terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Rachel de Queiroz (Morrer sonhando)

Sempre me sinto entre a vida e a morte, mais para a morte do que para a vida, neste calor medonho do verão do Rio. Um calor de boca do inferno, um ar pesado que pode ser tirado às colheradas. Em plena praia do Leblon, mesmo com o pé na água, se você riscar um fósforo, ele queima sem tremer até lhe sapecar o dedo. E, nesse ambiente de forno, a gente, talvez por associação, sonha com um iglu, daqueles dos esquimós, todo armado em tijolinhos de gelo, no feitio dos fornos de barro, do sertão. Dentro do iglu, em vez desse suor viscoso que nos gruda a roupa à pele, uma gotinha de água gelada de vez em quando nos pinga no rosto, ou pousa, feito uma pérola, nos pelos de nosso agasalho de couro. O iglu é, assim, uma visão de paraíso, miragem de viajante derrubado pela insolação na areia ardente do deserto.

O pior é que, ante nossas queixas, o pessoal carioca vem e diz: "Logo você, do Norte, reclamando contra o calor!" Triste ignorância. Primeiro, eu não sou do norte, sou do Nordeste. E as pessoas que ainda chamam o Nordeste de Norte são tão antigas! Do tempo em que se considerava como Norte tudo o que ficasse da Bahia para cima. A distinção entre Nordeste e Norte é um conceito moderno, que entrou em voga pela década de 30. E, no Nordeste, o clima é muito diferente do clima equatorial do Pará e do Amazonas. Norte autêntico é o calor pesado e úmido que te envolve com um ar feito de lã, só ocasionalmente aliviado por pancadas bruscas de chuva - violentas e repentinas como se a água do céu fosse despejada sobre o chão. No Nordeste o calor é limpo, claro, todo puro sol. O sol é sempre esticado e transparente como uma gaze azul, cortado aqui e além por raros flocos de nuvens brancas, postas ali só para compor a paisagem.

Tão raro é um céu nosso pejado de nuvens que a gente lá, enfadada de tanta claridade, costuma dizer, ante um promissor céu enfarruscado: "Olha como o tempo está bonito para chover!" Note-se que, para nosso alívio (o que não acontece no sul nem no norte), naquela teimosa limpidez de sol nordestino, sopra sempre, abençoadamente, uma brisa: a viração. Basta você se abrigar do sol debaixo de uma sombra, imediatamente a viração te afaga o rosto, suave e fresca. Por isso é que a viração que sopra na boca da noite, a mais constante e amena, é chamada "o aracati" - palavra que, na linguagem dos índios, quer dizer brisa boa, brisa bonita.

Tem horas, aqui no Rio, em que a gente sai de um ar refrigerado e recebe de chofre, na cara, o bafo incendiário do calor de fora. Mal comparando, recordo nessa hora o que se informava sobre a explosão atômica, logo após o primeiro emprego do artefato em Hiroshima: "Quando a bomba explode, segue-se imediatamente uma rajada de calor violentíssimo; em seguida é que sobe ao céu o cogumelo de fogo". Não é a cara do verão do Rio?

Quando penso no fim do mundo e na infinidade de previsões com que sábios e adivinhos o descrevem, só faço a Deus um pedido: "Se o mundo se acabar ainda no meu tempo, por favor, que não seja pelo fogo!"

Pode vir por contaminação atmosférica, por peste, por colisão com outro astro, por uma grande maré que afogue os continentes. Contanto que não seja pelo fogo. Parece que o fim melhor ainda seria pelo frio. Nada de explosões e chamas, só o ar gelado tomando tudo. A gente vai se encolhendo, se amontoando uns contra os outros, tiritando, batendo o queixo. E aí, sendo o frio cada vez mais forte, baixa aquela sonolência; e se adormece e se morre, sonhando. Pelo menos assim me contou um russo, que quase morreu congelado e já foi salvo dormindo.

Pelo fogo, não!

Fonte:
Correio Braziliense. 03  de fevereiro de 2002.

Irmãos Grimm (Cinderella ou A Gata Borralheira)

A esposa de um homem rico ficou doente, e quando ela percebeu que o seu fim estava se aproximando, ela chamou a sua única filha até a cabeceira da sua cama e disse,

— Filhinha, seja boa e piedosa, e assim o bom Deus sempre te protegerá, e eu olharei por ti do céu e sempre estarei perto de ti. Dito isto, ela fechou os seus olhos e morreu. Todos os dias a jovem visitava o túmulo de sua mãe e chorava, porém, ela permaneceu boa e piedosa. Quando chegou o inverno, a neve espalhou como que um lençol branco sobre o túmulo, e quando o sol da primavera se afastou novamente, o homem conheceu uma outra esposa.

A mulher trouxe consigo duas filhas para a casa com ela, que tinham um rosto lindo e eram muito belas, porém, tinham um coração malvado e negro. Começava agora um período ruim para a pobre criança adotiva.

— Será que essa pata choca vai se sentar na sala conosco? diziam elas. Quem quer comer pão, deve trabalhar para consegui-lo; vai lá com a criada da cozinha. Elas tiraram as belas roupas que ela usava, vestiram-na com um camisolão velho e cinzento, e lhe calçaram os tamancos de madeira.

— Olhem só a princesa orgulhosa, como ela está enfeitada! elas gritavam, e riam, e a conduziram para a cozinha. Lá ela tinha de fazer o trabalho difícil desde manhã até a noite, levantar-se antes do sol raiar, carregar água, acender o fogo, cozinhar e lavar. Além disso, as irmãs a maltratavam de todas as formas possíveis — zombavam dela e derramavam todas as ervilhas e as lentilhas sobre a brasa, de modo que ela era forçada a sentar e a catar tudo de novo.

À noitinha, quando ela tinha trabalhado até se cansar, ela não tinha uma cama para dormir, mas tinha de dormir ao lado da lareira perto das cinzas. E por esse motivo ela estava sempre suja e empoeirada, e elas a chamavam de Cinderella. Aconteceu que um dia seu pai estava indo para a feira, e ele perguntou às suas duas filhas adotivas o que elas queriam que ele trouxesse para elas.

— Lindos vestidos, disse uma delas,

— Pérolas e Joias, disse a outra.

— E tu, Cinderella, disse ele, o que tu desejas?

— Pai, traga para mim o primeiro galho de árvore que bater no seu chapéu ao voltar para casa. Então ele comprou lindos vestidos, pérolas e joias para suas duas filhas adotivas, e ao retornar para casa, quando ele estava cavalgando através de um verde e denso matagal, um galho de um pé de avelã raspou nele e bateu no seu chapéu. Então ele quebrou o galho e o levou consigo. Quando ele chegou em casa, ele deu às suas duas filhas adotivas, as coisas que elas tinham pedido, e à Cinderella ele deu o galho do pé de avelã.

Cinderella lhe agradeceu, foi até o túmulo de sua mãe e plantou o galho lá, e chorou tanto que as lágrimas caíram sobre ele e o regaram. Ele cresceu, contudo, e se tornou uma bela árvore. Três vezes por dia Cinderella ia e sentava debaixo da árvore, e chorava e orava, e um pequeno pássaro branco sempre vinha também na árvore, e se Cinderella expressava um desejo, o pássaro lançava para ela o que ela tinha desejado.

Um dia, porém, o rei anunciou que haveria uma festa, a qual haveria de durar três dias, e à qual foram convidadas todas as lindas e jovens garotas do país, para que o seu filho pudesse escolher ele mesmo a esposa. Quando as duas filhas adotivas souberam que elas iriam estar presente entre os convidados, ficaram eufóricas, e chamaram Cinderella e disseram,

— Penteie o nosso cabelo, engraxe os nossos sapatos e amarre os nossos cintos, pois estamos indo a uma festa no palácio do rei.

Cinderella obedeceu, porém, chorou, porque ela também teria gostado de ir com elas para o baile, e implorou à sua madrasta que a deixasse ir. — Ires tu, Cinderella! disse ela; — Estás suja e empoeirada, e queres ir à festa? Não tendes sapatos nem roupas, e ainda queres dançar! Mas como Cinderella continuasse insistindo, a madrasta disse afinal,

— Despejei um prato de lentilhas nas cinzas para ti, se conseguires catar todas elas em duas horas, tu irás conosco. A jovem atravessou a porta dos fundos que dava para o jardim, e chamou, Oh, pombinhos bonzinhos, oh, rolinhas amorosas, e todas as aves que voam no céu, venham me ajudar
As boas podem guardar
As ruins podem comer.

Então dois pombos brancos entraram pela janela da cozinha, e depois vieram as rolinhas, e no fim todas as aves do céu, vieram chiando e fazendo algazarra, e pousaram entre as cinzas. E os pombinhos balançavam suas cabecinhas e começaram a bicar, bicar, bicar, e os outros começaram também a bicar, bicar, bicar, bicar, e colheram todos os grãos que estavam bons no prato. Nem uma hora tinha se passado quando terminaram o serviço, e todos voaram para longe novamente.

Então a garota levou o prato de lentilhas para a sua madrasta, e ficou contente acreditando que agora a madrasta deixaria que ela as acompanhasse à festa. Mas a madrasta disse,
   
— Não, Cinderella, tu não tens roupa e não sabes dançar; tu serias apenas motivo de risos. E como Cinderella começasse a chorar, a madrasta disse,

— Se conseguires juntar para mim dois pratos de lentilhas das cinzas em uma hora, tu irá conosco. E ela pensou consigo mesma, que ela com toda certeza não conseguiria. Quando a madrasta esvaziou os dois pratos de lentilhas entre as cinzas, a donzela atravessou a porta dos fundos que dava para o jardim e gritou, Oh, pombinhos bonzinhos, oh, rolinhas amorosas, e todas as aves que voam no céu, venham me ajudar.
As boas podem guardar
As ruins podem comer.

Então os dois pombos brancos entraram pela janela da cozinha, e depois vieram as rolinhas, e finalmente todas as aves do céu, vieram chiando e fazendo algazarra, e pousaram entre as cinzas. E os pombinhos balançavam suas cabecinhas e começaram a bicar, bicar, bicar, e os outros começaram também a bicar, bicar, bicar, bicar, e colheram todos as sementes que estavam boas no prato. Nem meia hora tinha se passado quando terminaram o serviço, e todos voaram para longe novamente.

Então a donzela levou os pratos para a madrasta e ficou muito feliz, acreditando que ela poderia ir com elas a festa. Mas a madrasta disse,

— Nada disto vai adiantar; tu não irás conosco, porque não tens roupa e não sabes dançar; Nós teríamos vergonha de ti! Dizendo isso, virou as costas para Cinderella, e desapareceu, com suas duas filhas orgulhosas.

Como ainda não havia ninguém em casa, Cinderella foi até o túmulo de sua mãe, debaixo do pé de avelã, e clamou,

Balance e se agite, árvore querida,
Ouro e prata encham a minha vida.

Então o pássaro lançou para ela um vestido de ouro e prata, e sapatos enfeitados de seda e prata. Ela colocou o vestido com toda pressa, e foi para a festa. As irmãs adotivas e a madrasta entretanto não a reconheceram, e pensavam que ela devia ser uma princesa estrangeira, porque ela estava tão linda em seu vestido dourado. Jamais poderiam pensar sequer que ela fosse Cinderella, e acreditavam que ela tinha ficado em casa sentada na sujeira, catando lentilhas das cinzas. O príncipe foi encontrá-la, pegou-a pela mão e dançou com ela. Ele não quis dançar com nenhuma outra donzela, e jamais soltava de suas mãos, e se alguma outra pessoa vinha para convidá-la, ele dizia,

— Ela é a minha companheira.

la dançou até o anoitecer, e então ela quis ir para casa. Mas o filho do rei disse,

— Irei contigo e te farei companhia, porque ele queria conhecer a família da bela donzela. Ela fugiu dele, todavia, e se escondeu na casa do pombo. O filho do rei esperou até que o pai dela chegou, e então ele lhe disse que a estranha donzela havia se escondido na casa do pombo. O velho pensou, — Terá sido Cinderella? e lhe trouxeram um machado e uma picareta para que ele pudesse reduzir a pedacinhos a casa do pombo, mas não havia ninguém dentro.

E quando eles chegaram em casa Cinderella estava com suas roupas sujas mexendo nas cinzas, e uma lamparina pequena e fraca que estava queimando na lareira, pois Cinderella tinha pulado rapidamente dos fundos da casa do pombo e correu para o pé de avelãs, e lá el tirou o seu belo vestido e o colocou em cima do túmulo, e o pássaro o levou de volta novamente, e depois ela voltou para a cozinha entre as cinzas com seu vestido cinzento.

No dia seguinte, quando a festa começou novamente, e os pais dela e as duas irmãs tinham ido mais uma vez, Cinderella foi até o pé de avelã e disse

Balance e se agite, árvore querida,
Ouro e prata encham a minha vida.

Então o pássaro lançou para ela um vestido mais lindo do que o dia anterior. E quando Cinderella apareceu na festa com esse vestido, todos ficaram maravilhados com a sua beleza. O filho do rei havia esperado até que ela chegasse, e imediatamente a pegou pelas mãos e não dançou com nenhuma outra, apenas com ela. Quando outros vinham e a convidavam para dançar, ele dizia,

— Ela é a minha companheira. Quando a noite chegou ela quis sair, e o filho do rei a seguiu e queria ver em que casa ela tinha entrado.

Mas ela escapou dele, e correu para o jardim que havia atrás da casa. Lá ficava uma árvore bela e alta onde havia as peras mais maravilhosas. Ela subiu com tanta agilidade entre os galhos, como se fosse um esquilo, que o filho do rei não percebeu onde ela tinha ido. Ele esperou até que o pai dela chegasse, e disse-lhe, A estranha donzela fugiu de mim, e eu acho que ela subiu o pé de pera. O pai dela pensou, Teria sido Cinderella? então ele pegou um machado e derrubou e destruiu a árvore, mas não havia ninguém nela. E quando eles chegaram à cozinha, Cinderella estava entre as cinzas, como sempre, pois ela tinha pulado do outro lado da árvore, tinha levado o lindo vestido para o pássaro que ficava no pequeno pé de avelãs, e vestiu o seu vestido cinzento.

No terceiro dia, quando seus pais e suas irmãs já tinham ido para a festa, Cinderella foi mais uma vez ao túmulo de sua mãe e disse para a pequena árvore

Balance e se agite, árvore querida,
Ouro e prata encham a minha vida.

E então o pássaro lançou para ela um vestido que era mais esplêndido e magnífico do que qualquer um que ela já tivesse visto, e os sapatos eram de ouro. E quando ela foi para a festa usando o vestido, ninguém nem conseguia falar de tanto deslumbramento. O filho do rei dançou somente com ela, e se alguém a convidasse para dançar, ele dizia,

— Ela é a minha companheira.

Quando a noite chegou, Cinderella queria ir embora, e o filho do rei estava ansioso para ir com ela, mas ela fugiu dele tão rapidamente que ele não conseguiu segui-la. O filho do rei, no entanto, usou de um estratagema, e tinha mandado que toda a escada fosse untada com piche, e então, quando ela fugiu, o sapato esquerdo da donzela ficou colado. O filho do rei o apanhou, e ele era pequeno e gracioso, e todo de ouro.

Na manhã seguinte, ele levou o sapato para o seu pai, e disse para ele, — Ninguém será a minha esposa, exceto aquela cujo pé couber dentro destes sapatos de ouro.
   
Então as duas irmãs ficaram contentes, porque elas tinham pés bonitos. A mais velha delas entrou com a sandália no seu quarto e quis experimentá-lo, e a mãe dela ficou por perto. Mas ela não conseguiu colocar o seu dedão enorme dentro dela, e a sandália era muito pequena para ela. Então a mãe dela lhe deu uma faca e disse,

— Corte o dedão fora; quando fores a rainha não precisarás mais andar a pé. A donzela cortou o dedão fora, forçou o pé dentro do sapato, engoliu a dor, e foi até o filho do rei. Então ele a levou em seu cavalo como sua noiva cavalgou para muito longe com ela. Contudo, eles foram obrigados a passar perto do túmulo, e lá, em cima do pé de avelãs, estavam dois pombos que gritavam,

Preste atenção, preste atenção,
Há sangue dentro do sapato,
O sapato é pequeno demais para ela,
A verdadeira noiva está te esperando.

Então ele olhou o pé dela e viu que havia sangue pingando dele. Deu a volta com o cavalo e levou a falsa noiva de volta pra casa, e disse que ela não era a verdadeira, e então a outra irmã também quis colocar o sapato. Então ela entrou no seu quarto e os dedos dela entraram no sapato sem problemas, mas o seu calcanhar era grande demais. Então a mãe dela pegou uma faca e disse,

— Corte um pedaço do seu calcanhar; quando fores rainha não precisarás mais andar a pé. A donzela cortou um pedaço do seu calcanhar, forçou o seu pé até entrar no sapato, engoliu a dor, e foi até a casa do filho do rei. Ele a levou em seu cavalo como sua noiva, e cavalgou para longe com ela, mas quando eles passavam perto do pé de avelãs, dois pombinhos estavam sentados no galho e gritavam,

Preste atenção, preste atenção,
Há sangue dentro do sapato,
O sapato é pequeno demais para ela,
A verdadeira noiva está te esperando.

Ele olhos os pés dela e viu que sangue estava escorrendo de seu sapato, e que ele havia manchado as meias brancas dela. Então ele virou o seu cavalo e levou a falsa noiva novamente para casa. Esta também não é a verdadeira, disse ele, você não tem uma outra filha?

— Não, disse o homem, — Há ainda uma pequena e raquítica ajudante de cozinha que a minha falecida esposa me deixou, mas possivelmente ela não poderá ser a noiva. O filho do rei exigiu que fosse chamá-la para que viesse até ele; mas a mãe respondeu, — Oh não, ela é muito suja, ela não pode se apresentar! Ele voltou a insistir, e Cinderella teve de ser chamada.

Ela lavou primeiro as suas mãos e o seu rosto, e depois foi e fez reverência diante do filho do rei, que ofereceu a ela o sapato de ouro. Então ela se sentou em um banquinho, e tirou de seus pés o pesado tamanco de madeira, e os colocou dentro do sapato, o qual entrou como uma luva. E quando ela se levantou e o filho do rei olhou para o rosto dela ele reconheceu a linda donzela que havia dançado com ele e gritou,

— Essa é a noiva verdadeira! A madrasta e as duas irmãs ficaram horrorizadas e pálidas de tanto ódio; ele, entretanto, levou Cinderella em seu cavalo e cavalgou para longe com ela. Quando eles passavam perto do pé de avelãs, os dois pombinhos brancos gritavam,

Preste atenção, preste atenção,
Não há sangue dentro do sapato,
O sapato não é pequeno demais para ela,
A verdadeira noiva está com você.

E depois de terem dito isso, os dois pombinhos desceram voando e pousaram nos ombros de Cinderella, um à direita, e o outro à esquerda, e ali permaneceram sentados.

Quando o casamento com o filho do rei foi celebrado, as duas falsas irmãs vieram e queriam conquistar os favores de Cinderella e dividir com ela a sorte conquistada. Quando o casal de noivos foram para a cidade, a mais velha ficou do lado direito e a mais jovem do lado esquerdo, e os pombinhos arrancou um olho de cada uma dela. Depois que elas voltaram para casa, a mais velha ficou à esquerda, e a mais jovem a direita, e os pombinhos arrancaram o outro olho de cada uma delas. E assim, por causa da maldade e da falsidade delas, elas foram punidas com a cegueira até o fim da vida delas.

Fonte:
Contos de Grimm

Jangada de Versos do Ceará (11) – Quintino Cunha

José Quintino da Cunha
Itapajé  (1875 -1943) Fortaleza


ENCONTRO DAS ÁGUAS
(Rios Negro e Solimões)

Vê bem, Maria, aqui se cruzam: este
É o rio Negro, aquele á o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe,
Como as saudades com as recordações.

Vê com se separam duas águas.
Que, se querem reunir, mas visualmente;
É um coração que quer reunir as mágoas
De um passado, às venturas de um presente.

 É um  simulador só, que as águas donas
Desta terra não seguem curso adverso,
Todas convergem para o Amazonas,
O real rei dos rios do Universo;

Para o velho Amazonas, Soberano
Que, no solo brasílio, tem o Paço;
Para o Amazonas, que nasceu humano,
Porque afinal é filho de um abraço!

Olha esta água, que é negra como tinta,
Posta nas mãos, é alva que faz gosto;
Dá por visto o nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem de um desgosto.

Aquela outra parece amarelaça,
Muito, no entanto, é também limpa, engana;
É direito a virtude quando passa
Pela flexível virtude quando passa

Que profundeza extraordinária, imensa,
Que profundeza ais que desconforme!
Este navio é uma estrela, suspensa
 Neste céu d’água, brutalmente enorme.

Se estes dois rios fôssemos, Maria,
Todas as vezes que nos encontramos,
Que Amazonas de amor não sairia
De mim, de ti, de nós que nos amamos!...

A PIRACEMA

Aqui é um lago, feito de água clara;
Visualmente negro se mostrando;
Calmo que sobre si passa uma igara,
Como no espaço um passarinho voando.

Sol, das dez da manhã. O amor compara
Este quadro à virtude. Um vento brando...
Mas lá fora no rio. Ele aqui pára,
O lago, a mata e o Céu quietos deixando.

Do anivelado espelho d'água, apenas
Manchado levemente por pequenas
Nódoas que lhe colorem, nódoas cérulas,

Aos bandos, as sardinhas vão surgindo,
Frágeis, cambiantes, rápidas fugindo,
Como travessas conchas madrepérolas.

VISTA IGNOTA

Há um ruído infernal, dentro do leito
Do rio. A lontra rosna. A capivara
Espavorida esconde-se no estreito
De um paraná, que a enchente ali formara.

O jacaré, levando tudo de eito,
Foge, estrugindo horrivelmente; e, para
Mais aumentar o grande ruído feito,
O rio inteiro se convulsionara...

E, enquanto em medo tudo se alvorota,
Nesta paisagem visualmente ignota,
Mas facilmente do índio percebida,

Uma anta firme, calma que arrebata,
Corta o fundo das éguas, distraída,
Como se fosse andando pela mata!...

VAZANTE
O mês de julho mostra um tempo novo
Em tudo: à margem pousa alegre bando
De borboletas, cor de gema de ovo,
O declive das águas anunciando.

Da floresta central, de lá de ignotas
Matas, voltam, da imensa arribação,
Os maguaris, as garças e as gaivotas,
- A beleza das praias no verão!

E o uirapajé cantando, e a saracura
Cantando, em fim o plácido barulho
Das aves todas, dá-nos a envoltura
Dessas manhãs esplêndidas de julho.

A própria vida mais amor exalta,
Nesses dias magníficos, sem-par,
Quando mais se ouve o canto da pernalta,
No alegre anseio de nidificar.

EPÍLOGO
Só de um lance de vista a ideia morre,
Sem ver no Solimões grandeza alguma;
Porque assim de relance, mal parece
Um vasto espelho de moldura verde
Onde o Céu tem costume de mirar-se!

Vede-o alternadamente:

                                      É um mar tranquilo
Onde passa um navio. Agora, é a praia
— Branca toalha de Deus ao Sol corando,
Uma igara, que o desça, a vida lembra
No declive do mundo enfurecido,
E ora tão calmo, das paixões humanas.
A garça que ali pouse, é o ponto branco
Da pulcra proposição: — a ave é a poesia.
Se porventura o vento o agita, um coro
De banzeiros, em lágrimas desfeito,
Ecoa ao longe, no íntimo das matas!

O louro-rosa, o cedro, a samaumeira,
Quando derivam na voraz corrente,
Lembram destroços de cruel derrota
Da mais tremenda luta pela vida.
Quando à margem fervilha a piracema
De jaraquis, pacus, mandis, sardinhas,
Frágeis, cambiantes, madreperoladas,
Vezes subindo à flor d'água, e de novo,
Quando o dourado ou o boto lhes persegue,
Caindo como bátegas de chuva
Na coberta de zinco das barracas,
Igualando-os, no meio, a piraiua
Como a queda de um'árvore na mata,
Ou mesmo a pirarara, arremedando
As lavadeiras quando batem roupa;
Quando estrugindo o jacaré bubuia,
Na defesa dos filhos pequeninos,
Se humana voz em terra os arremeda;
Quando, à mercê da simples correnteza,
De bubuia, nas árvores que descem,
As gaivotas também descem reunidas,
Como um bando de náufragos, que buscam
Salvação nos destroços, que flutuam,
Da galera infeliz da humanidade,
Se tal galera a mata imensa fosse;
E quando outras no ar recurvam voares
E o corta-água e a ariramba gaivoteiam,
Assim, sim, já se pode ter em mente
Que o território desse rio imenso,
Sem marcos miliários confinantes,
É um país ideal, cheio de assombros,
E de verdades e d'encantos cheio!

Vede-o profundamente:

                                      No seu seio
Milhões de seres encantados moram,
Mitologicamente idealizados:
De Uirará, de Unutara, de Honorato,
À virginal Ararambóia, à Iara,
Iara — a formosa imperatriz netúnica,
A sereia fluvial, por cujo canto,
Perdera a fala a fauna ictiológica,
Subjugando-a, vencendo-a, dominando-a,
Como o próprio Tupã, do alto de Iuaca

Na pátria pois das ilhas flutuantes,
Onde Boiaçu nos dera a noite.
E onde Membiíra rosna como a onça,
Quando os botos suspiram como gente,
Os botos, filhos da encantada corte,
Nesse canto, patrícios, a poesia
Não flutua, mas vive como os peixes!...
.............................................................

Dá-me, Amor Pátrio, com que agora o veja
De um moroso galerno, espanejado,
Como uma taça imensa, onde Iara beba
À saúde do Sol que nos aclara,
Com esse licor original de sombras
— Sombras de nuvens, dissolvidas n'água!

Fontes:
– CUNHA, Quintino. Pelo Solimões : versos norte-brasileiros. Paris: 1907.
–  Antonio Miranda

Teófilo Braga (A da Varanda)

Recolhido no Algarve

Era uma vez um mercador que tinha uma filha linda como as estrelas e ladina como os diabos. Pegado à varanda dela era o quintal do rei. Todas as tardes ela ia regar as suas flores, e tinha um grande manjericão. O rei começou a gostar muito dela, e já a esperava à hora certa para a ver, e perguntava-lhe sempre:

– Oh menina, visto ser
De tanta discrição,
Há de me saber dizer
Quantas folhas tem o seu manjericão?

Ela dava-lhe o troco, dizendo:

– Vossa majestade, que sabe
Ler, escrever e contar,
Há de saber quantos bagos
De areia tem o mar?

O rei começou então a ver se podia pregar uma peça à rapariga, e aproveitou uma ocasião em que o mercador tinha saído para fora da terra. Arranjou uma tenda com quinquilharias, e foi vestido de tendeira a casa dela. A filha do mercador mandou-a entrar sem suspeitar mal; o rei levava um anel muito rico, que deixou a rapariga encantada. Gabou-o muito com pena de o não poder comprar; mas a tendeira disse-lhe:

– Eu, minha menina, dou-lhe o anel se me der um beijinho; estou perdida por si; mesmo que seja por cima deste véu que trago pela cara.

Quem mal não pensa mal não vê, a rapariga deu o beijo e ficou com o anel.

De tarde quando foi regar as flores, apareceu o rei, como de costume:

– Oh menina, visto ser
De tanta discrição,
Há de me saber dizer
Quantas folhas tem o seu manjericão?

E ela retrucou logo:

– Vossa majestade, que sabe
Ler, escrever e contar,
Há de saber quantos bagos
De areia tem o mar?

O rei, que ficou calado, continuou:

– E aquele beijo que deu
Mesmo por cima do véu?…

A rapariga ficou capaz de morrer; fez-se muito vermelha e jurou de si para si que se havia de vingar. Vai um dia, veste-se de preta, e foi a casa do rei oferecer-se para criada; primeiro combinou com o seu criado, que de noite botasse na varanda do rei a cabra que tinham no quintal.

O rei tomou logo a pretinha para si, porque era muito engraçada, e com medo que ela lhe fugisse deitou-a num quarto ao pé do seu, com uma fita amarrada ao braço dela.

De noite o rei puxou pela fita e ainda a pretinha respondeu; mas assim que o rei pegou no primeiro sono, a rapariga desamarrou-se, foi buscar a cabra muito devagarinho, pô-la em seu lugar, e foi-se embora.

Quando o rei acordou, lembrou-se da pretinha, que era de encantar, puxou-a pela fita para a sua cama, mas a cabra começou a berrar, e o rei espantado a gritar que tinha o diabo em casa; acudiu muita gente e todos viram a cabra em vez da preta no quarto do rei.

No outro dia à tarde, o rei foi ver a filha do mercador, que andava a regar e perguntou-lhe:
– Oh menina, visto ser
De tanta discrição,
Há de me saber dizer
Quantas folhas tem o seu manjericão?

E ela, em despique:

– Vossa majestade, que sabe
Ler, escrever e contar,
Há de saber quantos bagos
De areia tem o mar?

Diz o rei:

– E o beijinho por cima do véu?…

E ela:

– E a cabra que fez méu, méu?…
   
O rei conheceu que ela o tinha desfrutado, mas achou-lhe graça. A rapariga não quis ficar por aqui. Soube que o rei ia para uma caçada, vestiu-se de homem, montou numa mula, e levou consigo uma máscara, e foi seguindo a comitiva de longe.

Depois de muito andar, o rei disse para parar um pouco, e que o deixassem sozinho. Assim que os cavaleiros se afastaram para longe, a rapariga tira a máscara da algibeira, saca de um punhal e vai para o rei, como quem quer matá-lo, e grita-lhe:

– Beije já o rabo da minha mula, senão mato-o aqui já.

Naqueles apertos, o rei como estava ali sozinho beijou o rabo da mula.

A rapariga voltou para casa; no outro dia estava regando as flores, e o rei apareceu, e fez as perguntas do costume:

– Oh menina, visto ser
De tanta discrição,
Há de me saber dizer
Quantas folhas tem o seu manjericão?

E ela:

– Vossa majestade, que sabe
Ler, escrever e contar,
Há de saber quantos bagos
De areia tem o mar?

Diz o rei:

– E aquele beijo que deu
Mesmo por cima do véu?…

Ela:

– E a cabra que fez méu, méu?…

O rei:

– Não se finja tão fula.

Ela:

– E o beijo no rabo da mula?

O rei lembrou-se do acontecido, achou-lhe muita graça, e quando o mercador voltou à terra foi pedir-lhe a filha em casamento, porque com uma mulher tão esperta havia de ser por força muito feliz.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Laurindo Ribeiro (Poesias Avulsas) III

AMOR-PERFEITO

Secou-se a rosa... era rosa;
Flor tão fraca e melindrosa,
Muito não pôde durar.
Exposta a tantos calores,
Embora fossem de amores,
Cedo devia secar.

Porém tu, amor-perfeito,
Tu, nascido, tu afeito
Aos incêndios que amor tem,
Tu que abrasas, tu que inflamas,
Tu que vegetas nas chamas,
Por que secaste também?!

Ah! bem sei. De acesas fráguas
As chamas são tuas águas,
O fogo é água de amor.
Como as rosas se murcharam,
Porque as águas lhes falharam,
Sem fogo murchaste, flor.

É assim, que bem florente
Eras, quando o fogo ardente
De uns olhos que raios são,
Em breve, mas doce prazo,
Te orvalhou naquele vaso
Que, já foi meu coração.

Secaste, porque esse pranto
Que chorei, que choro há tanto,
De todo o fogo apagou.
Triste, sem fogo, sem frágua
Secaste, como sem água,
A triste rosa secou.

Que olhos foram aqueles!
Quando eu mais fiava deles
Meu presente e meu porvir,
Faziam cruéis ensaios
Para matar-me. Eram raios,
Tinham por fim destruir.

Destruíram-me: contudo
Perdoo o pesar agudo,
Perdoo a pungente dor
Que sofri nos meus tormentos,
Pelos felizes momentos
Que me deram nesta flor.

Ai! querido amor-perfeito!
Como vivi satisfeito,
Quando te vi florescer!
Ai! não houve criatura
No prazer e na ventura
Que me pudesse exceder.

Ai! seca flor, de bom grado,
Se tanto pedisse o fado,
Quisera sacrificar
Liberdade e pensamento,
Sangue, vida, movimento,
Luz, olfato, sons e ar.

Só para ver-te florente,
Como quando o fogo ardente,
De uns olhos que raios são,
Em breve, mas doce prazo,
Te orvalhou naquele vaso
Que já foi meu coração.

DOIS IMPOSSÍVEIS

Jamais! quando a razão e o sentimento
Disputam-se o domínio da vontade,
Se uma nobre altivez nos alimenta
Não se perde de todo a liberdade.

A luta é forte: o coração sucumbe
Quase nas ânsias do lutar terrível;
A paixão o devora quase inteiro,
Devorá-lo de todo é impossível!

Jamais! a chama crepitante lastra,
Em curso impetuoso se propaga,
Lancem-lhe embora prantos sobre prantos,
É inútil, que o fogo não se apaga.

Mas chega um ponto em que lhe acena o ímpeto
Em que não queima já, mas martiriza,
Em que tristeza branda e não loucura
À razão se sujeita e harmoniza.

É nesse ponto de indizível tempo
Onde, por misterioso encantamento,
O sentir a razão vencer não pode,
Nem a razão vencer ao sentimento.

No fundo de noss’alma um espetáculo
Se levanta de triste majestade,
Se de um lado a razão seu facho acende
De outro os lírios seus planta a saudade.

Melancólica paz domina o sítio,
Só da razão o facho bruxoleia
Quando por entre os lírios da saudade
Do zelo semimorto a serpe ondeia!

Dois limites então na atividade
Conhece o ser pensante, o ser sensível:
Um impossível — a razão escreve,
Escreve o sentimento outro impossível!

Amei-te! os meus extremos compensaste
Com tanta ingratidão, tanta dureza,
Que assim como adorar-te foi loucura,
Mais extremos te dar fora baixeza.

Minh’alma nos seus brios ofendida
De pronto a seus extremos pôs remate,
Que mesmo apaixonada uma alma nobre
Desespera-se, morre, não se abate.

Pode queixar-se inteira a felicidade
De teu olhar de fogo inextinguível,
Acabar minha crença, meu futuro,
Aviltar-me! jamais! É impossível!

Mas a razão, que salva da baixeza
O coração depois de idolatrar-te,
Me anima a abandonar-te, a não querer-te,
Mas a esquecer-te, não, sempre hei de amar-te!

Porém amar-te desse amor latente,
Raio de luz celeste e sempre puro
Que tem no seu passado o seu presente,
E tem no seu presente o seu futuro.

Tão livre, tão despido de interesse,
Que para nunca abandonar seu posto,
Para nunca esquecer-te, nem precisa
Beber, te vendo, vida no teu rosto.

Que, desprezando altivo quantas graças
No teu semblante, no teu porte via,
Adora respeitoso aquela imagem
Que deles copiou na fantasia.

Fonte:
Laurindo Ribeiro. Poesias Completas. Fundação Biblioteca Nacional

Carlos Heitor Cony (O Bem Amado das Pulgas)

Até que era asseado, tomava banho todos os dias, mas tinha o sangue que ele considerava "doce", daí que era perseguido desde a remota infância por pulgas - das quais se julgava alvo preferencial e inimigo irreconciliável.

Pegou pulga até mesmo durante uma viagem ao Canadá - país civilizado que ele julgava isento de pulgas. Lembrei a ele que a pulga canadense talvez fosse importada, ele a levara na bagagem, junto com um complicado equipamento para pescar acho que trutas, num riacho perto de Quebec.

Certa vez ele armou uma colossal hipótese para explicar sua birra contra as pulgas, ou mais exatamente, das pulgas contra ele:

Imagine o Maracanã cheio, 200 mil pessoas como no final da Copa de 50. Além das 200 mil pessoas, os 22 jogadores, os reservas, o juiz, os dois bandeirinhas, os fiscais da Fifa, os policiais, os gandulas, os fotógrafos, os penetras vários. Ao todo, umas 210 mil pessoas. Vai começar a partida. O juiz coloca a bola no meio do campo e prepara-se para o apito inicial. Nisso, uma pulga - uma única e escassa pulga - está em cima da bola e sente que será chutada. Resolve sair de cima da bola. Tem à disposição 210 mil pessoas, nem todas banhadas naquele dia, nem todas de roupas trocadas. Pois bem, 15, 20 minutos de bola rolando no campo, a pulga vem diretamente para mim. Num ângulo de 360 graus, com toda uma multidão a seu dispor, ela vem por ínvios caminhos até onde estou, atraída pelo meu sangue doce.

Apreciei devidamente a hipótese levantada por ele. Mas se houvesse 210 mil pulgas em cima da bola, todas elas iriam sugar seu doce sangue? Ou se dividiriam democraticamente pelo estádio, cabendo uma pulga a cada torcedor?

Ele não previra a hipótese dentro da hipótese. Foi com horror que se imaginou atacado por 210 mil pulgas ao mesmo tempo.

Nunca mais frequentou estádios, vê jogos pela TV.

Fonte:
Jornal do Commercio. Rio de Janeiro/RJ. 15  de junho de 2002.

Vuldembergue Farias (Versos Melódicos) II


SER SUPREMO

Primeiro, último e único
Está certo em linhas tortas
O acento é sempre tônico
Está nas folhas vivas ou mortas
Não sabe o que são derrotas

Espírito, carne e sabedoria
Na difusão dos ensinamentos
Pela nossa hipocrisia
Pelas contas, é mais, sem menos

Finito e infinito
No futuro e no presente
Está na Lei, está escrito
Para o proscrito e o ausente

Quem quer um conselho, tome
Não se fale em seu nome
Não se faça uma promessa
Não se cale o sobrenome
Nem pense que não interessa
Pra que tanta pressa?

Ao sinal dos tempos vãos
E dos pedidos extremos
O que será de nós senão
Apelar a um ser supremo.

VALSA ESPANHOLA

Andando pelo Bétis de Andaluzia
À beira do Mediterrâneo vejo o mar
Hoje, oh! Guadalquivir
Me leva para o mar

A procura de Dolores Sierra
Pela terra, feito abelha
Nas pistas vermelhas
Com espelhos volto a ver
Meu bem querer

Naquele navio, por um fio
Por instantes torno a sonhar
Com aquele olhar

Não tem mais beira do cais
Nem tem mais castanholas
Não tem companhia
Sem sarjeta, sem peseta
De noite e de dia
Ninguém lhe dá mais

Volto à realidade dura do trabalho e solidão
Com a ilusão de um dia te encontrar
E nunca mais deixar
Partir para Barcelona
Viver sob a mesma lona
Sem pensar que um dia houve adeus
E agradecer de novo a Deus
A vida afora

SER FELIZ E BEM VIVER

O bom cabrito não berra
Mas não tenho que engolir sapo
Nesse mundo quem não erra
É porque está no buraco

Esse cara é um louco
Mas ele tem muito juízo
Todo mundo tem um pouco
Da excelência do "ISO"

Quem muito abaixa a cabeça
Mostra o fundo das calças
Faça com que aconteça
As coisas sempre de graça

Mas quem tem a costa larga
Pode aguentar o tranco
De trabalho, dessa carga
Eu estou lhe sendo franco

Esses ditos populares
São pra alertar você
Para não abdicares
De ser feliz e bem viver

CONFLITO INTERIOR

Corre em minhas veias
Esse sangue colorido
Como se fosse uma teia
Com o fio corrompido
Entre lapsos de tristeza
E alegria que me tiram a sutileza
Sem forças para dominar
Esse amor que é um mar

Tudo se complica
Ao te ver passar
Seguir sem pensar
Isso é o que implica
Demonstrar nobreza
Na tua presença
Prefiro ausência
A mostrar tristeza

Enquanto luto contra esse amor
Que já muito intenso
Enquanto eu fraco for
Me deixa mais tenso
Sem te poder ter
Preciso força
Prá não perder o senso

SURREAL

Bem no deserto profundo
Bem no meio do oco do mundo
Num segundo percorro uma vida
Sem ter peso e sem medida

Nunca se sabe o que vem
Certeza também ninguém tem
Olhar para frente ou pra trás
Sem ficar com o pé atrás

Se eu tivesse a razão principal
Sairia na folha central
Poderia encarar o futuro
Pra sair do imenso escuro

Tomando um caminho aberto
Certamente seria concreto
Caminhando ou voando veloz
Como um bicho ou um ente feroz

No caminho poente do sol
Ou do cometa do arrebol
Na chapada ou no pantanal
Entre o surreal e o real

AMOR E PAIXÃO

O amor é como o tempo
Lúcido, firme, constante
Paixão é como o vento
Extravagante

Sem direção
Inconsequente
Louca
Sabor ardente

No mar de amor e paixão
Maior abismo
Fosso profundo
Tamanho do mundo

Profano e puritano
Tal qual pororoca
Tal qual rio e oceano
Tal qual cinema e pipoca

UNIVERSO PARALELO

Imagino o mundo de Nárnia,
Onde preconceitos, vaidades e culpas
Não podem entrar.
Ah! Aslam, criador de todo esse universo
Seu protetor em prosa e verso
A feiticeira branca foi derrotar

Assim aqui também quimera
Num universo paralelo
Das casas de troca de pares
As coisas fora de lugares
Ao som de Bolero de Ravel
Nem parece o castelo Cair Paravel

Fonte:
Clube Caiubi

Auta de Souza (Horto)

Análise por Adelina Maria, especialista em Literatura, professora de Língua Portuguesa e Literatura

O livro Horto, de Auta de Souza, é a história de uma grande dor. Formou-o a autora recordando, sentindo, penando. Não se tratava apenas de um relato de vida em versos, tampouco de uma escritora feminina oitocentista, preparada apenas para amar Cristo sob todas as circunstâncias, ela também rompia as barreiras da escrita feminina, pois nessa época, a sociedade estava voltada em especial, para conferir visibilidade social ao homem, não a mulher, havia o sexismo da crítica, a figura feminina era preparada para “anjo do lar”.

Sua poesia é dotada de um lirismo cheio de pureza e com uma vocação legitimada que marca um estilo próprio, vocação essa reconhecida por ela mesma, ao se definir como “noiva da poesia”, amava o verso. Despreocupada com qualquer engajamento literário, não se filiou a nenhuma escola. O gosto pelo individual em detrimento a objetividade da vida, mística de seus versos, permite o questionamento dos críticos literários em torno de seu estilo: simbolista? parnasiano? romântico? Do ponto de vista da técnica inconfundível do uso de letras maiúsculas nos substantivos comuns, na busca de evidenciar um conteúdo sugestivo e ainda, se considerarmos o caráter místico e religioso de sua obra, revela-se o Simbolismo, a exemplo disso “Crepúsculo”:

O Ângelus soa vagarosamente
A noite desce plácida e divina.
Ouço gemer meu coração doente
chorando a tarde, a noiva peregrina.


Evidentemente o título do livro Horto, numa construção metafórica, faz menção ao local em que Jesus se refugiou para os seus últimos momentos de agonia na cruz e menção ao interior do eu-poético, marcando assim a religiosidade e o subjetivismo, marcas também do Simbolismo. Percebe-se que em seus escritos também se refletem as leituras de românticos como Castro Alves, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias, esses dois últimos responsáveis pela entrada da literatura em sua vida. Não há como negar que o estilo desses autores se presenteia em sua poesia, há um forte apelo do momento com marcas de romantismo. Atrelando-se a esse estilo, de certa forma o Simbolismo, que é nela uma continuação do Romantismo, tendo como elementos comuns a espiritualidade, a interiorização, o subjetivo, o vago, o misterioso, o ilógico, há sim um neo-romantismo, até porque os dois em sua obra não se anulam, se complementam.

Há ainda um inegável conhecimento da forma: soneto com 16 versos, que abre com os dois primeiros decassílabos do segundo quarteto, como epígrafe:

Há pelo espaço um ciciar dolente
De prece em torno da igrejinha em ruínas...

Um prestígio parnasiano em sua obra, o que explica a presença de Olavo Bilac como responsável pelo prefácio da obra. O poeta compartilha com a criação poética de Auta de Souza ao fazer referência à obra “Horto”: “[...] O labor pertinaz de uma artista, transformando as suas ideias, as suas torturas, as suas esperança em pequenas jóias”.

Tratava-se antes de tudo, de uma jovem solitária que buscava em sua poesia a aceitação da existência, versos de sua alma e a razão de viver. Trata-se de uma poeta do “sensível” e “invisível”, que põe em seus versos o discurso de Jesus, num diálogo de confiança.

[...]
“Filha adorada que o teu gemido
Ergueste n’ asa de uma oração,
Na treva escura sempre envolvido,
Por que soluça teu coração?”
[...]


Nos versos da poeta pode-se estabelecer uma relação do sentimento de vida do eu poético comparando-os ao momento de sofrimento de Jesus na cruz, Auta de Souza sofreu unida à cruz do Salvador. E foi esse o grande e iluminoso consolo, principalmente para familiares e amigos que viam a cada momento definhando uma jovem pela doença conhecida como mal-do século (tuberculose), também como “A dama branca”. Não se pode esquecer que o modelo católico ocidental da época preparava as moças católicas para a morte, identificando-a com os sofrimentos do Cristo.

Em palestra pronunciada em Macaíba, pequena cidade Rio Grande do Norte, no dia 12 de setembro de 1976, em comemoração ao centenário de nascimento da poeta (1876-1976), o professor e membro da Academia de Letras, José Melquiades, considerou exagero a afirmação de que a poesia de Auta de Souza fosse apenas uma poesia essencialmente católica. Se considerarmos o poema “Versos ligeiros”, percebemos a amplitude de uma escritora que não está emblemática a um tema, mas sim a um “devaneio cósmico que se insere em sua realidade”, que ousa quebrar tabu e que não deve apenas ser reconhecida como poesia “católica”, mesmo que seus textos sejam marcados com alusões aos cânones católicos e influência de formação da época. Na obra, eles são resignificados como metáforas, numa busca do eu-poético em alcançar a plenitude em Jesus Cristo, independentemente de sua condição humana . Ela deixou sim, uma mensagem espiritual, não apenas para igreja, mas para as crianças de sua terra, para a sua família, para os amigos, desnudando o seu cotidiano de forma sublime, poética e não divina. Assim, a sua poesia como “Num leque”, abre-se para possibilitar um sopro novo e não apenas crenças cristalizadas. É possível perceber em Auta de Souza uma poesia simples, mas madura, que rompe a barreira de um Romantismo “piegas” e navega na imaginação “doce” de uma realidade “dura”, marcada muitas vezes pelo realismo que se projeta em temas do cotidiano, a conferir-lhes em sua obra os poemas: “Versos ligeiros”, “No álbum de Dolores”.

“A noiva do verso” despediu-se cedo da vida, não cantou “amores” como era de esperar de uma jovem de sua idade, a convivência com “a dama branca” impedia-lhe de uma vida natural e assim o sofrimento diário, junto à intimidade do verso, levou-a uma relação maior com um outro amado, Jesus Cristo, sentimento esse que aparece como exemplo de contemplação ao divino e refúgio para lhe aliviar o constante sofrimento. “A via crucis de Jesus” se repete no livro Horto, através de um eu lírico carregado de um sentimento panteísta que junto ao cotidiano dessa jovem poeta, promove a transformação do universo poético e místico em um sentimento paradoxal de viver e morrer em plenitude.

RENASCIMENTO

A Olegária Siqueira

Manhã de rosas. Lá no etéreo manto,
O sol derrama lúcidos fulgores,
E eu vou cantando pela estrada, enquanto
Riem crianças e desabrocham flores.

Quero viver! Há quanto tempo, quanto!
Não venho ouvir na selva os trovadores!
Quero sentir este consolo santo
De quem, voltando à vida, esquece as dores.

Ouves, minh’alma? Que prazer no ninhos!
Como é suave a voz dos passarinhos
Neste tranqüilo e plácido deserto!
 
Ah! entre os risos da Natura em festa,
Entoa o hino da alegria honesta,
Canta o Te Deum, meu coração liberto!


Fonte:
Adelina Maria, especialista em Literatura, professora de Língua Portuguesa e Literatura, disponível em Passeiweb

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Ariano Suassuna (Poemas Escolhidos) II

AQUI MORAVA UM REI

Aqui morava um Rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão
Pedra da sorte sobre o meu destino
Pulsava junto ao meu seu coração

Para mim, seu cantar era divino
Quando ao som da viola e do bordão
Cantava com voz rouca o desatino
O sangue o riso e as mortes do sertão

Mas mataram meu pai, desde esse dia
Eu me vi como um cego sem meu guia
Que se foi para o sol, transfigurado

Sua Efígie me queima, eu sou a presa
Ele a brasa que impele ao fogo, acesa,
Espada de ouro em Pasto Ensanguentado

A MORTE DO TOURO MÃO DE PAU
Musicado por Antonio Nóbrega

"Ariano Suassuna escreveu esse poema em memória de seu pai, assassinado em 1930"


 Corre a Serra Joana Gomes
galope desesperado:
um touro se defendendo,
homens querendo humilhá-lo,
um touro com sua vida,
os homens em seus cavalos.

 Cortava o gume das pedras
um bramido angustiado,
se quebrava nas catingas
um galope surdo e pardo
e os cascos pretos soavam
nas pedras de fogo alado,
enquanto o clarim da morte,
ao vento seco e queimado,
na poeira avermelhada
envolvia os velhos cardos.

 Rasgavam a serra bruta
aboios mal arquejados
e, nas trilhas já cobertas
pelo pó quente e dourado,
um gemido de desgraça,
um gemido angustiado:

 - "Adeus, Lagoa dos Velhos!
adeus, vazante do gado!
adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
O touro só tem a vida:
os homens têm seus cavalos"!

 O galopar recrescia:
brilhavam ferrões farpados
e algemas de baraúna
para o touro preparados.
Seu Sabino tinha dito:
- "Ele há de vir amarrado"!

 Miguel e Antônio Rodrigues,
de guarda-peito e encourados,
na frente do grupo vinham,
montados em seus cavalos
de pernas finas, ligeiras,
ambos de prata arreados.
E, logo à frente, corria
o grande touro marcado,
manquejando sangue limpo
nos caminhos mal rasgados,
cortadas as bravas ancas
por ferrões ensangüentados.

 A Serra se despenhava
nas asas de seus penhascos
e a respiração fogosa
dos dois fogosos cavalos
já requeimava, de perto,
as ancas do manco macho
quando ele, vendo a desonra,
tentando subjugá-lo,
mancando da mão preada
subiu num rochedo pardo:

 Num grito, todos pararam,
pelo horror paralisados,
pois sempre, ao rebanho, espanta
que um touro do nosso gado
às teias da fama-negra
prefira o gume do fado.
E mal seus perseguidores
esbarravam seus cavalos,
viram o manco selvagem
saltar do rochedo pardo:

 -"Adeus, Lagoa dos Velhos!
Adeus, vazante do gado!
Adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
Assim vai-se o touro manco,
morto mas não desonrado"!

 Silêncio. A Serra calou-se
no poente ensangüentado.
Calou-se a voz dos aboios,
cessou o troar dos cascos.
E agora, só, no silêncio
deste sertão assombrado,
o touro sem sua vida,
os homens em seus cavalos.

 ABERTURA SOB PELE DE OVELHA

Falso Profeta, insone, Extraviado,
vivo, Cego, a sondar o Indecifrável:
e, jaguar da Sibila — inevitável,
meu Sangue traça a rota deste Fado.

Eu, forçado a ascender, eu, Mutilado,
busco a Estrela que chama, inapelável.
E a Pulsação do Ser, Fera indomável,
arde ao sol do meu Pasto — incendiado.

Por sobre a Dor, a Sarça do Espinheiro
que acende o estranho Sol, sangue do Ser,
transforma o sangue em Candelabro e Veiro.

Por isso, não vou nunca envelhecer:
com meu Cantar, supero o Desespero,
sou contra a Morte e nunca hei de morrer.

Poema que abre 
O ROMANCE D´A PEDRA DO REINO E O PRINCÍPE DO SANGUE DO VAI-E-VOLTA,

Ave Musa incandescente
do deserto do Sertão!
Forje, no Sol do meu Sangue,
o Trono do meu clarão:
cante as Pedras encantadas
e a Catedral Soterrada,
Castelo deste meu Chão!

Nobres Damas e Senhores
ouçam meu Canto espantoso:
a doida Desaventura
de Sinésio, O Alumioso,
o Cetro e sua centelha
na Bandeira aurivermelha
do meu Sonho perigoso!

Rachel de Queiroz (Os Heróis)

Vieram me procurar uns jovens estudantes de literatura, e me pediram para responder a duas perguntas: Quais são seus heróis prediletos na literatura brasileira? E heroínas?

Lembrei-me de questionário idêntico, que me fora feito há muito tempo; encontrei o recorte em que lhe respondia e, com surpresa, verifico que as respostas a dar hoje seriam as mesmas de tantos anos atrás.

Em primeiro lugar venero Macunaíma, é claro. Macunaíma, herói da nossa gente. Macunaíma das incríveis aventuras, o herói sem nenhum caráter, que não é símbolo porque não se passa para isso, fica muito acima, quilômetros, léguas. Aquele que fez tudo que não fizemos e quereríamos fazer; com a sua gaiola de legornes debaixo do braço pode ser, à vontade, bandeirante, pirata, guerreiro, sedutor e ladrão; percorre os sete caminhos do mundo, descobre os limites indevassados da terra dos sem-fim, intriga, mente, ama, engana, briga e apanha, andando sempre muito acima do bem e do mal - pois não foi à toa que deixou a consciência na ilha de Marapatá.

Depois dele, meu predileto é o velho Vitorino Carneiro da Cunha, herói de Fogo Morto, esse nosso Quixote ou nosso cavalheiro Bayard, figura impecável, quase sem medo e sem reproche, dentro das suas limitações humaníssimas.

Incapaz de tolerar sujeição, encarnação de desassombro e da independência, advogado das causas perdidas, grandiloquente, farofeiro e eternamente a esbravejar em sagrada ira contra os poderosos e seus malefícios. Não há quem o conheça e não o ame e, amando-o, não faça como seu próprio criador, José Lins do Rego, que confessava haver alçado o bravo capitão a uma postura de árbitro dos seus atos e seus impulsos, de tal modo que jamais se atreve a praticar, de cabeça erguida, uma ação que o velho Vitorino pudesse reprovar.

Quanto às heroínas, o primeiro lugar nessa galeria é um clássico. Não tem de escolher, está por si só escolhido e aclamado. Pois esse primeiro posto é inegavelmente de Capitu, a dos olhos de cigana, oblíqua e dissimulada, imagem do eterno e venenoso feminino. Capitu, deusa de todos nós.

O segundo lugar está meio indeciso. Poderia ser Dona Janaína, rainha do mar, poderia ser a filha da Rainha Luzia. Talvez devesse pertencer a Iracema; mas Iracema não é bem uma mulher, é uma alegoria vestida de índia, com sua personalidade toda dissolvida na prosa poética de Alencar - e dela nenhuma outra lembrança temos, além dos lábios cor de mel, do talhe de palmeira, do cabelo de asa de graúna. E isso é pouco. Antes apelar para Moema, que sabia nadar e matou-se afogada.

Mas já que me pedem uma opinião pessoal, prefiro dar o segundo lugar àquela que é realmente a predileta do meu coração e uma espécie de equivalente, no mundo livre da infância, do velho Vitorino Carneiro da Cunha: é a boneca Emília, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, nas histórias de Monteiro Lobato.

Emília não tem medo de ninguém; nem da vida, porque boneca propriamente não vive, nem da morte, porque boneca não morre. Não admite leis, nem regras, nem gramática. Não respeita cara nem autoridade. Bruxa de pano com olhos de linha preta, assim mesmo acha que tem tudo, não quer ouro nem fortuna, nem amantes, nem poder. Só quer aventuras e o direito de abrir a boca e opinar sobre o que bem entende. Emília, meu exemplo e minha aspiração, tantas vezes, meu raio de sol, asneirento, faísca de liberdade, de coragem, e de insolência, minha mestra e meus amores - Emília, Marquesa de Rabicó.

Fonte:
O Estado de São Paulo (São Paulo/SP) 30 de novembro de 2002

Vuldembergue Farias (Versos Melódicos)

Vuldembergue é de Fortaleza/CE

FORÇA DE EXPRESSÃO

É por força de expressão
Ou mesmo uma metáfora
Pode até ser uma diáfora
Mas a minha falação
É sobre a enganação

É por força de expressão
Que se falta com a verdade
Só se fala por dualidade
Não se conhece a versão
Do fato ou da verdadeira ação

E por força de expressão
Digo o que não quis dizer
Pra você não entender
Mas eu não quis uma omissão
Onde eu disse sim, agora eu digo não

Sempre nego e digo não
Às vezes até marco um zero
Digo sim quando nem quero
Mas é por força de Expressão
Sim, eu disse foi um não.

MUNDO DA FANTASIA

Homens maquiam-se
Mulheres maquiam-se
O mundo maquia-se
Tudo isso para cobrir
O que os olhos não escondem

Vestimos máscaras
Adotamos fantasias
Todo tempo, no tempo
Para mostrar o que não somos
E o que desejamos ser

Vivemos de máscaras
E elas são aquilo que representam
Máscara bonita nos deixa bonitos
As feias nos deixam mais feios
Máscaras nos deixam simpáticos
Ou nos fazem dramáticos

Máscaras não expõem fraquezas
Não mostram as idades
Nem o envelhecimento
Nem sentimentos, nem alegria
Máscaras são necessárias
Para olharmos nos olhos
E vermos o mundo da fantasia

PROFECIA

Quando o dragão do mar descer do céu
E o véu da noite cobrir os oceanos
Quando os decanos forem hexadecimais
E os seres normais forem também felizes
As cicatrizes da amargura serão ternura.

Quando a brandura do fogo eterno
For inverno e o verão alvorecer
Quando um dia adormecer a escuridão
E a cognição apagar nos imortais
As simples estruturas dos fractais.

Areais e oceanos, serras e mares,
Amizades e versos, princípios e matérias,
Artérias e nervos, tantras e vontades,
Verdades e mistérios surgirão do fundo,
Do mundo dos infernos vivos e imundos.

LOUCURA

Louco é quem não acredita na loucura
E procura por todos os meios
Os erros justificar
E amar fica em segundo plano
É o desengano, como cigano,
Por aí, a andar, andar e andar

Que louco é esse que tem juízo
Que dá um sorriso e prega um aviso
Que sabe entrar, que sabe sair
Que sabe enfeitar
Mas também sabe mentir?

Loucura que impede de ser feliz
Que diz o que deve ser feito
Dentro das normas e das formas
Das convenções e lições
Isso é acomodação
Loucura mesmo é não viver
É não ter amor, é não ter paixão

UTOPIA

Viver bem é uma utopia
Que se busca apesar de loucos
Mas viver uma fantasia
É a alegria de poucos

Na imaginação, a miragem
Na rotina da vida, a viagem
De sonhos e realidade
De espera e ansiedade

Por uma paixão ou amor
Diversão e felicidade
Na ilusão do multicor
Se revela a ingenuidade

E nas raias da agonia,
Da utopia, da existência
Da ciência, da alquimia
Sem amor não se viveria
Sem amor não se viveria

ERA S. JOÃO

Não tem mais fogueira
Não tem mais balão
Não corto mais a bananeira
Nem tem mais adivinhação

Meu S. João eu não posso acreditar
Que nossos festejos, nossos folguedos
Estão para se acabar

Não tem mais quadrilha improvisada
Ela é estilizada
Anarriê, anavantú, né pá de quá não mais se canta
Ela parece escola de samba

Milho assado na fogueira
Cadê o traque e a bombinha
Que saudade da fumaceira
Do pé de moleque e da chuvinha

São João disse, São Pedro confirmou
Ser madrinha ou padrinho
Na fogueira meu amor
Sou compadre que o santo mandou

ALEGRIA

Hoje, eu vou brincar com a fantasia da folia
Como eu queria que você aqui estivesse
Que me quisesse, me dissesse que encontrava
Uma saída para essa tal de tristeza

Não sofro mais
Crises existenciais
Não, se você estiver comigo enfim
Pelos carnavais sem fim

Anda minha alegria como eu queria
Te ter pertinho de mim
Numa dança sem parar

Até o raiar do dia, alegria
Vem com a bondade de Deus
Manda pra tristeza um adeus, alegria
E teu povo contagia

CHOVE CHUVA

Chuva, deixa de farofa,
De chove não molha, me deixa em paz.
Hoje estou resfriado,sem grana e sem saco
Nada me compraz

E presta atenção no que digo,
Não brinca comigo, para de chover.
Eu sinto ter que lhe dizer, vaza, vai embora
E seja fugaz.

Chove chuva chove, mas não molha meu amor
Faça uma ação bonita, deixa de fita, só mata o calor.

Nesse chover no molhado deixando ensopado
O meu coração.
Como em Dançando na chuva, cai como uma luva,
Ensaio e ação.

No tempo todo encharcado,
Com todo cuidado pra não escorregar
Pois se qualquer pirueta,
É uma falseta pra me derrubar.

Chuva, dê licença, a sua presença
A sua sentença, me tira do sério.
Então se mande urgentemente
E concomitantemente me leve o tédio.

LIMITES

Quero falar sobre
Os extremos de pequenos
Espaços
Limites, tempos, distância,
Lenta velocidade
E intervalos.

Diminutos
Laços e abraços,
Discretos olhares,
Incontidos andares,
Mera felicidade
Entre o ter e o poder.

Separa-me
Dessa realidade,
Menor, igual, maior
Que meu desejo de ser,
De estar no limite
Do meu particular.

Prendam-me,
Deixem-me estar,
Na divisa do bem e do mal,
Entre o antes e o pós
O fundo e o raso
Entre laços e nós.

Viver de fachada,
Ou viver discreto,
É como concreto aparente,
Sente quem vê,
Excede o limite,
Da vida corrente

Fonte:
Clube Caiubi

Carlos Heitor Cony (O Cão e o Homem)

Já vi a mesma cena, aqui e no exterior. E acredito que todos nós já vimos coisa igual em qualquer parte do mundo.

Em Frankfurt, ainda ao tempo em que havia o muro de Berlim (na Alemanha havia disso), vi o mendigo do Primeiro Mundo estendido na calçada, cozinhando vasta bebedeira - havia umas 30 latas vazias de cerveja em volta dele.

Esparramado na calçada, ele atrapalhava o movimento dos passantes. Mas ninguém, nem mesmo os policiais, se atrevia a mexer nele, a recolher as latinhas de cerveja. Não era piedade nem um cochilo na tradicional vocação à ordem dos alemães.

É que o mendigo tinha ao lado um cão, que nem precisava latir para guardar o dono. Parecia um vira-lata, talvez o fosse. Tomava conta daquele pedaço da calçada, protegendo o sono do homem que com ele repartia os restos de comida arranjados nos restaurantes em volta.

Semana passada, em São Paulo, saindo do hotel, na Avenida Ipiranga, vi a mesma cena, o mendigo, emborcado num canto do edifício Copan e o cão ao lado, velando pelo dono. Se um milionário o chamasse, oferecesse incenso, ouro e mirra, o cão não se afastaria de sua guarda. Se um santo passasse e o atraísse para um monastério habitado por anjos e atapetado de flores, o cão nem se mexeria dali.

E o dono podia ser um desclassificado, um homem repudiado pela sociedade, pela família. Nem os pais nem os filhos nem os amigos querem saber dele, acham que o miserável está tendo o que merecia.

Para o cão, nada disso tem importância. O dono pode ser rei ou mendigo, santo ou criminoso. Fica a seu lado, sem esperar outra recompensa a não ser a de sentir o cheiro e a onipotência do homem, o homem frágil, tombado na rua, que ele protege daqueles que o abandonaram.

Fonte:
Folha de São Paulo - São Paulo - SP, 12/06/2001

Laurindo Ribeiro (Poemas Escolhidos)

O QUE SÃO MEUS VERSOS

Se é vate quem acesa a fantasia
Tem de divina luz na chama eterna;
Se é vate quem do mundo o movimento
C’o movimento das canções governa;

Se é vate quem tem n’alma sempre abertas
Doces, límpidas fontes de ternura,
Veladas por amor, onde se miram
As faces da querida formosura;

Se é vate quem dos povos, quando fala,
As paixões vivifica, excita o pasmo,
E da glória recebe sobre a arena
As palmas, que lhe of’rece o entusiasmo;

Eu triste, cujo fraco pensamento
Do desgosto gelou fatal quebranto;
Que, de tanto gemer desfalecido,
Nem sequer movo os ecos com meu canto;

Eu triste, que só tenho abertas n’alma
Envenenadas fontes d’agonia,
Malditas por amor, a quem nem sombra
De amiga formosura o céu confia;

Eu triste, que, dos homens desprezado,
Só entregue a meu mal, quase em delírio,
Ator no palco estreito da desgraça,
Só espero a coroa do martírio;

Vate não sou, mortais; bem o conheço;
Meus versos, pela dor só inspirados, —
Nem são versos — menti — são ais sentidos,
Às vezes, sem querer, d’alma exalados;

São fel, que o coração verte em golfadas
Por contínuas angústias comprimido;
São pedaços das nuvens, que m’encobrem
Do horizonte da vida o sol querido;

São anéis da cadeia, qu’arrojou-me
Aos pulsos a desgraça, ímpia, sanhuda;
São gotas do veneno corrosivo,
Que em pranto pelos olhos me transuda.

Seca de fé, minha alma os lança ao mundo,
Do caminho que levam descuidada,
Qual, ludíbrio do vento, as secas folhas
Solta a esmo no ar planta mirrada.

NO ÁLBUM DUMA SENHORA

Meu nome aqui deixara solitário
Escrito nessa cor;

Com que desde nascido as faixas d’alma
Tingiu-me o dissabor;

Meu nome aqui deixara solitário
Em traço negro incerto,
Qual friso do buril da desventura
Em claro plano aberto;

A não temer que alguém, que não soubesse
O que este nome diz,

Ao vê-lo neste livro me insultasse
Chamando-me feliz.

Saiba, pois, quem o ler, que de uma Virgem
No livro afortunado

Seu nome escuro, como seu destino,
Escreve um desgraçado!

Sobre ele verta a Virgem uma lágrima
Do seu pranto celeste,

Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.

Sim, ó Virgem, do pranto de teus olhos,
Concede, sim, concede

Uma lágrima triste ao pobre nome
Que lágrimas só pede!

De teus olhos quisera uma centelha
Um peito do vulcão;

Ao contrário, porém, só pede pranto
Um morto coração!

O sol ilumina, a gala ofende
Ao solo mortuário:
Só sobressaem os cristais do pranto
Dos mortos no sudário.

Eia, pois, cair deixa neste nome
O teu pranto celeste;
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.

A SAUDADE BRANCA
Composta por ocasião da morte de sua irmã e oferecida ao amigo Antônio Augusto de Mendonça Júnior.

Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada,
Minha flor? Que palidez!...

Ah!... já sei: n’um peito vário
Emblema foste de amor:
O peito mudou de afeto,
E tu mudaste de cor.

Mas não; só peito animado
Por constância e lealdade,
Unida pode trazer-te
Consigo, minha saudade.

Demais tu não mudas; seja
Qual for o destino teu,
Conservas sempre o aspecto
Que a natureza te deu.

Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada,
Minha flor? Que palidez!

Quem sabe se és flor, saudade?
Quem sabe? Da sepultura
Amor nas pedras penetra
Por milagre da ternura.

Quem sabe... (Oh! meu Deus não seja,
Não seja esta idéia vã!)
Se em ti não foi transformada
A alma de minha irmã?!

“Minha alma é toda saudades;
“De saudades morrerei” —
Disse-me, quando a minh’alma
Em saudades lhe deixei:

E agora esta saudade
Tão triste e pálida... assim
Como a saudade que geme
Por ela dentro de mim!...

A namorar-me os sentidos!
A fascinar-me a razão!...
Julgo que sinto a voz dela
Falar-me no coração!

Exulta, minh’alma, exulta!...
Aos meus lábios, flor louçã!
No meu peito... Toma um beijo...
Outro beijo, minha irmã!

Outro beijo, que estes beijos
Não te proíbe o pudor;
Sou teu irmão, não te mancham
Os beijos de meu amor.

Fala um pouco. Se almas podem
Em flores se transformar,
Sendo almas encantadas,
As flores podem falar.

Mas não falas?... não respondes?...
Oh! cruéis enganos meus!
Saudade, por que me iludes?
Minha irmã!... Meu Deus!... Meu Deus!...

Minha irmã!... minha ventura,
Esperança, encanto meu!
É teu irmão quem te chama!...
Responde!... fala!... Sou eu!

Dista muito o céu da terra?
Os anjos asas não têm?
Desata um vôo, meu anjo!
Não tardes, meu anjo! Vem!

Vem! Ao menos um momento
Quero ver-te, irmã querida:
Embora, depois de ver-te,
Fique cego toda a vida.

Mas não vens? Deus te não deixa
Vir ao mundo, meu amor?
Só devo encontrar no pranto
Lenitivo à minha dor?

Ah! minh’alma desfalece...
E o coração, que apressado
Com tanta força batia,
Mal palpita... está cansado.

Muda, sem termos, nem vozes
Me vai ralando a agonia:
A tempestade de angústias,
Mudou-se em melancolia.

Que é isto?! Como tão negro
Ficou-me todo o horizonte!
Que suor me banha o rosto!
Que peso sinto na fronte!

Ah! meu Deus! graças! aos olhos
O pranto sinto chegar;
Se a boca não fala, ao menos
Os olhos podem chorar.

Nós temos duas saudades;
Uma de sangue ensopada
Pela mão do desespero
No seio d’alma plantada;

Outra da melancolia
Toma o gesto, e veste a cor,
Exangue, pálida e fria,
Mas calada em sua dor.

Parece que a natureza
Quis provar esta verdade,
Quando diversa da roxa
Te criou, branca saudade.

Fonte:
Laurindo Ribeiro. Poesias Completas. Fundação Biblioteca Nacional/Ministério da Cultura

Irmãos Grimm (Rapunzel)

Era uma vez um homem e uma mulher que há muito tempo desejavam em vão ter um filho. Os anos iam passando e a mulher esperava que Deus fosse atender o desejo dela. Eles tinham uma pequena janela no fundo da casa de onde se podia ver um esplêndido jardim, cheio das mais belas flores e verduras. No entanto, ele era cercado por um muro alto, e ninguém se atrevia a escalá-lo, porque ele pertencia a uma feiticeira, que possuía grandes poderes e era temida por todo o mundo.

Um dia, a mulher estava de pé ao lado da janela e olhava para o jardim, quando ela viu um canteiro onde haviam plantado o mais lindo rapôncio (ou rapunzel) que ela jamais vira, e a planta era tão verde e fresca que ela queria pegar algumas, e desejava muito comê-las. Este desejo aumentava a cada dia que passava, e como ela sabia que não havia jeito de conseguir nem um pouquinho delas, ela começou a definhar, e foi ficando triste e abatida.

Até que um dia o marido dela ficou assustado, e perguntou:

— O que você tem, minha querida esposa?

— Ah, respondeu ela, se eu não puder pegar um pouco de rapôncio, que fica no jardim atrás de nossa casa, para comer, eu vou morrer. O marido, que a amava, pensou:

— Antes que a minha esposa morra, preciso trazer para ela um pouco de rapôncio, custe o que custar. Ao cair da noite, ele pulou o muro que dava para o jardim da feiticeira, pegou apressadamente um punhado de rapôncios, e levou para a sua esposa.

Imediatamente ela fez uma salada, e a comeu com grande satisfação. Ela, no entanto, gostou tanto, mas tanto mesmo do rapôncio que no dia seguinte por três vezes ela sentiu a mesma vontade de antes. Se ele quisesse ter um pouco de sossego, o seu marido deveria descer mais uma vez ao jardim. Quando começou a escurecer, portanto, ele decidiu ir lá novamente, mas assim que ele pulou o muro, ele ficou terrivelmente assustado, porque ele viu a feiticeira de pé diante dele.

— Como te atreves, disse ela com ódio nos olhos, descer ao meu jardim e roubar os meus rapôncios como se fosses um ladrão? Deves sofrer por isso!

— Ah, respondeu ele, permita que a misericórdia tome o lugar da justiça, eu só decidi fazer isso por motivo de necessidade. A minha esposa viu o seu rapôncio da janela, e sentiu uma vontade muito grande de comê-lo que ela teria morrido se não conseguisse alguns para comer. Então, a feiticeira deixou que o ódio diminuísse, e disse a ele,

— Se é assim como dizes, eu permitirei que leves contigo tanto rapôncio quanto desejares, mas, exijo porém, uma condição, tu darás a mim o filho que a tua esposa trará ao mundo; ele será bem tratado, e eu cuidarei dele como se fosse uma mãe.

O homem estava tão apavorado que concordou com tudo, e quando a mulher ficou de cama, a feiticeira apareceu de repente, deu à criança o nome de Rapunzel, e a levou embora consigo.

Rapunzel cresceu como a mais linda criança abaixo do sol. Quando ela completou doze anos de idade, a feiticeira a prendeu em uma torre, que ficava no meio de uma floresta, e não possuía nem escadas nem porta, porém, bem no alto havia uma pequena janela. Quando a feiticeira queria entrar, ela se colocava debaixo da janela, e gritava:
   
— Rapunzel, Rapunzel
Joga as tuas tranças para mim.

Rapunzel tinha um cabelo esplendoroso, finos como os fios de ouro, e quando ela ouviu a voz da feiticeira, ela soltava seu emaranhado de tranças, enrolava-os em torno dos ganchos da janela acima dela, e então os cabelos caiam o comprimento de vinte varas para baixo, e a feiticeira subia por ele.

Depois de um ano ou dois, aconteceu que o filho do rei cavalgava pela floresta e passava perto da torre. Então ele ouviu uma canção, que era tão linda que ele parou para ouvir. Esta era Rapunzel, que em sua solidão, passava o tempo deixando que a sua linda e doce voz ressoasse. O filho do rei quis subir até onde ela estava, e procurou a porta da torre, mas não encontrou nada. Foi para casa, mas a voz dela havia tocado tão profundamente o seu coração, que todos os dias, ele saía pela floresta para ouvi-la. Uma vez, quando ele estava assim de pé atrás de uma árvore, ele viu que uma feiticeira havia chegado, e ele ouvia quando ela gritou:

— Rapunzel, Rapunzel
Joga tuas tranças para mim.

Então Rapunzel descia as tranças de seus cabelos, e a feiticeira subia até lá em cima. Se essa é a escada por onde se sobe até o alto da torre, eu vou tentar a minha sorte uma vez,disse ele, e no dia seguinte, quando começou a escurecer, ele foi até a torre e gritou:

— Rapunzel, Rapunzel
Joga tuas tranças para mim.

Imediatamente os cabelos caíram e o filho do rei subiu.

A princípio Rapunzel ficou muito assustada quando tal homem, que seus olhos jamais haviam contemplado, se aproximou dela, mas o filho do rei começou a conversar com ela como um amigo, e disse-lhe que o seu coração havia sido tocado tão fortemente que isso não lhe permitia que ele tivesse sossego, e ele se sentiu obrigado a procurá-la. Então, Rapunzel perdeu o medo e quando ele lhe perguntou se ela o aceitaria como seu marido, e vendo ela que ele era jovem e belo, ela pensou:

— Ele me amará mais do que me ama a velha Senhora Gothel, e ela disse sim, colocando suas mãos sobre as dele.

Ela disse:

— Faço questão de ir-me embora contigo, mas eu não sei como descer. Sempre que vieres, traze contigo uma meada de seda, que eu vou tecer uma escada com ela, e quando ela estiver pronta eu descerei, e tu me levarás em teu cavalo. Eles combinaram que até que esse momento chegasse ele viria vê-la todas as noites, porque a velhinha somente vinha de dia. A feiticeira não desconfiou de nada, até que uma vez Rapunzel disse a ela:

— Diga-me, Senhora Gothel, porque será que a senhora é muito mais pesada para eu puxar do que o jovem filho do rei — ele sobe num instantinho.

— Ah, criatura perversa, gritou a feiticeira. — O que te ouço dizer! Pensei que a tivesse separado do mundo, e ainda assim me enganas!

Cheia de ódio, ela agarrou as lindas tranças de Rapunzel, deu duas voltas em sua mão esquerda, pegou uma tesoura com a direita, e snip, snap, cortou os cabelos dela, e as belas tranças foram jogadas no chão.
   
E a velha era tão impiedosa que levou a pobre Rapunzel para o deserto onde ela foi obrigada a viver triste e abandonada.

No mesmo dia, contudo, depois de ter expulsado Rapunzel, a feiticeira amarrou as tranças de cabelo que ela tinha cortado ao gancho da janela, e quando o filho do rei veio e gritou:

— Rapunzel, Rapunzel
Joga tuas tranças para mim.

Ela descia os cabelos. O filho do rei subiu, mas ele não encontrou sua bela Rapunzel lá em cima, mas, a feiticeira, que olhou para ele com olhos perversos e venenosos. Ahá, gritou ela, zombeteiramente.

— Viestes buscar a tua amada, mas o lindo pássaro não está mais cantando em seu ninho, o gato o comeu, e irá arranhar os teus olhos também. Rapunzel não existe mais para ti, não a verás mais.

O filho do rei sentiu um pesar muito grande, e desesperado, pulou para fora da torre.

Ele salvou a sua vida, mas os espinhos sobre os quais ele caiu, perfuraram os seus olhos. Então ele caminhou completamente cego pela floresta, não comia nada além de raízes e de frutas, e não fazia nada além de lamentar e chorar a perda de sua querida esposa. Desesperado, o príncipe caminhava qual um desesperado durante alguns anos, e, depois de muito tempo, chegou ao deserto onde Rapunzel, vivendo com os gêmeos a quem dera a luz, um menino e uma menina, vivia muito infeliz.

O príncipe ouviu uma voz, que lhe parecia muito familiar, e caminhou em direção a ela, e quando ele se aproximou, Rapunzel o conheceu, e abraçou o seu pescoço e chorou. Duas lágrimas suas molharam os olhos dele e eles ficaram claros novamente, e ele conseguiu ver como antes. Ele a levou para o seu palácio onde foi recebido com alegria, e eles viveram durante muito tempo depois, felizes e satisfeitos.

Fonte:
Contos de Grimm

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 48 – 24 de fevereiro de 1888

Juro-lhe, meu caro amigo
Leitor, pelo que há sagrado,
Que eu, que a triste regra sigo
De viver apoquentado;

Que suporto as sanguessugas
Humanas e desumanas,
Que não ganhei estas rugas
Em redes e tranquitanas;

Que aturo todo o importuno,
Que me refere a maneira
Por que o demo de um gatuno
Lhe foi levando a carteira;

Ou me conta tudo, tudo
(Mas tudo!) o que há padecido,
Para que, após longo estudo,
Ver que foi indeferido;

Que com ânimo quieto,
Leio, depois de almoçado,
Tudo o que sobre o arquiteto
Magalhães se há publicado;

Juro-lhe, leitor, repito,
Que cometer não quisera
O mais pequeno delito
Que este mundo haver pudera.

Furtar um par de galinhas,
Dizer algum nome feio,
Chegar mesmo às facadinhas,
Dar dois cachações e meio.

Não porque a moral condene
Tais atos; condena, é certo,
De um modo grave e solene,
Determinativo e aberto;

Nem também porque, somadas
As contas, mais ganha a gente
Passando as horas caladas
No belo sono inocente.

Não, senhor; outra é a causa,
É outra, uma certa lista,
Que é preciso ler com pausa,
Mente clara e clara vista.

Do rol dos processos digo
Que ao tribunal dos jurados
Foram, para seu castigo,
Inda agora apresentados.

Que traz esse rol? Descubro
Entre outros muitos nomes
Que em oitenta e seis, outubro,
Foi preso um Antônio Gomes.

Pronunciado em janeiro
De oitenta e sete, entra agora
No julgamento primeiro
Do que fez em tão má hora!

Mais três, um Afonso Rosa,
Um Coelho, uma tal Francisca
Xavier, trempe graciosa,
Ao parecer, pouco arisca.

Visto que foi agarrada
Logo em março, dezessete,
Em março pronunciada,
Em março de oitenta e sete!

Há também na lista um certo
Francisco Peres Soares,
Já em abril descoberto
E mandado a tomar ares;

O qual logo em maio teve
Pronúncia do seu delito;
Fez um ferimento leve,
Foi preso ao som de um apito.

Ora, com franqueza, vale,
Ser criminoso em tal era?
Uma peça de percale
Paga tão comprida espera?

Um tabefe, uma rasteira,
Mesmo uma canivetada,
Pagou de alguma maneira
A espera desesperada;

Portanto, e vistos os autos,
Dou de conselho prudência,
E digo aos homens incautos
Que inda o melhor é a inocência.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Teófilo Braga (O Figuinho da Figueira)

Recolhido no Algarve

Era uma vez um homem que tornou a casar, e tinha uma filha do primeiro casamento que era tratada pela madrasta mal a mais não poder. Tinham uma figueira lampa no quintal, para onde a madrasta mandava a enteada guardar os figos por causa da passarada.

Quando a pequena ia para o campo, a madrasta seguia-a também para contar os figos, dizendo-lhe que a matava se lhe faltasse algum.

Um dia veio o milhano e comeu três figos, por mais que a pequena o enxotasse. Quando estava já a anoitecer a madrasta veio revistar a figueira, e deu pela falta de três figos. Logo ali matou a enteada e a enterrou debaixo da figueira, e veio para casa dizendo que a rapariga tinha fugido.

O pai pensou que ela teria ido servir para alguma casa longe. Um dia que o pai passava por debaixo da figueira, ficou pasmado de ver debaixo dela muitas flores, e entre elas um lindo botão de rosa. Foi para as colher, mas sentiu uma voz, a dizer-lhe:

Não me arranquem os meus cabelos,
Que minha mãe os criou,
Minha madrasta os enterrou
Pelo figo da figueira
Que o milhano levou.
   
A princípio o homem ficou sem saber o que havia de fazer; mas por fim resolveu-se a fazer uma cova naquele lugar, para ver que coisa era.

Depois de estar já bem funda a cova, descobriu uma laje, levantou-a, e deu com uma escadaria por onde desceu. Quando chegou lá abaixo encarou com a filha, que estava muito linda e muito bem vestida:

– Filha, como é que vieste ter aqui?

– Quando a minha madrasta me enterrou, apareceu-me aqui esta casa, e todos os dias vem aqui uma senhora dar-me de comer.

O pai ficou vivendo com a filha, e não quis mais saber da mulher.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português