder dela.

E quando a garota estava diante dele, ele a levou até um cômodo que estava totalmente cheio de palhas, deu a ela uma máquina de fiar e uma bobina, e disse:

— Agora, vamos ao trabalho, e se por volta de amanhã de manhã você não tiver transformado esta palha em ouro durante a noite, você deverá morrer.

Em seguida, ele mesmo fechou a porta, e a deixou sozinha lá dentro. Então a filha do pobre moleiro ficou ali sentada, e durante todo o tempo ela não sabia o que fazer, ela não tinha nenhuma ideia de como a palha pudesse ser transformada em ouro, e cada vez ela ficava mais desolada ainda, até que enfim ela começou a chorar.

Mas de repente a porta se abriu, e um pequeno homenzinho entrou, e disse:

— Boa noite, Senhorita Miller, porque você está chorando tanto?

— Ai de mim, respondeu a garota, — eu tenho de transformar esta palha em ouro, e eu não sei como fazer isso.

— O que você me daria em troca, disse o anão, — se eu fizesse isso por você?

— O meu colar, disse a garota.

O pequeno homenzinho pegou o colar, sentou-se em frente da máquina de fiar, e, whirr, whirr, whirr, três vezes, e a bobina estava cheia; depois ele colocou mais uma bobina, e whirr, whirr, whirr, três voltas novamente, e a segunda bobina ficou cheia também. E assim foi indo até o amanhecer, quando toda a palha foi trabalhada, e todas as bobinas estavam cheias de ouro.

o romper do dia o rei já estava lá, e quando ele viu o ouro ele ficou atônito e satisfeito, mas o seu coração ficou ainda mais insaciável. Ele então levou a filha do moleiro para uma outra sala repleta de palhas, e que era muito maior, e mandou que ela passasse na máquina de fiar toda aquela palha numa única noite se ela tivesse algum amor na vida.

A garota não sabia o que fazer, e começou a chorar, quando a porta novamente se abriu, e um pequeno homenzinho apareceu, e disse:

— O que você me daria em troca se eu passasse toda essa palha pela máquina de fiar e a transformasse em ouro para você?

— Eu te daria o anel do meu dedo, respondeu a garota.

O pequeno homem pegou o anel, e começou novamente a girar a roda, e ao amanhecer ele havia transformado toda a palha em ouro reluzente.

O rei se regozijou além da medida diante do que viu, mas ele achava que não tinha ouro o suficiente, e ele levou a filha do moleiro para uma sala ainda maior cheia de palhas, e disse:

— Você deve fiar toda essa palha, durante uma noite inteira, e se você conseguir, você será a minha esposa. Ainda que ela fosse a filha de um pobre moleiro, pensou ele, — jamais encontrarei uma esposa mais rica em todo o mundo.

Quando a garota ficou sozinha, o anão apareceu novamente pela terceira vez, e disse:

— O que você me dará em troca se eu fiar toda a palha para você desta vez também?

— Não tenho nada que possa lhe dar, respondeu a garota.

— Então prometa para mim o seu primeiro filho, quando você se tornar rainha.

— Quem sabe se isso aconteceria um dia?, pensou a filha do moleiro, e não sabendo mais o que fazer diante deste sufoco, ela prometeu ao anão o que ele queria, e com isso ele mais uma vez transformou a palha em ouro.
   
E quando o rei chegou de manhã, e encontrou tudo que ele tinha desejado, ela a tomou em casamento, e a bela filha do moleiro tornou-se rainha.

Um ano depois, ela teve uma linda criança, e nunca mais voltou a pensar no anão. Mas, subitamente, ele entrou em seu quarto, e disse:

— Agora dê-me o que você me prometeu. A rainha ficou muito horrorizada, e ofereceu ao anão todas as riquezas do reino se ele deixasse a criança para ela. Mas o anão disse:

— Não, somente aquilo que vive tem mais valor para mim do que todos os tesouros do mundo. Então a rainha começou a chorar muito, de modo que o anão acabou ficando com dó dela.

— Eu lhe darei o prazo de três dias, disse ele, — se nesse período você descobrir como é o meu nome, então você ficará com a criança.

Então a rainha pensou a noite toda em todos os nomes que ela já tinha ouvido, e ela enviou um mensageiro para todo o país para perguntar, por todos os cantos, por todos os nomes que pudessem existir.

Quando o anão voltou no dia seguinte, ela começou com Gaspar, Melquior, Baltazar, e disse todos os nomes que ela conhecia, um após o outro, mas, para todos eles o pequeno homenzinho dizia:

— Esse não é o meu nome.

No segundo dia ela mandou perguntar por toda a vizinhança pelos nomes das pessoas que viviam lá, e ela repetia para o anão os nomes mais incomuns e curiosos.

— Talvez o seu nome seja Uélio, ou Choquélio, ou Brucélio?, mas ele respondia sempre:

— Esse não é o meu nome.

No terceiro dia o mensageiro voltou novamente, e disse:

— Eu não consegui encontrar nenhum nome, mas quando eu cheguei perto de uma montanha alta no final da floresta, onde a raposa e a lebre dizem boa noite uma para outra, lá encontrei uma pequena casinha, e diante da casa havia uma fogueira que estava queimando, e em torno da fogueira havia um ridículo homenzinho que estava pulando: ele pulava com uma perna e gritava:

— Hoje como pão, amanhã como feijão.
Porque amanhã terei um filho de renome
Ah, estou feliz porque ninguem descobriu
Que Rumpelstiltskin, esse é o meu nome.

Você pode imaginar como a rainha ficou feliz quando ela ficou sabendo disso! E quando pouco depois o pequeno homenzinho entrou e perguntou,

— Agora, senhora rainha, qual é o meu nome?, finalmente ela disse:

— O seu nome é Conrado? Não. — O seu nome é Henrique?. Não.

— Talvez o seu nome seja
Rumpelstiltskin?

— Foi o demônio quem lhe contou! Foi ele quem disse o meu nome! Gritou o pequeno homem, e de raiva ele mergulhou o seu pé direito tão fundo na terra que toda a sua perna entrou, e então cheio de ódio ele puxou a sua perna esquerda tão forte com ambas as mãos que se dividiu em dois.

Fonte:

Sonetos Satíricos II

HERMES FONTES (SE)

A Pulga


Um sinalzinho preto em teu colo de neve:
Examino se é próprio, ou fingido a nanquim...
Mas o pontinho escuro anima-se; e, ágil, breve,
Salta aqui, salta ali e vem pousar em mim.

Sinto-o no corpo: o inseto, a mais e mais se atreve.
Põe-me um ardor de urtiga em cada poro, e, assim,
Fervo e salto, eu também... Ao seu contato, leve,
A epiderme é um incêndio, o sangue é um torvelim.

É uma pulga! Tirou-me o bom humor e o agrado!
— Serena perfeição em que a gente se julga,
Morre num sopro: é grão de pó, miga qualquer...

Quanto orgulho se tem despido e desmanchado,
Por um nada, um nadinha, uma pulga!? É que a pulga
Em astúcia é igual à raposa e à mulher...

MARIANO MELGAR (PERU)

Para que serve a mulher?


Não nasceu a mulher para querida,
Por esquiva, por falsa, por mudável;
E como é bela, fraca, miserável,
Não nasceu para ser aborrecida.

Não nasceu p'ra que seja submetida,
Visto ser de caráter indomável;
Como a prudência é nela inevitável,
Não nasceu para ser obedecida.

Como é fraca, não pode ser solteira;
Como é infiel, não pode ser casada;
Mudável, não é fácil que bem queira.

Não sendo para amar, nem ser amada,
Nem p'ra vassala, nem para primeira,
Não serve, finalmente, para nada.
(tradução Idel Becker)

MEDEIROS E ALBUQUERQUE (PE)

Só a morte...


"Se me desdenhas, sinto que faleço,
De nada mais pode servir-me a vida;
De ti e só de ti me vem, querida,
Todo o alento vital de que careço.

Só a morte é possível, se perdida
Eu vir tua afeição. Nenhum apreço
Darei a tudo mais, se o que mereço
É teu desprezo, em paga à minha lida."

Ela não respondeu... Por fim, notando
Que contra a sorte é inútil que se teime
Resolvi não morrer. E tão tranqüilos

Foram os meus dias, que eu me rio quando
Penso no que ontem vi: ontem pesei-me
E achei, num mês, que eu engordei três quilos!

VICENTE DE CARVALHO (SP)

Inteiramente louco


Senhora minha, pois que tão senhora
Sois, e tão pouco minha, eu bem entendo
Que sorrindo negais quanto, gemendo,
Amor com os olhos rasos d'água implora.

Meu coração, coitado, não ignora
Que num sonho bem vão todo o dispendo
E é sem destino que assim vai correndo
Cansadamente pela vida afora.

Dizeis do meu amor que é coisa absurda,
E ele, teimando, faz ouvido mouco;
Nem há razão que o desvaneça ou aturda.

Não o escutais? Nem ele a vós tampouco.
Que, se sois surda, inteiramente surda,
Amor é louco, inteiramente louco.

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/satirico.htm
Imagem - Libreria Fogola Pisa (Facebook)

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) As Três Fadas

Recolhido no Algarve

Era uma vez uns casados que não tinham filhos, e viviam por isso muito descontentes. A mulher foi-se confessar ao Padre Santo António, e contou-lhe o seu desgosto. O santo deu-lhe três maçãs, para que as comesse em jejum. A mulher chegou a casa, pôs as três maçãs sobre uma cómoda, e foi arranjar o almoço. O marido vindo de fora encontrou as três maçãs e comeu-as.

Ao almoço a mulher contou o sucedido na confissão, e o marido ficou todo assustado. A mulher foi outra vez falar com o santo, que lhe disse:

– Pois os trabalhos por que tinhas de passar, o teu marido que os passe.

Chegando o tempo o homem começou a gritar, chamou-se pessoa entendida, e abriram-no para o aliviar.

O homem desesperado mandou deitar a criança no monte. Uma águia desceu do ar e levou a criança no bico e lá a criou com o leite que ia tirar às vacas que andavam pastando, e agasalhava-a com a roupa que pilhava pelos estendedouros. Fez-lhe uma casinha de palha, e ali se criou a pobre criança, que se tornou uma menina formosa.

Um dia passou por aquelas montanhas um príncipe que andava à caça; viu aquela menina tão linda, e perguntou-lhe se ela queria ir com ele. Respondeu que sim.

Quando a meteu na carruagem, acudiu a águia para lha tirar, mas não podendo ainda lhe vazou um olho. A menina ficou com aquele grande defeito, mas o príncipe não deixou de a amar.

Levou-a consigo, e escondeu-a no seu quarto no palácio. A rainha desconfiada de ver o filho sempre fechado no seu quarto, quis saber o que seria, e combinou uma grande caçada, que durava dias. Foram todos e por lá andaram, e a rainha pôde entrar no quarto do filho por uma porta que só ela sabia. Assim que entrou viu a menina:

– Ah! És tu, torta zarolha, que tanto encantas o meu filho? Anda daí ver estes palácios e o jardim.

A menina foi com a rainha; assim que chegaram ao jardim, levou-a para o pé de um poço muito fundo, e deitou-a lá dentro. Quando veio o filho da caça, foi logo ter com ele:

– Aquela torta zarolha que tinhas fechada no teu quarto, assim que se lhe abriu a porta, botou a correr por aí fora, e ninguém foi capaz de a apanhar.

De noite passaram três fadas pelo pé do poço e sentiram uns gemidos:

– Que será? Que não será?

– São vozes de mulher.
   
Chegaram à borda do poço para escutarem melhor, e disse uma das fadas:

– Eu te falo que saias desse poço cá para fora, e que sejas da maior perfeição do mundo.

– Pois eu te falo que tenhas uma tesourinha de prata, para cortares a língua a quem te perguntar as coisas duas vezes.

– E eu te falo que tenhas um palácio defronte do palácio da rainha, que seja velho por fora, mas por dentro chapeado de ouro e prata.

Ao outro dia, ficaram todos espantados no paço por verem um grande palácio antigo defronte, sem se lembrarem como e quando é que o ali edificaram. A rainha ainda ficou mais pasmada com aquilo, e mandou o seu velho camareiro saber o que era, e quem morava ali.

O camareiro entrou no velho palácio mas ficou assombrado com o que viu por dentro; apareceu-lhe uma menina muito ricamente vestida, a quem fez as perguntas de mandado da rainha. Ela respondeu:

– Diga a sua majestade
Que minha mãe me desejou,
Que foi meu pai que me teve
E nas silvas me deitou;
Uma águia me criou,
Na caça o príncipe me achou,
A rainha ao poço me deitou,
Mas as três fadas me fadaram,
Para aqui me trouxeram
E eu daqui não me vou.

O camareiro não ficou logo com o recado na cabeça, e pediu à menina para o repetir; e ela disse então:

– Desanda tesourinha.

Caiu-lhe a língua num instante; o camareiro voltou para o palácio, e só podia dizer: ló-ló-ró, ló-ló-ró. A rainha mandou lá outro fidalgo, mas também lhe sucedeu o mesmo. Por fim foi lá o príncipe, e quando ouviu aqueles versos que a menina dizia, veio dar parte à rainha, que se quis certificar com os seus olhos, e depois deu licença para o filho casar com ela.
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Notas Comparativas

No conto hindu de Surya Bai a menina também nasce de um fruto de manga, e tendo anteriormente sido roubada, depois que volta à sua casa desposa um príncipe.

Sobre o rapto por uma águia, diz Husson: «Os contos populares gregos mais ou menos conservados pelos poetas ou reproduzidos nos vasos pintados, fazem-nos conhecer muitas ninfas encantadoras, Tália, Egina, Ganimedes, Astéria, igualmente arrebatadas[1] por uma águia divina».

Em uma versão popular de Abrantes, há o estribilho:

Tesourinha, tesoureta,
Corta aquela lingueta.


Notas
Na verdade, Ganimedes é um príncipe

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Expressões e suas Origens IV

O PÃO QUE O DIABO AMASSOU

O pão que o diabo amassou ou "comeu o pão que o diabo amassou" é uma expressão popular que significa passar por um grande sofrimento ou por grandes dificuldades. É usada para descrever o grau de desespero que a pessoa foi submetida. Ex: O cortador de cana sofreu, em seu trabalho, o pão que o diabo amassou.

A expressão foi criada no sentido de representar através de um pão amassado por uma entidade sobrenatural da maldade, todas as consequências malignas passadas pelo indivíduo, em algum momento de sua vida.

ONDE JUDAS PERDEU AS BOTAS

Onde Judas perdeu as botas é uma expressão popular da língua portuguesa que é usada para descrever um lugar muito distante, difícil de alcançar ou mesmo inacessível.

Existem várias expressões equivalentes a "onde Judas perdeu as botas", tais como "onde o vento faz a curva", "no fim do mundo", "no cafundó de Judas", "no meio do nada", entre outras. - Não sei se vou poder ir na festa do João porque ele mora lá onde Judas perdeu as botas!

Em inglês, "onde Judas perdeu as botas" pode ser traduzido como "in the back of beyond" (expressão típicamente britânica que significa "na parte de trás do além"), "in the boondocks" (expressão mais usada nos Estados Unidos, que descreve uma zona pouco habitada), "in the middle of nowhere" (no meio do nada).

He lives in the boondocks / in the back of beyond / in the middle of nowhere - Ele mora onde Judas perdeu as botas!

É difícil saber a origem exata da expressão "Onde Judas perdeu as botas". Muitos autores acreditam que a expressão surgiu com a história de Judas Iscariotes, o discípulo que traiu Jesus. É certo que a Bíblia não menciona o hábito de Judas de calçar botas, mas uma crença popular afirma que Judas teria escondido num par de botas as trinta moedas que recebeu dos sacerdotes judeus, como pagamento por trair Jesus. Quando encontraram o corpo de Judas (depois de ter se enforcado), este estava descalço, e a lenda conta que muitos tentaram encontrar as botas para ficar com o dinheiro, mas sem sucesso. Por esse motivo, "onde Judas perdeu as botas" serve para descrever um lugar difícil de encontrar, um terreno longínquo.

No entanto, a Bíblia refere que Judas, movido por arrependimento, devolveu as moedas aos sacerdotes judeus antes de se suicidar. Por esse motivo, onde quer que estivessem as suas botas, elas não iriam conter as trinta moedas. Posteriormente a Bíblia menciona que os sacerdotes usaram as 30 moedas de prata para comprar o Campo do Oleiro, que ficou conhecido como o "Campo de Sangue".

ADVOGADO DO DIABO

Advogado do diabo (em latim advocatus diaboli) é uma expressão originalmente utilizada pela Igreja Católica para designar o advogado que tinha por missão apresentar provas impeditivas da admissão de um candidato a santo ou beato. Sua função era averiguar todos os fatos apresentados em favor do candidato., procurando falhas nas provas de milagres do candidato a santo. Nesses processos de canonização e beatificação, também havia o promotor da fé, encarregado de argumentar a favor do candidato.

Popularmente, a expressão passou a designar o indivíduo que apresenta muitas objeções a uma determinada tese, criando dificuldades para a defesa. Por vezes, o advogado do diabo defende um argumento contrário ao da maioria apenas com o intuito de testar a qualidade do argumento.

No sentido figurado, o advogado do diabo é apresentado como um indivíduo que defende um cliente ou uma causa que, moralmente, não há defesa.

CHATO DE GALOCHAS


Chato de galochas é uma expressão idiomática da língua portuguesa e significa alguém extremamente chato ou com comportamento socialmente desagradável. É o caso de um chato especial, um upgrade do chato habitual.

O meu dia estava correndo bem até aquele chato de galochas aparecer.

A expressão "chato de galochas", muito popular no Brasil, surgiu graças à galocha. Uma galocha é um acessório que se calça por cima do calçado, evitando que este fique estragado pela água. As galochas eram muito usadas nos anos 50 e 60 no interior do Brasil, onde em muitos lugares ainda não havia calçadas. No entanto, ainda hoje, algumas profissões requerem calçado do estilo da galocha.

Alguns autores acreditam que um "chato de galochas" é um chato resistente, característica da própria galocha. Deste modo, mesmo com condições climatéricas adversas, o chato calçava as suas galochas para importunar outras pessoas. Muitas vezes, o chato entrava na casa das pessoas de galochas, molhando e sujando toda a casa do anfitrião, que com certeza ficava desagradado com tal demonstração de desconsideração. Nos dias de hoje, os chatos de galochas não estão necessariamente calçados com galochas, mas a expressão continua sendo usada para descrever pessoas com atitudes desagradáveis.

Fonte:
http://www.significados.com.br/expressoes-populares/

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 30 – 4 de outubro de 1887

Há muito inglês já defunto,
Canning, Peel e consortes,
Que são o perpétuo assunto
Da eloquência e seus transportes.

Cada ano que passa, deixa
Nos anais parlamentares,
Entre um ataque e uma queixa,
Esses nomes singulares.

Assim, posto que vivamos
À moda francesa, é certo
Que todos imaginamos
Estar dos ingleses perto.

Vede, por exemplo, os nomes
Dos que escrevem de política;
Não são Barros, não são Gomes,
Nomes de fama somítica.

Entre um Guizot e um Horácio,
Quantos Walpoles fecundos!
Pobre Gália! Pobre Lácio!
Britânia é mundo entre mundos.

E, na verdade, a Inglaterra
Tem de sobra exemplos grandes
Para ensinar toda a terra,
Do Cáucaso até os Andes.

Hão de dizer, com justiça,
Que até aqui tenho usado
O latim da velha missa,
Já sabido e decorado.

Que sou vulgar como um bule
De botequim, — como um homem
Que, perdendo ontem na pule,
Narra as dores que o consomem;

Vulgar como um par de botas
Rotas e desengraxadas,
Vulgar como as quatro sotas,
Copas, ouro, paus e espadas.

Muito bem; mas, tendo em vista
Embora a vulgaridade
Procurar alguma pista,
Por onde ache a realidade,

Li agora um documento,
Circular de candidato,
Feita com discernimento,
Bom estilo, ameno e grato.

Tão grato, que pede o voto
Como um favor, e confessa
Que, vencido o terremoto,
Fará que jamais o esqueça.

Que seja novo não digo,
Nem novo, nem menos raro;
É costume um pouco antigo,
Vulgar, sem ofensa e caro.

Pois o eleitor, de outro lado,
Não faz favores à toa,
Quer ser mui cumprimentado
Em palavras e em pessoa.

Há tal que o votinho nega
A gente que o não visite,
Não que queira ver se emprega
Bem a cédula que emite,

Perguntando ao candidato
Qual a escola que mais usa,
Se a de um governo barato,
Se a do que gaste e produza;

Não, senhor; mas tão somente
Para ouvir cousinhas finas,
E mostrar a sua gente,
A esposa, a sogra e as meninas.

Ouvir que a filha terceira
Há de ser uma figura
Como a segunda e a primeira,
Modelos de formosura,

Ouvir um bom elogio
À laranjinha da casa;
Dar notícia de algum tio,
Que perdeu na ilha Rasa.

Ver que o candidato mira
De quando em quando a poltrona,
Em que se alarga e se estira,
Gesto de louvor que a abona.

Se há tais entre os eleitores,
E pedes, ó candidato,
Como o favor dos favores,
O voto, e lhes ficas grato,

Para que tantos ingleses,
Que dormem nas sepulturas,
Virem bailar tantas vezes
Nas nossas legislaturas?

Nacionalizemos isto.
Queres citar? Cita, cita
Nome cá nascido e visto.
Deixe o Pitt; cita o Pitta!

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Astolfo Lima Sandy (Sistema de Roldanas)

No começo eu não entendia aquela insistência de minha mulher em deixar o frasco de
sedativos sobre o meu colo e não no armário da cozinha, como sempre fazia ao sair, perfumada, com a desculpa de que levaria as crianças ao shopping. Os meninos ficavam mesmo sob as vistas da avó, enquanto ela seguia ao encontro de alguém – nunca duvidei. Fosse outra a sua forma de agir, talvez a compreendesse. Prostrado aqui nesta infame cadeira de rodas, partilhando o sofrimento de vê-la sedenta de carinho na solidão do quarto, eu tinha o dever moral de aceitar com naturalidade essas escapulidas. Em troca de simples afeto de mãe, teria fechado os olhos a tudo.

Sei, meu olhar estúpido, a boca quase sempre entreaberta, os lábios murchos sem desprenderem qualquer ruído podem ter inibido uma reaproximação. Se eu não podia mais corresponder aos seus afagos – ela por certo supôs – seria por haver perdido a capacidade de sonhar... sofrer. E eu só desejava sua presença novamente ali perto, me transmitindo um pouco de calor e lendo para mim os versos de Baudelaire.

                Antes de sair, me servia sopa, acendia a luz, fechava a porta, colocando em minhas pernas as coisas que seriam úteis na sua ausência: garrafa d'água com canudinho, controle remoto e, ultimamente, o maldito vidro de remédio – que tomava o cuidado de deixar fora da caixa. De volta a casa, depois de recolher os meninos no quarto, vinha de mansinho até o cubículo, me observava da janela, e eu logo percebia a frustração no seu olhar. Por vezes se aproximava, conferia se a tampa do vidrinho saía com facilidade e depois fixava em mim um olhar de Gioconda; sem me tocar, dando a impressão de sentir nojo.

                Nessas horas a minha mente fervilhava, imaginando frases jamais articuladas. Fantoche, eu sequer conseguia franzir o cenho, expelir lágrimas, esboçar um gesto qualquer de sentimento. A única forma de expressão ainda possível era girar vagarosamente aquela abominável cadeira, riscando a cerâmica com suas rodas, feito quisesse cunhar no mármore as palavras presas na garganta. Ela logo aparecia e, com leve toque na alavancazinha, também paralisava esses meus devaneios. Depois, furtiva, sumia sem nada falar, para reaparecer apenas na hora de servir novamente a sopa e me colocar na cama, com auxílio de nosso filho mais velho. E eu ficava ali, chumbo, olhos fitos no teto, esperando o sol surgir através da claraboia. A mim nada mais seria permitido a não ser sufocar a angústia e curtir sozinho a minha solidão. Sei, certamente que sei dos meus pecados e deles nunca procurei me eximir. Esses, porém, já estavam muito bem pagos, creio.

Se ela tivesse acabado comigo de uma vez, teria sido melhor. Uma injeção e pronto, tudo se resolveria. Não quis. Preferiu minar-me lentamente, explicitar ao máximo a minha fragilidade. Em certos momentos, confesso, tive ímpetos de fazer seu jogo e engolir todo o conteúdo daquele pequeno frasco teimosamente sobre meu colo. Depois raciocinei que agir assim seria lhe permitir gargalhar em liberdade, na companhia do outro. Não. Ela haveria de experimentar do próprio fel, saldar sua parcela de culpa pelo desastre que me aprisionou neste cubículo; redimir-se do ciúme doentio, pagar bem caro pelas intermináveis discussões que sempre acabavam em minhas enlouquecidas fugas noturnas, até aquela última, quando bati o carro.  

                Em certos momentos, tentando afastar da cabeça os maus presságios, cheguei a supor que o fato de minha esposa deixar os comprimidos ao meu alcance fosse apenas por zelo, aquele receio de me ver amargar outra vez as dores antigas. Engano. Ela sabia que, devido à falta de sensibilidade física, isso já não mais poderia acontecer. Eu vivia naturalmente anestesiado. Somente as mãos ainda se mexiam de forma precária, conservando um pouco de tato, se bem que quase todo meu cérebro funcionasse com perfeição. Ela só não sabia – e disto agora tenho certeza – das habilidades desenvolvidas por mim na solidão do quarto.

Com auxílio da arcada dentária aprendi a segurar a ponta de um barbante, atá-la a meu pulso, enquanto enlaçava a outra extremidade à maçaneta da porta, de modo a prendê-la novamente com os dentes e construir um rudimentar sistema de roldanas, em que, puxando o cordel, meu braço se erguia e posicionava a mão um pouco acima da cabeça. Igualmente ela não suspeitava do brinquedo que eu mantinha oculto sob o forro da cadeira.

                Naquela tarde, ao arrumar as coisas sobre meu colo, deixando pela primeira vez sem a tampa o vidro de comprimidos, notei malícia no seu olhar. Com esse gesto aparentemente tão banal, ela apenas precipitaria o desfecho da situação. Antes de sair para o costumeiro passeio, serviu-me o caldo de ervilhas com toda delicadeza, ajustou a posição da TV e disse em voz mansa que as crianças ficariam o fim de semana na casa de sua mãe. Achei providencial.

Ela estava linda nesse dia, não posso negar: vestia um curto cetim, decotado; calçava sandálias de salto e tinha os longos cabelos presos por graciosa fivela de prata. O brilho dos olhos se acentuava na face rosada, no batom dos lábios, e pela primeira vez em muitos meses a desejei de uma forma absurda, louca, em que a reação física era nula, só o cérebro formigava, projetando imagens obscenas, fazendo exalar os odores da volúpia, aquela vontade incontrolável de tocá-la, sentir o seu corpo resvalar no meu. De repente, ao ouvir o barulhinho de pingos escorrendo do meu assento para o ladrilho, percebi que estava todo molhado. Nesse instante senti ódio de mim, do mundo e logo me curvei à realidade mais atroz. Após tanto tempo de vida em comum, eu testemunhava pela primeira vez a imagem de minha mulher em trajes tão sensuais. Fosse outra a circunstância, jamais lhe teria permitido semelhante comportamento, e ela sabia disso. Ainda assim, deu voltas ao meu redor antes de fechar a porta.

Permaneci o resto da tarde com o olhar idiota fixo na parede, aguardando seu regresso; uma mosca zunindo incessantemente ao meu ouvido, o suor escorrendo pelo rosto – sem que pudesse enxugá-lo. Nunca as horas demoraram tanto a passar. Hoje chego à conclusão de que teria sido melhor se o tempo houvesse estacionado ali, ainda que eu ficasse o resto de meus dias com aquele tormentoso inseto me roçando o nariz.

logo que anoiteceu escutei barulho de carro em frente ao portão. Era ela. Minha esposa não dirigia, mas eu tinha certeza: era ela. Comecei a mastigar a cordinha – já em volta da maçaneta – e esperei a cabeça dela apontar na janela. Estranhamente isso demorou muito para acontecer. Nesse instante escutei o ruído de crianças na calçada e os acordes de suave canção no interior da casa. E ouvi risos abafados por ligeiro tilintar de copos, cochichos; novamente o grito dos meninos lá fora, a música aumentando de intensidade, diminuindo, se misturando ao som da TV, ao latido do cachorro, distante; todas essas coisas comprimindo minha nuca, me impossibilitando diferenciar os rumores da rua, daqueles escutados dentro de casa. Risos, acordes musicais, gritos, tudo martelando o meu juízo – o suor incessante percorrendo a face.

Depois veio o silêncio, quebrado levemente pelo atrito de galhos da figueira sobre o telhado. Foi quando a minha mulher abriu a cortina. A postura de minha cabeça, inclinada, a boca parcialmente fechada – engolindo com dificuldade o barbante, para fazer o braço mirar a janela – me causavam enorme aflição, algo impossível de externar. Em qualquer circunstância nunca modifiquei essa aparência inexpressiva, silenciosa, nem perdi o jeito parvo, se bem não deixasse de alimentar mil demônios dentro de mim. Ao olhar discretamente na minha direção, não mais captei em sua face aquele desapontamento exibido em outras ocasiões. O sorriso dela tanto poderia configurar a satisfação de uma mulher plenamente realizada, como... como. Mas já era tarde, infelizmente. Muito tarde para desativar o sistema de roldanas, que funcionou de forma perfeita, mesmo com o peso da arma empunhada por mim naquele instante e sob o impacto causado por ela tão logo acionei o gatilho...

 (Astolfo Lima Sandy, A Grande Fábrica de Brinquedos)


Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.