segunda-feira, 21 de abril de 2014

Machado de Assis (Decadência de Dois Grandes Homens)

Os antigos frequentadores do Café Carceller hão de recordar-se de um velho que ali ia todas as manhãs às oito horas, almoçava, lia os jornais, fumava um charuto, dormia cerca de meia hora e saía. Estando de passagem no Rio de Janeiro, aonde viera para tratar questões políticas com os ministros, atirei-me ao prazer de estudar todos os originais que encontrava, e não tenho dúvida em confessar que até então só tinha encontrado cópias.

O velho apareceu a tempo; tratei de analisar o tipo.

Era meu costume — costume das montanhas mineiras — acordar cedo e almoçar cedo.

Ia fazê-lo ao Carceller, justamente à hora do velho, dos empregados públicos e dos escreventes de cartório. Sentava-me à mesa que enfrentava com a do velho, e que era a penúltima do lado esquerdo contando do fundo para a rua. Era ele homem de seus cinquenta anos, barbas brancas, olhos encovados, cor amarela, algum abdome, mãos ossudas e compridas. Comia vagarosamente algumas fatias de pão-de-ló e uma chávena de chocolate. Durante o almoço não lia; mas apenas acabado o chocolate, acendia um charuto que tirava do bolso, que era sempre do mesmo tamanho, e que no fim de certo tempo tinha a virtude de o fazer adormecer e deixar cair das mãos o jornal que estivesse lendo. Encostava então a cabeça à parede, e dormia plácido e risonho como se algum sonho agradável lhe estivesse dançando no espírito; às vezes abria os olhos, contemplava o vácuo, e continuava a dormir tranquilamente.

Indaguei do caixeiro quem era aquele freguês.

— Não sei, respondeu; almoça aqui há quatro anos, todos os dias, à mesma hora.

— Tem ele por aqui algum conhecido? — Nenhum; aparece só e retira-se só.

Aguçava-me a curiosidade. Ninguém conhecia o velho; era mais uma razão para conhecê-lo eu. Procurei travar conversa com o desconhecido, e aproveitei uma ocasião em que ele acabava de engolir o chocolate e procurava com os olhos algum jornal.

— Aqui está este, disse-lhe eu, indo levar-lhe.

— Obrigado, respondeu-me o homem sem levantar os olhos e abrindo a folha.

Não obtendo mais nada, quis travar conversa por outro modo.

— Traz hoje um magnífico artigo sobre a guerra.

— Ah! disse o velho com indiferença.

Nada mais.

Voltei ao meu lugar disposto a esperar que o velho lesse, dormisse e acordasse.

Paciência de curioso, que ninguém a tem maior, nem mais fria. Ao cabo do tempo do costume tinha o homem lido, fumado e dormido. Acordou, pagou o almoço e saiu.

Acompanhei-o imediatamente; mas o homem tendo chegado à esquina, voltou e foi até à outra esquina, aonde se demorou, seguiu por uma rua, tomou a parar e a voltar, a ponto que eu desisti de saber onde iria ele ter, tanto mais que nesse dia devia entender-me com um dos membros do governo, e não podia perder a ocasião.

Quando no dia seguinte, eram 15 de março, voltei ao Carceller, encontrei lá com o meu homem, assentado no lugar do costume; estava acabando de almoçar, almocei também; mas desta vez guardou-me o misterioso velho uma surpresa; em vez de pedir um jornal e fumar um charuto, encostou a cara nas mãos e começou a olhar para mim.

— Bom, disse eu; está amansado. Naturalmente vai dizer-me alguma coisa. Mas o homem nada disse e continuou a olhar para mim. A expressão dos olhos, que de ordinário era morta e triste, nessa ocasião tinha um quê de terror. Supondo que ele quisesse dizer-me alguma coisa, fui o primeiro a dirigir-lhe a palavra.

— Não lê hoje os jornais? — Não, respondeu-me ele com voz sombria; estou pensando...

— Em quê? O velho fez um movimento nervoso com a cabeça e disse: — São chegados os idos de março! Estremeci ouvindo esta singular resposta, e o velho, como se não visse o movimento, continuou: — Compreende, não? É hoje um tristíssimo aniversário.

— A morte de César? perguntei eu rindo.

— Sim, respondeu o velho com voz cavernosa.

Não tinha que ver; era algum homem maníaco; mas que haveria de comum entre ele e o vencedor das Gálias? A curiosidade cresceu; e aproveitei a disposição em que o velho estava de travar conhecimento. Levantei-me e fui sentar-me à mesa dele.

— Mas que tem o senhor com a morte de César? — O que tenho com a morte daquele grande homem? Tudo.

— Como assim? O velho abriu a boca e ia responder, mas a palavra ficou-lhe no ar e o homem voltou à taciturnidade habitual. Ocupei esse tempo em contemplá-lo mais detidamente e de perto.

Olhava ele para a mesa, com as mãos postas debaixo das orelhas; os músculos do rosto estremeciam de quando em quando, e os olhos rolavam dentro das órbitas como favas nadando em prato de molho. No fim de algum tempo olhou para mim, e eu aproveitei a ocasião para dizer-lhe: — Quer um charuto? — Obrigado; eu só fumo dos meus; são charutos opiados, grande recurso para quem quer esquecer um grande crime. Quer um? — Não tenho crimes.

— Não importa; colherá prazer em fumá-lo.

Aceitei o charuto, e guardei-o.

— Consente que o guarde? — Pois não, respondeu ele.

Outro silêncio mais prolongado. Vi que o homem não estava para conversa; a fronte se lhe entristecia cada vez mais como a Tijuca quando está para cair temporal. Ao cabo de alguns minutos, disse-lhe eu: — Simpatizo muito com o senhor, quer que eu seja seu amigo? Luziram os olhos do homem.

— Meu amigo? disse ele; oh! por que não? preciso de um, mas de um amigo verdadeiro.

Estendeu-me a mão, que eu lhe apertei com afeto.

— Como se chama? perguntei eu.

Sorriu o velho, soltou das cavernas do peito um longo e magoadíssimo suspiro, e respondeu-me: — Jaime. E o senhor? — Miranda, doutor em medicina.

— É brasileiro? — Sim, senhor.

— Meu patrício então? — Creio.

— Meu patrício!...

E dizendo isto o velho teve um sorriso tão infernal, tão sombrio, tão lúgubre, que eu tive idéia de me ir embora. Reteve-me a curiosidade de chegar ao fim. Jaime não prestava atenção ao que se passava ali; e exclamava de quando em quando: — Os idos de março! os idos de março! — Olhe, meu amigo sr. Jaime, quer ir dar um passeio comigo? Aceitou sem dizer palavra. Quando nos achamos na rua perguntei-lhe se preferia algum lugar.

Respondeu-me que não.

Andamos ao acaso; eu procurava travar conversa a fim de distrair o homem dos idos de março; e consegui a pouco e pouco que se tornasse mais conversador. Era então apreciável. Não falava sem gesticular com o braço esquerdo, com a mão fechada, e o dedo polegar aberto. Contava anedotas de mulheres e mostrava-se grande apreciador do sexo amável; era exímio na descrição da beleza feminina. A conversa passou à história, e Jaime exaltou os tempos antigos, a virtude romana, as páginas de Plutarco, Tito Lívio e Suetônio. Sabia o Tácito de cor e dormia com Virgílio, disse ele. Seria um doido, mas conversava com muito juízo.

Sobre a tarde tive fome e convidei-o a jantar.

— Comerei pouco, respondeu Jaime; estou indisposto. Ai! os idos de março! Jantamos em hotel, e eu quis acompanhá-lo a casa, que era na Rua da Misericórdia.

Consentiu nisso com verdadeira explosão de alegria. A casa dizia com o dono. Duas estantes, um globo, vários alfarrábios espalhados no chão, uma parte sobre uma mesa, e uma cama antiga.

Eram seis horas da tarde quando entramos. Jaime tremia quando chegou à porta da sala.

— Que tem? perguntei-lhe eu.

— Nada, nada.

Mal entrávamos na sala, pulou da mesa, onde se achava acocorado, um enorme gato preto. Não fugiu; saltou aos ombros de Jaime. Este tremeu todo e procurou aquietar o animal passando-lhe a mão pelo lombo.

— Sossega, Júlio! dizia ele, enquanto eu com o olhar inspecionava o albergue do homem e procurava cadeira onde me sentasse.

O gato pulou depois à mesa e fitou em mim dois grandes olhos verdes, fulminantes, interrogadores; compreendi o susto do velho. O gato era modelo na espécie; tinha certo ar de ferocidade da onça, de que era miniatura acabada. Era todo preto, pernas compridas, longas barbas; gordo e alto, tendo uma extensa cauda que brincava no ar dando saltos caprichosos. Tive sempre antipatia aos gatos; aquele causava-me horror. Parecia-me que ia saltar sobre mim e esganar-me com as largas patas.

— Mande o seu gato embora, disse eu a Jaime.

— Não faz mal, respondeu-me o velho. Júlio César, não é verdade que tu não fazes mal a este senhor? O gato voltou-se para ele; e Jaime beijou repetidas vezes a cabeça do gato. Do susto passara à efusão. Compreendi que seria pueril assustar-me quando o animal era tão manso, ainda que não compreendi o medo do velho quando entrou. Haveria alguma coisa entre aquele homem e aquele bicho? Não pude explicá-lo. Jaime acariciou o gato enquanto eu por me distrair lia o título das obras que estavam nas estantes. Um dos livros tinha no lombo este título: Metempsicose.

— Acredita na metempsicose? perguntei eu.

O velho, que estava ocupado em tirar o paletó e vestir um chambre de chita amarela, interrompeu aquele serviço, para dizer-me: — Se acredito? Em que queria o senhor que eu acreditasse? — Um homem instruído, como o senhor, não devia crer em tolices desta ordem, respondi abrindo a livro.

Jaime acabou de vestir o chambre, e veio a mim.

— Meu caro senhor, disse ele; não zombe assim da verdade; nem zombe nunca de filosofia nenhuma. Toda a filosofia pode ser verdadeira; a ignorância dos homens é que faz de uma ou de outra crença da moda. Contudo para mim, que as conheci todas, só uma é a verdadeira, e é essa a que alude o senhor com tanto desdém.

— Mas...

— Não me interrompa, disse ele; quero convencê-lo.

Levou-me a uma poltrona de couro e obrigou-me a sentar ali. Depois foi sentar-se ao pé da mesa, em frente a mim e começou a desenvolver a sua teoria, que eu ouvi sem pestanejar. Jaime tinha a palavra fácil, ardente, impetuosa; animavam-se-lhe os olhos, tremia-lhe o lábio, e a mão, a famosa mão esquerda, agitava no ar o dedo polegar aberto e curvo como um ponto de interrogação.

Ouvi o discurso do homem, e não ousei contestar-lhe. Era evidentemente um doido; e ninguém discute com homem doido. Jaime acabou de falar e caiu numa espécie de prostração. Cerrou os olhos e ficou insensível alguns minutos. O gato saltou à mesa, entre mim e ele, e começou a passar a mão pela cara de Jaime, o que o fez despertar daquele abatimento.

— Júlio! Júlio! exclamava ele beijando o gato; será hoje? será hoje? Júlio não parecia entender a pergunta; alteou o lombo, descreveu com a cauda algumas figuras geométricas no ar, deu dois saltos e pulou ao chão.

Jaime acendeu um lampião, enquanto eu me levantava para me ir embora.

— Não se vá, meu amigo, disse-me Jaime; peço-lhe um favor.

— Qual? — Fique comigo até a meia-noite.

— Não posso.

— Por quê? não imagina que favor me faria! — Tem medo? — Hoje tenho: são os idos de março.

Consenti em ficar.

— Não me dirá, perguntei eu, que tem o senhor com os idos de março? — Que tenho? disse Jaime com os olhos em fogo. Não sabe quem sou? — Pouco sei.

— Não sabe nada.

Jaime inclinou-se sobre a mesa e disse-me ao ouvido: — Sou Marco Bruto! Por mais extravagante que estas palavras pareçam ao frio leitor, confesso que me causaram profunda sensação. Recuei a cadeira e contemplei a cabeça do velho.

Pareceu-me que a iluminava a virtude romana. Os olhos tinham fulgores de padre conscrito; o lábio parecia estar fazendo uma oração à liberdade. Durante alguns minutos saboreou ele silenciosamente a minha silenciosa admiração. Depois, sentando-se outra vez: — Marco Bruto sou, disse, ainda que esta revelação lhe cause espanto. Sou aquele que encabeçou a momentânea vitória da liberdade, o assassino (em que me pese o nome!), o assassino do divino Júlio.

E voltando os olhos para o gato, que estava sobre uma cadeira, entrou a contemplá-lo com urna expressão de arrependimento e dor. O gato fitou nele os olhos verdes, redondos, e nesta contemplação recíproca ficaram até que eu para obter maior explicação do que presenciava, perguntei ao velho: — Mas, sr. Bruto, se é aquele grande homem que assassinou César por que receia os idos de março? César não voltou cá.

— A causa do meu receio ninguém a sabe; mas eu lhe direi francamente, pois é o único homem que tem mostrado interesse por mim. Receio os idos de março, porque...

Estacou; enorme trovão rolou nos ares e pareceu abalar a casa até os alicerces. O velho ergueu os braços e os olhos para o teto e fez mentalmente uma prece a algum deus do paganismo.

— Será a hora? perguntou ele baixinho.

— De quê? perguntei.

— Do castigo. Ouça, mancebo; o senhor é filho de um século sem fé nem filosofia; não conhece o que é a cólera dos deuses. Também eu nasci neste século; mas trouxe comigo as virtudes da minha primeira aparição na terra: corpo de Jaime, alma de Bruto.

— Então já morreu antes de ser Jaime? — Sem dúvida; é sabido que morri; ainda que eu desejasse negá-lo, aí estaria a História para dizer o contrário. Morri; séculos depois, voltei ao mundo com esta forma que vê; agora voltarei a outra forma e...

Aqui o velho começou a chorar. Consolei-o como pude, enquanto o gato, trepando à mesa, veio acariciá-lo com uma afeição bem contrária à índole de uma onça. O velho agradeceu as minhas consolações, e as carícias de Júlio. Aproveitei a ocasião para lhe dizer que efetivamente eu imaginava que o ilustre Bruto devia ter aquela figura.

O velho sorriu.

— Estou mais gordo, disse ele; naquele tempo eu era magro. Coisa natural; homem gordo não faz revolução. Bem o compreendia César quando dizia que não temia a Antônio e Dolabela, mas sim àqueles dois sujeitos amarelos e magros e éramos Cássio e eu...

— Pensa então o senhor que...

— Penso que homem gordo não faz revolução. O abdome é naturalmente amigo da ordem; o estômago pode destruir um império; mas há de ser antes de jantar. Quando Catilina encabeçou a célebre conjuração a quem foi procurar? Foi procurar a gente que não tinha um sestércio de seu; a turba dos clientes, que vivia de espórtulas, não os que viviam pomposamente em Túsculo ou Baïas.

Achei curiosa a doutrina e disse a propósito algumas palavras que nos distraíram do assunto principal.

O genro de Catão continuou: — Não lhe contarei, pois sabe a História, a conjuração dos idos de março. Apenas lhe direi que eu entrara naquela sinceramente, porquanto, como muito bem disse um poeta inglês, que depois me meteu em cena, eu matei César, não por ódio a César, mas por amor da República.

— Apoiado! — O senhor é deputado? perguntou o velho sorrindo.

— Não, senhor.

— Pensei. Aproveito a ocasião para dizer-lhe que a tática parlamentar de tomar tempo com discursos até o fim das sessões não é nova.

— Ah! — Foi inventada por meu ilustre sogro, o incomparável Catão, quando César, voltando vencedor da Espanha, queria o triunfo e o consulado. A assembléia inclinava-se a favor do pretendente; Catão não teve outro meio: subiu à tribuna e falou até a noite, falou sem parar um minuto. Os ouvintes ficaram estafados com a arenga, e César vendo que não podia ceder a um homem daquele calibre, dispensou o triunfo, e veio pleitear o consulado.

— De maneira que hoje quando um orador toma o tempo até o fim da hora?...

— Está na altura de Catão.

— Tomo nota.

— Ah! meu rico senhor, a vida é uma eterna repetição. Todos inventam o inventado.

— Tem razão.

— Matamos o divino Júlio, e mal lhe posso dizer o assombro que se seguiu ao nosso crime... Crime lhe chamo porque reconheço hoje que o era; mas sou obrigado a dizer que o ilustre César ofendera a majestade romana. Eu não fui o inventor da conjuração; toda a gente estava inspirada dos meus desejos. Eu não podia entrar no senado que não achasse essa cartinha: “ ou então: “. De toda a parte me instigaram. Uniram-se todos os ódios ao meu, e o mundo presenciou aquela tremenda catástrofe...

Jaime ou Bruto, que eu realmente não sei como lhe chame, concentrou um pouco o seu espírito; depois levantou-se, foi à porta, espiou, deu uma carreirinha e veio sentar-se defronte de mim.

— Há de ter lido que a sombra de César me apareceu depois duas vezes, sendo que, da segunda, veio silenciosa e silenciosa foi. É um erro. Da segunda vez foi que eu ouvi tremendo segredo que lhe vou revelar. Não o disse a ninguém por medo, e medo do que se dissesse de mim. Vá, abra os ouvidos...

Nesse momento o gato começou a dar saltos vertiginosos.

— Que diabo é isto? disse eu.

— Não sei; creio que está com fome. São horas de cearmos.

Jaime-Bruto foi buscar a ceia do gato, e trouxe para a mesa um assado frio, pão, queijo inglês, e vinho italiano e figos secos.

— Os vinhos italianos são uma recordação de minha vida anterior, disse ele. Quanto aos figos, se não são de Túsculo, ao menos os fazem lembrar.

Comemos tranquilamente; eram então oito horas, e o velho estava ansioso que batessem as doze. Ao cabo de meia hora acendeu ele um charuto, e eu o mesmo que ele me havia dado de manhã, e continuamos a falar de César.

— Apareceu-me a sombra, disse ele, e desenrolou um libelo dos males que eu havia feito à República com a morte dele, e ao mesmo tempo acrescentou que o meu crime nada salvara, pois era inevitável a decadência da República. Como eu respondesse um pouco irritado, a sombra soltou estas fatídicas palavras: “ Tirei o charuto da boca, e contemplei a cara do meu interlocutor. Era impossível que não estivesse próximo um acesso de loucura; mas o olhar do homem conservava a mesma inteligência e serenidade. Ele respirava a fumaça com delícias e olhava, ora para o teto, ora para o gato.

— É um doido manso, pensei eu, e continuei a fumar enquanto o velho continuou: — Compreende o senhor por que motivo receio esses malditos idos de março, aniversário do meu crime.

Atirou fora o charuto.

— Não fuma? perguntei eu.

— Destes não fumo hoje.

— Quer dos meus? — Aceito.

Dei-lhe um charuto, que ele acendeu, e eu continuei a fumar o dele, que me fazia sentir delícias inefáveis. Ia-se-me o corpo ficando mole; estendi-me na poltrona e prestei ouvidos ao anfitrião.

Este passeava vagarosamente, gesticulando, rindo sem motivo, outras vezes chorando, tudo como quem tem alguma mania na cabeça.

— Não me dirá, perguntei eu, se é neste gato que está a alma de Júlio? — Sem dúvida, é neste bicho que se meteu a alma daquele grande homem, o primeiro do universo.

O gato não pareceu reparar nessa adulação póstuma do nobre Bruto, e foi colocar-se no sofá em ação de querer dormir. Pus os olhos no animal, e admirei o que eram os destinos humanos. César estava reduzido à condição de animal doméstico! Aquele gato, que estava ali diante de mim, tinha escrito os Comentários, subjugado os Gauleses, vencido Pompeu, destruído a República. Saciava-se agora com uma simples ceia, quando outrora queria dominar todo o universo.

Jaime veio tirar-me das minhas cogitações.

— Poderia eu ter alguma dúvida acerca da identidade deste animal, disse ele; mas tudo me prova que é ele o meu divino Júlio.

— Como? — Apareceu-me aqui uma noite sem que a porta estivesse aberta e começou a olhar para mim. Quis pô-lo fora; impossível. Então lembrou-me a ameaça da sombra. — “, disse eu, chamando o gato; e imediatamente começou ele a fazer-me festas. Era fado ou ocasião: mais tarde ou mais cedo o meu túmulo é o ventre deste nobre animal.

— Acho que não tem razão de crer...

— Ah! meu caro doutor... é razão e mais que razão. Quer ver? Júlio César! O gato, apenas ouviu este nome, pulou do sofá e começou a dar saltos mortais por cima de um Niágara imaginário, a ponto de me obrigar a sair da cadeira e ir para o sofá.

— Aquieta-te, Júlio! disse o velho.

O gato sossegou; trepou para uma poltrona e ali arranjou como a seu gosto.

Quanto a mim, sentindo no corpo um delicioso torpor, estendi-me no sofá e continuei a pasmar ouvindo a narração do meu Jaime-Bruto.Durou esta ainda uma boa meia hora; falou-me o homem das coisas da República, da timidez de Cícero, da versatilidade do povo, da magnanimidade de César, da política de Otávio. Elogiou muito a antiga esposa de quem conservava eternas saudades; e por fim calou-se.

Nenhum rumor, o trovão não trouxera chuva; as patrulhas andavam por longe; nenhum caminhante feria as pedras da rua. Eram mais de dez horas. O meu anfitrião, sentado na cadeira de couro, olhava para mim, abrindo dois grandes olhos e eis que estes começam a crescer lentamente, e já ao fim de alguns minutos pareciam no tamanho e na cor as lanternas dos bondes de Botafogo. Depois, começaram a diminuir até ficarem muito abaixo do tamanho natural. A cara foi-se-lhe alongando e tomando proporções de focinho; caíram as barbas; achatou-se o nariz; diminuiu o corpo, assim como as mãos; as roupas desapareceram; as carnes tomaram uma cor escura; saiu-lhe uma extensa cauda, e eis o ilustre Bruto, a saltar sobre a mesa, com as formas e as visagens de um rato.

Senti os cabelos eriçados; tremia-me o corpo; batia-me o coração.

No mesmo instante, o gato saltou à mesa e avançou para ele. Fitaram-se alguns instantes, o que me trouxe à memória aqueles versos de Lucano, que o sr. Castilho José nos deu magistralmente assim: Nos altos, frente a frente, os dois caudilhos, Sôfregos de ir-se às mãos, já se acamparam.

Após curto silêncio, o gato avançou para o rato; o rato pulou ao chão, e o gato atrás dele.

Subiu o rato ao sofá, e o gato também. Onde Bruto se escondesse, lá se metia César, às vezes o primeiro encarava de frente o segundo, mas este não se assustava com isso, e avançava sempre. Gemidos e roncos ferozes eram a orquestra desta dança infernal.

Exausto de uma luta impossível, o rato deixou-se cair arquejante, e o gato pôs-lhe a pata em cima.

Que pena descreveria o olhar triunfante de César quando viu debaixo de si o miserando Bruto? Não conheço nada em poesia ou pintura — nem sequer na música chamada imitativa —, nada conheço que produza a impressão que me produziu aquele grupo e aquele olhar. De uma rivalidade secular, que lutou à luz do sol e da História, passava-se ali o último ato, dentro de uma sala obscura, tendo por espectador único um provinciano curioso.

O gato tirou a pata de cima do rato; este deu alguns passos; o gato tomou a pegá-lo; repetiu a cena uma porção de vezes; e se isto era natural de um gato, não era digno de César. Acreditando que me ouvissem, exclamei: — Não o tortures mais! O gato olhou para mim e pareceu compreender-me; efetivamente atirou-se ao rato com uma ânsia de quem esperava há muito aquela ocasião. Vi — que horror! — vi o corpo do nobre Bruto passar todo ao estômago do divino César, vi isto, e não lhe pude valer, porque eu tinha a presunção de que as armas da terra nada podiam contra aquela lei do destino.

O gato não sobreviveu à vingança. Apenas comeu o rato, caiu trêmulo, miou alguns minutos e faleceu.

Nada mais restava daqueles dois homens de Plutarco.

Contemplei o quadro algum tempo; e fiz tais reflexões acerca das evoluções históricas e das grandezas humanas, que bem podia escrever um livro que faria a admiração dos povos.

De repente, duas luzes surgiram dos restos miserandos daquele par da Antiguidade; duas luzes azuis, que subiram lentamente até o teto; o teto abriu-se e eu vi distintamente o firmamento estrelado. As luzes subiram no espaço.

Força desconhecida me levantou também do sofá, e eu acompanhei as luzes até meio caminho. Depois seguiram elas, e eu fiquei no espaço, contemplando a cidade iluminada, tranquila e silenciosa. Fui transportado ao oceano, onde vi uma concha à minha espera, uma verdadeira concha mitológica. Entrei nela e comecei a andar na direção do oeste.

Prossegui esta amável peregrinação de um modo verdadeiramente mágico. De repente senti que o meu nariz crescia desmesuradamente; admirei o sucesso, mas uma voz secreta me dizia que os narizes são sujeitos a transformações inopinadas — razão pela qual não me admirei quando o meu apêndice nasal assumiu sucessivamente a figura de um chapéu, de um revólver e de uma jaboticaba. Voltei à cidade; e entrei nas ruas espantado, porque as casas me pareciam todas voltadas com os alicerces para cima, coisa sumamente contrária à lei das casas, que devem ter os alicerces embaixo. Todos me apertavam a mão e perguntavam se eu conhecia a ilha das chuvas, e como eu respondesse que não, fui levado à dita ilha que era a Praça da Constituição e mais o seu jardim pomposamente iluminado.

Nesta preocupação andei até que fui levado outra vez à casa onde se passara a tragédia referida acima. A sala estava só; nem vestígio dos dois homens ilustres. O lampião estava a expiar. Sai aterrado e desci as escadas até chegar à porta onde achei a chave. Não dormi nessa noite; a madrugada veio surpreender-me com os olhos abertos, contemplando de memória o miserando caso da véspera.

Fui almoçar ao Carceller.

Qual não foi o meu espanto quando lá encontrei vivo e são aquele que eu supunha na eternidade? — Venha cá, venha cá! disse ele. Por que saiu ontem de casa sem falar? — Mas... o senhor... pois César não o engoliu? — Não. Esperei a hora fatal, e apenas ela passou, dei gritos de alegria e quis acordá-lo; mas o senhor dormia tão profundamente que achei melhor ir fazer o mesmo.

— Céus! pois eu...

— Efeitos do charuto que lhe dei. Teve belos sonhos, não? — Todos, não; sonhei que o gato o engolia...

— Ainda não... Agradeço-lhe a companhia; agora esperarei o ano que vem. Quer almoçar? Almocei com o homem; no fim do almoço ofereceu-me ele um charuto, que eu recusei dizendo: — Nada, meu caro; vi coisas terríveis esta noite...

— Falta de costume...

— Talvez.

Saí triste. Procurava um homem original e achei um maluco. Os de juízo são todos copiados uns dos outros. Consta-me até que aquele mesmo homem de Plutarco, freguês do Carceller, curado por um hábil médico, está agora tão comum como os outros. Acabou a originalidade com a maluquice. Tu quoque, Brute?

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

sábado, 19 de abril de 2014

Os Animais em Versos

AMADEU AMARAL
(Amadeu Ataliba Arruda Amaral Leite Penteado)
Capivari/SP (1875 – 1929)

Cigarra

(a Olegário Mariano)

Pia um pássaro além. De uma copa, responde
estrídula cigarra, e o canto agudo estira.
Dir-se-ia que a Terra, ante o Verão que expira,
ergue uma prece à luz, dando uma voz à fronde.

Por que canta a cigarra? E que diz ela? E onde?
Em que frincha de sombra? O grande sol que a inspira,
doando-lhe o alto esplendor deste céu de safira,
a penumbra produz que a dissimula e esconde.

Canta, cigarra! Tu, que, em vez de teres garra,
bico, dardo ou ferrão, tens uma voz fremente,
enche do teu clamor estas matas e furnas.

O destino do poeta é como o teu, cigarra:
sonhar sonhos de luz na penumbra envolvente,
dar um frêmito e um canto às frondes taciturnas...

ANÍBAL TEÓFILO
(Aníbal Teófilo da Silva)
Humaitá/Paraguai (1873 — 1915)

A cegonha


Em solitária, plácida cegonha
Imersa num cismar ignoto e vago,
Num fim de ocaso, à beira azul de um lago,
Sem tristeza, quem há que os olhos ponha?

Vendo-a, Senhora, vossa mente sonha
Talvez, que o conde de um palácio mago,
Loura fada perversa, em tredo afago,
Mudou nessa pernalta erma e tristonha.

Mas eu, que em prol da Luz do pétreo, denso
Do Ser ou do Não-Ser tento a escalada,
Qual morosa, tenaz, paciente lesma,

Ao vê-la assim, mirar-se n'água, penso
Ver a Dúvida humana debruçada
Sobre a angústia infinita de si mesma!

AUGUSTO DOS ANJOS
Engenho do Pau D’Arco/PB (1884 – 1914)

O morcego


Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

AUTA DE SOUZA
Macaíba/RN (1876-1901)

O beija-flor


Acostumei-me a vê-lo todo o dia
De manhãzinha, alegre e prazenteiro,
Beijando as brancas flores de um canteiro
No meu jardim — a pátria da ambrosia.

Pequeno e lindo, só me parecia
Que era da noite o sonho derradeiro...
Vinha trazer às rosas o primeiro
Beijo do Sol, nessa manhã tão fria!

Um dia foi-se e não voltou... Mas quando
A suspirar me ponho, contemplando,
Sombria e triste, o meu jardim risonho...

Digo, a pensar no tempo já passado:
Talvez, ó coração amargurado,
Aquele beija-flor fosse o teu sonho!

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira do Mato Dentro/MG (1902-1987)

Soneto do pássaro


Amar um passarinho é coisa louca.
Gira livre na longa azul gaiola
que o peito me constringe, enquanto a pouca
liberdade de amar logo se evola.

É amor meação? pecúlio? esmola?
Uma necessidade urgente e rouca
de no amor nos amarmos se desola
em cada beijo que não sai da boca.

O passarinho baixa a nosso alcance,
e na queda submissa um vôo segue,
e prossegue sem asas, pura ausência,

outro romance ocluso no romance.
Por mais que amor transite ou que se negue,
é canto (não é ave) sua essência.

CLÁUDIO MANUEL DA COSTA
Mariana/MG (1729-1789)

Passarinho


As moles asas a bater começa
Entre as palhas o tenro passarinho,
E largos dias por deixar o ninho,
Se cansa, se fadiga, se arremessa.

Um impulso, outro impulso, em vão se apressa,
Já se firma no pé, já no biquinho,
Nas folhas se detém, passa ao raminho,
Té que a pena se esforce, e se endureça.

Quando enfim é capaz de movimento,
Deixa os arbustos, vaga pelos ares,
E sobre as altas faias toma assento.

Estes sejam, Salício, os exemplares
Em que a vossa virtude anime o alento,
Porque um dia da Fama honre os altares.

EMILIANO PERNETA
(Emiliano Daví Perneta)
Sítio dos Pinhais/PR (1866 – 1921)

Gata

 

Da brancura da pele e no gesto macio,
A carícia tu tens e a moleza de gata:
O teu andar sutil é doce como a pata
Desse animal pisando um tapete sombrio...

Tens uma morbidez lânguida de sonata.
Teu sorriso é polido, é fino e é muito frio...
Se as tuas mãos acaso eu beijo e acaricio,
Sinto uma sensação esquisita, que mata.

Quando eu tomo esse teu cabelo ondeado e louro,
E o cheiro, e palpo o teu corpo branco e felino,
Como te torces, pois, minha serpente de ouro!

O teu corpo se enrola em meu corpo amoroso,
E o teu beijo me aquece e vibra como um hino,
Animal de voz rouca e gesto silencioso!

GILKA MACHADO
(Gilka da Costa de Melo Machado)
Rio de Janeiro/RJ (1893 – 1980)

Felina

(à minha gata)
 


Minha animada boa de veludo,
minha serpente de frouxel, estranha,
com que interesse as volições te estudo!
com que amor minha vista te acompanha!

Tens muito de mulher, nesse teu mudo,
lírico ideal que a vida te emaranha,
pois meu ser interior vejo desnudo
se te investigo a mansuetude e a sanha.

Expões, a um tempo langorosa e arisca,
sutilezas à mão que te acarinha,
garras à mão que a te magoar se arrisca.

Guardas, ó tato corporificado!
a alta ternura e a cólera daninha
do meu amor que exige ser amado!

GLAUCO MATTOSO
(Pedro José Ferreira da Silva)
São Paulo/SP (1951)

Conto  doméstico


Estava o cachorrão sozinho e triste,
trancado na casinha, come-e-dorme.
Seu único brinquedo, aquele enorme,
surrado pé de tênis, que resiste.

Já vítima das línguas e do chiste,
a idade faz que quase se conforme.
Seus donos usam botas e uniforme.
Não há rota de fuga que os despiste.

Até que um lindo e tímido gatinho,
em busca de refúgio, lá se deita.
Naquele aperto, pisa-lhe o focinho.

O cão acorda, estranha, mas aceita.
Em vez de defender, divide o ninho,
e agora a dupla vive satisfeita...

JOSÉ FELDMAN
São Paulo/SP (1954) Radicado em Maringá/PR

O Corvo


Porque voas tão macambúzio,
Mergulhado na embriaguez
de teus sonhos?
Porque pousas no alto da árvore,
Olhando por sobre o mundo
Em busca de sonhos vãos?

Voas…
Voas como um presságio de mau agouro,
Alçando-se acima das tentações,
Abandonando sentimentos.
Um peregrino perdido
Em meio ao universo de ilusões.

Asas negras por sobre cabeças,
O espectro de um espírito solitário
Mergulhado no lago do desamor.

Oh! Grasnar de melancolia,
Entregue ao vento de incertezas
Desfazendo as nuvens do existir.

Vem!!!…
Vem, meu pequenino pássaro preto,
Acolha-se entre meus braços.
Seja este momento de tristeza,
Funda-se em meu angustiante ser -
Vem!!!
Peregrino da solidão.

Voa!!!
Voa por sobre o mundo.
Voa!!!
Voa, pois não estás só
Eu voo junto de ti.
Voa!!!!
Ave da infelicidade
Pois não és apenas um pássaro,
És um eu!…

J. G. DE ARAÚJO JORGE
José Guilherme de Araújo Jorge
Tarauacá/AC (1914 - 1987)

Gata angorá


Sobre a almofada rica e em veludo estofada
Caprichosa e indolente como uma odalisca
Ela estira o seu corpo de pelúcia, — e risca
Um estranho bordado ao centro da almofada...

Mal eu chego, ela vem... (nunca a encontrei arisca)
— Sempre esse ar de amorosa. A cauda abandonada
Como uma pluma solta, pelo chão deixada,
E o olhar, feito uma brasa acesa que faísca!

Mal eu chego, e ela vem... lânguida, preguiçosa,
Roçar pelos meus pés a pelúcia de prata
Como a implorar carícias, tímida e medrosa...

E tem tal expressão, um tal jeito qualquer,
— Que às vezes, chego mesmo a pensar que essa gata
Traz no corpo escondida uma alma de mulher!

LUÍS DELFINO
(Luís Delfino dos Santos)
Florianópolis/SC (1834 – 1910)

Gaivotas

Do crespo mar azul brancas gaivotas
Voam — de leite e neve o céu manchando,
E vão abrindo às regiões remotas
As asas, em silêncio, à tarde, e em bando.

Depois se perdem pelo espaço ignotas,
O ninho das estrelas procurando:
Cerras os cílios, com teu dedo notas
Que elas vêm outra vez o azul furando.

Uma na vaga buliçosa dorme,
Uma revoa em cima, outra mais baixo...
E ronca o abismo do oceano enorme...

Cai o sol, como já queimado facho...
Do lado oposto espia a noite informe...
Tu me perguntas se isto é belo?... e eu acho...

RAIMUNDO CORREIA
(Raimundo da Mota Azevedo Correia)
Baía de Mogúncia/MA (1859 – 1911)

As pombas


Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sangüínea e fresca a madrugada...

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...

Nilto Maciel (Bééé)

A charretezinha subia e descia a rua, o carneirinho a berrar. Animal altivo, sadio, de pelo branco. Veículo pintado, envernizado, recoberto de frisos coloridos, bancos bem forrados. Verdadeiro carro de príncipes e princesas. O carneirinho berrava bééé. Jairo, na boleia, olhava loiro e feliz para os curiosos. À frente, puxando o cabresto, um homem, provavelmente o pai. Outros garotos, nas janelas e portas das casas, contemplavam o principezinho e sua carruagem real. O animal berrava, talvez para anunciar a passagem do menino rico.

Pela cidade não se viam carros, a não ser, de vez em quando, o jipe do prefeito, um caminhão que chegava num dia e saía no outro, o ônibus que vinha da capital duas ou três vezes por semana.

A quem pertencia a pequena charrete? Ao pai de Jairo? Teria adquirido o veículo apenas para divertir os filhos? Ou cobrava alguns réis pelos passeios? Talvez tenha ele mesmo construído o carro e adestrado os animais. Essas e outras questões faziam parte da conversa dos meninos.

Com o passar dos dias, meses e anos, deixaram de ver a charretezinha e nem se lembravam mais dela, e muito menos do carneirinho a berrar. No ginásio Jairo só falava de meninas e diversões. Não gostava das aulas e muito menos dos padres-professores. Andava a rir à toa, despreocupado de livros e lições, a perambular pelas ruas, a fumar escondido do pai. Pedia auxílio aos colegas nas aulas de português, matemática, inglês, geografia, de tudo. Não sabia nada.

Mais tarde conheceu o álcool, deixou de estudar, não trabalhava, vivia de favores de parentes. Até ser colhido por um veículo numa rua da capital. Andava bêbado, como todo dia. Tentou atravessar a rua e, passos lentos ou trôpegos, não alcançou o outro lado. Morte instantânea, o corpo esfacelado, moído, a sangrar muito. Longe, muito longe dali, um carneirinho berrava bééé.

Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Clevane Pessoa (Diamantes de Trovas)


A arte é a essência plástica
a cada coisa do mundo
— a criatividade é elástica
faz o que é raso, profundo

A empregada, despedida,
Sai triste, trouxa na mão...
Leva no ventre, uma vida
Que é do filho do patrão...

A gestante, carinhosa,
"leva" o bebê, comovida...
Sensação maravilhosa:
Guarda, no ventre, UMA VIDA...

Ajudando a toda gente
amando sem distinção
é que ganha o presente
de ter céu com pés no chão...

A minha alma, em plenitude,
Cheia de luminosidade
Faz-se bela, na quietude
Do amor que se faz saudade...

Ao ver as meias, coitado
o vovô pensa:-"Já sei!
Essas, dei no ano passado
no retrasado, as ganhei..."

As duas rosas do teu rosto
De róseas, brancas ficaram,
Para mostrar teu desgosto
— Já que os olhos não choraram...

As notas interpretando
Com os pés, pernas, mãos, braços,
A moça que está bailando
Vai "escrevendo" com seus passos...

A solidão que me embala
Canta-me tristes cantigas...
Será que o silêncio fala?
Serão as sombras, amigas?

A verdade é mole ou dura
dependendo da impressão
— ou é Bem que assim perdura
ou demonstra a escuridão

Ciúme é flor que não se cheira
Por mera premonição,
— Ainda assim, erva traiçoeira
envenena o coração

Com lucidez peculiar
Quantos "doidos" são mais certos
Que os que pensam acertar
Julgando-se muito espertos...

Deus, que escuta toda prece
Atende meu jardineiro
A roseira floresce
E há gerânios, o ano inteiro...

É minha mãe quem me inspira
Os versos do coração:
De seu amor, sonora lira,
Eu tiro qualquer canção...

Em vão espera um brinquedo
um menininho de rua...
Risca no chão, com um dedo,
um foguete e vai prá lua…

Gatos à noite são bardos
E miam versos para a lua
Dizem que então ficam pardos
Parecem da cor da rua…

Há muito "louco" no hospício
Fazendo tanto escarcéu
Por ter passe vitalício
Nos auditórios do Céu...

Impossível conhecer
Mesmo o presente obscuro:
Tudo pode acontecer
Sem fantasiar o futuro

Meu canto é de Amor e Paz
— Sou humilde passarinho
Que trovas, num leva-e-traz
Sai espalhando, de mansinho...

Meu mar de amor se renova...
— Será que vou conseguir
Na gota de orvalho — A TROVA —
Pôr meu jeito de o sentir?...

Minha rua, que se aclara
Com a luz do sol, nascente,
À tardinha se prepara
E vai dormir com o poente...

Nada é somente difícil
Tudo, mesmo, pode ser.
— O impossível só é incrível
Até quando acontecer...

Não há mulher que não minta
Nos diz um velho refrão...
— Tem gordura sob a cinta
E diz "sim" quando diz "não"...

Nossas máscaras do dia
nem sempre nos fazem mal
a esconder dor ou alegria
de um eterno carnaval...

Nos teus olhos, a luz que arde
Faz meu espírito brilhar...
Fui entendê-los tão tarde!
Agora não posso voltar...

Num mundo de faz-de-conta
O insano, bem contente
Parece dançar na ponta
De uma lança incandescente

Olhando fotos antigas
Tenho saudades de mim:
— Hoje, maduras espigas
Ontem, um frágil jardim...

O peru tomou cachaça
para ficar bem macio...
Borracho, quebrou a vidraça
e fugiu, quente no frio…

Peço a Deus que me transporte
Para uma outra dimensão...
— Aqui, despida da sorte
Sigo só, na multidão...

Qual um cavaleiro errante
Condenado a não parar
O meu sonho é bom viajante
Corre o mundo sem cessar...

Sobe o morro o caixãozinho
Levando o recém-nascido
Morreu sem nenhum carinho
Volta ao céu, sem ter vivido...

Tanta criancinha faminta
estende a mão sem lograr
tocar alguém que não sinta
Asco, sem sequer a olhar...

Veja o riacho, que andando,
Deseja chegar ao mar...
Coitado! Ao mar chegando
Nunca mais há de voltar!

Joaquim Manuel de Macedo (A Luneta Mágica)

Trecho:

Chamo-me Simplício e tenho condições naturais ainda mais tristes do que o meu nome.
Nasci sob a influência de uma estrela maligna, nasci marcado com o selo do infortúnio.
Sou míope; pior do que isso, duplamente míope, míope física e moralmente.
Miopia física: — a duas polegadas de distância dos olhos não distingo um girassol de uma violeta.
E por isso ando na cidade e não vejo as casas.
Miopia moral: — sou sempre escravo das idéias dos outros; porque nunca pude ajustar duas idéias minhas.
E por isso quando vou às galerias da câmara temporária ou do senado, sou consecutiva e decididamente do parecer de todos os oradores que falam pró e contra a matéria em discussão.
Se ao menos eu não tivesse consciência dessa minha miopia moral!... mas a convicção profunda de infortúnio tão grande é a única luz que brilha sem nuvens no meu espírito.
Disse-me um negociante meu amigo que por essa luz da consciência represento eu a antítese de não poucos varões assinalados que não têm dez por cento de capital da inteligência que ostentam, e com que negociam na praça das coisas públicas.
- Mas esses varões não quebram, negociando assim?... perguntei-lhe.
— Qual! são as coisas públicas que andam ou se mostram quebradas.
— E eles?...
— Continuam sempre a negociar com o crédito dos tolos, e sempre se apresentam como boas firmas.
Na cândida inocência da minha miopia moral não pude entender se havia simplicidade ou malícia nas palavras do meu amigo.

In: MACEDO, Joaquim Manuel de. A Luneta Mágica. São Paulo: Saraiva, 1961. p. 01-02.


 Enredo:

No romance A Luneta Mágica, Macedo nos conta a história de Simplício, um rapaz que padece de um mal terrível: uma dupla miopia.

Miopia física: que o impede de ver ou distinguir qualquer coisa a duas polegadas de distância dos seus olhos.
 
Miopia moral: o impede de entender ou distinguir as ideias alheias ou de ajustar suas próprias idéias. (trata-se de um parvo, ingênuo...)

Simplício ficou órfão aos 12 anos de idade e, desde então, vive com o mano Américo, que administra sua herança, com a devota tia Domingas e com a prima Anica. Certo dia, apesar de sua miopia, foi convidado para fazer parte de um júri. Lá conhece o Sr. Nunes que lhe fala do Reis, um gravador de vidros, capaz de resolver seu problema de miopia.

Depois de muitas tentativas, de lentes do mais alto grau, Reis reconhece que não pode ajudar Simplício, sua miopia é muito forte. Condoído, no entanto, com a dor do rapaz fala-lhe do Armênio - um artista de habilidades mágicas trazido da Europa pelo próprio Reis para trabalhar em sua oficina.

O desejo de Simplício de ver era tão grande que ele acaba aceitando ir visitar o Armênio. Este promete-lhe uma luneta mágica, mas avisa-lhe também que em pouco tempo o rapaz vai ter a convicção de que é melhor ser cego do que ver demais.

Assim, depois de pensar muito sobre tudo o que o Armênio havia lhe falado e consultar sua família, Simplício vai ao encontro do mágico no horário marcado, a meia-noite. Lá presencia o ritual de construção da luneta. Depois de muitas luzes, fogos e palavras mágicas, finalmente o mago entrega-lhe o objeto mágico, mas não antes de lhe avisar sobre os poderes e perigos da luneta: Simplício não deveria fixá-la mais de 3 minutos sobre qualquer objeto ou ser humano, pois assim passaria a ter a visão do mal [vingança da salamandra presa no vidro] e, além disso, não deveria também fixá-la em nada além de 13 minutos, pois esta seria a visão do futuro e, neste caso, para própria proteção do rapaz, a luneta se quebraria.
 
Ansioso com a possibilidade de enxergar, Simplício volta para casa e espera o amanhecer para experimentar a luneta. Maravilhado com a visão da aurora, acredita que será impossível ver qualquer coisa má nesta cena e decide, portanto, fixar sua luneta por mais de 3 minutos. De repente, fica horrorizado com o que vê: '-Meu Deus!...como a aurora é enganadora e falsa!...e como o sol é feio, terrível e mau!!!'. Concorda com o Armênio e diz que basta a visão da superfície e das aparências, a felicidade do homem está nas ilusões dos sentidos, nos enganos da alma, quer ser feliz e, portanto, não fará mais uso da visão do mal. No entanto, nosso jovem ingênuo, acaba por não resistir à visão do mal e começa a fixar sua luneta sobre tudo e todos.

A visão do mal permite-lhe ver a 'verdade' sobre: prima Anica, moça fria, sem sentimentos, mulher-cálculo, incapaz de amizade, interessada em casar Américo ou com Simplício por causa da fortuna; mano Américo, ambicioso avarento, rouba a família na administração dos bens; tia Domingas, invejosa, fofoqueira, sovina, deseja o casamento da filha com Américo pela fortuna,...

Estas descobertas deixam Simplício horrorizado e decepcionado fazendo-o decidir procurar um advogado para administrar seus bens e uma esposa para formar uma nova família. Procura o Nunes para que este o ajude com seus planos. No entanto, ao fixar sua luneta sobre o velho, descobre um farsante e interesseiro.
 
Passa-se um mês e ele só encontra decepções, ninguém em quem confiar, nada em que acreditar. Os amigos são todos interesseiros, exploradores, as moças são todas falsas e impuras.

De repente, a cidade inteira comenta sua loucura e ele passa a ser perseguido e execrado em todos os locais. A família decide que ele está doente, tranca-o em casa e quer destruir sua luneta. A visita de um médico, no entanto, impede que ele seja declarado louco. Todos concordam que ele foi iludido pela magia e que com amor e carinho conseguirá superar tudo.

Ainda assim, Simplício não entrega a luneta e sabe que, embora não seja considerado louco será visto como um maníaco, portanto não há salvação. Decide, então, que a única coisa que poderá salvá-lo será a visão do futuro. Ele quer saber qual o seu futuro e por isso decide fixar a luneta nele mesmo [no espelho] por mais de 13 minutos. Entretanto, antes de chegar na visão do futuro, chega à visão do mal e se descobre um infame, caluniador, um inimigo da família, um homem capaz de maldizer todas as criações de Deus, um maldito...Antes de chegar na visão do futuro, a luneta quebra-se em suas mãos.

De novo, Simplício acha-se na escuridão, arrependido de ultrapassar a visão da superfície e das aparências, descobre-se, agora, sem nada, sem qualquer possibilidade de ver.

Depois de 8 dias enclausurado em casa, decide que já pode sair, as pessoas não lembrarão de mais nada - 'Não há atividade de opinião que resista à extensão, à eternidade de oito dias na nossa capital'.

Durante o passeio, reencontra o Reis que lhe conta sobre as fofocas do Nunes e o convence a, novamente, procurar o Armênio. Assim, fica combinado um novo encontro, a meia-noite, no gabinete do mágico.

Mais uma vez Simplício presencia todo o ritual de construção da nova luneta e ouve os alertas do Armênio sobre o uso correto da lente. Dessa vez, se fixada por mais de três minutos, ela lhe dará a visão do bem. Ao voltar para casa, esperançoso e feliz com a possibilidade de ver novamente, Simplício decide que escreverá a todos os jornais e falará sobre as maravilhas de que o Armênio é capaz. Ele não entende a descrença do Reis nas potencialidades mágicas. Acredita que o Armênio poderá ajudar muitas outras pessoas e que, portanto, não faz sentido manter tudo isso em segredo.

Depois de se questionar sobre que mal poderia haver na visão do bem, mais uma vez Simplício desobedece o mágico e fixa sua luneta por mais de três minutos. Começa por enxergar a prima Anica, um anjo de inocência e de candura; tia Domingas, a devoção e a piedade personalizada; o mano Américo, a pura dedicação fraternal.

'-Eu tinha a febre da felicidade. O mundo e a vida me festejavam o coração; eu desejava rir, divertir-me, folgar'.
 
Maravilhado com a visão do bem, apaixona-se pela prima Anica e por mais trinta e tantas outras moças, inclusive por Esmeralda, uma conhecida prostituta do 'Alcazar Lírico'. Reconhece a bondade e a pureza de coração em todos que dele se aproximam, ajuda a todos, paga jantares, dá esmolas, contribui para fundos de caridades através dos 'amigos', que são cada vez em maior número. Reencontra o Nunes, visita-lhe a família, apaixona-se por sua filha, salda suas dívidas. Enfim, passa a ser explorado e ridicularizado por todos sem perceber. Quando alguns tentam lhe avisar sobre o que está acontecendo, fica confuso, pois descobre a verdade na boca destas almas boas, mas não entende como isso pode ser possível. Mais uma vez desesperado e angustiado, descobre que a visão do bem é um martírio.

Com a alma atormentada, presencia um funeral e percebe a beleza, a felicidade da morte. Decide, portanto, que o melhor que tem a fazer é morrer. Como não tem armas ou veneno, nem meios para consegui-los, sobe até o alto do Corcovado para se jogar de lá de cima. Antes, porém, pensa uma vez na visão do futuro, dá uma última olhada através da luneta mágica para cidade, a capital do Império do Brasil. Passa-se os treze minutos e a luneta se quebra em suas mãos. Mais uma vez nas trevas, Simplício não hesita e se joga do para peito...Duas mãos possantes, no entanto, suspenderam-lhe pelas orelhas - era o Armênio.

Depois de conversarem sobre tudo o que havia acontecido, o mágico fala-lhe sobre as lições das lunetas:
 
'Exagerar é mentir.' 'No mundo há o bem e o mal, como há na vida o prazer e a dor.'

'Mas o bem é o bem, o mal é o mal como são e não podem deixar de ser para humanidade que é imperfeita: perfeito bem, absoluto mal não há para ela.'

'A imperfeição e a contingência da humanidade são as únicas idéias que podem fundamentar um juízo certo sobre todos os homens...Cada qual é o que é e cada qual tem as suas qualidades, e seus defeitos.'

Depois desta conversa, o Armênio decidiu dar-lhe uma última luneta mágica - A Luneta do Bom Senso. Desta vez, no entanto, Reis faz Simplício prometer segredo sobre o assunto.

Fonte:
Jayro Luna.

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 6


Marcelo Spalding (Tipos de crônica)

   
A crônica é um gênero híbrido do jornalismo e da literatura. Tal qual os gêneros retóricos, seu objetivo principal é convencer, argumentar, mas a forma aproxima-se da literatura. Uma crônica bem escrita é aquele com literariedade, gostosa de ler, com ritmo figuras de linguagem, cuidado com cada palavra, cada construção.

    Claro que há crônicas mais próximas da retórica, do jornalismo, cujo tipo textual predominante é a dissertação. Por vezes confunde-se com o artigo de opinião, tal a proximidade desse. Vejamos um caso:

    A obra do meu pai
    Paulo Sant` Ana


    Vou abordar este tema com alguns tons desagradáveis pela única intenção de inspirar os pais a serem cada vez mais amorosos com seus filhos. E também por que esta abordagem vai me servir de útil autoterapia. Ocorre que, jantando com um amigo na semana passada, ele insistiu em relatar as violências de seu pai, na época e que meu amigo tinha entre 10 e 15 anos.

    Um dia, com 11 anos, achou uma faca na rua. Levou-a para casa e a pôs na gaveta de seu pixixê. Seu pai achou a faca e interrogou-o. Ele disse ao pai que tinha achado a faca nas imediações de uma praça. O pai não se conformou e passou a afirmar que o filho tinha furtado a faca. O pai, então, surrou-o impiedosamente, surrou-o com um porrete, deixou lanhos e hematomas em seus braços e pernas.

    Era de se ver o olhar de meu amigo contando-me essa surra que levou de seu pai, apenas uma por entre tantas outras que sofreu durante toda a infância. Eu ouvia meu amigo e ia configurando a minha mesma dor. Meu pai, quando eu era criança, só parava de desferir fortes bofetadas em meu rosto quando meu nariz sangrava.

    Eu amava meu pai, eu ainda amo meu pai, mas ele foi mau e sádico comigo. E, a exemplo do pai do meu amigo, surrava-me na maioria das vezes injustamente. Ele me surrava por prazer de me espancar. Ele se realizava tendo-me, menininho, à mercê de sua tara sádica.

    Eu morava num quarto dos fundos e ali vivia todos os dias o papel de um detento que invariavelmente era espancado pelo seu carcereiro. Todos os dias. Isso é o que meu pai poi pra mim na minha infância: meu carcereiro implacável.

    Foi tão grande o trauma que meu pai me causou com essas tremendas agressões, que por vezes, já agora na minha idade, talvez no fim da minha vida, por vezes sonho com meu pai me espancando ou então com cenas do meu medo,à espera de que dali a pouco meu pai chegasse e desse início àquelas sessões intermináveis de tortura.

    O que meu pai conseguiu com sua sanha, tenho em nítido: tornou-me inseguro e pessimista, dano monumental que se encravou na minha conduta em toda minha vida.

    Não tenho como absolvê-lo, embora estranhamente eu ainda o ame.

    Ele foi meu carrasco e eu fui sua vítima e um herói, porque consegui ainda reunir forças, depois que ele me estraçalhou, para enfrentar as duras lidas da vida.

    Estou escrevendo sobre uma grave queixa minha. Apenas pela esperança de que isso possa evitar que pais repitam tal massacre com seus filhos. E o interessante é que meu pai nos contava que meu avô, o pai dele, chamava a ele e seus irmãos e dizia para que fossem buscar o relho dependurado na parede da sala para serem espancados.

    Deve ser grande a dor e o medo de um filho que vai noutra peça da casa buscar o relho e alcançá-lo para o pai espancá-lo. E interessante também é que talvez por isso nunca, em toda minha vida, espanquei ou sequer dei um tapa num dos meus três filhos.



    Você deve ter reparado que há um longo trecho narrativo, inclusive com a particularização e a construção de cenas, próprias da criação literária. A narrativa, porém, está em função da argumentação do texto, da tese de que não se deve dar sequer uma palmada nos filhos. Por isso não sabemos o que aconteceu depois com pai e filho, não é esse o objetivo da crônica.

    Em outros casos, a crônica é narrativa, tal qual um conto. `A bola`, Luis Fernando Verissimo, aparentemente é apenas a descrição de uma situação cotidiana, mastem por trás uma visão de mundo do autor, fica subjacente à singela narrativa o saudosismo, a crítica ao excesso tecnológico e um certo lamento pelo distanciamento das gerações decorrente desse avanço da tecnologia.

    Outra é a tipologia de `Eu sei, mas não devia`, bela crônica de Marina Colasanti. O tipo textual predominante é a descrição, ficando toda a carga retórica da crônica na expressão "mas não devia". A repetição sintática e o ritmo do texto o aproximam de um poema, observe.

Eu sei, mas não devia
Marina Colasanti


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Fontes:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4039/tipos-de-cronica
COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia.RJ: Editora Rocco, 1996.

Augusto dos Anjos (Santuário de Poesias) 5

    ETERNA MÁGOA

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo; o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

QUEIXAS NOTURNAS

Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh’alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.

As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!

A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!

E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação...
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!

Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.

E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!

É natural que esse Hércules se esforça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!

Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!

Que dentro de minh’alma americana
Não mais palpite o coração — esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana!

Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!

Melancolia! Estende-me a tu’asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!

    INSÔNIA

Noite. Da mágoa o espírito noctâmbulo
Passou decerto por aqui chorando!
Assim, em mágoa, eu também vou passando
Sonâmbulo... sonâmbulo... sonâmbulo...

Que voz é esta que a gemer concentro
No meu ouvido e que do meu ouvido
Como um bemol e como um sustenido
Rola impetuosa por meu peito adentro?!

— Por que é que este gemido me acompanha?!
Mas dos meus olhos no sombrio palco
Súbito surge como um catafalco
Uma cidade ao mapa-mundi estranha.

A dispersão dos sonhos vagos reúno.
Desta cidade pelas ruas erra
A procissão dos Mártires da Terra
Desde os Cristãos até Giordano Bruno!

Vejo diante de mim Santa Francisca
Que com o cilício as tentações suplanta,
E invejo o sofrimento desta Santa,
Em cujo olhar o Vício não faísca!

Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse,
Depois de embebedado deste vinho,
Sair da vida puro como o arminho
Que os cabelos dos velhos embranquece!

Por que cumpri o universal ditame!?
Pois se eu sabia onde morava o Vício,
Por que não evitei o precipício
Estrangulando minha carne infame?!

Até que dia o intoxicado aroma
Das paixões torpes sorverei contente?
E os dias correrão eternamente?!
E eu nunca sairei desta Sodoma?!

À proporção que a minha insônia aumenta
Hieróglifos e esfinges interrogo...
Mas, triunfalmente, nos céus altos, logo
Toda a alvorada esplêndida se ostenta.

Vagueio pela Noite decaída...
No espaço a luz de Aldebarã e de Árgus
Vai projetando sobre os campos largos
O derradeiro fósforo da Vida.

O Sol, equilibrando-se na esfera,
Restitui-me a pureza da hematose
E então uma interior metamorfose
Nas minhas arcas cerebrais se opera.

O odor da margarida e da begônia
Subitamente me penetra o olfato...
Aqui, neste silencio e neste mato,
Respira com vontade a alma campônia!

Grita a satisfação na alma dos bichos.
Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.
As árvores, as flores, os corimbos
Recordam santos nos seus próprios nichos.

Com o olhar a verde periferia abarco.
Estou alegre. Agora, por exemplo,
Cercado destas árvores, contemplo
As maravilhas reais do meu Pau d’Arco.

Cedo virá, porém, o funerário,
Atro dragão da escura noite, hedionda,
Em que o Tédio, batendo na alma, estronda
Como um grande trovão extraordinário.

Outra vez serei pábulo do susto
E terei outra vez de, em mágoa imerso,
Sacrificar-me por amor do Verso
No meu eterno leito de Procusto!

Fonte:
Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias.

Machado de Assis (D. Jucunda)

Capítulo I

Ninguém, quando D. Jucunda aparece no Imperial Teatro de D. Pedro II, em algum baile, em casa, ou na rua, ninguém lhe dá mais de trinta e quatro anos. A verdade, porém, é que orça pelos quarenta e cinco; nasceu em 1843. A natureza tem assim os seus mimosos. Deixa correr o tempo, filha minha, disse a boa madre eterna; eu cá estou com as mãos para te amparar. Quando te enfastiares da vida, unhar-te-ei a cara, polvilhar-te-ei os cabelos, e darás um pulo dos trinta e quatro aos sessenta, entre um cotilhão e o almoço.

É provinciana. Chegou aqui no começo de 1860, com a madrinha, — grande senhora de engenho, e um sobrinho desta, que era deputado. Foi o sobrinho quem propôs à tia esta viagem, mas foi a afilhada quem a efetuou, tão-somente com fazer descair os olhos desconsolados.

— Não, não estou mais para essas folias do mar. Já vi o Rio de Janeiro... Você que acha, Cundinha? perguntou D. Maria do Carmo.

— Eu gostava de ir, dindinha.

D. Maria do Carmo ainda quis resistir, mas não pôde; a afilhada ocupava em seu coração a alcova da filha que perdera em 1857. Viviam no engenho desde 1858. O pai de Jucunda, barbeiro de ofício, residia na vila, onde fora vereador e juiz de paz; quando a ilustre comadre lhe pediu a filha, não hesitou um instante; consentiu entregar-lha para benefício de todos. Ficou com a outra filha, Raimunda.

Jucunda e Raimunda eram gêmeas, circunstância que sugeriu ao pai a ideia de lhes dar nomes consoantes. Em criança, a beleza natural supria nelas qualquer outro alinho; andavam na loja e pela vizinhança, em camisa rota, pé descalço, muito enlameadas às vezes, mas sempre lindas. Aos doze anos perderam a mãe. Já então as duas irmãs não eram tão iguais. A beleza de Jucunda acentuava-se, ia caminhando para a perfeição: a de Raimunda, ao contrário, parava e murchava; as feições iam descambando na banalidade e no inexpressivo. O talhe da primeira tinha outro garbo, e as mãos, tão pequenas como as da irmã, eram macias — talvez, porque escolhiam ofícios menos ásperos.

Passando ao engenho da madrinha, Jucunda não sentiu a diferença de uma a outra fortuna. Não se admirou de nada, nem das paredes do quarto, nem dos móveis antigos, nem das ricas toalhas de crivo, nem das fronhas de renda. Não estranhou as mucamas (que nunca teve), nem as suas atitudes obedientes; aprendeu logo a linguagem do mando. Cavalos, redes, jóias, sedas, tudo o que a madrinha lhe foi dando pelo tempo adiante, tudo recebeu, menos como obséquios de hospedagem que como restituição. Não expressava desejo que se lhe não cumprisse. Quis aprender piano, teve piano e mestre; quis francês, teve francês. Qualquer que fosse o preço das cousas, D. Maria do Carmo não lhe recusava nada.

A diferença de situação entre Jucunda e o resto da família era agravada pelo contraste moral. Raimunda e o pai acomodavam-se, sem esforço, às condições da vida precária e rude; fenômeno que Jucunda atribuía, instintivamente à índole inferior de ambos. Pai e irmã, entretanto, achavam natural que a outra subisse a tais alturas, com esta particularidade que o pai tirava orgulho da elevação da filha, enquanto que Raimunda nem conhecia esse sentimento; deixava-se estar na humildade ignorante. De gêmeas que eram, e criadas juntas, sentiam-se agora filhas do mesmo pai — um grande senhor de engenho, por exemplo — que houvera Raimunda em alguma agregada da casa.

Leitor, não há dificuldade em explicar essas coisas. São desacordos possíveis entre a pessoa e o meio, que os acontecimentos retificam, ou deixam subsistir até que os dois se acomodem. Há também naturezas rebeldes à elevação da fortuna. Vi atribuir à rainha Cristina esta explosão de cólera contra o famoso Espartero: "Fiz-te duque, fiz-te grande de Espanha; nunca te pude fazer fidalgo". Não respondo pela veracidade da anedota; afirmo só que a bela Jucunda nunca poderia ouvir à madrinha alguma cousa que com isso se parecesse.

CAPÍTULO II

— Sabe quem vai casar? perguntou Jucunda à madrinha, depois de lhe beijar a mão.

Na véspera, estando a calçar as luvas para ir ao Teatro Provisório, recebera cartas do pai e da irmã, deixou-as no toucador, para ler quando voltasse. Mas voltou tarde, e com tal sono, que esqueceu as cartas. Agora de manhã, ao sair do banho, vestida para o almoço, é que as pôde ler. Esperava que fossem como de costume, triviais e queixosas. Triviais seriam; mas havia a novidade do casamento da irmã com um alferes, chamado Getulino.

— Getulino de quê? perguntou D. Maria do Carmo.

— Getulino... Não me lembro; parece que é Amarante, — ou Cavalcanti. Não. Cavalcanti não é; parece que é mesmo Amarante. Logo vejo. Não tenho ideia de semelhante alferes.

Há de ser gente nova.

— Quatro anos! murmurou a madrinha. Se eu era capaz de imaginar que ficaria aqui tanto tempo fora de minha casa! — Mas a senhora está dentro de sua casa, replicou a afilhada dando-lhe um beijo.

D. Maria do Carmo sorriu. A casa era um velho palacete restaurado, no centro de uma grande chácara, bairro do Engenho Velho. D. Maria do Carmo tinha querido voltar à província, no prazo marcado novembro de 1860; mas a afilhada obteve a estação de Petrópolis; iriam em março de 1861. Março chegou, foi-se embora, e voltou ainda duas vezes, sem que elas abalassem daqui; estamos agora em agosto de 1863. Jucunda tem vinte anos.

Ao almoço, falaram do espetáculo da véspera e das pessoas que viram no teatro.

Jucunda conhecia já a principal gente do Rio; a madrinha fê-la recebida, as relações multiplicaram-se; ela ia observando e assimilando. Bela e graciosa, vestindo-se bem e caro, ávida de crescer, não lhe foi difícil ganhar amigas e atrair pretendentes. Era das primeiras em todas as festas. Talvez o eco chegasse à vila natal — ou foi simples adivinhação de malévolo, que entendeu colar isto uma noite, nas paredes da casa do barbeiro: Nhã Cundinha Já rainha Nhã Mundinha Na cozinha.

O pai arrancou, indignado, o papel; mas a notícia correu depressa a vila toda, que era pequena, e foi o entretenimento de muitos dias. A vida é curta.

Jucunda, acabado o almoço, disse à madrinha que desejava mandar algumas coisas para o enxoval da irmã, e, às duas horas, saíram de casa. Já na varanda — o coupé embaixo, o lacaio de pé, desbarretado, com a mão no fecho da portinhola —, D. Maria do Carmo notou que a afilhada parecia absorta; perguntou-lhe o que era.

— Nada, respondeu Jucunda, voltando a si.

Desceram; no último degrau, perguntou Jucunda se a madrinha é que mandara pôr as mulas.

— Eu não; foram eles mesmos. Querias antes os cavalos? — O dia está pedindo os cavalos pretos; mas agora é tarde, vamos.

Entraram, e o coupé, tirado pela bela parelha de mulas gordas e fortes, dirigiu-se para o Largo de S. Francisco de Paula. Não disseram nada durante os primeiros minutos; D.

Maria é que interrompeu o silêncio, perguntando o nome do alferes.

— Não é Amarante, não, senhora, nem Cavalcanti; chama-se Getulino Damião Gonçalves, respondeu a moça.

— Não conheço.

Jucunda tomou a mergulhar em si mesma. Um dos seus prazeres diletos, quando ia de carro, era ver a outra gente a pé, e gozar as admirações de relance. Nem esse a atraía agora. Talvez o alferes lhe fizesse lembrar algum general; verdade é que só os conhecia casados. Pode ser também que esse alferes, destinado a dar-lhe sobrinhos cabos-deesquadra, viesse lançar-lhe alguma sombra aborrecida no céu brilhante e azul. As ideias passam tão rápidas e embrulhadas, que é difícil colhê-las, e pô-las em ordem; mas, enfim, se alguém supuser que ela cuidava também em certo homem, esse não andará errado.

Era candidato recente o doutor Maia, que voltara da Europa, meses antes, para entrar na posse da herança da mãe. Com a do pai, ia a mais de seiscentos contos. A questão do dinheiro era aqui um tanto secundária, porque Jucunda tinha certa a herança da madrinha; mas não se há de mandar embora um homem, só porque possui seiscentos contos, não lhe faltando outras qualidades preciosas de figura e de espírito, um pouco de genealogia, e tal ou qual pontinha de ambição, que ela puxaria em tempo, como se faz às orelhas das crianças preguiçosas. Já havia recusado outros candidatos. De si mesma chegou a sonhar com um senador, posição feita e ministro possível. Aceitou este Maia; mas, gostando dele, e muito, por que é que não acabava de casar? Por quê? Eis aí o mais difícil de aventar, amigo leitor. Jucunda não sabia o motivo. Era desses que nascem naqueles escaninhos da alma, em que o dono não penetra, mas penetramos nós outros, contadores de histórias. Creio que se liga à doença do pai. Já estava ferido, na asa, quando ela para cá veio; a moléstia foi crescendo, até fazer-se desenganada. Navalha não exclui espírito, haja vista Fígaro; o nosso velho disse à filha Jucunda, em uma das cartas, que tinha dentro de si um aprendiz de barbeiro, que lhe alanhava as entranhas. Se tal era, era também vagaroso, porque não acabava de escanhoá-lo. Jucunda não supunha que a eliminação do velho fosse necessária à celebração do casamento — ainda que por motivo de velar o passado; se claramente lhe viesse a idéia, é de crer que a repelisse com horror. Ao contrário, a ideia que agora mesmo lhe acudia, pouco antes de parar o coupé, é que não era bonito casar, enquanto o pai lá estava curtindo dores. Eis aí um motivo decente, leitor amigo; é o que procurávamos há pouco, é o que a alma pode confessar a si mesma, é o que tirou à fisionomia da moça o ar fúnebre que ela parecia haver trazido de casa.

Compraram o enxoval de Raimunda, e o remeteram pelo primeiro vapor, com cartas de ambas. A de Jucunda era mais longa que de costume; falava-lhe do noivo alferes, mas não empregava a palavra cunhado. Não tardou que viesse resposta da irmã, toda gratidão e respeitos. Sobre o pai dizia que ia com os seus achaques velhos, um dia pior, outro melhor; era opinião do doutor que podia morrer de repente, mas podia também aguentar meses e anos.

Jucunda meditou muito sobre a carta. Logo que Maia se lhe declarou, pediu-lhe ela que nada dissessem à madrinha por uns dias; ampliou o prazo a semanas; não podia fazê-lo a meses ou anos. Foi à madrinha, e confiou a situação. Não quisera casar com o pai enfermo; mas, dada a incerteza da cura, era melhor casar logo.

— Vou escrever a meu pai, e peço-me a mim mesma, disse ela, se dindinha achar que faço bem.

Escreveu ao pai, e terminou: Não o convido para vir ao Rio de Janeiro, porque é melhor sarar antes; demais, logo que nos casarmos, lá iremos ter. Quero mostrar a meu marido (desculpe este modo de falar) a vilazinha do meu nascimento, e ver as coisas de que tanto gostei, em criança, o chafariz do largo, a matriz e o padre Matos. Ainda vive o padre Matos? O pai leu a carta com lágrimas; mandou-lhe dizer que sim, que podia casar, que não vinha por andar achacado; mas longe que pudesse...

— Mundinha exagerou muito, disse Jucunda à madrinha. Quem escreve assim, não está para morrer.

Tinha proposto casamento à capucha, por causa do pai; mas o tom da carta fê-la aceitar o plano de D. Maria do Carmo e as bodas foram de estrondo. Talvez a proposta não lhe viesse da alma. Casaram-se pouco tempo depois. Jucunda viu mais de um dignitário do Estado inclinar-se diante dela, e dar-lhe o parabéns. Os mais célebres colos da cidade fizeram-lhe corte. Equipagens ricas, cavalos briosos, atirando as patas com vagar e graça, pela chácara dentro, muitas librés particulares, flores, luzes; fora, na rua, a multidão olhando. Monsenhor Tavares, membro influente do cabido celebrou o casamento.

Jucunda via tudo através de um véu mágico, tecido de ar e de sonho; conversações, música, danças, tudo era como uma longa melodia, vaga e remota, ou próxima e branda, que lhe tomava o coração, e pela primeira vez a fazia estupefata diante de alguma coisa deste mundo.

CAPÍTULO III

D. Maria do Carmo não alcançou que os recém-casados ficassem morando com ela.

Jucunda desejava-o; mas o marido achou que não. Tinham casa na mesma rua, perto da madrinha; e assim viviam juntos e separados. De verão iam os três para Petrópolis, onde residiam debaixo do mesmo teto.

Extinta a melodia, secas as rosas, passados os primeiros dias do noivado, Jucunda pôde tomar pé no recente tumulto, e achou-se grande senhora. Já não era só a afilhada de D.

Maria do Carmo, e sua provável herdeira; tinha agora o prestígio do marido; o prestígio e o amor. Maia literalmente adorava a mulher; inventava o que a pudesse fazer feliz, e acudia a cumprir-lhe o menor dos seus desejos. Um destes consistiu na série de jantares que deram em Petrópolis, durante uma estação, aos sábados, jantares que ficaram célebres; a flor da cidade ali ia por turmas. Nos dias diplomáticos, Jucunda teve a honra de ver a seu lado, algumas vezes, o internúncio apostólico.

Um dia, no Engenho Velho, recebeu Jucunda a notícia da morte do pai. A carta era da irmã; contava-lhe as circunstâncias do caso: o pai nem teve tempo de dizer: ai, Jesus! Caiu da rede abaixo e expirou.

Leu a carta sentada. Ficou por algum tempo com o papel na mão, a olhar fixamente; relembrava as coisas da infância, e a ternura do pai; saturava bem a alma daqueles dias antigos, despegava-se de si mesma, e acabou levando o lenço aos olhos, com os braços fincados nos joelhos. O marido veio achá-la nessa atitude, e correu para ela.

— Que é que tem? perguntou-lhe.

Jucunda, sobressaltada, ergueu os olhos para ele; estavam úmidos; não disse nada.

— Que foi? insistiu o marido.

— Morreu meu pai, respondeu ela.

Maia pôs um joelho no chão, pegou-a pela cintura e aconchegou-a ao peito; ela escondeu a cara no ombro do marido, e foi então que as lágrimas romperam mais grossas.

— Vamos, sossegue. Olhe o seu estado.

Jucunda estava grávida. A advertência fê-la erguer de pronto a cabeça, e enxugar os olhos; a carta, envolvida no lenço, foi esconder no bolso a ruim ortografia da irmã e outros pormenores. Maia sentou-se na poltrona, com uma das mãos da mulher entre as suas.

Olhando para o chão, viu um papel impresso, trecho de jornal, apanhou-o e leu; era a notícia da morte do sogro, que Jucunda não vira cair de dentro da carta. Quando acabou de ler, deu com a mulher, pálida e ansiosa. Esta tirou-lhe o papel e leu também. Com pouco se aquietou. Viu que a notícia apontava tão-somente a vida política do pai, e concluía dizendo que este "era o modelo dos varões que sacrificam tudo à grandeza local; não fora isso, e o seu nome, como o de outros, menos virtuosos e capazes, ecoaria pelo país inteiro".

— Vamos, descansa; qualquer abalo pode fazer-te mal.

Não houve abalo; mas, à vista do estado de Jucunda, a missa por alma do pai foi dita na capela da madrinha, só para os parentes.

Chegado o tempo, nasceu o filho esperado, robusto como o pai, e belo como a mãe. Esse primeiro e único fruto, parece que veio ao mundo menos para aumentar a família, que para dar às graças pessoais de Jucunda o definitivo toque. Com efeito, poucos meses depois, Jucunda atingia o grau de beleza, que conservou por muitos anos. A maternidade realçava a feminilidade.

Só uma sombra empanou o céu daquele casal. Foi pelos fins de 1866. Jucunda estava a mirar o filho dormindo, quando lhe vieram dizer que uma senhora a procurava.

— Não disse quem é? — Não disse, não, senhora.

— Bem vestida? — Não, senhora; é assim meia esquisita, muito magra. Jucunda olhou para o espelho e desceu. Embaixo, reiterou algumas ordens; depois, pisando rijo e farfalhando as saias, foi ter com a visita. Quando entrou na sala de espera, viu uma mulher de pé, magra, amarelada, envolvida em um xale velho e escuro, sem luvas nem chapéu. Ficou por alguns instantes calada, esperando; a outra rompeu o silêncio: era Raimunda.

— Não me conhece, Cundinha? Antes que acabasse, já a irmã a reconhecera. Jucunda caminhou para ela, abraçou-a, fêla sentar-se; admirou-se de a ver aqui, sem saber de nada; a última carta recebida era já de muito tempo; quando chegara? — Há cinco meses; Getulino foi para a guerra, como sabe; eu vim depois, para ver se podia...

Falava com humildade e a medo, baixando os olhos a miúdo. Antes de vir a irmã, estivera mirando a sala, que cuidou ser a principal da casa; tinha receio de macular a palhinha do chão. Todas as galanterias da parede e da mesa central, os filetes de ouro de um quadro, cadeiras, tudo lhe pareciam riquezas do outro mundo. Já antes de entrar, ficara por algum tempo a contemplar a casa, tão grande e tão rica. Contou à irmã que perdera o filho, ainda na província; agora viera com a ideia de seguir para o Paraguai, ou para onde estivesse mais perto do marido. Getulino escrevera-lhe que voltasse para a província ou ficasse aqui.

— Mas que tem feito nestes cinco meses? — Vim com uma família conhecida, e aqui fiquei costurando para ela. A família foi para S.

Paulo, vai fazer um mês; pagou o primeiro aluguel de uma casinha onde moro, costurando para fora.

Enquanto a irmã falava, Jucunda contornava-a com os olhos — desde o vestido de seda já gasto — o último do enxoval, o xale escuro, as mãos amarelas e magras, até às bichinhas de coral que lhe dera ao sair da província. Era evidente que Raimunda pusera em si o melhor que possuía para honrar a irmã. Jucunda viu tudo; não lhe escaparam sequer os dedos maltratados do trabalho, e o composto geral tanto lhe deu pena como repulsa. Raimunda ia falando, contou-lhe que o marido saíra tenente por atos de bravura e outras muitas coisas. Não dizia você; para não empregar senhora, falava indiretamente; "Viu? Soube? Eu lhe digo. Se quiser..." E a irmã, que a princípio fez um gesto para dizer que deixasse aqueles respeitos, depressa o reprimiu, e deixou-se tratar como à outra parecesse melhor.

— Tem filhos? — Tenho um, acudiu Jucunda: está dormindo.

Raimunda concluiu a visita. Quisera vê-la e, ao mesmo tempo, pedir-lhe proteção. Havia de conhecer pessoas que pagassem melhor. Não sabia fazer vestidos de francesas, nem de luxo, mas de andar em casa, sim, e também camisas de crivo. Jucunda não pôde sorrir. Pobre costureira do sertão! Prometeu ir vê-la, pediu indicação da casa, e despediua ali mesmo.

Em verdade, a visita deixou-lhe uma sensação mui complexa: dó, tédio, impaciência. Não obstante, cumpriu o que disse, foi visitá-la à Rua do Costa, ajudou-a com dinheiro, mantimento e roupa. Voltou ainda lá, como a outra tornou ao Engenho Velho, sem acordo, mas às furtadelas. No fim de dois meses, falando-lhe o marido na possibilidade de uma viagem à Europa, Jucunda persuadiu a irmã da necessidade de regressar à província; mandar-lhe-ia uma mesada, até que o tenente voltasse da guerra.

Foi então que o marido recebeu aviso anônimo das visitas da mulher à Rua do Costa, e das que lhe fazia, em casa, uma mulher suspeita. Maia foi à Rua do Costa, achou Raimunda arranjando as malas para embarcar no dia seguinte. Quando ele lhe falou do Engenho Velho, Raimunda adivinhou que era o marido da irmã; explicou as visitas, dizendo que "D. Jucunda era sua patrícia e antiga protetora"; agora mesmo, se voltava para a vila natal, era com o dinheiro dela, roupas e tudo. Maia, depois de longo interrogatório, saiu dali convencido. Não disse nada em casa; mas, três meses depois, por ocasião de falecer D. Maria do Carmo, referiu Jucunda ao marido a grande e sincera afeição que a defunta lhe tinha, e ela à defunta.

Maia lembrou-se então da Rua do Costa.

— Todos lhe querem bem a você, já sei, interrompeu ele, mas por que é que nunca me falou daquela pobre mulher, sua protegida, que aqui esteve há tempos, uma que morava na Rua do Costa? Jucunda empalideceu. O marido contou-lhe tudo, a carta anônima, a entrevista que tivera com Raimunda, e finalmente a confissão desta, as próprias palavras, ditas com lágrimas.

Jucunda sentiu-se vexada e confusa.

— Que mal há em fazer bem, quando a pessoa o merece? perguntou-lhe o marido, concluindo a frase com um beijo.

— Sim, era excelente mulher, muito trabalhadeira...

CAPÍTULO IV

Não houve outra sombra na vida conjugal. A morte do marido ocorreu em 1884. Bela, com a meação do casal, e a herança da madrinha, contando quarenta e cinco anos que parecem trinta e quatro, tão querida da natureza como da fortuna, pode contrair segundas núpcias, e não lhe faltam candidatos; mas não pensa nisso. Tem boa saúde e grande consideração.

A irmã faleceu antes de acabar a guerra. Getulino galgou os postos em campanha, e saiu há alguns anos brigadeiro. Reside aqui; vai jantar, aos domingos, com a cunhada e o filho desta, no palacete de D. Maria do Carmo, para onde a nossa D. Jucunda se mudou. Tem escrito alguns opúsculos sobre armamento e composição do Exército, e outros assuntos militares. Dizem que deseja ser ministro da Guerra. Aqui, há tempos, falando-se disso no Engenho Velho, perguntou alguém a D. Jucunda se era verdade que o cunhado fitava as cumeadas do poder.

— O general? retorquiu ela com o seu grande ar de matrona elegante; pode ser. Não conheço os seus planos políticos, mas acho que daria um bom ministro de Estado.

Fonte:
http://www.dominiopublico.gov.br