domingo, 19 de janeiro de 2014

Expressões e suas Origens II

Pensando na morte da bezerra

A história mais aceitável para explicar a origem da expressão é proveniente das tradições hebraicas, onde os bezerros eram sacrificados para Deus como forma de redenção de pecados. Conta-se que certa vez um rei resolveu sacrificar uma bezerra e que seu filho menor, que tinha grande carinho pelo animal, opôs-se. Independentemente disso, a bezerra foi oferecida aos céus e afirma-se que o garoto passou o resto de sua vida pensando na morte da bezerra. Assim, estar “pensando na morte da bezerra” significa estar distante, pensativo, alheio a tudo.

Farinha do mesmo saco

"Homines sunt ejusdem farinae" (São homens da mesma farinha, em latim) é a origem dessa expressão, utilizada para generalizar um comportamento reprovável. A metáfora faz referência ao fato de a farinha de boa qualidade ser posta em sacos separados, para não ser confundida com a de qualidade inferior. Assim, utilizar a expressão "farinha do mesmo saco" é insinuar que os bons andam com os bons, enquanto os maus preferem os maus.
   
Dor de cotovelo

A expressão teve origem nas cenas de pessoas sentadas em bares, com os cotovelos apoiados no balcão, bebendo e chorando a dor de um amor perdido. De tanto permanecerem naquela posição, as pessoas ficavam com dores nos cotovelos. Atualmente, é muito comum utilizar essa expressão para designar o despeito provocado pelo ciúme ou a tristeza causada por uma decepção amorosa.

Olha o passarinho!

Quando a fotografia foi inventada, a impressão da imagem no filme não se dava com a mesma rapidez dos dias atuais. Na metade do século 19, os fotografados tinham de permanecer parados por até 15 minutos, a fim de que sua imagem fosse impressa dentro da máquina. Fazer as crianças ficarem imóveis por tanto tempo era um verdadeiro desafio. Por isso, gaiolas com pássaros ficavam penduradas atrás dos fotógrafos, o que chamava a atenção dos pequenos. Assim, a expressão “Olha o passarinho” ficou conhecida como a frase dita pelo fotógrafo na hora da pose para a foto.

Motorista barbeiro

Antigamente, os barbeiros eram conhecidos não apenas por realizar o corte de cabelo e barba, mas também por desempenhar tarefas como: extração de dentes, remoção de calos e unhas, entre outros. Geralmente, os serviços extra deixavam consequências desagradáveis aos clientes. No século 15, o termo “barbeiro” era atribuído a atividades mal executadas. Com o tempo, passou a ser relacionado aos motoristas.  Daí a expressão “motorista barbeiro”, ou seja, mau motorista.

Novo em folha

Para falar que algo nunca foi usado ou que, se já foi, está em ótimo estado, dizemos que está "novo em folha". A expressão também pode ser usada para designar alguém que, depois de se machucar ou enfrentar uma doença, está curado. A origem dessa expressão baseia-se em folhas de papel branquinhas, limpinhas e sem amassados, encontradas em livros novos, recém impressos. Assim, trata-se de livros “novos em folha”.
   
Ovelha negra

Esta expressão não é brasileira nem restrita à língua portuguesa. Vários outros idiomas também a utilizam para designar alguém que destoa de um grupo, assim como uma ovelha da cor preta se diferencia em um rebanho de animais brancos. Na Antiguidade, os animais pretos eram considerados maléficos e, por isso, sacrificados em oferenda aos deuses ou para acertar certos acordos. Daí o hábito de chamar de "ovelha negra" aqueles que se diferenciam por desagradar e chocar aos demais.

Guardar a sete chaves

No século 13, baús eram usados para guardar joias e documentos da corte de Portugal. Cada baú tinha quatro fechaduras e era aberto por quatro chaves distribuídas entre funcionários do reino. Com o tempo, os baús caíram em desuso. E algo que antes estava bem “guardado a quatro chaves”, passou a ser “guardado a sete chaves”, devido ao misticismo associado ao número 7. Esse misticismo originou-se nas religiões primitivas babilônicas e egípcias, que cultuavam os sete planetas conhecidos na época. Assim, a expressão “guardar a sete chaves” está relacionada ao ato de guardar algo com segurança e sob sigilo absoluto.
   
Tintim por tintim

Corrente tanto no português do Brasil como em Portugal, a expressão "tintim por tintim" é utilizada para falar de alguma coisa descrita em seus mínimos detalhes. Segundo o filólogo brasileiro João Ribeiro, “tintim é a onomatopeia do tilintar de moedas”, ou seja, tintim é o barulho que uma moeda faz quando cai sobre outra. Em sua origem, a expressão “tintim por tintim” era usada para se referir a uma conta ou dívida paga até a última moeda. Assim, quando queremos obter informações precisas sobre algum fato ou situação, costumamos dizer: "Conte-me tudo, tintim por tintim”.
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continua...

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) V

A FUNÇÃO DE UM POETA

Eu não era tão amargo assim,
nem trazia no rosto a marca do sofrimento.
O semblante sisudo herdei por conta das tragédias.
E o sorriso de menino indefeso desapareceu de meus lábios finos.
Quando descobri verdadeiramente o mundo
esse se desmoronou sob os meus pés.
Procurei, então, nas sendas do passado:
Tude, a negra alta, que mercava fufu
numa lata de manteiga da Aliança para o Progresso,
Os cambucás doces da Lagoa Funda de Américo Carneiro,
A suave proteção de meu avô Augusto Asclepíades.
Mas tudo se esvaiu como uma névoa branca
repleta de saudades.
Canto agora a minha dor,
e sou apenas um pequeno poeta jacuipense,
num canto escuro de uma casa,
sem amor.

BOQUEIRÃO DE MINHAS LEMBRANÇAS
Para minha filha Laura

“Santa Bárbara, Virgem
dos cabelos louros
a sua morada
é na pedra do ouro”
Domínio Público


Tocós, Cipó, Cocorobó, Caldeirão
Riachinhos, riachos, fontinhas, minação
Cedro, Peixe, Sacraiú, Riachão

Água de beber, água de beber, água de beber, meu irmão

Pedra do Taquari, Passagem, Olaria, Tanque da Nação
Cari, corró, donilo, piaú, camarão
Cabaça, carote, pote, porrão

Água de beber, água de beber, meu irmão

Rio do Peixe, Rio Castelo, Rio Achado no Chão
Rede de Três Maio, canoa, tarrafa, temporão
Lagoa Funda, Barreiros, São José, Gavião

Água de beber, meu irmão
Baronesas, golfos, mulungus, sangradouros, corrimão
Afogados da Gameleira, Mestre Domingos, Lontras,
Zé de Epifânio acordando os peixes no breu da escuridão.

Noites de velas,Sentinelas, Água de gasto
Teu batismo João.
Por favor,
Não mate meu Jacuípe
Não mate meu Jacuípe
Povo de meu Riachão.

Senhor,
Meu Deus!
Não me deixeis cair também nessa tentação.

Agora e para sempre
Na hora de nossa morte,
Rios de minha vida
Ó ó ó doce Boqueirão.

BALADA DE AFONSO MANTTA

Lá vai, lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus.
Recitando em redondilha maior
Toda a verve de um ateu
na província de São Fudeu.

Lá vai, lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus.
E rebradar que a loucura
não deixa o juízo apodrecer,
e que pela terra ficaram poetas,
de varas tesas até o amanhecer.

Lá vai, lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus
em sua perpendicular,
fazendo da pedra de toque,
o ouro que ornata seu versejar.

Lá vai, Lá vai, lá vai...
Lá vai Afonso pra se encontrar com Deus.
E nesse adeus,
estamos nós esperando a hora chegar.

BALADA DO AMARGOSO

Meu avô Antônio Geminiano Santana não nasceu escravo,
mas como escravo fosse,
e sentisse no lombo o peso do vergalho seco de boi,
açoitado por um capitão do mato ou qualquer capataz,
e gemesse de dor na Coluna do Suplício.

Meu avô Antônio Geminiano Santana,
negro forro das terras do Amargoso,
vaqueiro do coronel Aurélio Mascarenhas,
comia em casco de cágado,
bebia num litro de óleo rícino,
como forma de humilhá-lo.

Das boiadas que meu avô Antônio Geminiano Santana tangeu pela vida afora
muitas ficaram pelos caminhos,
ou se perderam dentro dos próprios currais dos Mascarenhas.
Algumas foram trocadas numa mesa de pôquer,
todas marcadas a ferro que o próprio tempo
fez questão que a escória e a oxidação perdesse o sinal de ferrreiro,
moldado o ferrete em ferro aceso no bater do martelo na bigorna
fria da Rua dos Velhacos.

E as terras que meu avô Antonio Geminiano Santana mediu na vara de braço,
só restaram a traça corroendo os selos, à tinta dos carimbos, e o calhamaço de
averbação,
em pleno arquivo morto, jaz no Fórum Desembargador Abelard Rodrigues dos Santos,
meu padrinho, em pleno Riachão.

Meu avô Antônio Geminiano manso como suas próprias criação,
tangia com vovó Umbulina sua prole numerosa que se espalhou pelo sertão ,
e de espeto de aguilhão,
sentiu nas costas iniqüidade dos coronéis de títulos comprados à Guarda Nacional.
Não havia a quem reclamar:
se a Deus ou se ao Diabo.
Morreu pobre
abandonado num beiço de tanque,
enfartado e roxo,
no dia que o coronel lhe expulsou da própria fazenda,
que há quarenta anos tomava conta.
E em seu féretro,
o coronel também lá não apareceu,
ficando somente eu,
para recontar seu amargoso.

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida

Beatriz Alcântara (Vizinhança)

Na varanda do sétimo andar, o cão, patas apoiadas no parapeito, olha o nevoeiro. O dono, a seu lado, fuma cigarro após outro fitando o horizonte. Manhã de sol, o homem abre a porta da varanda num elegante pólo, penteado com gel, pendura meticulosamente a roupa no varal. O cão, focinho fora da balaustrada, observa a rua que jamais frequenta. Dia inteiro de calor, o animal e seu senhor, sempre muito bem vestido, olham com melancolia o pôr-do-sol num céu
laranja como brasa sobre nuvens em carneirinhos. Natal, duas mulheres, uma marcadamente mais nova, aparecem por instantes na varanda, olham os arredores e logo fecham a porta ao vento e ao frio. Pela Páscoa, a Judiciária entra e sai, sem demora, do prédio. O homem vem à janela e prega nos vidros um papel, "Vende-se". Pouco depois a mulher jovem encosta o carro à porta do prédio e o indivíduo, acompanhado pelo fiel animal, entra na viatura seguindo rua afora. Mas tarde, a porteira avisa ao carteiro, terminou a prisão domiciliar do doutor.

Fonte:
REBRA

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Beatriz Alcântara

Maria Beatriz Rosário de Alcântara nasceu em Fortaleza, Ceará. Filha de pais portugueses, passou a adolescência em Portugal. Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Ceará e Mestra em Literatura pela Universidade de Brasília. Professora da Universidade Estadual do Ceará. Integrou o Grupo Seara de Literatura e pertence ao Grupo Espiral. Membro da Academia Cearense de Letras, Academia Fortalezense de Letras e da Academia de Letra e Artes do Nordeste Brasileiro. Poeta, ensaísta e contista. Publicou, de poesia e ensaios, os livros La Revolte Positive de Simone Beauvoir (1973); Fernando Pessoa e o Movimento Futurista de Álvaro de Campos (1985); La Parure; A Academia Brasílica dos Esquecidos (1993); Água da Pedra; O Portal e a Passagem; Raízes do Tempo; Folha de Prata e Livre Sinfonia; além do livro de contos Daquém e Dalém-Mar (1993). Participa também de diversas coletâneas, como da Revista Seara, Revista Espiral, O Livro da Ajebiana, Contos Correntes e Antologia do Conto Cearense, dentre outras.

                Daquém e dalém-mar é o livro de estreia de Beatriz Alcântara no gênero conto. Para Moreira Campos, prefaciador do volume, “impõe-se a obra, de logo, pela linguagem trabalhada, limpa, corrente e pelos vários temas de que se vale (são 16 contos, ao todo, 4 portugueses e 12 brasileiros), o que testemunha a imaginação fértil da autora”. Em “Mito rei” o leitor testemunha o velório da jovem Abigail, que “morreu daquela queda besta na calçada quando saltou do lotação” e “bateu com a cabeça no meio-fio”. Trata-se, na verdade, de conto de duplo enredo. A morte e o velório da moça seriam meros artifícios para a entrada em cena de outro personagem, cuja história se vai contanto (pelo narrador onisciente), enquanto se desenvolve o diálogo entre mãe e filha (prima da morta). A chegada do desconhecido instaura o mistério na sala (e no conto). Aliás, o mistério é uma constante neste livro. “Cortejos e avisos” é um conto misterioso, elaborado a partir de sonhos, pesadelos e premonições da narradora.

                Segundo Moreira Campos, “são múltiplos os caminhos da autora. Ora se envereda por experiências filosóficas, como no conto Monólogo da Coisa, ou não esquece o fantástico, o extraordinário, particularmente no conto Cortejos e Avisos. Ora se faz hermética, submersa, irrevelada, deixa ao leitor capaz a tarefa de preencher vazios. Um outro elemento de modernidade em Beatriz Alcântara é o conto curto, breve, um “flash”, mancha”. Uma das peças é constituída somente de diálogos; outra é um monólogo, espécie de apólogo.

                É forte a presença feminina nos contos de Beatriz. A protagonista Potyrama de “No divã” inverte os papéis de paciente e analista, ao “analisar” o psicanalista. Maria, da história que leva o seu nome, é outra personagem interessante, embora de feitio diferente de Potyrama. Enigmática, chega ao vilarejo da Taiba (litoral do Ceará), encosta “seus poucos pertences em cima da gruta, debaixo de um coqueiral”, e ali vai vivendo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

sábado, 18 de janeiro de 2014

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 14)


Zerai os ressentimentos
e as mágoas do coração.
– Sem rancores, os bons ventos
novamente soprarão!
A. A. DE ASSIS – Maringá/PR
-
Se a noite chega cansada
de caminhar sempre ao léu,
Deus dá vinhos de alvorada
na taça rubra do céu.
ADELIR MACHADO – Niterói/RJ
-
Quebro a taça do passado
e o vinho espalhado ao chão
é meu brinde apaixonado
aos cacos de uma ilusão.
ALBA CHRISTINA CAMPOS NETTO – São Paulo/SP

-
Quando o inverno, com seu manto,
cobre de frio os caminhos,
o vinho é o doce acalanto
do coração dos sozinhos…
ALBERTINA MOREIRA PEDRO – Rio de Janeiro/RJ

-
A saudade, sem carinho,
procura, nas noites frias,
por velhas taças de vinho
que a vida já pôs vazias!
AMÁLIA MAX – Ponta Grossa/PR
-

O medo é perturbador
e afeta a nossa razão;
faz que coisas sem valor
pareçam mais do que são.
AMILTON MONTEIRO – São José dos Campos/SP
-
Neste meu verso amoroso
digo com certa emoção:
- a trova é vinho gostoso
que embriaga o coração.
ANITA THOMAS FOLMANN – Ponta Grossa/PR
-
Meigo menino sem nome
- alma e vida seminuas -
devora o vinho da fome
pelas adegas das ruas.
ANTONIO BISPO DOS SANTOS – Niterói/RJ
-
Amor é brisa suave,
é aconchego, é carinho;
é vôo cadente da ave
indo em busca do seu ninho.
ANTONIO MANUEL ABREU SARDENBERG – São Fidélis/RJ
-
O pedestre inteligente
sem excesso de confiança,
atravessa, calmamente,
na faixa de segurança.
CAMILO BORGES NETO – Curitiba/PR
-
Goza o momento que passa.
Repara que, em nossas vidas,
nem sempre há vinho na taça,
mas, há, sempre, despedidas…
CARLOS GUIMARÃES – Rio de Janeiro
-
O café que aquece as almas
e adoça nossas lembranças
merece todas as palmas,
companheiro de esperanças.
CARMEN PIO – Porto Alegre/RS
-
Pai, nos caminhos da vida,
seu exemplo é solução,
onde descubro a saída
pra qualquer complicação…!!!
CECILIA SOUZA ENNES – Curitiba/PR
-
Se o frio for prolongado
nestes dias de inverno,
dê calor ao flagelado,
seja um pouco mais fraterno!
CECILIANO JOSÉ ENNES NETO – Curitiba/PR
-
Para mim a ecologia
é sagrado compromisso.
É meu sonho ver um dia
pescador só de caniço.
CECIM CALIXTO – Tomazina/PR
-
Não há vinho que me faça
esquecê-la um só segundo,
porque vejo em cada taça
a imagem dela, no fundo.
CLARINDO BATISTA DE ARAÚJO – Natal/RN
-
Eu, como quem desabafa
no vinho a dor que lhe esmaga,
vou pondo a dor na garrafa
do vinho que me embriaga.
DIVENEI BOSELI – São Paulo/SP
-
Caminhos que contêm flores.
Caminhos cheios de espinhos,
os caminhos dos amores.
Caminhos, longos caminhos...
DJALMA MOTA – Caicó/RN
-
Brigamos… E o amor, injusto,
prendendo-me a um labirinto,
põe no vinho, que degusto,
todo o amargor que ainda sinto!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA – Rio de Janeiro/RJ
-

Bendito seja o sujeito
que, traído pelo irmão,
tira do fundo do peito
a fortuna do perdão!
EDUARDO TOLEDO – Pouso Alegre/MG
-
Querência… O encanto profundo
dos dias calmos, risonhos…
- Um pedacinho de mundo
no mundo azul dos meus sonhos.
ELISABETH N. PASCHOAL – Taubaté/SP
-
Se em teu caminho prossegues
um grande amor procurando,
vai em frente, tu consegues,
basta continuar tentando!...
FLÁVIO ROBERTO STEFANI – Porto Alegre/RS
-
Quando a tristeza rescinde
contrato com o coração,
louve a Deus e faça um brinde
com o vinho dda gratidão.
FRANCISCO LUZIA NETTO – Amparo/SP
-
Te levanto, vino tinto,
cual obrero triunfador,
mis labios de color pinto
con el mosto abrasador.
GERMÁN ANTONIO ECHEVERRÍA AROS – Chile
-
Café Damasco… Sabor!
Gosto bem quente e bem forte,
tanto no frio ou calor,
Instantâneo ou em pacote!
GUIMARÃES TABORDA BUENO – Curitiba/PR
-
Aquelas nuvens revoltas
sob o imenso firmamento,
parecem ovelhas soltas
voando a favor do vento.
HELY MARÉS DE SOUZA – União da Vitória/PR
-
Vagando em brandos festejos,
antes que a brisa se amoite,
os vaga-lumes são beijos
que os anjos trocam de noite.
HUMBERTO DEL MAESTRO – Vitória/ES
-
Quando a tristeza não passa,
forço um sorriso no rosto,
ponho vinho em minha taça
e ergo um brinde ao meu desgosto!…
IZO GOLDMAN – São Paulo/SP
-
Poesia: flor de mistério
que brota do coração,
e abre as pétalas de etéreo
no céu da imaginação.
J. G. DE ARAUJO JORGE – AC
-
Foi São Francisco a grandeza
do amor cristão e profundo...
que, abrindo mão da riqueza,
abriu as mãos... para o mundo!
JOÃO FREIRE FILHO – Rio de Janeiro/RJ
-
Meu consolo, na tristeza,
quando, no peito, a agasalho,
é o pranto da natureza,
nas gotas tristes do orvalho.
JOSAFÁ SOBREIRA DA SILVA – Rio de Janeiro/RJ
-
Foram felizes instantes,
Juventude na querência
Hoje em terras tão distantes
Pilcha…mate…sinto ausência.
JOSÉ FELDMAN – Maringá/PR
-
Se nunca me abate a lida,
é porque sempre reponho
minha energia perdida,
tomando o vinho do sonho.
JOSÉ NOGUEIRA DA COSTA – Pouso Alegre/MG
-
Marcaram minha existência
duas "heranças" fatais:
no amor, a palavra "ausência";
na ausência, a expressão "jamais"...
JOSÉ OUVERNEY – Pindamonhangaba/SP
-
Cada vez mais terno e amigo,
na verdade o nosso amor
tem muito do vinho antigo
que o tempo apura o sabor!
JOSÉ TAVARES DE LIMA – Juiz de Fora/MG
-
Foi assim que me deixaste:
Sem nenhuma explicação!
E sepultada ficaste
neste infeliz coração.
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE – Pinhalão/PR
-
Como atitudes presentes,
a envelhecer feito os vinhos,
bons exemplos são sementes
lançadas pelos caminhos.
LAVÍNIO GOMES DE ALMEIDA – Barra do Piraí/SP
-
Renúncia, pra São Francisco,
foi total libertação;
ter posses é sempre um risco
para a alma em ascensão.
LÓLA PRATA – Bragança Paulista/SP
-
O vinho dissipa o tédio
em que o fracasso nos joga.
Na dose certa é remédio,
em excesso, nos afoga!…
LOURDES REGINA F. GUTBROD – Rio de Janeiro/RJ
-
De volta, naquela viagem,
carregando o olhar tristonho,
via de perto a paisagem,
mas bem distante o meu sonho...
LUCÍLIA TRINDADE DECARLI – Bandeirantes/PR
-

Asoma por la ventana
la luna su triste faz:
¿Dónde está Mario Quintana
que no me canta ya más?
MARIA ELENA ESPINOSA MATA – México
 -
Renúncia... amor  em pedaços...
que se prendeu num tear,
no emaranhado de laços,
que eu tento em vão desfiar...
MARIA LUA – Nova Friburgo/RJ
-
Ao clamor da Liberdade,
tremem os reis e as nações,
porque a força da verdade
tem mais força que os canhões!
MARIA LÚCIA DALOCE CASTANHO – Bandeirantes/PR
-
Com volúpia e desvario,
neste amor vou mergulhar...
Eu me sinto como o rio,
que se atira para o mar!
MARIA THEREZA CAVALHEIRO – São Paulo/SP
-
No abandono, em desalinho,
eu sonho me embriagar
na branca taça de vinho
que se derrama em luar!
MARINA BRUNA – São Paulo/SP
-
Meu querido piano amigo,
com acordes de veludo…
Quando estou junto contigo,
logo me esqueço de tudo!
MARITA FRANÇA – Curitiba/PR
-
São gotas de poesia,
ou de algum raro licor,
que o orvalho, com alegria,
põe no cálice da flor.
MARLÊ B. J. DE ARAÚJO – Viamão/Portugal
-
Fecho os olhos... sou cativo
da saudade que me escolta
e teima em me dar motivo
para crer na sua volta.
MAURÍCIO CAVALHEIRO – Pindamonhangaba/SP
-
O licor molha o carpete…
E o par de taças quebradas
brinda o silêncio… e reflete
nossas noites fracassadas.
MILTON SEBASTIÃO SOUZA – Porto Alegre/RS
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A videira busca o sumo
em solo fértil, profundo,
e faz do vinho um resumo
das alquimias do mundo.
MOACYR SACRAMENTO – Niterói/RJ
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Foi por falta de carinho
que errei e perdi meus passos,
mas bendigo o “mau caminho”
que me levou aos teus braços...
NÁDIA HUGUENIN – Nova Friburgo/RJ
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Nas águas em que vivemos,
onde mais nada magoa,
teus braços serão meus remos
e a nossa cama... a canoa...
NEIDE ROCHA. PORTUGAL – Bandeirantes/PR
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Tudo agora é tão comum!
Nada dói na consciência...
Mas não há motivo algum
que justifique a violência.
OLGA AGULHON – Maringá/PR
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Eis meu desejo ideal,
minha utopia e quimera:
– ver seus braços, afinal,
abrirem-se à minha espera!
RENATO ALVES – Rio de Janeiro/RJ
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Quando me assalta a saudade
de te ver, de te falar,
saio, cheio de ansiedade,
com o fim de te encontrar.
SERAFIM FRANÇA – Curitiba/PR
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Sei que este mundo é mesquinho,
mas, Senhor Deus, não aceite
que alguns se fartem de vinho,
pois há crianças sem leite!
SÉRGIO MIRANDA FILHO – Rio de Janeiro/RJ
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Que verdura, que beleza,
o vinhedo sobre o monte,
quando a mão da Natureza
borda a tela do horizonte!
SEBASTIÃO SOARES – Natal/RN
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Tendo o amor por inquilino,
com coragem e artimanha,
meu coração é um menino
que ora bate... que ora apanha!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA – São Paulo/SP
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O jardim, nos seus atalhos,   
unindo vários canteiros,
tece colcha de retalhos,
ungido com doces cheiros...
VANDA ALVES – Curitiba/PR
-
Eu tinha o corpo cansado…
Ao dela faltava amor…
- E foi um vinho encorpado
que deu corpo ao nosso amor!…
WALDIR NEVES – Rio de Janeiro/RJ
-
No seu espaço abrangente,
a vida é espaço comum:
mistura um pouco da gente
na vida de cada um.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ – Curitiba/PR
-
Na lareira um fogo brando
e, entre doses de licor,
nossos corpos desenhando
todas as formas de amor.
WILMA MELLO CAVALHEIRO – Porto Alegre/RS

Irmãos Grimm (As Três Folhas da Serpente)

Houve uma vez um pobre homem que não podia mais sustentar seu filho único. Este, então, disse ao pai:

- Meu querido pai, vives tão miseravelmente e eu sou um peso para ti; quero, portanto, ir-me embora e tratar de ganhar o pão de cada dia.

O pai deu-lhe a benção, despedindo-se dele com grande tristeza.

Naquele tempo, o rei de importante reino estava na guerra; o jovem entrou ao seu serviço, acompanhando-o ao campo de luta. Quando chegaram à frente do inimigo, travou-se uma grande batalha; o perigo era assustador; o feijão azul (balas) caía de todos os lados e os companheiros eram terrivelmente dizimados. Tendo caído também o comandante, os outros tentaram fugir, mas o jovem postou-se à frente deles e incentivou-os, exclamando:

- Não deixaremos perecer nossa Pátria! Avante!

Os outros, então, seguiram-no; ele irrompeu contra o inimigo e derrotou-o. Quando o rei veio a saber que só a ele devia a vitória, elevou-o a grande dignidade, deu-lhe tesouros ingentes e nomeou-o primeiro-ministro de seu reino.

O rei tinha uma filha belíssima, mas muito esquisita. Ela havia jurado que só aceitaria por esposo e senhor quem lhe prometesse deixar-se enterrar vivo com ela, se acaso ela morresse primeiro.

- Se me amar realmente, - dizia ela - de que lhe servirá depois a vida?

Em compensação, prometia fazer o mesmo: Descer à sepultura junto com o marido se ele morresse primeiro. Esse estranho juramento havia sempre desencorajado todos os pretendentes, mas o jovem, tão fascinado ficou com a beleza dela, que não deu importância a tal esquisitice e pediu-a assim mesmo em casamento.

- Sabes, porém, o que deves prometer? - perguntou-lhe o rei.

- Sei, - respondeu o jovem - se eu lhe sobreviver, terei de descer com ela à sepultura; mas o meu amor é tão grande que o risco não me causa receio algum.

Assim, obtido o consentimento do rei, realizaram-se as núpcias com o máximo esplendor. Durante algum tempo, viveram os jovens alegres e felizes. Entretanto, aconteceu que a rainha ficou gravemente enferma e nenhum médico conseguiu salvá-la.

Diante da falecida esposa, o jovem rei lembrou-se da promessa feita e ficou horrorizado por ter que se enterrar vivo, mas não tinha outra alternativa. O rei dera ordens para que todas as portas fossem vigiadas; assim não lhe era possível fugir ao próprio destino. Portanto, no dia em que o cadáver foi trasladado para a cripta real, o jovem foi obrigado a segui-lo. Uma vez lá dentro, fecharam e aferrolharam-lhe a porta.

Perto do ataúde havia uma mesa e, em cima dela, quatro velas acesas, quatro pães e quatro garrafas de vinho. Quando terminasse essa provisão, ele teria de morrer à míngua. Cheio de angústia e tremendamente acabrunhado, o jovem comia, diariamente, apenas um pedacinho do pão e, do vinho, tomava um golinho apenas. Via, contudo, a morte aproximar-se inevitavelmente. Enquanto se achava assim absorto, olhando para a frente, viu uma serpente sair rastejando do canto da cripta e avizinhar-se do cadáver. Julgando que fosse mordê-la, desembainhou a espada dizendo:

- Enquanto eu viver, ninguém lhe tocará - e cortou o réptil em três pedaços.

Nisso, apareceu uma segunda serpente, que vinha rastejando do canto da cripta mas, quando viu a companheira morta e em pedaços, retirou-se voltando logo com três folhas verdes na boca. Pegou os três pedaços da serpente morta, juntou-os direito e sobre cada um dos talhos colocou uma folha. Os pedaços uniram-se novamente, a serpente moveu-se e readquiriu a vida e, em seguida, fugiu com a companheira.

As folhas ficaram caídas no chão e o infeliz, que assistira àquilo tudo, perguntou a si próprio se o poder mágico que continham, tendo ressuscitado a serpente, não poderia aplicar-se também a um ser humano? Recolheu então as folhas, colocou uma sobre a boca e as outras duas sobre os olhos da esposa falecida. Mal acabou de colocá-las, o sangue voltou a circular nas veias, afluindo-lhe ao rosto, dando-lhe natural colorido. Ela respirou, abriu os olhos e perguntou:

- Oh, Deus meu, onde estou?

- Estás comigo, minha querida mulher - respondeu o jovem.

Em seguida, contou-lhe todo o sucedido e a maneira pela qual havia ressuscitado. Depois, deu-lhe um pedaço de pão e um pouco de vinho; assim que ela se reanimou, levantou-se e ambos foram bater à porta, esmurrando-a e gritando tão alto que os guardas ouviram e correram a avisar o rei. Este, em pessoa, desceu à cripta e abriu a porta, encontrando os dois vivos, sadios e viçosos como nunca; radiantes de alegria, abraçaram-se felizes por terem superado aqueles tormentos.

O jovem rei levou consigo as três folhas e deu-as ao seu criado dizendo:

- Guarda-as com cuidado e traze-as sempre contigo; quem sabe lá as circunstâncias que podem vir e se elas ainda servirão a alguém!

Depois de ressuscitada, porém, a mulher mudara completamente; parecia que de seu coração se tivesse desvanescido todo o amor pelo marido. Este, decorrido algum tempo, quis fazer uma visita ao velho pai; ao embarcarem no navio que os levaria, a rainha esqueceu o grande amor e a dedicação que ele sempre lhe demonstrara, a ponto de tê-la salvo da morte e passou a nutrir uma paixão pecaminosa pelo comandante do navio.

Certo dia, enquanto o rei estava dormindo, chamou o comandante e mandou que pegasse o marido pelos pés, enquanto ela segurava-o pela cabeça e atiraram-no ao mar. Consumado o crime, disse ela:

- Agora voltaremos para casa. Diremos que ele morreu durante a viagem. Eu te exaltarei perante meu pai e tais elogios farei que ele consentirá em nosso casamento. Assim ficarás sendo tu o herdeiro da coroa.

Mas o fiel criado, que tudo presenciara, foi, sem ser visto, destacar um bote salva- vidas e desceu ao mar. Entrou nele e foi vagando à procura de seu amo, deixando os traidores prosseguirem tranqüilamente a viagem. Assim que conseguiu pescar o cadáver, colocou-lhe nos olhos e na boca as três folhas verdes que trazia consigo, as quais lhe restituíram a vida.

Juntos, então, puseram-se a remar dia e noite, com todas as forças e o bote voava por sobre as ondas com tamanha velocidade, que chegaram antes dos outros à presença do rei. Este, vendo-os regressar sozinhos, muito se admirou e perguntou qual o motivo. Ao ter conhecimento da crueldade da filha, exclamou:

- Custa-me crer que tenha agido assim cruelmente, porém, a verdade logo virá à luz.

Mandou que entrassem num quarto secreto e ficassem ocultos de todos. Não tardou muito e chegou o navio. A pérfida rainha apresentou-se ao pai muito aflita. Ele perguntou-lhe então:

- Por que voltas sozinha? Onde está teu marido?

- Ah, meu querido pai - respondeu ela - volto em grande luto; meu marido adoeceu repentinamente durante a viagem e faleceu. Se este bom comandante não me socorresse, não sei o que teria sido de mim. Ele assistiu-lhe a morte e pode contar tudo.

- Eu vou fazer ressuscitar o morto - disse o rei.

Abriu a porta do quarto secreto e fez sair os dois. Ao ver o marido, a rainha recebeu um choque tão grande como se lhe tivesse caído um raio aos pés. Prostrou-se de joelhos implorando perdão, mas o rei gritou-lhe:

- Para ti não pode haver perdão! Ele mostrou-se pronto a morrer contigo; restituiu-te a vida e tu o assassinaste enquanto dormia. Deves, pois, receber o justo castigo.

Conduziram-na, juntamente com o cúmplice, para um navio que fazia água e os lançaram ao mar, onde, não tardou muito, foram a pique e se afogaram.

Fonte:
Contos de Grimm

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) IV

Balada de um Homem Apaixonado em Meio ao Luar na Baía de Todos os Santos
 
Dos meus olhos cintilam faíscas vermelhas
Que incendeiam como fachos de fogo
Teu lençol encharcado de suor e centelha
A boca vermelha, rubra de tanta paixão
Busco na madrugada me embeber de tanta predileção.

O hálito delicioso de estranho almíscar
Envolve-me num clima de verdadeiro estupor
Respiga na memória as ancas belas de meretriz
E minha mão desliza na tua escultura verniz
Moldada em febre por Camile Claudel
E o lençol do véu
Lentamente descubro na penumbra desse meu céu.

Trêmulo de ardor dessa paixão
Toco com a ponta dos dedos
O bico eriçado de teu peito mortal
E como um bebê que busca a mama
Sugo com sede teu fruto abissal.
Revira-se, então, com pose de gazela,
E como um caçador de estepes africanas
Lanço o falo em tua gruta aveludada e bela.

Pego teus cabelos sedosos e macios
Mergulho os dedos na direção
De teu rosto de porcelana chinesa
Repousa enfim em meu peito de esfinges.
Lentamente adormece, e à francesa
a lua cruza a abóbada celeste
Em direção ao Japão.

Canção para ninar Gaiaku Luíza

Eu
não sei dos mistérios,
e nem ousaria desvendar.
Dentro de mim correm negros
que me fazem de ti aproximar.

Trago, porém, de longe
guardado em meu peito
teu doce nome para te louvar.

Minha Mãe dos Caminhos
me embale até eu sonhar.
Ò Gaiaku Luíza
Teu povo jeje veio nos tumbeiros a penar

Transportados feitos animais,
chicoteados, humilhados.
Renascem por tuas mãos,
na longa luta,
através de teus Orixás.

Declaração de Princípios
Para o poeta Zéduardo Souza

Quem andou em cavalo baio
Nunca esquece a montaria
Chuva de molha não enche barreiro
Pedra de toque não é cantaria

Eu sou madeira de dar em doido
Eu sou barro bom de alvenaria
Martelo, prumo e serrote
Sou poeta da Bahia

No tempo de meninote
Andei tudo que é freguesia
Farra pra mim só três noites
Homem valente não é sinal de valentia
Bacalhau já foi comida de pobre
Asfalto foi quem trouxe a carestia

O diabo já morou no céu
Chuva do sul é invilia
Marmanjo já teve na escola
Conversa de bêbado nunca teve serventia

Eu sou madeira de dar em doido
Eu sou barro bom de alvenaria
Martelo, prumo e serrote
Sou poeta da Bahia.

Canção das noites de abril

A minha amada
tem olhos de madrugada
como fachos acesos de tição.
A minha amada é inquilina
bem menina
de meu velho coração.

Chama-me pro canto
Fascina-me
faz-se de traquina
em meu templo de celebração.

A minha amada tem a boca de mel
semelhante ao manjar do céu.
De travo tão bom,
espairecida no Jardim das Delícias
E nessa preguiça
permaneço a lhe enamorar.

Minha amada tem um cheirinho
que de longe eu posso identificar
Aquece-me e me cobre
e dorme sempre depois que eu estou a cochilar

Para Boi Dormir

Maria da Anunciação Moranda das Noitinhas,
onde os grilos cantam à tardezinha,
para avisar que a barrinha,
estava sumindo.

Perto da Malhada Comprida,
seu Zé da Anunciação,
com sua solidão,
vem capengando,
aboiando,
sem se importar com a cara do Cão.

No fogão de lenha,
a panela de feijão mulatinho chia,
pia,
ó tia,
e a cascavel no bote esperando uma rã.

Aquela vontade terçã,
de avistar as serras do Bugio,
e de onde me guio,
lembro dos Rios,
que enterraram patacas de ouro,
para as cabras do Istopô,
berrarem chamando os aliados.

Lá em casa meu louro,
sem nenhum agouro,
está a me aguardar.
Os meninos da Anunciação,
soletram o abc do sertão:
Da chegada de Lampião.

Tá tudo no mato,
e eu sem sapato,
com sandália de rabicho,
vendo tudo que é bicho,
nesse chapadão.

Vai desaguar trovoada,
Meus companheiros darão gaitada,
e a terra vai despregar da lua,
e ela toda nua,
com o cavalo de São Jorge despontando garboso,
todo formoso,
com as bridas de prata alumiando o sertão.

E essa cambada de gente,
nessa aporrinhação.
Empalhando jaracuçu,
comendo teiú,
e não sabe onde fica o Boqueirão,
Né, mesmo, Seu Zé da Anunciação?

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida

Expressões e suas Origens I

Corredor Polonês

Corredor polonês é uma expressão comumente utilizada para denominar uma passagem estreita formada por duas fileiras de pessoas que se colocam lado a lado, uma defronte à outra, com a intenção de castigar quem tenha de percorrê-la. A expressão faz referência à região transferida por parte da Alemanha para a Polônia ao fim da Primeira Guerra Mundial, em virtude da assinatura do Tratado de Versalhes. O Corredor Polonês dividiu a Alemanha ao meio, isolando a Prússia Oriental do resto do país. Através de uma extensão de 150 quilômetros e largura variável entre 30 a 80 quilômetros, permitiu que os poloneses circulassem livremente em território alemão, bem como possibilitou o acesso da Polônia ao Mar Báltico. Posteriormente, tanto o Corredor quanto a Prússia foram incorporados ao território polonês. A disputa pela região do Corredor Polonês provocou inúmeros atritos entre os dois países. Em 1939, durante a invasão da Alemanha à Polônia, os poloneses foram encurralados pelos alemães, os quais se posicionavam dos dois lados do Corredor e atiravam contra os poloneses, que estavam no meio.

Voto de Minerva


A expressão tem sua origem em uma história pertencente à mitologia grega. Agamenon, o comandante da Guerra de Troia, ofereceu a vida de uma filha em sacrifício aos deuses para conseguir a vitória do exército grego contra os troianos. Sua mulher, Clitemnestra, cega de ódio, o assassinou. Com esses crimes, o deus Apolo ordenou que o outro filho de Agamenon, Orestes, matasse a própria mãe para vingar o pai. Orestes obedeceu, mas seu crime também teria que ser vingado. Em vez de aplicar a pena, Apolo deu a Orestes o direito a um julgamento, o primeiro do mundo. A decisão, tomada por 12 cidadãos, terminou empatada. Chamada pelos gregos de Atenas (Minerva era seu nome romano), a deusa da sabedoria proferiu seu voto, desempatando o feito e poupando a vida de Orestes. Eis a razão da expressão Voto de Minerva (também conhecida como "voto de desempate" ou "voto de qualidade").

Bafo de onça

A onça é um animal carnívoro que se lambuza bastante na hora de comer a caça. Por esta razão, fede muito e sua presença é detectada à distância na mata. Assim, pessoas que possuem o hálito fétido passaram a ser chamadas de "bafo de onça". A expressão também faz referência ao hálito de quem está (ou esteve) alcoolizado.

Santinha do pau oco

Expressão que se refere à pessoa que se faz de boazinha, mas não é. Nos séculos 18 e 19, os contrabandistas de ouro em pó, moedas e pedras preciosas utilizavam estátuas de santos ocas por dentro. O santo era "recheado" com preciosidades roubadas e enviado para Portugal.
   
Névoa baixa, sol que racha
   
Ditado muito falado no meio rural. A Climatologia o confirma. O fenômeno da névoa ocorre geralmente no final do inverno e começo do verão. Conhecida também como cerração, a névoa fica a baixa altitude pela manhã provocando um aumento rápido da temperatura para o período da tarde.

Sem eira nem beira

Significa pessoas sem bens, sem posses. Eira é um terreno de terra batida ou cimento onde grãos ficam ao ar livre para secar. Beira é a beirada da eira. Quando uma eira não tem beira, o vento leva os grãos e o proprietário fica sem nada. Na região nordeste este ditado tem o mesmo significado mas outra explicação. Dizem que antigamente as casas das pessoas ricas tinham um telhado triplo: a eira, a beira e a tribeira como era chamada a parte mais alta do telhado. As pessoas mais pobres não tinham condições de fazer este telhado , então construíam somente a tribeira ficando assim "sem eira nem beira".

Lua de Mel
   
A expressão vem do inglês honeymoon. Na Irlanda, na Idade Média, os jovens recém-casados tinham o costume de tomar uma bebida fermentada chamada mead – ou hidromel, composta de água, mel, malte, levedo, entre outros ingredientes. O mel era considerado uma fonte de vida, com propriedades afrodisíacas. A bebida deveria ser consumida durante um mês (ou uma lua). Por essa razão, esse período passou a ser chamado de “lua de mel”.
   
Casa da mãe Joana

A expressão "casa da mãe Joana" alude a um lugar em que vale tudo, onde todo mundo pode entrar, mandar, uma espécie de grau zero de organização. A mulher que deu nome a tal casa viveu no século 14. Joana era condessa de Provença e rainha de Nápoles (Itália). Teve a vida cheia de confusões. Em 1347, aos 21 anos, regulamentou os bordéis da cidade de Avignon, onde vivia refugiada. Uma das normas dizia: "o lugar terá uma porta por onde todos possam entrar". "Casa da mãe Joana" virou sinônimo de prostíbulo, de lugar onde impera a bagunça.

Chegar de mãos abanando

A origem mais aceita para a expressão está relacionada com os imigrantes que chegavam ao Brasil no século 19. Eles costumavam trazer da Europa ferramentas para o cultivo da terra, como foices e enxadas, além de animais, como vacas e porcos. Uma ferramenta poderia indicar uma profissão, uma habilidade, demonstrava disposição para o trabalho. O contrário, chegar de mãos abanando, indicava preguiça. Atualmente, quando uma pessoa vai a uma festa, mandam os bons modos que leve um presente. Se não o faz, diz-se que “chegou com as mãos abanando”.
=====
continua...

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 24 – 23 de agosto de 1887

Anda-se isto a desfiar:
Quem será o responsável
Dos atos que praticar
O poder irresponsável?

Há várias opiniões
Sobre esta questão pendente;
Contradizem-se as razões,
Um afirma, outro desmente.

Vão aos livros e aos Anais
Buscar uma extensa lista
De palavras textuais
Deste ou daquele estadista.

Nem só nacionais, também
Surgem nomes estrangeiros,
Nomes ilustres, que têm
Merecidos pregoeiros.

Um deles foi o senhor
Benjamin Constant, pessoa
Que o poder moderado
Criou e deu à coroa.

Foi ele, em escrito seu,
Que à constituição brasília,
Sem saber, o artigo deu
Que pôs a toda família

Dos poderes, um poder
Que a regesse e moderasse...
Outros porfiam em ver
O caso por outra face.

E tu, Benjamin, fatal,
Grande amador de pequenas,
Tu, morto, tu, imortal,
Lá das regiões serenas,

Que pensas, que pensas tu
Nesta questão, obra tua?
Tira do espírito nu
Opinião crua e nua,

Põe-lhe sobrescrito a mim,
Se achas melhor escrevê-la;
Ou brada-m'a, Benjamin,
Que eu poderei entendê-la.

E logo uma bela voz
Me entrou pelo gabinete,
Fininha como um retrós,
Viva como um diabrete.

E disse: — “Queres saber
O que nesta causa penso?
Qual o meu modo de ver?
A que partido pertenço?

“Se acho que o moderador,
Nos atos em que modera,
Tem ou não algum senhor
Que responde e o desonera?

“Se o poder, a quem chamei
Neutro, pode, irresponsável,
Ter por isso mesmo em lei
Um ministro responsável?...”

“ — Sim, despacha, respondi
Já zangado e impaciente.
— “Di-lo-ei a ti, a ti;
Se queres, di-lo a mais gente.

“Não verás em mim a flor
Da modéstia, planta rara,
Responderei com rigor,
Certeza e palavra clara.

“Digo que gostei de ouvir
Idéias finas e tantas,
Gostei de as ver discutir
Leão, Cotegipe e Dantas.

“Mas, com franqueza, eu deitei
Tudo ao mar, nesta viagem.
Só uma cousa guardei
E trago-a cá na bagagem.

“Não que julgue sem valor
Outras páginas escritas
Ou faladas, não, senhor;
São puras e são bonitas.

“Foram feitas ao buril,
Pensadas e bem pensadas.
Deixei-as às mil e às mil,
Por esse mundo espalhadas.

“Mas agora que aqui estou,
Livre de ruins cuidados,
Digo: o melhor que ficou
Dos escritos lá deixados

“Foi... palavra que não sei,
Não sei bem como me exprima:
Foi um livrinho de lei,
Uma jóia, uma obra-prima,

Um livro, um livrinho só,
Que entre os escritos passados,
Resiste ao mórbido pó —
Dos anos empoeirados.

“Custa-me dizê-lo, crê:
Um romance, e pequenino;
Relê, amigo, relê
O meu Adolpho; é divino.

“Do mais tanto cuido aqui
Como daquela camisa,
A primeira que vesti...
Diz a rima que era lisa”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) Três cobras

Sempre que ouço falar em cobras, benzo-me, em sinal de gratidão à divindade, por estar ainda hoje vivo, e aqui, com saúde, para poder referir o passado comigo.., e elas.

Quisesse eu contar casos de cobras... Registro apenas um terço, por causa da circunstância de ter sucedido durante uma só viagem.

Foi no tempo da guerra do Paraguai. Eu era cadete; o meu regimento seguia, pela campanha, recebendo a incorporação de piquetes de recrutas mandados de vários lugares: já se vê portanto que muita gente presenciou o acontecido.

E que muitos já morreram, outros extraviaram-se, e se não, eu apresentaria testemunhas, isto se alguém me duvidasse, o que não espero: felizmente sou tido e havido por homem de palavra!

Primeira cobra.

Uma tarde, ao lusco-fusco, acampamos junto a um pedregal; arrumada a cavalhada, oficiais e soldados, soprando nos dedos, fomos fazendo as camas nos arreios, e como o cansaço era grande, só se fez uma fogueira, e quem pôde aí perto deitou-se, com os pés para o braseiro.

Eu fui dos felizardos da quentura... Mas também o único de negra sorte, nessa noite.

Deitei-me; como de costume, fiz uma reza a São Romualdo e adormeci, sonhando com uma moça que no caminho me havia dado um pires de doce de coco.

Depois o sonho foi passando para aflito; eu era chão, chão de terra, e em cima de mim, chão, um gigante, parecido com o corneteiro do regimento, estava enroscando uma espia de navio, grossa, como um braço de homem, e fria, fria, como água de pedra...

E o gigante alava a espia, alava e ia-a enroscando, volta sobre volta, em cima de mim.

Depois eu já não era mais chão, era eu mesmo; queria agarrar o pires de cocada da moça, mas não podia, por causa do peso da espia; e do peso me veio vindo um pesadelo, que me dava a idéia de uma imensa lingüiça crua, enrolada e achatada sobre o meu rosto, sobre a garganta e o peito.

Quando o pesadelo foi me tomando por completo, quando eu ia gritar e bracejar para livrar-me da sufocação... o nariz entrou em função e pôs-me alerta; e acordei-me.

O nariz acusava o cheiro acre de uma catinga, catinga de cobra, que chega a arder lá dentro, nas voltinhas do cheiramento.

Despertei, disso.

E senti o horror da minha situação. Exatamente como eu havia sonhado o gigante enrolando a espia, assim estava enroscada sobre a minha cara e pescoço e peito uma tremenda cobra; pesava como chumbo, cujo frio trespassava-me, cuja catinga me sufocava!

E dormia, muito a seu gosto, o monstro, aproveitando o calorzinho do meu corpo! Sentia-lhe a respiração curta, um nadinha assobiada; pareceu-me até - isso não garanto, mas pareceu-me - que a cobra ressonava...

Que posição, hem?... Mexer-me.., era acordá-la; gritar.., ia assanhá-la, levantar-me, de salto, uma loucura; dar-lhe um bote à cabeça, apertá-lha pela goela... mas, no escuro, se em vez do pescoço eu agarrasse-lhe.., o rabo?...

No perigo é que se aprecia a calma dos homens.

Com mil cautelas tirei do bolso o naco de fumo, piquei-o, sovei uma palha, enrolei um grosso cigarro e comecei a pitar... a pitar... a pitar... puxando umas fumaças tão encorpadas, tão espessas, que se fosse dentro de casa fechada nublariam os aposentos! Ao cheiro ativo do forte fumo criolo a bicha moveu-se...

Deu-se com ela o que se havia dado comigo; o meu nariz despertou-me pela catinga dela; o nariz dela acordou-a pelo sarro do meu fumo. Estávamos a mano, de nariz.

A cobra acordou-se, deu uns seis ou sete espirros e foi se desenrosquilando, escapando-se furiosa, lanceando o ar, com a língua.

Eu, fuma que te fuma! E vá fumaça pelas ventas, vá fumaça!...

Para encurtar o caso: nem sei para que lado ela tomou, a noite estava muito escura, o lugar muito carregado de fumaça e eu muito cansado de pitar e com frio.

Virei-me para a parede e tornei a ferrar no sono.

Segunda.

Foi poucos dias depois. Vínhamos em marcha forçada; alta madrugada o regimento fez alto. Trazíamos umas novilhas gordas, que foram logo abatidas para um rancho apressado, de churrasco.

Fazia um frio de rachar pedras.

Acendeu-se uma grande fogueira e cada um tratou de chamuscar o seu pedaço de carne.

Eu saí a procurar um espeto para o meu assadinho. A noite era muito escura, mas graças ao clarão da fogueira descobri uma pequena reboleira de mato, ali perto. Aproximei-me e quando ia cortar um galho qualquer, caiu-me ao chão a faca, abaixei-me para apanhá-la dentre as ervas, e com tal sorte, que ao lado dela encontrei um pedaço de pau tal e qual como eu queria: duma meia braça, grossinho, liso, e o que mais é, já com a ponta feita.

Por certo que seria um espeto já pronto que algum dos camaradas perdera; melhor para mim!

E ainda bati com ele no chão para limpá-lo duns capins secos, e terra que estava pegada.

Voltando, atravessei o meu churrasco no meu espeto achado, e finquei-o na beirada do fogo.

Vinha clareando o dia.

Por toda parte branqueava a geada, alta de dois dedos, geada farinhenta,. que é a mais fria de todas. Estava eu um pouco arriado, conversando, quando um cabo, baiano, que viera acender o cigarro numa brasa, gritou, olhando para o chão, admirado:

— Olha o assado com o espeto, cadete Romualdo, que vai-se embora!...

Julguei que era algum gaiato que pretendia furtar-me o churrasco; mas o baiano repetiu:

— Acuda, seu cadete, que o assado vai de trote!...

Corri, e que vi?...

O churrasco, sim senhor, borrifado de salmoura, já chiando na gordura, que ia andando pelo chão.., dava a idéia de um cágado sem pernas, mas de cabeça é cauda mui compridas! ...

Acudiram então outros rapazes, muitos, quase todos: e todos viram o churrasco arrastando-se, fugindo da fogueira.

Então rompeu o sol. Foi quando se pode verificar a cousa: o espeto era uma cobra!

Como estava dura, dura de frio, agüentai a todo o trabalho de atravessar o churrasco e ser cravada ao lado do fogo; depois o calor começou a assar a carne e a aquecer o espeto, isto é, a cobra, que se foi reanimando, revivendo. E logo que ela sentiu-se quentinha e de saúde, tratou de escapar.

Com o alarido e o movimento a cobra assustou-se, fez força e desfincou-se do churrasco, escondendo-se logo num buraco ali adiante.

Este caso foi muito falado naquele tempo.

Terceira cobra.

Isso deu-se depois, já no regresso do regimento, depois de entregarmos os recrutas.

Seria uma hora da tarde; tempo seco; pesado.

Vínhamos numa troteada rasgada, levantando poeira, na estrada.

Eu estava morto de sede; avistando à direita um mato, calculei que ali devia haver algum olho-d'água e pedi' licença ao meu alferes para chegar até lá num galope.

Concedida; mas logo outros não se sofreram e imitaram-me e fomos, como uns sete, beber umas goladas d'água fresca.

Apeei-me eu, primeiro; e quando, já de beiço preparado para o chupão, ia debruçar-me, atirei-me pra trás, porque a meio palmo da cara vi. enroscada e furiosa, já silvando, uma cobra roxa, de umas tais que tem cerdas crespas, que nascem debaixo de cada escama da casca.

É a cobra chamada "viradeira", porque qualquer animal por ela mordido vira-se logo de papo para o ar, estrebuchando ou logo morto.

É cem vezes mais venenosa que a cascavel.

— Mata, Romualdo, senão ela vira-te!

Não esperei segundo aviso; foi só o quanto desafivelei o loro com o estribo, e fazendo deste arma, desferi uma pancada mestra sobre a cabeça da "viradeira".

Porém, ligeiríssima, a cobra ainda atirou um bote ao estribo, que era de prata, e tiniu, com o choque da dentada.

Porém matei-a.

Com a impressão do acontecimento e porque a bicha ao morrer caísse e se estorcesse n'água, todos, de nojo, perderam a sede.

Apresilhei novamente o estribo, montei e galopamos para alcançar a força, já distanciada.

Logo correu conversa sobre a cobra, aquela, e sobre outras, que não as conhecia, eu: oficiais e soldados, cada um muito honradamente esfolou a sua cobra.

Continuávamos a trotear, quando comecei a sentir o pé apertado no estribo e o cavalo meio derreado, como se trouxesse todo o peso a um lado.

Parei para examinar a esquisitice: era o estribo que ia inchando, a olhos vistos envenenado pela bruta peçonha da "viradeira", e conforme ia inchando apertava-me o pé, que já custei a retirar; e o peso da inchação ia sobrecarregando cada vez mais o cavalo...

O comandante veio ver o etribo inchado; o major veio ver: e vieram os capitães, os tenentes, os alferes, os cadetes, os sargentos, os cabos, os furriéis, os rasos.

O capitão-cirurgião ainda falou em lavar o estribo com cachaça, fumo e sal, a ver se ele vomitava.., mas o regimento não podia demorar-se, e eu fui obrigado a abandonar na estrada o estribo, que já estava como um trambolho, inchado e balofo e meio azinhavrado, tirante a verde de defunto passado...

— Cadete Romualdo! Que dentada, hem?... dizia o comandante.

— Que veneno! ... dizia o major.

— Que cobra! ... diziam os capitães.

Que "viradeira"!.., diziam os pica-fumo.

— Pois sim! Vão cantando, dizia eu ... O que vale é que todos viram!

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Casos_do_Romualdo/XIII

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Acruche Collection - Trova 14

Fonte:
Trova formatada obtida no facebook do autor

Salomão Sousa (Poemas Avulsos)

Ela espera com as verbenas boas...

Ela espera com as verbenas boas
e em repouso todos guerreiros mortos
A luta esqueceu de bater na porta
e buscavam guerreiros de bom garbo
as chamas das verbenas sobre as águas
Estariam após as portas do sol
Schiller ameaçou tocá-las em Jena
e antes que as alcançasse houve a cegueira
Erguiam pontes e nelas se agarravam
e iam e se perdiam fundos nos lamaçais
Eram milhões para depois do gelo

E ao lado dos mortos fervem as hienas
vorazes nas vísceras dos guerreiros
e jamais se juncarão de verbenas
===================
E é o veneno que cresce no silêncio...

E é o veneno que cresce no silêncio
E é até o broto da lágrima
que está seco dentro de uma rocha
E é um vazio como um grão de ouro
e é uma tortura como o sentir de um coice
A mão esquecida sobre a bainha
e não há um corte para esvaziar o escarro
Há o pressentir de um estouro
e há um campo cheio de quietos touros
e não há uma queda onde quebrar a cara
e não há uma vara para escapulir da tara
Sem um gorjeio sequer num vento livre
e tudo é vendaval sem pedir ajuda
Não há o corte fino de uma lâmina
sobre o desejo que escurece
a passagem que vai dar ao ânimo
Não era para ficar uma pétala
Não era para bater um coice
E caem alimárias e crescem galhos
Fundição num domínio de pedra
e não há o bafejar do vento
e não há o entranhar de uma gota
e não há o pulsar de um malho
Irá inocular e será inócuo
Será sem sentido e falhas puras
O bote cairá numa pedra
e o brilho será jacinto murcho
=======================
Mede o universo verde...
 

Mede o universo verde
a lacraia no caule da piteira
Queimará seu dia de sol
Passará pela última lança
com as cem patas ondeadas
Não sou nem mesmo o eunuco
cuidando das fibras
das damas verdes
Não sou nem mesmo a pata
fritando dentro da trempe
Chegarei a esmo à ultima lança
e não terei atravessado
o cabo das tormentas
Meço o universo
e não sou nem mesmo o louco
======================
   
Nula fístula na língua...

Nula fístula na língua
Nulos lambris de nylon
Nulos pára-choques
pára-brisas parangolés
Nulo curral de lama
Desentupir nas bisnagas
e nas agulhas
os debruns
de enfeitar os nulos trapos
Desentupir nas tetas
o leite para as nulas goelas

Desfincar as estacas
que estancam as bocas dos sapos
Admirar ser a nula lacraia
debaixo do cavaco
A nula tartaruga demaiada
com a nula areia no sovaco
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Nasci entre toras...

Nasci entre toras
Só entendo
de maneira entre
cortada
De carne em cubos
De esterco
esfarelado
De madeira em
cavacos
Frases de três
duas palavras
Uhm?
Posso perguntar
sem nenhuma frase
Além de nascer
entre lenhas
entre pirilampos
Posso
esbarrar no silêncio
uhm rhum!
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Para quando será a entrega?

Para quando será a entrega?
Está sendo aguardada
com todas as ardentias
Virá num ribombar de raios
e nada deixará sobre o solo
Não será o tridente
ou a tocha de ferro dos deuses
Também a semente prepara
o estalo de alguma entrega
Dará as veias da madeira
ou a arrogância do espinheiro
Também o sol prepara
o esvaziamento de uma entrega
Dará um barro quebrado
no poço onde estaria a aguada
Virão as ardências da pele
e a esfrega será putrefata
Virá a violência do meteoro
e a estrela será de pedra
Se não for de fogo
derramará seus grotões de água
E se a entrega for de leite
este também será derramado
nos intentos de impedir a trégua
E será possível tocar na dor
com a entrega do balde de lágrima
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Ame com as forças e os frouxames...

Ame com as forças e os frouxames
derramado corpo entre as águas
bóiá-lo molhado entre velames
Ame com as águas e os vexames
nenhum vulto de pedra aos pássaros
encorpá-la a freguesia de chamas
Ame com os pássaros e os enxames
enxotá-los os melros do torpor
afundar nos porões do prazer
corpo úmido abri-los os tapumes
Ame de braçadas entre melames
decantado ópio da podridão
corpo lavado levantar novas façanhas
Para atravessar atravessá-los os baldrames
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No espelho o nó...

No espelho o nó
a estação sem vitrines
e no lugar do seio
sem nódulos
veio uma verruma
Este espelho está
de olho velho
Perde um talho
na partição do acaso
Perde um artelho
na caminhada lerda
Perde a erva
após o ânimo
do último animal
E se fosse uma casa
iria perder as telhas
E se fosse uma árvore
perderia o verde
Tenta lançar
um tentáculo
Está lá o galho de arruda
Tenta
e nem o vento a favor
ajuda
Está de olho velho
está sem tentáculos
este espelho
Desaparece entre
os atalhos das aparências
a tentação da última prece
e o eco da última vítima

Fontes:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/salomao_sousa.html
http://www.jornaldepoesia.jor.br/ssousa.html

Salomão Sousa (1952)

Salomão Sousa nasceu em 19 de setembro de 1952 em Silvânia (GO).

Mudou-se para Brasília em 6 de janeiro de 1971, residindo no Núcleo Bandeirante desde agosto de 1984.

Jornalista do Poder Executivo, trabalha em assessoramento parlamentar pelo Ministério do Trabalho.

Participou do movimento da Poesia Marginal, no final da década de 70, principalmente com Esbarros.

Nesta época, assim se manifestava Jorge Amado sobre Salomão Sousa: “Um poeta de primeira ordem — original e humano, sensível e consciente. Poesia que não é cera, é chama”.

Manteve sempre uma postura crítica de resistência, não apenas no conteúdo de sua obra, mas também diante do trabalho do poder público e da imprensa no que se refere ao tratamento dispensado à Literatura.

Organizou as antologias Em Canto Cerrado (de poesia) e Conto Candango, com escritores de Brasília.

Entre outras publicações, participa da Antologia da Nova Poesia Brasileira(1992), de Olga Savary; e dA Poesia Goiana do Século XX, de Assis Brasil.

Bibliografia:
A moenda dos Dias, l979;
A Moenda dos Dias/O Susto de Viver, 1980;
Criação de Lodo, 1993; e
Caderno de Desapontamentos, 1994.

Editor do Chuço, zine de resistência contra a má atuação da Imprensa e de registro da correspondência pessoal, inclusive com observações sobre os livros recebidos.

É um dos 47 poetas incluídos no número que a revista portuguesa Anto dedicou em 1998 à literatura brasileira em comemoração aos 500 anos da descoberta do Brasil.

Estoque de relâmpagos, 2002, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária da Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal.

Blog do autor: www.safraquebrada.blogspot.com

Fontes:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/salomao_sousa.html
http://www.jornaldepoesia.jor.br/ssousa.html

Irmãos Grimm (Carvão, palha e feijão)

Uma mulher idosa vivia em uma aldeia. Ela reuniu uma porção de feijão e queria cozinhá-los, então ela preparou um fogo em sua lareira. Para fazê-lo queimar mais rápido que ela acendeu-o com um punhado de palha.

Enquanto ela estava derramando o feijão na panela, um deles caiu despercebida para o chão, indo parar ao lado de um pedaço de palha. Logo depois uma brasa viva saltou da lareira e pousou ao lado deles.

A palha disse: "Queridos amigos, de onde você vem?"

O carvão respondeu: "Eu pulei da lareira, para minha sorte. Se eu não tivesse forçado a minha saída, eu certamente teria morrido. Eu teria queimado a cinzas."

O feijão disse: "Eu também me salvei a pele. Se a velha tinha visto-me no pote eu teria sido cozido em mingau sem misericórdia, assim como meus companheiros."

"Será que meu destino ter sido melhor?" disse que a palha. "A velha jogou todos os meus irmãos no fogo e fumaça. Agarrou 60 de uma só vez e os matau. Felizmente eu escorreguei por entre os dedos."

"O que devemos fazer agora?" perguntou o carvão.

"Todos nos escapamos da Morte," respondeu o feijão, "Eu acho que devemos nos unir como camaradas. Para evitar algum infortúnio novo aconteça conosco, vamos juntos fazer o nosso caminho para outra terra."

Esta proposta agradou os outros dois, e eles estabelecidos todos juntos.

Eles logo chegaram a um pequeno riacho, e porque não havia nem uma ponte, nem uma passagem lá, eles não sabiam como iriam atravessá-lo.
Depois, a palha tinha uma boa idéia, e disse: "Eu me coloco através dele, e vocês podem atravessar-me como uma ponte."

Assim, a palha se estendeu de um lado para o outro. O carvão, que era um rapaz de cabeça quente, saiu impetuosamente sobre a ponte recém-construída, mas quando chegou ao meio e ouviu a água correndo por baixo, ele se assustou, parou, e não se atrevem a ir mais longe. Depois, a palha pegou fogo, se partiu em dois pedaços, e caiu no riacho. O carvão deslizou depois dele, assobiou quando ele caiu na água, e entregou o espírito.

O feijão que tinha ficado para trás com cautela sobre o banco, começou a rir do acontecido. Ele não conseguia parar, e ele riu tão ferozmente que ele estourou. Ele quase morreu, mas, felizmente, um alfaiate estava vagando por lá, descansando perto do riacho. Teve um coração compassivo, ele pegou uma agulha e uma linha e costurou o feijão .

O feijão agradeceu gentilmente. No entanto, porque ele tinha usado fio preto, desde aquela época todos os grãos tiveram uma costura negra.

Fonte:
Contos de Grimm

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 23 – 20 de agosto de 1887

Ouvi que algumas pessoas
Entendidas e capazes
De distribuir coroas,
Andam estudando as bases

Da festa que comemore
Uma grave ação recente:
Jantar que a pança devore,
Doce de atolar o dente,

Ou retrato a óleo, e banda,
Com algum palavreado,
Uso desta velha Holanda,
Antigo e repinicado.

Há quem pense em monumento,
Obra fina que reúna
Bronze, mármore e cimento,
Ou busto ou simples coluna.

Em suma, nada que cheire
A inquérito ou a devassa,
Ou cousa que se lhe abeire...
Grande obra e de grande traça.

Porquanto, se aquela preta,
Que ia sendo sepultada,
Não chega a fazer mareta,
E desce tranqüila ao nada,

Se já no caixão metida
E levada ao necrotério,
Não suspira pela vida,
Mistério contra mistério,

Não tinha havido barulho,
É certo, nem artiguinhos;
Tudo acabava no entulho,
Bichinho entre mil bichinhos;

Mas também nem a vitória
Ao inspetor caberia,
Que mandou a preta à gloria,
Aonde ela ir não queria.

Pois no rosto da sujeita,
Que ressurgiu com malícia,
Talvez porque em sua seita
Ninguém morre de polícia,

Tu, sagaz, tu descobriste
Que a morte era cousa certa,
E — vendo quanto era triste
Viver de ferida aberta

No meio desta cidade,
Por mais algum magro dia —
Encheste-te de piedade,
Vibraste de inspetoria.

E perdoando à coitada
O resto da vida horrenda,
Mandaste dar-lhe pousada
Debaixo da eterna tenda.

Ela, que tornou ao mundo,
Entre as cantatas da imprensa,
Torna ao báratro profundo,
Morre sem pedir licença.

Triunfa, inspetor, triunfa
Neste voltarete, filho,
Trunfa, trunfa, trunfa, trunfa,
Que a todos deste um codilho.

Imagina tu se abrissem
Inquérito sobre o caso,
E que afinal concluíssem
Que o teu ato era um desazo;

E que isto de meter gente
Viva em caixão de finado,
Sem exame competente,
Devia ser castigado,

Que cara com que ficávamos,
Agora que a preta é morta!
Seguramente tomávamos
Novas da nossa avó torta.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) O Cobertorzinho de Mostardas

No meu tempo de meninote fui caixeiro na cidade do Rio Grande, que naquela época dava a nota no comércio da província. Como era da praxe, o meu primeiro posto foi o de - vassoura.

Varria o armazém - uma "venda" em ponto grande - agarrava à unha as baratas vagabundas que passeavam sobre os queijos e os bacalhaus, lustrava os sapatos de fivela do patrão e ia à missa das sete horas, porque era dos mandamentos. As vezes chuchava o meu cascudo dado pelo sr. 1º caixeiro; comia - por último - na ponta da mesa grande, sem toalha e tudo no mesmo prato; ao escurecer ia a casa tomar a bênção aos meus pais e voltava logo, para dormir numa esteira, atrás das pipas. Isso tudo eu e os outros fazíamos para aprender - a ser gente.

Mas a vida ia correndo. O diabo foi uma mulatinha, que...

Foi assim: perto do armazém morava uma senhora viúva, com três filhas, meninotas como eu, porém bonitinhas como uns feitiços...

De manhã, quando eu ia à missa ou de lá vinha, espichava para elas os olhos... mas baixava-os logo, entre respeitoso e envergonhado.

As meninas riam-se, cochichavam e beliscavam-se.

À noite, quando ia à bênção caseira ou de lá vinha, etc, e tal, era a mesma cousa.

Aquela obrigada passagem pelos três diabinhos punha-me as orelhas em fogo e forçava-me a trocar o passo, na atrapalhação do meu acanhamento.

Porém, a mais dos três diabinhos havia mais uma mulatinha, repolhudinha, bem da cor do pêssego maduro, e ladina como um sorro...

A mandado das sinhazinhas a mulatinha vinha ao armazém comprar rapaduras, puxa-puxa, pé-de-moleque ou broinhas, que eram os doces que havia; e embirrava em que só havia de ser servida por mim!

— Seu Romualdo, quatro de broinhas e dois de puxa-puxa!

Se outro caixeiro vinha atendê-la, a mulata empacava-se e teimava:

— É o seu Romualdo quem me serve. A nhãnhã deu "orde"! ...

E este seu criado Matias... A vida ia correndo.

Ora, uma tarde, tinham todos ido jantar, ficando eu, como de costume, sozinho de plantão ao balcão. Nessa tarde, não sei porquê, até uns sujeitos que costumavam ficar por ali fazendo horas, até esses não apareceram.

Estava eu olhando para uma caixa de massas italianas e cá de mim para mim perguntando que estranha árvore seria aquela que dava lasanha e macarrão, quando embarafustou porta adentro a mulatinha:

— Seu Romualdo, três de pé-de-moleque!

Fiz os três vinténs de pé-de-moleque e por minha conta tomei de uma rapadura e dei-lha, dizendo, meio a tremer de mim mesmo:

— Toma: isto é doce como tu..

A mulatinha avançou na rapadura e respondeu espevitada:

— Como tu, vá ele! "Menas" confiança! Estomagado com a ingratidão, quis retomar a rapadura e fisguei o pulso da mulata. Houve uma pequena luta silenciosa e ... justo, ao tempo que entrava da rua o patrão, a mulata bradava às armas:

— Seu Romualdo, não me belisque!

— Largue a cabra, menino! berrou o meu patrão, a dois passos de mim.

E como vinha de mãos a prumo sobre as minhas orelhas ... quebrei o corpo. Depois, não sei explicar o que se passou: divisei ao meu lado, na boca de uma barrica, um alguidar com manteiga; nele e nela afundei as mãos e com tal bocado - três ou quatro libras - fiz arma de defesa.

Os dedos ferozes tornaram a roçar-me as orelhas ... outra negaça de corpo e quando alcei-me, plantei a plastada da manteiga na cara do patrão. Olhos, barbas, nariz, boca, testa. Calafetei-o!

E voei, porta fora, assombrado. A mulatinha, em frente, fez uma careta e gritou-me:

— Bem feito! Apanhou! ... Apanhou! Bem feito! ...

Cinco minutos depois entrava em casa.

— Tratante! bradava Romualdo pai. Atreveres-te! ao teu patrão... ao segundo pai dos caixeiros! Patife!

— Mas ele ia arrancar-me as orelhas... murmurava eu, Romualdo filho, a tremer, com a boca pegada a cuspo grosso.

E Romualdo pai:

— Pois fazia muito bem! Quem dá o pão dá o ensino!

E Romualdo filho:

— Que ele sempre... tratou-me... como cachorro... gaudério! Ih! Ih! Ih!

E mais não disse, que os soluços embargaram-me a voz e os queixumes. Afinal a "velha" acomodou as cousas. As mães sabem sempre ser anjos.

Fui mandado para Mostardas, a passar uns dias com o meu padrinho.

Foi um rega-bofe a viagem, que durou três dias, a bordo dum lanchão; foi outro rega-bofe a estadia, que durou duas semanas, em casa do padrinho.

Mostardas é uma povoação perdida entre areiais, junto à costa do oceano. Gente boa, do bom tempo. Tece o linho, de que faz desde os enxovais de casamento até as camisas do diário; tece a lã desde os xergões grosseiros até o picotinho lustroso.

Nesse tempo existia aí uma raça especial de ovelhas que produziam uma lã tão aquecedora como nunca mais vi outra. Essas ovelhas morriam muito no verão abafadas na pele, era necessário tosqueá-los à navalha. A gente que trabalhava com tal lã suava em barda e ficava com as mãos vermelhas, quentes, fumegando, como se estivesse lidando em água esperta.

Mas eu, como criançola, pouca atenção dava a estas cousas.

O lanchão amarrou novamente; nele devia eu regressar. Na véspera da partida, a santa da madrinha arrumou a minha bagagem. Minha, propriamente, era apenas uma canastra pequena, forrada de couro cru, peludo. O mais eram presentes que eu levava: um fardo de miraguaia salgada, uma barrica de camarões secos, uma peça de picote, umas toalhas com rendas de bilros, etc.

E para mim, expressamente meu, um cobertorzinho, feito da tal lã das tais ovelhas especiais. O meu cobertorzinho era pequeno; dava apenas bem para o meu corpo: muito leve, transparente e felpudinho. Do lado que devia ficar para os pés. tinha duas barras vermelhas e do lado da cabeça tinha o meu -Romualdo - em letras azuis.

Fiquei encantado! E como já queria utilizá-lo na viagem, emalei-o atando-o com uma eitibira larga, descascada a capricho.

Na manhã seguinte, sob bênçãos e lágrimas dos meus padrinhos, embarquei.

O lanchão içou velas. Ainda uns abanados de mãos, de lenços ... e tudo lá ficou, para sempre, na volta do arroio!

Mal pus os pés em terra, meu pai disse-me que eu marcharia para Bagé... como caixeiro!

Chorei pelo patrão da manteiga, pelas meninas e até pela mulatinha; chorei por Mostardas, pelo lanchão...

Entreguei os presentes, as cartas, dei as lembranças, os recados e os abraços que me confiaram.

Na minha desgraça só o meu cobertorzinho me consolava. Mal toquei-lhe, para mostrá-lo à minha mãe, a embira, de ressequida, esfarinhou-se. Não prestei a isso maior atenção, mas já foi suando que o amarrei de novo com uma ourela de pano piloto. Minha mãe abanava-se de leque, como em dezembro.

Segui para Bagé. Uma viagem dessas, naquele tempo, dava para um romance!

Todos sabem disso. Passemos adiante.

Quando a "deligência" fez a última parada, perto da igreja de S. Sebastião de Bagé, o meu novo patrão esperava a encomenda.

Era eu.

Era ele um espanhol baixinho, gordo e gritão.

Como é dos estilos, pus a canastra ao ombro e marchamos para a casa do negócio.

Fazia frio!... frio!... Que frio que fazia!... As fumaças do cigarro do espanhol ficavam paradas no ar, endurecidas, talvez congeladas... Pouca gente a pé. Muitos homens a cavalo; emponchados, todos.

Chegamos. Entramos. Pousei a canastra. Olhei.

E chorei, logo. Aquela. distância, aquelas caras novas e cousas estranhas achatavam-me.

O patrão então falou:

— Mira, chico, estarás estrompado, he?... Vate a dormir. Mañana tempranito te tomarás un cimarón con galletas!

E conduziu-me ao meu quarto, isto é, ao quarto da caixeirada.

Lá, no Rio Grande, tínhamos esteiras, aqui temos pe1egos... Ganhei na troca.

Atirei-me sobre o meu pelego. Mas o frio cortava.

Meio de gatinhas, pés duros, canelas duras, ombros duros, mãos duras, consegui abrir a canastra e sacar o meu cobertorzinho. Provavelmente eu devia de estar com a cara como uma batata roxa...

Tocar no cobertor foi uma satisfação, abri-lo um prazer, estendê-lo sobre meus pelegos, uma alegria; meter-me debaixo dele, um consolo divino... E ferrei num sono de pedra.

Lá pelas tantas acordei-me meio afogado, lavado em suor.

Acordei-me sob uma granizada de risadas e falaraz dos rapazes companheiros, todos em trajes menores, sentados nos peitoris das janelas, que davam para o quintal.

— Que abafamento! que calor! diziam eles.

— Parece meio-dia de fevereiro!

— Se tivesse água agora, era banho certo!

Eu, por mim, não podia mais; parecia-me que tinha um pano de fogo em cima do corpo. Fui para a janela, como os outros.

Nisto o espanhol abriu a porta do nosso quarto e - descalço, em ceroulas e de poncho de pala enfiado - bradou:

— Eh! muchachos! Habrá fuego en la calle? Que está caliente como un sol dormiendo!

Mas logo bateram à porta da frente.

— Hay fuego, muchachos! Es fuego! A ver!

Saímos todos com o patrão; abriu-se uma porta e logo entraram uns quantos sujeitos vestidos muito à frescata.

— Chê! Bote um capilé! pediu um, esbaforido.

— Outro! Que calor! gritou outro tipo.

— Menino, dá cá um refresco... reclamou um terceiro.

— Donde es el fuego? inquiria, aflito, o espanhol.

— Que fuego, nem fuego! Calor da noite é que é.

— Isto é tormenta!

— Olha! Outro capilé!

— Aqui também!

E o calor aumentava.

Casas abriam-se com rumor, acendiam-se os candeeiros e as velas das "mangas" de vidro.

Crianças vinham para a rua, em camisinha. Ouviam-se risadas, conversas, chamados. Começavam a mandar buscar cousas ao armazém. Tijolos de goiabada, rapaduras e bolacha doce, latas de sardinha, ovos e toucinho para fritadas, varas de lingüiça, para comezainas improvisadas.

Outras casas de negócio vizinhas também abriam, para servir à sua freguesia. Havia movimento em toda parte, como se fosse de dia.

As pessoas que chegavam de outros lugares queixavam-se de que o calor aqui no armazém ainda era mais insuportável que lá.

De repente ouvimos um estouro forte, dentro do balcão; era um barril de melado que arrebentava, espumando. Um dos caixeiros que fora servir a um freguês avisou ao patrão que as velas de sebo e as barras de sabão estavam pegadas, tudo quase como uma pasta.

Todos os que bebiam ao balcão, queixavam-se e reclamavam que os refrescos estavam mornos. Veio um negro buscar uma galinha, que o seu senhor queria comer uma canja, para passar o tempo...; o caixeiro que foi ao galinheiro voltou, atarantado, a participar ao patrão que as aves todas estavam assoleadas e já morto um peru gordo.

O espanhol, corado, pingando suor, e sempre em ceroulas e de pala enfiado, correu para os fundos.

Mira! Que cosa bárbara!

Do lado do arroio vinha uma algazarra alegre, gritos, gargalhadas, ditos: era o povo que tomava banho!

Nós todos no armazém suávamos como tampa de panela. Um estancieiro, freguês da casa, pediu um chimarrão; o primeiro caixeiro amarrou a cara, porque era estopada ir-se aquentar água àquela hora, mas mandou preparar o amargo. Saiu e voltou logo o peão com os avios e a "chocolateira" com água, fervendo em pulo, e de entrada foi dizendo:

— Eta, diabo! ... Lá na cozinha "tá" tudo fervendo! ...

Aquilo estava esquisito, estava... Nunca se tinha visto um tão curioso calor em junho, entre Santo Antônio e São João, que é o tempo justo em que a geada cura as laranjas e branqueia como farinha, no terreiro e nos telhados.

E o espanhol, bufando, repetia:

— Que cosa bárbara! que cosa bárbara!

Eu, bem se imagina, estava atarantado com tudo aquilo; e sentindo a roupa empapada, com receio de alguma constipação, resolvi mudar outra, enxuta ... e esgueirei-me para o quarto.

Quase não pude entrar, sufocava, lá dentro; era um forno. Contudo, avancei até a minha canastra: era insuportável, aí perto.

Então, só então, como um raio, foi que me lembrei do meu cobertorzinho!

Era ele, só ele, o calor, a quentura da sua lã, que estava causando todo aquele estrupício na cidade.

Fiquei aterrorizado.., se o espanhol descobrisse!

Muito caladinho, apressado, dobrei-o, amarrei-o e atirei-o para o fundo da canastra, que fechei com o cadeado.

E disfarçado, vim para o balcão, com os companheiros. Daí a pouco começou a abrandar a torreira' foi abrandando; veio a viração da madrugada; já se respirava melhor. Surgiram as barras do dia e todos se foram deitar, para aproveitar ainda uma hora de sono.

Nunca ninguém soube disto. Dias depois, para tirar-lhe as pulgas, estendi o meu cobertorzinho ao sol.

Foi o meu prejuízo: combinaram-se a quentura da lã e o calor do astro... e pegou fogo!

Quando fui levantar a minha coberta, era pura cinza.., e nem fumaça tinha havido!

Olhem que era cobertorzinho quente, aquele!

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Casos_do_Romualdo/XI

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) III

Balada do Desertor

Na Primavera a guerra prenunciava,
Uma nova batalha no Vale dos Mortos,
Como a destruição apocalíptica do Armagedon.
Lembrei-me dos inúmeros mutilados,
Volvi meus olhos de poeira e dor,
Para centenas de lares,
Repletos de órfãos famintos,
Onde o fantasma feroz da fome,
Rodava em círculo aquelas moradas.

Amarrei, então, o cadarço da botina,
Salpicado de lama e sangue,
Trilhei pela estrada deserta de minas,
Dando adeus a peleja
Nada de glorioso o me aguardava.

Apenas o pelotão de fuzilamento,
O uniforme rasgado,
Os botões dourados arrancados
E a insígnia tirada a força de meu peito.

Quando descansei ao cair da tarde,
Num rancho à beira da estrada,
Só havia entre os escombros,
Um naco de pão centeio,
Empoeirado na desordem daquela dispensa.

Faltava água para beber,
E o cantil já estava vazio,
E os rios corriam lentos em direção ao mar,
Passavam envenenados,
Nada mais podia esperar.

A minha arma vendi num bordel,
E entre putas e rufiões,
Celebrei a minha deserção,
Morri crivado de balas
com a minha própria arma,
Naquela madrugada azul e fria
Quando não mais havia
um níquel para eu gastar.

Para que serve um homem hoje em dia?
Somente para morrer,
Somente para matar.

Prece de um Pecador
 

Meu Senhor fui negligente
E agora estou doente
Por conta de minha transgressão
Não amar só ti
Diante de tanta farra e profanação

Meu Senhor estou convalescente
E busco o vosso perdão
Meu Deus
Não me abandones
Sou apenas um pobre grão
Pecando nesse pobre chão

Meu Senhor fui descuidado
E agora estou ferrado
Diante de tanta violação
Abrande minha pena
Diante do vosso Tribunal de Apelação

Pequei, Senhor!
Tenha piedade de mim
na hora de minha condenação.

O Herético

Numa madrugada
Quando queimava de febre
Suspendi os olhos para o oitão
E tremendo de frio
Busquei no tempo
Agasalho para a minha solidão.

Balada da Minha Dor
 

Eu sou um cão vadio sobre a face da terra,
Farejando no ar tanto indignação.
Eu lambi as feridas de São Roque,
Levei o seu precioso pão.

Eu fui o cão de caça do palácio de Gotardo.
Transitei num tempo de peste,
e nas colinas ao Leste,
quando me buscaram,
eu estava distante cravejando minha presa no calcanhar do Cão.

Eu estive com São Lázaro,
e testemunhei a sua ressurreição
Por longas décadas andei de pelo caído,
de sardas espalhadas pelo chão.
E nem por isso abaixei o meu focinho,
nem deixei que o carinho,
diluísse nesses tempos de completa podridão.

Eu permaneci ligado,
Algumas vezes travado:
de haxixe, maconha e bom bocado.
Nesse condado repleto por putas, veados e ladrões.

Eu vi a miséria tomar conta de meu país
e nem assim me exilei,
eu aqui fiquei.

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida