sábado, 4 de janeiro de 2014

Irmãos Grimm (A Donzela sem Mãos)

Era uma vez, há alguns anos, um homem que ficava na estrada e que possuía uma pedra enorme de fazer farinha, com a qual moia cereal da aldeia. Esse moleiro estava passando por dificuldades e não restava nada além da enorme pedra de moinho e da grande macieira florida atrás da construção.

Um dia, quando ele entrava na floresta com seu machado de gume de prata para cortar lenha, um velho estranho surgiu atrás de uma árvore.
 
- Não há necessidade de você se torturar cortando lenha – disse o velho em tom engabelador – posso adorná-lo de riquezas se você me der o que esta atrás de seu moinho.
 
- O que esta atrás do meu moinho a não ser a macieira florida? – perguntou-se o moleiro, concordando com a proposta do velho.
 
- Dentro de três anos virei buscar o que é meu – disse o estranho rindo a socapa, e foi embora a mancar, desaparecendo entre os troncos das árvores.
 
O moleiro encontrou sua mulher no caminho. Ela havia saído correndo de dentro de casa, com o avental voando e o cabelo desgrenhado.
 
- Marido, marido meu, quando bateu a hora, surgiu na nossa casa um relógio mais bonito, nossas cadeiras rústicas foram trocadas por cadeiras de veludo, nossa pobre despensa esta repleta de carne de caça, nossas arcas e baús transbordam de tão cheios. Diga-me, por favor, como isso aconteceu. – e nesse exato momento, anéis de ouro apareceram nos seus dedos e seu cabelo foi puxado e preso num arco dourado.
 
- Ah, disse o moleiro, assombrado enquanto seu próprio gibão passava a ser de cetim. Diante dos seus olhos, seus sapatos de madeira com salto tão gastos que ele caminhava inclinado para trás também se transformaram em finos sapatos. – Bem, isso foi um desconhecido – disse ele, ofegante. - Deparei-me com um homem estranho, com uma sobrecasaca escura. E ele me prometeu enorme fortuna se eu lhe desse o que está atrás de nosso moinho. Ora mulher, claro que podemos plantar outra macieira.
 
- Ai, meu marido! – lamentou-se a mulher dando a impressão de ter levado um golpe mortal. – O homem de casaco escuro era o diabo e o que está atrás do moinho é a árvore sim, mas a nossa filha está lá varrendo o quintal com uma vassoura de salgueiro.
 
E assim os pais foram cambaleando para casa, derramando lágrimas sobre seus trajes. A filha permaneceu sem se casar durante três anos, e tinha o temperamento como uma das primeiras maçãs doces da primavera. No dia que o diabo veio apanhá-la, ela se banhou, pôs um vestido branco e ficou parada num círculo de giz que ela mesma traçara à sua volta. Quando o diabo estendeu a mão para agarrá-la, uma força invisível o lançou para o outro lado do quintal.
 
- Ela não pode mais se banhar – berrou ele. – Ou não vou conseguir me aproximar dela.
 
Os pais ficaram apavorados e algumas semanas se passaram em que ela ficou sem se banhar, até que o cabelo ficou emaranhado; suas unhas, negras; suas roupas encardidas e duras de sujeira. Então; como a donzela parecia cada vez mais com um animal, surgiu mais uma vez o diabo. No entanto; a menina chorou e suas lágrimas escorreram pelas mãos e pelos braços. Agora suas mãos e seus braços estavam alvíssimos e limpos. O diabo ficou furioso.
 
- Cortem-lhe fora as mãos, do contrário não vou poder me aproximar dela.
 
- Você quer que eu corte as mãos da minha própria filha? – perguntou o pai horrorizado.
 
- Tudo aqui irá morrer, berrou o diabo. – Você, sua mulher e todos os campos até onde sua vista alcance.
 
O pai ficou tão apavorado, que pedindo perdão a sua filha começou a afiar o machado. A filha conformou-se.
 
- Sou sua filha, faça o que deve fazer.
 
E foi o que ele fez; no final ninguém podia dizer quem gritou mais alto, se foi o pai ou a filha. Terminou assim a vida da menina da forma que ela conhecia. Quando o diabo voltou, a menina havia chorado tanto, que os troncos que lhe restavam estavam novamente limpos, e o diabo foi mais uma vez atirado para o outro lado do quintal quando tentou agarrá-la.
 
Lançando maldições que provocavam pequenos incêndios na floresta, ele desapareceu para sempre, pois havia perdido todo o direito sobre ela.
 
O pai havia envelhecido cem anos, e sua esposa também. Como autênticos habitantes da floresta, eles continuaram como podiam. O velho pai fez a oferta de manter a filha num imenso castelo de beleza e riqueza pelo resto da vida, mas a filha disse achar mais condizente que se tornasse mendiga e dependesse da bondade dos outros para seu sustento. E assim ela fez com que atassem seus braços com gaze limpa e ao raiar do dia ela se afastou da sua vida como havia sido até então.
 
Ela caminhou muito. O sol do meio dia fez com que o suor escorresse riscando a sujeira de seu rosto. O vento desgrenhou tanto o seu cabelo que até parecia um ninho de cegonha com gravetos enfiados de qualquer jeito. No meio da noite, ela chegou a um pomar real onde a lua fazia reluzir os frutos das árvores. Ela não podia entrar já que o pomar era cercado por um fosso. Caiu, então de joelhos, pois estava faminta. Um espírito etéreo vestido de branco surgiu e fechou a compota para esvaziar o fosso.
 
A donzela caminhou por entre as pereiras sabendo de algum modo que cada fruto perfeito havia sido contado e anotado, e que eles eram também vigiados. Mesmo assim, um ramo curvou-se abaixo para que ela o alçasse, fazendo o galho estalar. Ela tocou a pele dourada da pêra com os lábios e comeu ali em pé ao luar, com os braços atados em gaze, os cabelos desgrenhados, parecendo uma mulher de lama, a donzela sem mãos.
 
O jardineiro viu tudo, mas reconheceu a magia do espírito que a protegia e não se intrometeu. Quando ela acabou de comer aquela única pêra, ela se retirou atravessando o fosso e foi dormir no abrigo do bosque.
 
No dia seguinte o rei veio contar suas pêras. Ele descobriu que uma estava faltando, mas, olhando por toda a parte, não conseguiu encontrar o fruto desaparecido. Quando lhe perguntaram o jardineiro tinha a explicação.
 
- Ontem a noite dois espíritos esgotaram o fosso, entraram no jardim a luz do luar e um deles que era mulher e não tinha mãos comeu a pêra que se oferecia a ela.
 
O rei disse que iria montar guarda naquela noite. Quando escureceu ele veio com o jardineiro e o mago que sabia conversar com espíritos. Os três se sentaram debaixo de uma árvore e ficaram vigiando. À meia noite, a donzela veio flutuando pela floresta, com roupas em farrapos, o cabelo desfeito, o rosto sujo, os braços sem mãos e o espírito de branco ao seu lado. Eles entraram no pomar da mesma forma que antes. Mais uma vez a árvore curvou-se graciosamente para chegar ao seu alcance, e a donzela sorveu a pêra que estava na ponta do ramo. O mago aproximou-se deles, mas não muito.
 
- Vocês são deste mundo ou não são?- perguntou ele.
 
- Eu fui outrora do outro mundo – respondeu a donzela. – no entanto não sou deste mundo.
 
- Ela é humana ou é um espírito? – perguntou o rei ao mago, e ele respondeu que era as duas coisas. O coração do rei deu um salto, e ele se apressou a chegar a ela.
 
- Não renunciarei a você – exclamou o rei - deste dia em diante, eu cuidarei de você.
 
No castelo ele mandou fazer para ela um par de mãos de prata, que foram amarradas aos seus braços. E foi assim que o rei se casou com a donzela sem mãos.
 
Passado algum tempo o rei teve que ir combater num reino distante e pediu à mãe que cuidasse da jovem rainha, pois ele a amava de todo coração.
 
- Se ela der à luz a um filho mande me avisar imediatamente.
 
A jovem rainha deu a luz a um belo bebe, e a mãe do rei mandou um mensageiro até ele para lhe dar as boas novas. No entanto no meio do caminho o mensageiro se cansou e, chegando a um rio, ficou cada vez com mais sono. Afinal, adormeceu profundamente às margens do rio. O diabo saiu de trás de uma árvore e trocou a mensagem por uma que a rainha havia dado à luz a uma criança que era metade humana metade cachorro.
 
O rei ficou horrorizado com a noticia, mas mesmo assim mandou de volta uma carta recomendando que amassem a rainha e que cuidassem dela nesse terrível transe. O rapaz que vinha trazendo a mensagem mais uma vez chegou ao rio e, sentindo a cabeça pesada como se tivesse comido todo um banquete, logo adormeceu junto a água. Foi quando o diabo mais uma vez apareceu e trocou a mensagem para:
 
- Matem a rainha e a criança.
 
A velha mãe ficou abalada com essa ordem e mandou um mensageiro pedindo confirmação. Corriam os mensageiros de um lado para outro, cada um adormecendo junto ao rio enquanto o diabo trocava as mensagens por outras que ficavam cada vez mais apavorantes, sendo a ultima que dizia:
 
- Guardem a língua e os olhos da rainha como prova de que ela está morta.
 
A velha mãe não pode suportar a ideia de matar a doce jovem. Em vez disso, ela sacrificou uma corça, arrancou sua língua e seus olhos e os escondeu. Em seguida, ela ajudou a jovem rainha a atar o bebe junto ao peito e, cobrindo-a com um véu, disse que ela precisava fugir para salvar a vida. As mulheres choraram e se beijaram na despedida.
 
A jovem rainha vagueou até chegar à floresta maior e mais selvagem que jamais vira. Na tentativa de procurar um caminho, ela procurava passar por cima, pelo meio e por volta do mato. Quase ao escurecer, o mesmo espírito de branco apareceu conduzindo a jovem a uma estalagem pobre de gente simpática da floresta. Uma donzela vestida de branco levou a rainha para dentro e demonstrou saber seu nome. A criança foi posta no berço
.
- Como que você sabe que eu sou rainha? – perguntou a donzela.

- Nós da floresta acompanhamos esses casos, minha rainha. Agora descanse.
 
E assim a rainha ficou sete anos e se sentia feliz com sua criança e com sua vida. Aos poucos suas mãos voltaram; primeiro como pequeninas mãozinhas de bebes, rosadas como pérolas, depois como mãozinhas de menina e afinal como mãos de mulher.
 
Enquanto isso o rei voltou da guerra, e sua mãe se lamentou com ele.
 
- Por que quis que eu matasse dois inocentes? – perguntou ela mostrando-lhe os olhos e a língua da corça. Ao ouvir a terrível história o rei cambaleou e caiu a chorar inconsolável. A mãe viu a dor e contou que os olhos e a língua eram de uma corça e que ela havia mandado a rainha e o filho fugir pela floresta adentro.
 
O rei jurou não mais comer, nem beber, e viajar até onde o céu continuasse azul para encontrar os dois. Ele procurou por sete anos a fio. Suas mãos ficaram negras, sua barba de um marrom semelhante ao musgo, seus olhos avermelhados e ressecados. Todo esse tempo, ele não comeu nem bebeu nada, mas uma força maior do que ele o ajudou a se manter vivo.
 
Afinal ele chegou à estalagem mantida pelo povo da floresta. A mulher de branco convidou-o entrar, e ele se deitou de tão cansado. A mulher colocou um véu sobre o rosto dele, e ele adormeceu. Quando ele chegou à respiração do sono mais profundo, o véu escorregou aos poucos do seu rosto. Ao despertar, ele encontrou uma linda mulher e uma bela criança que o contemplava.
 
- Sou sua esposa e este é seu filho. – O rei queria acreditar, mas a donzela tinha mãos. – Com todas as minhas afeições e com meus bons cuidados, minhas mãos voltaram a crescer – disse a donzela. 

E a mulher de branco trouxe as mãos de prata que estavam guardadas como um tesouro numa arca. O rei ergueu-se e abraçou a mulher e o filho, e naquele dia houve uma alegria imensa na floresta. Todos os espíritos e os ocupantes da estalagem fizeram um banquete. Depois, o rei, e a rainha e o filho voltaram para a velha mãe, realizaram um segundo casamento e tiveram muitos outros filhos, todos os quais contaram essa história para outros cem, que contaram para outros cem, exatamente como vocês fazem parte dos outros cem a quem eu estou contando.

Fonte:
http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=245592

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 16 – 27 de marco de 1887.

Cousa má ou cousa boa
Traz vantagem boa ou má;
O incêndio da Gamboa
Neste aforismo entrará.

Não fosse aquele medonho
Desastre que ali se deu,
E do qual nada aqui ponho,
Pois que o leitor tudo leu,

Não saberia eu agora,
Pelas narrações que vi,
Uma notícia que chora,
E que — essa, sim — ponho aqui.

Foi quando a água, correndo
Pela rua e para o mar,
Ia ardendo, ardendo, ardendo,
Ardendo de amedrontar.

Então li que os habitantes
De um beco, com tal horror
Viram as águas flamantes,
Arrastando a morte e a dor,

Que pensaram em deixá-lo,
O beco em que há muito estão,
Onde a morte, a fogo e a estalo,
Punha em gelo o coração.

Esse beco, o beco escuso,
O beco que nunca vi,
Beco de tão pouco uso,
Que nunca o nome lhe li,

Chama-se do conselheiro
Zacharias; leiam bem.
E vá, reflitam primeiro,
Como eu refleti também

Ó meu douto Zacharias!
Meu velho parlamentar!
Ó mestre das ironias?
Ó chefe ilustre e exemplar!

Quantas e quantas batalhas,
Deste contra iguais varões!
E de quantas, quantas gralhas,
Tiraste o ar de pavões!

Sólido, agudo, brilhante,
Sincero, que vale mais,
Depois da carreira ovante,
Depois de glórias reais,

Deram-te um beco... Olha, um beco...
De tantas cousas que dar,
Coube-te a ti, homem seco,
Triste beco ao pé do mar.

Não digas que são mofinas
Estas nossas distinções
Pintadas pelas esquinas;
Esquinas fazem barões.

Não cuides que, nesta lida
Em que andamos, tem de ser
Viva ainda a tua vida,
Escrita ou por escrever.

Logo, era uma honrosa graça
Se entrasses no grande rol
Com uma rua, uma praça,
Bem à vista, bem ao sol.

Mas, não. De quanto valias,
Agora nada valeis.
Há o beco Zacharias,
E a rua Malvino Reis.

Daqui, amigo, derivo
Esta antiga e estranha flor:
“Mais vale súdito vivo
Que enterrado imperador”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

José Hélder de Souza (O Estouro do Homem Faminto)

foi mantida a grafia original
------------------------------------------ 
Ora se deu, conta dona Zefa numa história difícil de crer, mas que é veraz, jura ela de pés juntos por tudo que lhe é sagrado, ter um homem sem nome morrido espocado no copiar de sua casa, nos Gerais dos Buritis, depois de passar fome e ter comido um sapo.

Era no tempo seco, os cerrados estorricados, já pela secura de agosto, já pelo fogo mesmo que se alastra na macega e vai devorando tudo: as cobras, as muçuranas, as cascavéis, jararacas e jararacuçus que as muçuranas não haviam comido ainda; os gambás, os tiús, os ratos, os guaxinins-da-mão-pelada, até guará e tamanduá, tudo que é inseto, bichos viventes dos descampados dos cerrados e campos. Menos os sapos, bicho tinhoso, fugidor das labaredas, capaz de se esconder numa loca, num socavão quando vêm as línguas de fogo comendo o capim alto e tostando a folhagem dos pequizeiros, sucupiras e jatobás. Passado o fogo, no rescaldo das cinzas ficam os restos das plantas e dos bichos e o gavião, tudo que é versidade deles, fica nos ares, no alto, penerando devagar, catando os restos dos bichinhos, descem rápidos quando avistam o morto. Só não comem os sapos, parece que têm ciência e sabem que o bicho é envenenado. Só o carcará se atreve a comer sapo, assim mesmo só a barriga.

O fogo tinha vindo de todo jeito: da trempe do terreiro do rancho onde a sinhá dona fez um cozinhado qualquer; do distraído que deixou largado pra lá o pito e a brasinha do fumo passou seu quente para as folhas secas donde nasceu o fogaço; do sol que bateu seu raio num vidro branco, num cristal, e fez, num prisma, espargir aquele feixe de luz colorida que esquentou a folhagem estorricada do barba-de-bode e levantou um fogaréu doido e, mais ainda, do próprio homem botando tudo que é fogo no pasto para ver nascer das cinzas a rama nova, nas primeiras chuvas.

O dito homem que espocou, da história de dona Zefa, era um coitado que vivia só, metido debaixo de um rancho de capim, na beira dum capão seco, nas lonjuras das chapadas, num lugar chamado mesmo Chapadão dos Neris, por conta do povo desse nome e dono daquelas terras ruins. Sua mulher, ao que se soube, foi se embora, fazia tempo, pois que o marido mandrião não queria muito saber de trabalho e só botava a coitada para roçar mato, fazer plantação e cuidar de encontrar bicho para ele comer. Comia não só os bichinhos que todo cristão devora quando está com fome: galinha, porco, pato ou boi, como também tiú, gambá, tatu, e esses outros viventes dos matos que ela caçava, principalmente paca e cotia, caçadas com bodoque ou armadilha, no meio dos capões de mato.

A mulher largou para lá o homem filho da preguiça e ele ficou com pouca coisa para matar a fome. Quer dizer, não teve milho, nem capim, nem abóbora plantados no terreirinho e muito menos o arroz que plantava no brejinho perto do rancho, para comer no resto do ano. Ele ainda andou jogando na terra uns caroços de feijão e de milho, cavando com um caco de enxada, mas deu pouco.

Por uns tempos ele andou catando o de-comer no mato. Além dos bichos mais impróprios para comida de gente, ele catava umas frutinhas, até lobeira e principalmente as guabirobas, os palmitos e os buritis. Amassava os cocos do buriti, fazia um caldo e passava dias comendo a gorozoba.

Às vezes andava pelas fazendas das vizinhanças. Procurava um servicinho leve que, dizia, estava sem saúde. Com essas tarefas bobas nas casas dos vizinhos, arranjava o que comer e com alguma bondade do povo, umas roupas velhas para se cobrir quando andava andrajoso, aos trapos. Deu de passar, quando ia deixando os trabalhinhos maneiros nas roças e indo embora para seu ranchinho, pelo galinheiro ou pela pocilga e levar, de furto, um franguinho, um bacorinho. Com o sumiço dos bichos o povo foi desconfiando e deixando o preguiçoso sem nome, sem servicinho, sem comida e sem roupa. Se queria tinha mesmo é que trabalhar no eito, como os outros, de sol a sol.

Mesmo querendo arranjar um trabalho para poder ter o que comer, o homem não encontrava abrigo em fazenda nenhuma, as lavouras paradas, o trabalho com gado sem serviço, tudo esperando as chuvas de setembro e o homem, com fome, catando o que comer. Protegeu-se debaixo dum pé de cagaita e lá ficou comendo o docinho das frutinhas amarelas. Comeu tanto que quase se acaba de tanto ir ao mato cagar. Mas não se acabou e continuou sua fome pelos campos, catando o que comer.

Já fazia uns três dias que o homem não comia nada que prestasse, só folha e água, naturalmente. Numa das andanças viu um sapo pinchando na terra seca de um carreirinho de formiga. Se lembrou do carcará que come sapo sem se engasgar, só deixando o couro nas cinzas dos campos das queimadas. Se carcará podia ele ia poder também. O sapo pinchou outra vez e ele pegou um pau e matou o bicho. Pegou da binga, faiscou, fez um fogo de graveto ali mesmo, sapecou bem o sapo, principalmente na barriga. Com um quicézinho, abriu o bicho e comeu uns nacos. Depois disto encostou-se numa sucupira e descansou daquela sua lida de procurar comida. O sapo enchera um cantinho do seu bucho faminto espantando um tanto a roedeira lá dentro, e ele dormitou encostado no tronco.

O sol já ia baixando quando acordou com uma sede dos diabos, como se tivesse comido o sapão com sal ou então sal com sapo. Levantou procurando grota, e grota por ali não havia. Andou já meio derrubado de sede, uma gastura danada na barriga e viu lá adiante uma casinha. Se achegou, chamou ô de casa. Veio uma mulher, a dona Zefa contadeira de histórias. Pediu água, ela deu. Pediu mais, ela deu mais. Como o homem sem nome quisesse mais água para matar sede grande e ela estivesse muito ocupada na cozinha, dona Zefa mostrou o pote, deu o caneco e mandou-o beber à vontade que ia cuidar da sua vida.

O homem encostou-se num canto, perto do pote e bebeu, bebeu – diz ela –, bebeu tudo que podia. Lá para as tantas ela escutou ele dizendo: – Dona, estou indo. Ao que ela foi e respondeu: – Vá com Deus. Ele se sentindo esmilinguido, perrengando, demais da conta, disse de novo com voz fraca: – Dona, estou indo. – Vá com Deus – respondeu ela de novo, acrescentando para não largar da sua ocupação: – Quando sair feche a porta. Ele ainda disse mais uma vez, com voz sumida, de agonizante, que estava indo, quando ela ouviu um estouro. No que correu para ver o que era, viu que o homem tinha espocado todo, a barriga aquele oco e no meio dum aguaceiro espalhado no chão perto do homem morto, numa sujeira de tudo que é porcaria, pedaços inchados de sapo por tudo que era lado...

Fonte:
http://contosbrasileiros.blogspot.com.br/2008/02/jos-hlder-de-souza.html

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) José Hélder de Souza

José Hélder de Souza (Massapé, 1931 – Brasília, 2004) cedo se mudou para o Rio de Janeiro e depois Brasília. Contista, poeta, romancista e crítico literário, é autor de Coisas & Bichos (1977), Rio dos Ventos (1992) e Pequenas Histórias Matutas (2000), no gênero conto. Em outros gêneros publicou A Musa e o Homem (1959), A Grandeza das Coisas (1978), Os Homens do Pedregal (1979), Sonetos de São Luiz (1981), De Mim e das Musas (1982), Cabo Plutarco, O Berro D’água (1982), Raul de Leoni, Poeta de Transição (1984), Relvas do Planalto (1990), Brilhos e Rebrilhos de Goiás (1990).

Apesar dos longos anos longe do Ceará, a sua obra literária tem profundas raízes cearenses. Pelo menos nas narrativas de Rio dos Ventos e Pequenas Histórias Matutas é muito nítida a presença do espaço geográfico cearense, sobretudo do sertão. A começar por “Rio dos Ventos”, um de seus mais longos contos, cuja trama se desenrola na vila de Nossa Senhora dos Remédios, às margens do Rio dos Ventos. A casa dos protagonistas é próxima ao mar, às dunas, aos areais “entremeados de canaviais e coqueirais”. A personagem principal, Profíqua Mendes Carneiro, estudou num colégio de freiras em Sobral. Padre Firmo formou-se no Seminário da Prainha, em Fortaleza. “Sanharão” se passa no sertão. Cazuza Meireles morava numa casa construída “num pequeno vale, quase na quebrada da serra”, no alto da Serra da Meruoca. Em “O Capagato”, José Porfírio vivia nas proximidades da cidade de Saboeiro. Em “Os três enterros de Jasão” o personagem Chico Tripa, quando jovem, frequentava “casas de mulher à toa, no Beco do Pega-e-Puxa, na praia da Fortaleza”. Em “Nicodemus, ajudador da morte”, Manoel Trajano estudou em Sobral. Frequentava esporadicamente igrejas daquela cidade, de Massapé e São José. “A porca história de Elza” se desenvolve num “sobrado centenário”, “nas proximidades de Barbalha, nos confins do mundo do Cariri”. E assim é em quase todas as narrativas.

Também a linguagem dos contos de José Hélder é essencialmente cearense. No entanto, como para fugir à tentação de elaborar histórias baseadas na oralidade sertaneja, matuta, na fala regional, no coloquial, que fizeram a grandeza e a mediocridade da ficção regionalista, o contista cearense optou pelo ponto de vista onisciente do escritor-narrador. Em poucas ocasiões dá voz aos personagens. Em “Sanharão” um deles assim se manifesta: “– Num faço malefício a feme” (...), “mas arreda, mulher, num me estorva o passo.” E outro: “– Num me azougue, dona; vamo lá, Timbaúba.” No decorrer das narrações ocorrem referências a objetos da cultura cearense, ou nordestina: penico de louça, bule de ágata, terrina para a coalhada, cristaleira, espreguiçadeira; a plantas: cajazeira, mulungu, carrapateira; animais e acidentes geográficos. E muitos vocábulos em desuso: sentina, quartau baio, bagual, brivana, bregueço, lambrecar, cotrovia, trastejar, chaboqueiro, roncolho, maxabomba, embeleco, moringa, forroia, mistela, aranhol, facanéa, batota, pelebreu, pondenga, malamanhado.

Também chama a atenção do leitor a reconstituição de crônicas – familiares e pessoais – antigas, algumas delas datadas nas narrações. Em “Rio dos Ventos” o narrador se refere aos “meados dos setecentos”, quando “vieram de Portugal para aquelas bandas algumas fidalguinhas órfãs”. Tempo do Rei Dom José I, do Marquês de Pombal. “Sanharão” se desenrola durante o governo Justiniano de Serpa, tempo dos marretas ou republicanos conservadores, do coronel Franco Rabelo e do Padre Cícero. Em “O homem que fez o trem parar” “corria o ano de 1910”, tempo dos coronéis. Em “Ao crepúsculo, num quarto”, uma das narrativas mais bem realizadas de José Hélder, o protagonista é assassinado numa “pensão reles de cidade decadente, pobre”, por um cangaceiro. Quincas das Contendas, de história do segundo livro, é bisneto do capitão Godofredo Hortêncio de Aguiar, “fidalgote alentejano da Vila Pouca de Aguiar, ribeira de Xarrama, freguesia de Alcáçovas”, ao tempo do aldeamento dos índios Tremembés, nos setecentos. Em “A mistela que comeu o padre Verdeixa” narra-se episódio em que figura o famoso padre Zé Verdeixa. Em “Calunga, o homem de um tiro só” o protagonista é nascido “nos idos de 20 para 30”. Outro personagem foi “eleito deputado estadual na primeira eleição depois da queda de Getúlio, nos quarenta e seis”. Em “Contando os cobres guardados no banco” há referência ao “golpe de 1937”.

Os dramas vividos pelos personagens de José Hélder são quase sempre envoltos em tragédia, muitas vezes em razão de vinganças. Os desfechos coincidem com as mortes dos protagonistas ou das vítimas destes. No entanto, quando o contista se volta para o anedótico ou o humorístico a trama se apresenta frouxa, resultando em histórias do tipo “causos”, de irrisório valor literário. É o caso de “O Bolota da piroca dura” e “Contando os cobres guardados no banco”. A tragédia de “Rio dos ventos”, consubstanciada no amor do padre Firmo pela jovem Profíqua, dá ao marido traído, Francisco Carneiro Pachola, ares de Otelo sertanejo. O capítulo final, intitulado “Amar não é defeito”, pega o leitor pelo colarinho e o conduz à cena final do crime, a vingança. A morte do sacerdote, alvejado em pleno altar, quando rezava missa, seguida do desespero da mulher, é cena para se ler e reler. O desenlace, porém, se dá quando a jovem, quatro dias após o crime, “começou a devorar a comida com sofreguidão e, ao morder a titela da ave assada, um pedaço de osso atravessou-lhe na garganta”.

Do drama amoroso Hélder passa ao conflito familiar e partidário. “Sanharão” é história de cangaceiros, homens valentes, violentos. O pacato e medroso Quincoló mata o valentão Sanharão, ao ser por este abordado numa rua: “– Então, seu rabelista, cuma se lhe vai?” Rabelista, partidário de Franco Rabelo, eleito governador do Ceará em 1912, inimigo dos aciolistas, do partido de Nogueira Acióli. Inicia-se a perseguição ao assassino. E a história termina com a fuga de Quincoló, “num navio a vapor”, rumo ao Espírito Santo. Outra tragédia se lê em “O Capagato”. Acostumado a castrar gatos, José Porfírio encontra sua mulher e a criada mortas em casa e sai em perseguição aos assassinos. Ao final encontra um deles (o outro é morto por este). Subjugado, o homicida é amarrado “com uma tira de couro”. A narração da castração é cena digna dos melhores naturalistas. Em “Nicodemus, ajudador da morte” nada leva o leitor a suspeitar do desfecho. Trajano está muito doente, às portas da morte. Os parentes chamam Nicodemus, “o mais famoso puxador de reza e o melhor ajudador da morte de toda a redondeza”. As rezas não acabam nunca. Nicodemus percebe a chegada da morte e aconselha os familiares do moribundo a chamarem o padre: “Se é cristão, deve receber logo os sacramentos, as bênçãos de um padre, para não morrer nas trevas, na tentação do Diabo.” Ao final, numa “alta madrugada”, o ajudador, após muitas orações, retira-se da alcova de doente: “Acabara de abreviar a agonia de Manoel Trajano, ajudando-o a dar a alma a Deus, metodicamente sufocado.” Em “Ao crepúsculo, num quarto”, publicada nos dois livros, um viajante se hospeda numa pensão, se maldiz da pobreza do ambiente, pensa em se relacionar amorosamente com a arrumadeira (esse solilóquio demora algum tempo e absorve grande parte da narrativa), vê a noite chegar, sempre à janela, quando avista “uma figura ensombrada”. Engana-se, ao supor tratar-se da moça. Ao lavar o rosto e preparar-se para o jantar, batem à porta. Pensa tratar-se da jovem. Abre a porta, “sôfrego”. Ele e o leitor deparam, então, a figura de um assassino: “Nem viu direito o rosto cangaceiro encoberto pelo chapéu de abas largas, pois foi logo o revólver vomitando morte e lhe enchendo o peito e o bucho de balas.”

(...)

Os personagens nos dois livros aqui mencionados são desenhados com traços rudes, como não poderia deixar de ser. Nem mesmo as mulheres aparentam beleza, singeleza, ao contrário do que se vê em outros narradores cearenses. Chico Pachola é “desengonçado e casmurro”. O cangaceiro Zé de França, de “Sanharão”, é “caboclo chaboqueiro de cabelo-de-espeta-caju”. Pedro Silvério, de “Amores lícitos e ilícitos do Silvério e a negridão e o sabor das guabirabas”, é, talvez, o personagem mais favorecido na descrição: “Grandalhão, bem conformado, espadaúdo e um tanto obeso” (...) “tinha cara redonda e cabeça chata, maçãs do rosto salientes e nariz afilado e curto, quase arrebitado”. Nicodemus, de “Onde Nonato encontrou seu calunga, o Bozó”, é “homem grandalhão, barbaçudo e pestanhudo, de grenha intensa, ar bonachão e prestimoso”. O caçador de “A pondenga” é “um magro serrano de cara estragada pela bexiga, boca murcha pela ausência de dentes incisivos, olhar cansado e corpo arqueado de viver e sofrer.”

A par disso, muitos dos personagens vivem situações vexatórias, seja na hora da morte, seja em plena vida. Profíqua morre engasgada com pedaço de osso. A castração do homicida de “O Capagato” é cena do mais puro naturalismo: “a lâmina fina agora a penetrar fundo no seu saco escrotal”; “ouviu-se um berro estrondoso”, “berro horrível, como os dos gatos capados...” A cena de eutanásia em “Nicodemus, ajudador da morte” é inesperada. Elza é deflorada por um porco. Quinca das Contendas morre afogado: “animal e cavaleiro sumiram nas águas barrentas”. Padre Verdeixa, famélico, só encontra “a pobre mistela dos maxixes cozidos na água e sal” para matar a fome. Um dos mais contundentes contos de Hélder é, sem dúvida, “O estouro do homem faminto”. Nem sequer nome lhe é dado. Faminto, “era um coitado que vivia só, metido debaixo de um rancho de capim, na beira de um capão seco”. Passados dias de fome, “lembrou do carcará que come sapo sem se engasgar”. Após matar e assar o bicho, “comeu uns nacos”. Dormiu e “acordou com uma sede dos diabos”. Procurou uma casa, conheceu Zefa, pediu-lhe água. Bebeu toda a água do pote e se despediu. Deu alguns passos, “quando ela ouviu um estouro”. O pobre homem “tinha espocado todo”.

José Hélder de Souza é discípulo de Gustavo Barroso, naquilo que o criador de Alma Sertaneja tinha de sedução pelas histórias contadas pelos sertanejos. Tem, no entanto, estilo próprio. Dimas Macedo, em “Um contador de causos”, apresentação de Pequenas histórias matutas, ressalta “a sua fidelidade à linguagem popular, ao lado de seu estilo e do seu jeito de dizer muito peculiar, porque é individualíssima a sua escritura literária.”

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) VIII

MÁSCARA
 

Endureci a face
Para não sofrer com a emoção
Meu rosto virou uma careta
E um calo, meu coração.

CANDLE
 

Se não podes ser sol
Almeje apenas ser uma vela
Que ilumine ao menos
Tuas próprias trevas.

TORCEDOR

No vôo livre da bola
Gira o sonho torcedor
Querendo ver na gaiola
Preso passarinho gol.

Pula xinga dança chora
Briga ri da própria dor
Quando perde vai embora
Mas volta sempre vencedor.

Seja campeão ou vice
Seja último ou não
Não importa o que dizem
Vence sempre a emoção.

SIBA

Meu pai
Era um homem baixo
Franzino e tímido até
Trazia os olhos tristes
Por amor a uma mulher
Sisudo agreste macho
Nunca aprendera a chorar
Sua palavra era silenciosa
E seu sorriso tentava esconder
Passos que não se sabiam...
Nunca precisou de dinheiro para beber
Mas sempre precisou da bebida
Para viver.

AMBROSIA

Minha mãe
Conserva ainda a esperança
E um encanto de criança
Nesses tempos tão hostis!

Em sua santa ignorância
Ensina-me confiança
Lição que desaprendi.

Minha mãe
Apesar de tantos anos
Segue humilde caminhando
Com um sorriso novo em flor...

Quando esquece suas dores
A comparo com as flores
Transbordando de amor.

RIMBAUD
 

Temos todos
Um rebelde dentro da gente
Um anjo caído torto e indecente.
Reminiscências
Da estação que passamos
No inferno da adolescência...
E só purgando no deserto do agora
Damo-nos conta de que aquela
Fora nossa melhor fase.

PEQUENO MERCADOR

Levantava madrugada
Antes de brilhar o sol
Do acordar da passarada
Em seu canto si bemol.

A noite, o vento, o frio
O castigavam franzino
E um medo interior
Massacravam o menino.

No escuro germinando
Ser mente ali brotava...
Quietinho, covarde, esperando

O dia que não nascia,
A feira que já fervia
Na vida que começava.

AMIGOS FOREVER
(para Danillo Feitosa)

Em vários momentos
Tenho saudades de nossa amizade
Tranqüila, sincera
Que nada queria além do instante.
Eu sei não sou
O que fora anteontem
Passo como tudo me transformo.
A paz do universo confidencia
Que as cores em lindas melodias
Desenham toda unidade
Comigo, contigo, contudo...
Espero não ter perdido
Sua amizade.

CANÇÃO DO EXÍLIO

Pátio vazio, olho o gradil
Meu Deus! estou preso!
Pior que cadeia,
Preso em mim mesmo!
Nem tenho direito
A um raio de sol
Que ilumine este pátio,
Que aqueça este peito.
Que me deixe sem jeito
De tentar esconder
Todo meu preconceito
Por não ter aprendido
O real, irreal sentido
Dessa magia, viver.

BLEFE

Não me atrevo
A ser apenas
O que desejo

Escrevo.

Nem admito
Escrever somente
O que sinto

Minto.

DISTRAÍDO

Olhava os pássaros
Procurando caminhos
Enquanto meus passos
Pisavam seus ninhos.

DEMASIADO HUMANO
 

Precisamos de um Deus
Que nos una
Precisamos de um Deus
Que nos ame
Precisamos de um Deus
Que nos puna
Precisamos de um Deus
Precisamos
Mesmo que seja Um
Que nós próprios
Inventamos.

POETA

Todo dia amanhecia verso
Toda vida gostara do outono
Toda noite dormia certo
Não morreria
Enquanto houvesse um sonho.

ENGANO
 

Não sou profeta
Nem vagabundo
Sou um poeta
A caminhar no mundo.

Não sou religioso
E nem ateu
Sou um homem
Que se acredita deus.

Na realidade sei
Que nada sou
Nada serei

Além do engano
De querer ser
Mais que humano.

EU TE AMO!

Meus olhos gritam
O que teus lábios
Teimam silenciar.

CIÚME
 

Olhando para o que não lhes pertence
Meus olhos choram uma dor
Que não deveria ser minha.

ECO

Amor difícil caminho
Eu digo rosas
Você repete espinhos.

MESTRES

Lábios
Dois sábios
Quando mudos beijam.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) Caçar com velas

Poucas, as pessoas cuja vida tenha deslizado serena sempre, como um dia de sol sem nuvens; raros, aqueles que viveram sempre ao abrigo da luta pela existência; e se esses, assim postos ao abrigo, por uma circunstância toda especial da fortuna ganha pelos seus progenitores, se esses, digo, fossem de momento lançados àquela luta, provavelmente nela sucumbiriam, por entrarem na liça muito tarde, sem preparo algum nem o hábito da peleja e dos seus rigores nem da utilização das próprias faculdades.

A necessidade é uma grande mestra, e é sempre preferível que os homens moços aprendam com ela.

Houve um tempo em que eu cacei - não como amador, por simples recreio - mas por necessidade, para ganhar a vida, como negócio, em suma. É claro que não ia perder as minhas horas a espera de preás nem tuto-tucos, nem tampouco a levantar bem-te-vis ou pica-paus. Nada: procurava caça redonda, de poder até fazer fortuna com da, pois já não podia atender às encomendas que de toda parte me chegavam.

Cada dia mais avultavam os pedidos: os compradores pagavam à vista e sem regatear, por vezes, para ver-me livre deles, pedia preços loucos.., nem assim! É que eu tinha uma especialidade! -mas que especialidade! - só, somente vendia peles de onças, muito bem tiradas com rabo, cabeça e garras — tudo perfeito, sem um talho, sem um furo, sem um buraco!

Todos podem matar - e alguns, matam - onças a tiro, como eu; mas por melhor que seja esse atirador, ele estragara – sempre - o couro da presa, porque usa balas ou balins ou, pelo menos, chumbo grosso. Eu, não: só empregava... Esperem um pouco.

Parece até que tomava a minha caça em arapuca, inteirinha, sem um arranhão, e esfolava-a tranquilamente, como se depenasse um perdigão.

Era isso o que encantava os compradores dos meus couros... de onças.

Vários bisbilhoteiros acompanharam-me ao mato para verem o meu sistema; deixava-os ir, convidava-os mesmo, porém despistava-os facilmente. Como conhecia os paradouros das onças, encaminhava-me para lá. Afoitamente. Assobiando. Mal os bichos pressentiam a aproximação de gente, principiavam a urrar, já assustados, mas para assustar'...

Eu, então, para fingir medo, punha-me em altos brados, a chamar pelos tais fulanos... e quanto maior a gritaria, mais urravam as onças e... mais fugiam os bisbilhoteiros! Então ficava só em campo, ou antes, no mato, muito a meu gosto.

Outros, invejosos, diziam que eu tinha um - breve - contra onça; outros, que rezava a oração de São Cogominho, que é muito forte contra os perigos do mato. Diziam, porém tudo pura invenção.

O meu segredo era simplíssimo.

Como se sabe, é o homem o único animal capaz de respirar pela boca; todos os demais bichos respiram unicamente pelas ventas: quem lhas tapar, mata-os. Fiz centenas de verificações, por isso afirmo. E mais, todo o bicho preso pelo focinho é bicho dominado. Veja-se o touro, por bravo que seja, uma vez tendo uma argola passada nas ventas, já está dominado, o potro, com um cachimbo bem passado, está entregue; e assim outros.

Foi partindo desta certeza que pus em prática o meu processo, mesmo porque naquela época eu não tinha ainda descoberto minha futura famosa essência - de cachorro - que tão notáveis vitórias granjeou-me. Quando ia para o mato levava duas espingardas - das marrequeiras — de carregar pela boca, e de munição de guerra apenas espoletas, pólvoras e buchas. E em vez de ......     espere um pouco!

No que descobria a onça, fazia barulho, assanhava-a! Ela pulava, encastelava-se numa forquilha de qualquer árvore, agitando a cauda lambendo as barbas, miando rouco, afiando as unhas... Eu, parava-me bem em frente - que e a regra - porque se você dá costas, a onça pula-lhe em cima, e, adeus! era um dia...

Carregava a marrequeira com a sua espoleta, sua carga de pólvora e uma bucha, de sabugo de milho; depois então é que metia a... Espere um pouco!

Mas não despregava os olhos da fera. De tal forma a gente acostuma-se a estes perigos que chega a carregar a arma simplesmente pelo tato e pelo ouvido. Quando estava preparado enfiava na mira a racha do focinho da onça, e pum!

O bicho recebia a carga bem nas fuças; roncava, sufocado, e vinha ao chão, tonto, inconsciente, mortalmente batido, com as ventas entupidas e com o atilho pendurado no focinho. Lentamente corria, por ele amarrava a fera a qualquer ramo e já carregava a segunda espingarda - pra dar à primeira o tempo de esfriar - e assim, ia-me à segunda. terceira, sétima onça, etc.

Caçado o número marcado, sangrava cada uma e tirava-lhe o couro, sem um talho, sem um furo, um buraco: perfeito, sem avaria! Em lugar de balas eu comprava velas de sebo, já preparadas pelo calibre das armas em cada ponta do pavio ia preso um forte anzol.

Com o calor da pólvora, no tiro o sebo saia derretido, e dando bem pela frente nas ventas da onça, entrava por elas a dentro, enchendo-as e entupindo-as; a fera mesmo espirrando não mais podia expelir aqueles batoques, que, endurecendo, asfixiavam-na.

O pavio também seguia o seu caminho: um dos anzóis fisgava certo, no focinho; o outro quase sempre pegava na língua, outra vez numa das beiçolas ou no céu da boca... e cravava-se fortemente. Assim, firmado pelas duas pontes, o pavio formava uma alça.
O.........
A.........

Nem é preciso explicar.

As coisas mais simples são sempre as que parecem mais difíceis. Desvendado, o meu segredo é como o ovo de Colombo; agora todos dizem:

— Ora, que milagre!... Assim, Romualdo, assim, eu também faço!
======================
continua… mais casos

Fonte:
Wikipedia

domingo, 29 de dezembro de 2013

Carolina Ramos (Ano Novo) e Agradecimentos

Aguarde para ler o poema inteiro desta grande poetisa santista 

CAROS LEITORES, ASSINANTES E SEGUIDORES DO BLOG

Mais um ano que se encerra. O Blog completa este mês, 6 anos de existência.

11700 postagens.
160 seguidores.
248 assinantes.
449 comentários
1.109.000 pessoas navegaram no blog.
Média de 500 a 700 pessoas navegam no blog por dia.

10 Países que mais visualizaram o blog até o momento
Brasil……………...…832.578
Estados Unidos....….123.795
Alemanha………...…  35.962
Portugal………..…...   32.528
Rússia………..……..  11.179
França……......…….     8.470
Espanha…….……....    2.728
Suécia……….……...    1.755
Holanda………..…....    1.712
Reino Unido…….......    1.581

Cerca de 80 e-books, e e-revistas foram produzidos nestes 6 anos.
Tributos, Paraná Poético, Trova Brasil, Almanaque Paraná, Estados do Brasil em Trovas, Cavalgada de Trovas, Santuário de Trovas, etc

Colaborações de literatos do Brasil, Moçambique, Angola, Estados Unidos, Espanha, Argentina, Chile, Portugal, Japão, Alemanha, Itália, Malta.

Enfim, finalizamos sempre em ascensão. Obrigado aos que colaboraram com seus textos, e a todos que participaram diretamente e indiretamente prestigiando estas páginas. Paro por agora, mas retorno dia 3 de janeiro de 2014., desejando uma ótima passagem de ano a todos. 

Ano que vem estaremos juntos novamente.

José Feldman

P.S.: Se beber, não dirija. Quero te ver com saúde e vivo em 2014

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 9)


Ave, irmãos, amai as aves,
deixai que voem, que cantem...
Deixai que, livres de entraves,
o verde e a vida replantem!
A. A. DE ASSIS – Maringá
-
Só verdade e compaixão
ponha no que você faz;
derrame amor e perdão
e deixe fluir a paz.
ADÉLIA MARIA WOELLNER – Curitiba/PR
-
Para o retirante é certo
que a árvore neste verão
é qual um sombreiro aberto
que Deus botou no Sertão.
ADEMAR MACEDO - Natal/RN
-
Relógio fique parado!
Não deixe o tempo passar...
Eu quero ser enganado,
quando a velhice chegar!
AMÁLIA MAX - Ponta Grossa/PR
-
 Procura longa e constante,
num sempre querer achar...
Um sonho louco e distante,
impossível de alcançar...
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG – São Fidélis/RJ
-
Amigos também são Anjos
com que Deus cuida de nós;
eles sempre têm arranjos
que desatam nossos nós...
AMILTON MACIEL MONTEIRO – São José dos Campos/SP
-
Prato de vidro, vazio,
feito um espelho, em teu fundo
refletes o olhar sombrio
das injustiças do mundo!
ANTÔNIO DE OLIVEIRA – Rio Claro/SP
-
 Mamãe!... Não há quem exprima
uma palavra mais bela,
pois mesmo não tendo rima
a vida rima com ela!
ANTÔNIO ROBERTO – Campos dos Goytacazes/RJ
-
Se todos, sinceramente,
mostrarem paz e labor,
nós teremos, brevemente,
menos ódio, mais amor!
ARLENE LIMA – Maringá/PR

-
Eu te imploro, por favor
não insistas nesse adeus,
se não for por meu amor,
fica pelo amor de Deus!
ARLINDO TADEU HAGEN - Belo Horizonte/MG
-

Um fato triste, por certo,
não convém ser relembrado...
Jamais conserve por perto
as tristezas do passado!
BENEDITO MADEIRA – Porto Alegre/RS
-
Há quem chore por defunto
bem na beira do caixão,
mas ninguém quer ficar junto
do finado sob o chão.
CARLOS ALBERTO DE ASSIS CAVALCANTI – Arco Verde/PE
-
Y es que el amor de los dos
quisiera escribirlo en oro
por que eres cosa de Dios...
¡Amor mío! ¡Yo te adoro!
CARMEN PATINO FERNÁNDEZ - (CARMIÑA) - Espanha
 -
Há contraste em nossas vidas
mas, perfeito é o desempenho:
luz e sombra, quando unidas,
dão força e vida ao desenho…
CAROLINA RAMOS – Santos/SP
-
Terra de todas as raças,
muito verso e trovador.
Têm pinheiros, parques, praças
e um povo trabalhador.
CECILIANO JOSÉ ENNES NETO - Curitiba/PR
-
Água pura e cristalina
no meu pote mergulhou...
E como luz que ilumina
minha sede então saciou.
CIDINHA FRIGERI – Londrina/PR
-
Palhaços de profissão?
Ah, Como é bom, fazem bem.
O triste é ter coração
e ser palhaço de alguém!
CLÁUDIO DE CÁPUA – Santos/SP
-
A mulher do amolador,
que é fofoqueira afamada,
diz que casou sem amor
só pra ter língua afiada!
CLENIR NEVES RIBEIRO – Nova Friburgo/RJ
-
Gosto de vocês demais,
que me alcançam, pelo espaço...
Somos galhos especiais,
unidos num mesmo laço...
CLEVANE PESSOA ARAÚJO - Belo Horizonte/MG
-
Solo versos sin belleza,
va luciendo mi alma herida,
pues me invade la tristeza
!al no compartir tu vida!
CRISTINA OLIVEIRA – Estados Unidos
-
Desmatar!…Ânsia incontida
ataque sem precedente…
ousadia contra a vida
que Deus nos deu de presente!
CYNIRA ANTUNES DE MOURA – Santos/SP
-
Os meus garbosos oitenta
jamais pensei alcançar:
– será que a carcaça agüenta
uns outros mais a chegar?
DIAMANTINO FERREIRA – São Fidélis/RJ
-
Inútil, desagradável,
tornar alguém diferente,
para que seja ajustável
aos interesses da gente.
DJALMA MOTA – Caicó/RN
-
 Nesta vida rotineira,
tua saudade em minha alma
é cantiga de goteira
em noite de chuva calma!
DOMITILLA BORGES BELTRAME – São Paulo/SP
 -
Ora eloquente, ora mudo,
teu olhar é uma charada:
promessa sutil de tudo,
no fútil revés... do nada!
DOROTHY JANSSON MORETTI – Sorocaba/SP
-
Quem meditar por instantes,
certos conceitos refaz:
- O mais caro dos brilhantes
não vale o brilho da paz!
EDERSON CARDOSO DE LIMA – Rio de Janeiro/RJ
-



Fecha-se o tempo passado,
meia-noite, eu me depuro;
o ano nasce, iluminado,
abre-se o tempo futuro.

ELIANA RUIZ JIMENEZ -  Balneário Camboriú/SC
-
 Vivo em constante conflito
entre o delírio e a razão:
– meu sonho alcança o infinito,
meus pés tropeçam no chão!
ELISABETH SOUZA CRUZ – Nova Friburgo/RJ
-
 Ela é plantadora, a gralha,
e plantando tudo dá;
é riqueza que não falha,
no solo do Paraná.
FERNANDO VASCONCELOS – Ponta Grossa/PR
-
Em ternura plena e extrema,
nossos sonhos se cruzaram!
E a noite se fez poema...
e os versos também se amaram!...
FLÁVIO ROBERTO STEFANI - Porto Alegre/RS
-
 Teus olhos, de um verde jade,
no instante do nosso adeus,
revelaram que a saudade
tem a cor dos olhos teus.
FRANCISCO JOSÉ PESSOA – Fortaleza/CE
-
Mi corazón te prefiere,
por mujer entre mujeres,
eres la flor que surgiere
donde mi tumba yaciere.
GERMÁN ECHEVERRÍA AROS - Chile
-
Aquela ponte que unia
nossas vilas ribeirinhas
une, ainda, por magia,
tuas saudades e as minhas.
GISLAINE CANALES - Porto Alegre/RS
-
A bengala, cor da paz,
que o homem cego conduz,
tem um mistério que faz
o som transformar-se em Luz!...
HERMOCLYDES SIQUEIRA FRANCO – Rio de Janeiro/RJ
-
Recebo a auréola de um santo,
levito pelos espaços,
chegando aos céus por encanto
quando me tens em teus braços!
IVONE T. PRADO – Belo Horizonte/MG
-
 Voltaste, e a Felicidade,
que voltou no mesmo dia,
rebatizou a Saudade:
– “Teu nome agora é Alegria!!!”
IZO GOLDMAN – São Paulo/SP
-
Amor… dois copos de vinho,
são nossos dois corações,
cujo sabor é o carinho
transbordando de emoções!
JOSÉ FELDMAN – Maringá/PR
-
Não penses que estás distante
de uma estrada mais florida,
há sempre um mágico instante
que muda os rumos da vida!
JOSÉ LUCAS DE BARROS – Natal/RN
-
 O ganso jurou vingança
ao notar, estupefato,
que o pato dormiu com a gansa
e ele fez  “papel de pato”!
JOSÉ OUVERNEY – Pindamonhangaba/SP
-
Você é luz de luar,
É poesia encantadora!
Venha, pois, iluminar
Minha vida sonhadora!
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE - Pinhalão/PR
-

Coração desconsolado,
não podeis esmorecer,
se viver é complicado,
muito mais é não viver.
LUIZ ANTONIO CARDOSO – São Paulo/SP
-
O que dói, às vezes sara
e o que sara não castiga.
A ponte que nos separa
pode ser a que nos liga.
MIGUEL RUSSOWSKY - Joaçaba/SC
-
Quem diz que eu olho e não vejo
a lágrima em seu olhar
não merece mais meu beijo,
pois sofro a me controlar.
NEI GARCEZ – Curitiba/PR
-
Sonhando de trova em trova
pela estrada da poesia,
minha vida se renova
no correr de cada dia.
NILTON MANOEL – Ribeirão Preto/SP
-
Companheiro, estenda a mão,
que nem um bom cavalheiro,
ao colega, amigo, irmão...
porém lave a mão primeiro!
OSVALDO REIS – Maringá/PR
-
Que os rumos de meus irmãos
não se percam nas estradas
e as vias de duas mãos
sejam vias de mãos dadas!
RENATA PACCOLA – São Paulo/SP
-
 Quando o Sol encontra a Lua
– no entardecer de ouro e prata –
entoam canções na rua
com vestes de serenata.
SARAH RODRIGUES – Belém/PA
-
Há dias em que os palhaços
têm conflitos, sem medida,
quando, em segredo, aos pedaços,
mendigam risos da vida.
SILVIA ARAÚJO MOTTA – Belo Horizonte/MG
-
A minha Vida hoje eu traço
nestas linhas de meu verso,
assim acho meu espaço
e tenho todo o Universo !...
SÔNIA DITZEL MARTELO – Ponta Grossa/PR
-

Este perdão que me negas
por "um nada" que te fiz,
é mais um cravo que pregas
na cruz de um peito infeliz.
THALMA TAVARES – Tambaú/SP
-
Quando a vida é limitada
eu lhe amplio a dimensão:
cada coluna é bordada
com retalhos de ilusão...
VANDA FAGUNDES QUEIROZ – Curitiba/PR
-

O tempo mostrou com calma,
que apesar dos seus desvelos,
não pôde polir minha alma
sem respingar meus cabelos.
WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ– Curitiba/PR
-

Nosso amor, nossos carinhos,
vão conosco na viagem,
pondo flores nos caminhos
e embelezando a paisagem!
YEDDA PATRÍCIO – Pouso Alegre/MG

Lairton Trovão de Andrade (Trova e Quadra no Brasil)

A Trova, que surgiu na amena região de Provença, ainda nos longínquos idos da Idade Média, expandiu-se naturalmente pela Itália, Espanha e Portugal, transbordando de ternura os corações das classes sociais da época, numa clara manifestação do espírito,  frequentemente espontâneo e extrovertido,  dos povos de línguas neolatinas.

Através dos tempos, a Trova não permaneceu inalterável como algo estático e acabado, mas sofreu alterações em sua estrutura, principalmente externa, como que a procura da própria identidade e perfeição.

Assim sendo, fora se transformando  progressivamente, através das literaturas, a tal ponto que podemos evidenciar: “As trovas dos seus primeiros tempos, bem como dos tempos de Dom Dinis,  diferem,  e muito, daquelas que praticamos hoje”.

Ainda no passado próximo, as alterações foram bem acentuadas. Cristalizaram-se definitivamente os versos setissilábicos. As rimas, que a princípio nem sempre existiam, tornaram-se indispensáveis. 

Posteriormente, nos jogos florais e nos concursos, não se admitiu mais a presença de trovas com rimas simples ( rima do 2º com o 4º verso), permanecendo, como regra, apenas as de rimas duplas , do 1º com o 3º, e do 2º com o 4º verso.

As históricas alterações, entretanto, preservaram na Trova a grandeza da essência. O  íntimo substancial praticamente permaneceu, a tal ponto que o conceito “trova” ultrapassou os séculos e as culturas e, em nossos dias, recebeu  imenso vigor de expressividade.

E as tendências continuam...

Trovadores sérios do Brasil não admitem mais os termos “quadrinha”, “trovinha” etc. como referências à “Trova”.

Ainda mais: Em se tratando de trovadores brasileiros, mesmo que “trova” e “quadra” sejam ainda sinônimos, já existe por aqui, talvez por influência de trovadores da UBT (União Brasileira de Trovadores), tendência de não reconhecer o termo “quadra” como simples sinônimo de “trova”.

A Trova representa profícua escola literária da Língua Portuguesa, onde o dinamismo dos seus membros, no seio de entidades como a UBT, por exemplo, expressa o esmero de um gênero literário florescente, além da convivência de seus pares numa confraria exemplar. 

Entre os brasileiros, o conceito “quadra” faz pensar, muitas vezes, que se trata de uma forma de versejar do povo, sem nenhuma preocupação gramatical, lembrando forma simples de poemeto de uma estrofe só, onde a simplicidade confunde-se com expressões incultas.

Diante da sua relevante envergadura, designá-la simplesmente de “quadra” parece-nos “sacrilégio literário”.

Nos dias de hoje, o conceito “trova” supõe rigor maior:  Há exigências incondicionais quanto ao número de sílabas, quanto ao sistema de rimas, quanto ao primor de conteúdo, quanto à correção gramatical e quanto à conclusão perfeita  de um pensamento.

Mais do que nunca, representa hoje a “excelência de um achado”. Por isso, a Trova, por sua estirpe e magnitude, pertence à alta nobreza da Literatura.

Enfim, o que se propõe, acima de tudo, é o cultivo da “Trova Literária” que, no seu íntimo, deve ser muito diferente da simples “trova popular”, apesar de que o desejo de todo trovador é que sua trova torne-se popular, no sentido de que seja lida e recitada  por todas as camadas sociais, manifestando a cultura e o esplendor do lado puro e simples da Língua Portuguesa.

Apesar disso, a “Trova Literária” será sempre erudita, ainda que espontânea, cujo conceito  ultrapassa, sem comparações, o mundo limitado e tacanho do conceito, às vezes pejorativo, de  “quadra  popular” do Brasil.

Trovador é aquele que faz trovas. O trovador é maior que o simples poeta, pois todo trovador é poeta, mas nem todo poeta é trovador. No reino das musas, não há orgulho maior que ser trovador!

Por isso, aquele que tem o dom de fazer trovas deve se sentir privilegiado, pois a Língua Portuguesa adquiriu suas primeiras formas literárias, através do labor heróico dos trovadores medievais.   

Os modernos trovadores são os legítimos herdeiros dos primeiros cultores da língua portuguesa.

É possível que, num futuro não muito distante, a Literatura Brasileira, o Dicionário Aurélio e outros possam apresentar diferenças essências entre “Trova” e “quadra”, uma vez que a Língua Portuguesa, sendo viva e dinâmica, pode, muito bem, continuar a ter evoluções e aquisições de novos conceitos, mesmo que alterando noções antigas por serem já, na opinião de muitos, obsoletas e inadequadas.

Concluindo, as considerações feitas aqui não dizem respeito à Trova de Portugal, denominada pelos irmãos lusitanos de “Quadra Popular”, que historicamente serviu de suporte ao nascimento da trova no Brasil.

Fonte:
Falando de Trovas e Trovadores – Nº  03 – Outubro de 2006. Disponível no Portal CEN

Jangada de Versos do Ceará (2)

NILTO MACIEL
Baturité (1945)
Se Me Chamares Fogo
-
Se me chamares fogo
eu te labaredas.

Se me quiseres água
eu te correntezas.

Se me julgares vento
eu te tempestades.

Se me disseres pedra
eu te porcelanas.

Se me chamares chão
eu te profundezas.

Se me quiseres noite
eu te estrela Vésper.

Se me julgares pássaro
eu te vendavais.

Se me disseres corvo
eu te Allan Poe.

Se me chamares serpe
eu te paraíso.

Se me quiseres corda
eu te Tiradentes.

Se me julgares diabo
eu te tentações.

Se me disseres anjo
eu te candelabros.

Se me chamares deus
eu te eternidade.

Se me quiseres louco
eu te poesia.

Se me julgares santo
eu te crucifixos.

Se me disseres vida
eu te funerais.

Se me chamares mito
eu te tecelões.

Se me quiseres pródigo
eu te ancestrais.

Se me julgares hoje
eu te amanhã.

Se me disseres sempre
eu te nunca mais.

Se me chamares vem
eu te seguirei.
====================

RACHEL DE QUEIROZ
Fortaleza (1910 – 2003)
Telha de Vidro
-
Quando a moça da cidade chegou,
veio morar na fazenda
na casa velha...
tão velha...
quem fez aquela casa foi seu bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
Mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha..a.
A moça não disse nada;
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro,
queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora
o quarto onde ela mora
e o quarto mais alegre da fazenda.
Tão clara que, ao meio-dia, aparece uma renda
de arabescos de sol nos ladrilhos vermelhos
que, apesar de tão velhos,
só agora conhecem a luz do dia...

A lua branca e fria
também se mete às vezes pelo claro
da telha milagrosa...
ou alguma estrelinha audaciosa
carateia no espelho onde a moça se penteia...
Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta, fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você não experimenta?
A moça foi tão bem sucedida?
Ponha uma telha de vidro em sua vida!
==========================
SOARES FEITOSA
(Francisco José Soares Feitosa)
Ipu (1944)
Réquiem em Sol da Tarde
-
Grita, para ver se alguém te responde.
(Livro de Jó, 5, 1)


Sim,
a porteira do caminho do rio
ainda era a mesma.

A direção do rio também;
presumo não tenham mudado o rio.

O benjamim,
disseram, morrera na seca do 93;
arrancaram-no pelo tronco.

Não replantaram sombra,
nem pássaro.

O banco de aroeira,
racharam-no em lenha de fogo.
O curral das vacas,
também.

O chiqueiro das ovelhas,
À esquerda da casa,
e o dos bodes,
à esquerda do das ovelhas,
sumiram todos.

O batente da porta-da-frente,
e abaixo dele outro batente,
onde uma pedra,
com um caneco d'água
lavei os pés,
ainda estão lá,
os batentes;

e nos batentes também estavam
meus rastros em riscos de fogo,
que continuam.

Os canários amarelos,
os mofumbos florados,
não os vi;
nem flor...
que também não vi.

Os armadores da rede,
na sala-da-frente, sim,
estavam no logar,
parecem,
outra vez prontos para rangir.

E daquelas pessoas,
quando perguntei por elas,
fizeram-me um gesto distante.

Perguntei por mim;
ninguém sabia quem era.

Eu disse:
é um conhecido meu que gostava muito
daqui.

Perguntaram-me quem eu era.
Um amigo, disse,
e fiz um gesto
ao tempo.

Ficaram sentidos por não saberem
nem de mim, nem do "outro".

Um menino pequeno começou a chorar,
lá dentro.

A mãe correu
para acudir.

Despedi-me
sem dizer palavra.
======================

VIRNA TEIXEIRA
Fortaleza (1971)
Visita
-
Criado-mudo:
Bíblia e
rosário de contas.

Na cama, ao lado
a nudez
sem nome.
=================

FLORIANO MARTINS
Fortaleza (1957)
I  Salas de reconhecimento
-
Sou eu o nome as letras
em que te arrastas
As perguntas que iniciam
a travessia de tua dor

Noite inquieta sob escombros
Delicado tambor das tormentas 
Tua sombra vem vindo
ao ninho de minhas sílabas errantes

Tua sombra erguida 
Intimidade de cinzas
onde a dor o lábio toca 
Formas ressurgidas do caos
Prolongas teu ser em tudo o que me falta

Noite submersa em tremores
Esplendor de infernos  devassados 
Pousa tua mão
na esfera crepitante de meus sentidos

Uma prova o livro que conduz
ao templo 
Missal de cinzas 
Teu corpo soprado mil vezes
a queimar mais e mais longe de ti

Sou eu morte as ruínas
de tua história 
Lugar onde ninguém mais te escuta
Onde as pedras de fogo são polidas

Tua sombra erguida 
Oculto fósforo
no desmaio dos sentidos 
Os delicados jogos da morte
Assim escavas sob os pilares do tempo

A treva em ti atingirá
a fonte de outra queda 
Tumulto que eleva
tua vida acima de toda ruína

Sou eu o livro 
As vozes
de tua memória agitando os segredos do silêncio
Tuas carnes devoradas pelo tempo

Noite cerimonial do abismo
Tuas ruínas respiram em meu canto 
Mil nomes segreda
o ar ao cruzar as entradas invisíveis

Aqui andei 
Entre as criaturas
dementes do mundo 
Peregrino dentro de um quadro
Escrituras folheando o vento

Ressurges em mim 
Ávida sentença de meus
dias nas trevas 
Alma inacabada a sorrir das formas
que engendro como portas ao absoluto

Uma prova as últimas chamas
evocadas 
Braseiro confirmando a pele de teus dias
e suportar  as figuras do vazio

Noite nascendo em outra noite
Por trás das colunas circulares o fogo abriga o livro
do invisível pranto de suas cinzas

Aqui andei 
Fomos um e todos
Mascar o tempo é rito de alucinados 
Os episódios
virão dar todos nesta escura sala

Fonte: