terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Vuldembergue Farias (Versos Melódicos) II


SER SUPREMO

Primeiro, último e único
Está certo em linhas tortas
O acento é sempre tônico
Está nas folhas vivas ou mortas
Não sabe o que são derrotas

Espírito, carne e sabedoria
Na difusão dos ensinamentos
Pela nossa hipocrisia
Pelas contas, é mais, sem menos

Finito e infinito
No futuro e no presente
Está na Lei, está escrito
Para o proscrito e o ausente

Quem quer um conselho, tome
Não se fale em seu nome
Não se faça uma promessa
Não se cale o sobrenome
Nem pense que não interessa
Pra que tanta pressa?

Ao sinal dos tempos vãos
E dos pedidos extremos
O que será de nós senão
Apelar a um ser supremo.

VALSA ESPANHOLA

Andando pelo Bétis de Andaluzia
À beira do Mediterrâneo vejo o mar
Hoje, oh! Guadalquivir
Me leva para o mar

A procura de Dolores Sierra
Pela terra, feito abelha
Nas pistas vermelhas
Com espelhos volto a ver
Meu bem querer

Naquele navio, por um fio
Por instantes torno a sonhar
Com aquele olhar

Não tem mais beira do cais
Nem tem mais castanholas
Não tem companhia
Sem sarjeta, sem peseta
De noite e de dia
Ninguém lhe dá mais

Volto à realidade dura do trabalho e solidão
Com a ilusão de um dia te encontrar
E nunca mais deixar
Partir para Barcelona
Viver sob a mesma lona
Sem pensar que um dia houve adeus
E agradecer de novo a Deus
A vida afora

SER FELIZ E BEM VIVER

O bom cabrito não berra
Mas não tenho que engolir sapo
Nesse mundo quem não erra
É porque está no buraco

Esse cara é um louco
Mas ele tem muito juízo
Todo mundo tem um pouco
Da excelência do "ISO"

Quem muito abaixa a cabeça
Mostra o fundo das calças
Faça com que aconteça
As coisas sempre de graça

Mas quem tem a costa larga
Pode aguentar o tranco
De trabalho, dessa carga
Eu estou lhe sendo franco

Esses ditos populares
São pra alertar você
Para não abdicares
De ser feliz e bem viver

CONFLITO INTERIOR

Corre em minhas veias
Esse sangue colorido
Como se fosse uma teia
Com o fio corrompido
Entre lapsos de tristeza
E alegria que me tiram a sutileza
Sem forças para dominar
Esse amor que é um mar

Tudo se complica
Ao te ver passar
Seguir sem pensar
Isso é o que implica
Demonstrar nobreza
Na tua presença
Prefiro ausência
A mostrar tristeza

Enquanto luto contra esse amor
Que já muito intenso
Enquanto eu fraco for
Me deixa mais tenso
Sem te poder ter
Preciso força
Prá não perder o senso

SURREAL

Bem no deserto profundo
Bem no meio do oco do mundo
Num segundo percorro uma vida
Sem ter peso e sem medida

Nunca se sabe o que vem
Certeza também ninguém tem
Olhar para frente ou pra trás
Sem ficar com o pé atrás

Se eu tivesse a razão principal
Sairia na folha central
Poderia encarar o futuro
Pra sair do imenso escuro

Tomando um caminho aberto
Certamente seria concreto
Caminhando ou voando veloz
Como um bicho ou um ente feroz

No caminho poente do sol
Ou do cometa do arrebol
Na chapada ou no pantanal
Entre o surreal e o real

AMOR E PAIXÃO

O amor é como o tempo
Lúcido, firme, constante
Paixão é como o vento
Extravagante

Sem direção
Inconsequente
Louca
Sabor ardente

No mar de amor e paixão
Maior abismo
Fosso profundo
Tamanho do mundo

Profano e puritano
Tal qual pororoca
Tal qual rio e oceano
Tal qual cinema e pipoca

UNIVERSO PARALELO

Imagino o mundo de Nárnia,
Onde preconceitos, vaidades e culpas
Não podem entrar.
Ah! Aslam, criador de todo esse universo
Seu protetor em prosa e verso
A feiticeira branca foi derrotar

Assim aqui também quimera
Num universo paralelo
Das casas de troca de pares
As coisas fora de lugares
Ao som de Bolero de Ravel
Nem parece o castelo Cair Paravel

Fonte:
Clube Caiubi

Auta de Souza (Horto)

Análise por Adelina Maria, especialista em Literatura, professora de Língua Portuguesa e Literatura

O livro Horto, de Auta de Souza, é a história de uma grande dor. Formou-o a autora recordando, sentindo, penando. Não se tratava apenas de um relato de vida em versos, tampouco de uma escritora feminina oitocentista, preparada apenas para amar Cristo sob todas as circunstâncias, ela também rompia as barreiras da escrita feminina, pois nessa época, a sociedade estava voltada em especial, para conferir visibilidade social ao homem, não a mulher, havia o sexismo da crítica, a figura feminina era preparada para “anjo do lar”.

Sua poesia é dotada de um lirismo cheio de pureza e com uma vocação legitimada que marca um estilo próprio, vocação essa reconhecida por ela mesma, ao se definir como “noiva da poesia”, amava o verso. Despreocupada com qualquer engajamento literário, não se filiou a nenhuma escola. O gosto pelo individual em detrimento a objetividade da vida, mística de seus versos, permite o questionamento dos críticos literários em torno de seu estilo: simbolista? parnasiano? romântico? Do ponto de vista da técnica inconfundível do uso de letras maiúsculas nos substantivos comuns, na busca de evidenciar um conteúdo sugestivo e ainda, se considerarmos o caráter místico e religioso de sua obra, revela-se o Simbolismo, a exemplo disso “Crepúsculo”:

O Ângelus soa vagarosamente
A noite desce plácida e divina.
Ouço gemer meu coração doente
chorando a tarde, a noiva peregrina.


Evidentemente o título do livro Horto, numa construção metafórica, faz menção ao local em que Jesus se refugiou para os seus últimos momentos de agonia na cruz e menção ao interior do eu-poético, marcando assim a religiosidade e o subjetivismo, marcas também do Simbolismo. Percebe-se que em seus escritos também se refletem as leituras de românticos como Castro Alves, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias, esses dois últimos responsáveis pela entrada da literatura em sua vida. Não há como negar que o estilo desses autores se presenteia em sua poesia, há um forte apelo do momento com marcas de romantismo. Atrelando-se a esse estilo, de certa forma o Simbolismo, que é nela uma continuação do Romantismo, tendo como elementos comuns a espiritualidade, a interiorização, o subjetivo, o vago, o misterioso, o ilógico, há sim um neo-romantismo, até porque os dois em sua obra não se anulam, se complementam.

Há ainda um inegável conhecimento da forma: soneto com 16 versos, que abre com os dois primeiros decassílabos do segundo quarteto, como epígrafe:

Há pelo espaço um ciciar dolente
De prece em torno da igrejinha em ruínas...

Um prestígio parnasiano em sua obra, o que explica a presença de Olavo Bilac como responsável pelo prefácio da obra. O poeta compartilha com a criação poética de Auta de Souza ao fazer referência à obra “Horto”: “[...] O labor pertinaz de uma artista, transformando as suas ideias, as suas torturas, as suas esperança em pequenas jóias”.

Tratava-se antes de tudo, de uma jovem solitária que buscava em sua poesia a aceitação da existência, versos de sua alma e a razão de viver. Trata-se de uma poeta do “sensível” e “invisível”, que põe em seus versos o discurso de Jesus, num diálogo de confiança.

[...]
“Filha adorada que o teu gemido
Ergueste n’ asa de uma oração,
Na treva escura sempre envolvido,
Por que soluça teu coração?”
[...]


Nos versos da poeta pode-se estabelecer uma relação do sentimento de vida do eu poético comparando-os ao momento de sofrimento de Jesus na cruz, Auta de Souza sofreu unida à cruz do Salvador. E foi esse o grande e iluminoso consolo, principalmente para familiares e amigos que viam a cada momento definhando uma jovem pela doença conhecida como mal-do século (tuberculose), também como “A dama branca”. Não se pode esquecer que o modelo católico ocidental da época preparava as moças católicas para a morte, identificando-a com os sofrimentos do Cristo.

Em palestra pronunciada em Macaíba, pequena cidade Rio Grande do Norte, no dia 12 de setembro de 1976, em comemoração ao centenário de nascimento da poeta (1876-1976), o professor e membro da Academia de Letras, José Melquiades, considerou exagero a afirmação de que a poesia de Auta de Souza fosse apenas uma poesia essencialmente católica. Se considerarmos o poema “Versos ligeiros”, percebemos a amplitude de uma escritora que não está emblemática a um tema, mas sim a um “devaneio cósmico que se insere em sua realidade”, que ousa quebrar tabu e que não deve apenas ser reconhecida como poesia “católica”, mesmo que seus textos sejam marcados com alusões aos cânones católicos e influência de formação da época. Na obra, eles são resignificados como metáforas, numa busca do eu-poético em alcançar a plenitude em Jesus Cristo, independentemente de sua condição humana . Ela deixou sim, uma mensagem espiritual, não apenas para igreja, mas para as crianças de sua terra, para a sua família, para os amigos, desnudando o seu cotidiano de forma sublime, poética e não divina. Assim, a sua poesia como “Num leque”, abre-se para possibilitar um sopro novo e não apenas crenças cristalizadas. É possível perceber em Auta de Souza uma poesia simples, mas madura, que rompe a barreira de um Romantismo “piegas” e navega na imaginação “doce” de uma realidade “dura”, marcada muitas vezes pelo realismo que se projeta em temas do cotidiano, a conferir-lhes em sua obra os poemas: “Versos ligeiros”, “No álbum de Dolores”.

“A noiva do verso” despediu-se cedo da vida, não cantou “amores” como era de esperar de uma jovem de sua idade, a convivência com “a dama branca” impedia-lhe de uma vida natural e assim o sofrimento diário, junto à intimidade do verso, levou-a uma relação maior com um outro amado, Jesus Cristo, sentimento esse que aparece como exemplo de contemplação ao divino e refúgio para lhe aliviar o constante sofrimento. “A via crucis de Jesus” se repete no livro Horto, através de um eu lírico carregado de um sentimento panteísta que junto ao cotidiano dessa jovem poeta, promove a transformação do universo poético e místico em um sentimento paradoxal de viver e morrer em plenitude.

RENASCIMENTO

A Olegária Siqueira

Manhã de rosas. Lá no etéreo manto,
O sol derrama lúcidos fulgores,
E eu vou cantando pela estrada, enquanto
Riem crianças e desabrocham flores.

Quero viver! Há quanto tempo, quanto!
Não venho ouvir na selva os trovadores!
Quero sentir este consolo santo
De quem, voltando à vida, esquece as dores.

Ouves, minh’alma? Que prazer no ninhos!
Como é suave a voz dos passarinhos
Neste tranqüilo e plácido deserto!
 
Ah! entre os risos da Natura em festa,
Entoa o hino da alegria honesta,
Canta o Te Deum, meu coração liberto!


Fonte:
Adelina Maria, especialista em Literatura, professora de Língua Portuguesa e Literatura, disponível em Passeiweb

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Ariano Suassuna (Poemas Escolhidos) II

AQUI MORAVA UM REI

Aqui morava um Rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão
Pedra da sorte sobre o meu destino
Pulsava junto ao meu seu coração

Para mim, seu cantar era divino
Quando ao som da viola e do bordão
Cantava com voz rouca o desatino
O sangue o riso e as mortes do sertão

Mas mataram meu pai, desde esse dia
Eu me vi como um cego sem meu guia
Que se foi para o sol, transfigurado

Sua Efígie me queima, eu sou a presa
Ele a brasa que impele ao fogo, acesa,
Espada de ouro em Pasto Ensanguentado

A MORTE DO TOURO MÃO DE PAU
Musicado por Antonio Nóbrega

"Ariano Suassuna escreveu esse poema em memória de seu pai, assassinado em 1930"


 Corre a Serra Joana Gomes
galope desesperado:
um touro se defendendo,
homens querendo humilhá-lo,
um touro com sua vida,
os homens em seus cavalos.

 Cortava o gume das pedras
um bramido angustiado,
se quebrava nas catingas
um galope surdo e pardo
e os cascos pretos soavam
nas pedras de fogo alado,
enquanto o clarim da morte,
ao vento seco e queimado,
na poeira avermelhada
envolvia os velhos cardos.

 Rasgavam a serra bruta
aboios mal arquejados
e, nas trilhas já cobertas
pelo pó quente e dourado,
um gemido de desgraça,
um gemido angustiado:

 - "Adeus, Lagoa dos Velhos!
adeus, vazante do gado!
adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
O touro só tem a vida:
os homens têm seus cavalos"!

 O galopar recrescia:
brilhavam ferrões farpados
e algemas de baraúna
para o touro preparados.
Seu Sabino tinha dito:
- "Ele há de vir amarrado"!

 Miguel e Antônio Rodrigues,
de guarda-peito e encourados,
na frente do grupo vinham,
montados em seus cavalos
de pernas finas, ligeiras,
ambos de prata arreados.
E, logo à frente, corria
o grande touro marcado,
manquejando sangue limpo
nos caminhos mal rasgados,
cortadas as bravas ancas
por ferrões ensangüentados.

 A Serra se despenhava
nas asas de seus penhascos
e a respiração fogosa
dos dois fogosos cavalos
já requeimava, de perto,
as ancas do manco macho
quando ele, vendo a desonra,
tentando subjugá-lo,
mancando da mão preada
subiu num rochedo pardo:

 Num grito, todos pararam,
pelo horror paralisados,
pois sempre, ao rebanho, espanta
que um touro do nosso gado
às teias da fama-negra
prefira o gume do fado.
E mal seus perseguidores
esbarravam seus cavalos,
viram o manco selvagem
saltar do rochedo pardo:

 -"Adeus, Lagoa dos Velhos!
Adeus, vazante do gado!
Adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
Assim vai-se o touro manco,
morto mas não desonrado"!

 Silêncio. A Serra calou-se
no poente ensangüentado.
Calou-se a voz dos aboios,
cessou o troar dos cascos.
E agora, só, no silêncio
deste sertão assombrado,
o touro sem sua vida,
os homens em seus cavalos.

 ABERTURA SOB PELE DE OVELHA

Falso Profeta, insone, Extraviado,
vivo, Cego, a sondar o Indecifrável:
e, jaguar da Sibila — inevitável,
meu Sangue traça a rota deste Fado.

Eu, forçado a ascender, eu, Mutilado,
busco a Estrela que chama, inapelável.
E a Pulsação do Ser, Fera indomável,
arde ao sol do meu Pasto — incendiado.

Por sobre a Dor, a Sarça do Espinheiro
que acende o estranho Sol, sangue do Ser,
transforma o sangue em Candelabro e Veiro.

Por isso, não vou nunca envelhecer:
com meu Cantar, supero o Desespero,
sou contra a Morte e nunca hei de morrer.

Poema que abre 
O ROMANCE D´A PEDRA DO REINO E O PRINCÍPE DO SANGUE DO VAI-E-VOLTA,

Ave Musa incandescente
do deserto do Sertão!
Forje, no Sol do meu Sangue,
o Trono do meu clarão:
cante as Pedras encantadas
e a Catedral Soterrada,
Castelo deste meu Chão!

Nobres Damas e Senhores
ouçam meu Canto espantoso:
a doida Desaventura
de Sinésio, O Alumioso,
o Cetro e sua centelha
na Bandeira aurivermelha
do meu Sonho perigoso!

Rachel de Queiroz (Os Heróis)

Vieram me procurar uns jovens estudantes de literatura, e me pediram para responder a duas perguntas: Quais são seus heróis prediletos na literatura brasileira? E heroínas?

Lembrei-me de questionário idêntico, que me fora feito há muito tempo; encontrei o recorte em que lhe respondia e, com surpresa, verifico que as respostas a dar hoje seriam as mesmas de tantos anos atrás.

Em primeiro lugar venero Macunaíma, é claro. Macunaíma, herói da nossa gente. Macunaíma das incríveis aventuras, o herói sem nenhum caráter, que não é símbolo porque não se passa para isso, fica muito acima, quilômetros, léguas. Aquele que fez tudo que não fizemos e quereríamos fazer; com a sua gaiola de legornes debaixo do braço pode ser, à vontade, bandeirante, pirata, guerreiro, sedutor e ladrão; percorre os sete caminhos do mundo, descobre os limites indevassados da terra dos sem-fim, intriga, mente, ama, engana, briga e apanha, andando sempre muito acima do bem e do mal - pois não foi à toa que deixou a consciência na ilha de Marapatá.

Depois dele, meu predileto é o velho Vitorino Carneiro da Cunha, herói de Fogo Morto, esse nosso Quixote ou nosso cavalheiro Bayard, figura impecável, quase sem medo e sem reproche, dentro das suas limitações humaníssimas.

Incapaz de tolerar sujeição, encarnação de desassombro e da independência, advogado das causas perdidas, grandiloquente, farofeiro e eternamente a esbravejar em sagrada ira contra os poderosos e seus malefícios. Não há quem o conheça e não o ame e, amando-o, não faça como seu próprio criador, José Lins do Rego, que confessava haver alçado o bravo capitão a uma postura de árbitro dos seus atos e seus impulsos, de tal modo que jamais se atreve a praticar, de cabeça erguida, uma ação que o velho Vitorino pudesse reprovar.

Quanto às heroínas, o primeiro lugar nessa galeria é um clássico. Não tem de escolher, está por si só escolhido e aclamado. Pois esse primeiro posto é inegavelmente de Capitu, a dos olhos de cigana, oblíqua e dissimulada, imagem do eterno e venenoso feminino. Capitu, deusa de todos nós.

O segundo lugar está meio indeciso. Poderia ser Dona Janaína, rainha do mar, poderia ser a filha da Rainha Luzia. Talvez devesse pertencer a Iracema; mas Iracema não é bem uma mulher, é uma alegoria vestida de índia, com sua personalidade toda dissolvida na prosa poética de Alencar - e dela nenhuma outra lembrança temos, além dos lábios cor de mel, do talhe de palmeira, do cabelo de asa de graúna. E isso é pouco. Antes apelar para Moema, que sabia nadar e matou-se afogada.

Mas já que me pedem uma opinião pessoal, prefiro dar o segundo lugar àquela que é realmente a predileta do meu coração e uma espécie de equivalente, no mundo livre da infância, do velho Vitorino Carneiro da Cunha: é a boneca Emília, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, nas histórias de Monteiro Lobato.

Emília não tem medo de ninguém; nem da vida, porque boneca propriamente não vive, nem da morte, porque boneca não morre. Não admite leis, nem regras, nem gramática. Não respeita cara nem autoridade. Bruxa de pano com olhos de linha preta, assim mesmo acha que tem tudo, não quer ouro nem fortuna, nem amantes, nem poder. Só quer aventuras e o direito de abrir a boca e opinar sobre o que bem entende. Emília, meu exemplo e minha aspiração, tantas vezes, meu raio de sol, asneirento, faísca de liberdade, de coragem, e de insolência, minha mestra e meus amores - Emília, Marquesa de Rabicó.

Fonte:
O Estado de São Paulo (São Paulo/SP) 30 de novembro de 2002

Vuldembergue Farias (Versos Melódicos)

Vuldembergue é de Fortaleza/CE

FORÇA DE EXPRESSÃO

É por força de expressão
Ou mesmo uma metáfora
Pode até ser uma diáfora
Mas a minha falação
É sobre a enganação

É por força de expressão
Que se falta com a verdade
Só se fala por dualidade
Não se conhece a versão
Do fato ou da verdadeira ação

E por força de expressão
Digo o que não quis dizer
Pra você não entender
Mas eu não quis uma omissão
Onde eu disse sim, agora eu digo não

Sempre nego e digo não
Às vezes até marco um zero
Digo sim quando nem quero
Mas é por força de Expressão
Sim, eu disse foi um não.

MUNDO DA FANTASIA

Homens maquiam-se
Mulheres maquiam-se
O mundo maquia-se
Tudo isso para cobrir
O que os olhos não escondem

Vestimos máscaras
Adotamos fantasias
Todo tempo, no tempo
Para mostrar o que não somos
E o que desejamos ser

Vivemos de máscaras
E elas são aquilo que representam
Máscara bonita nos deixa bonitos
As feias nos deixam mais feios
Máscaras nos deixam simpáticos
Ou nos fazem dramáticos

Máscaras não expõem fraquezas
Não mostram as idades
Nem o envelhecimento
Nem sentimentos, nem alegria
Máscaras são necessárias
Para olharmos nos olhos
E vermos o mundo da fantasia

PROFECIA

Quando o dragão do mar descer do céu
E o véu da noite cobrir os oceanos
Quando os decanos forem hexadecimais
E os seres normais forem também felizes
As cicatrizes da amargura serão ternura.

Quando a brandura do fogo eterno
For inverno e o verão alvorecer
Quando um dia adormecer a escuridão
E a cognição apagar nos imortais
As simples estruturas dos fractais.

Areais e oceanos, serras e mares,
Amizades e versos, princípios e matérias,
Artérias e nervos, tantras e vontades,
Verdades e mistérios surgirão do fundo,
Do mundo dos infernos vivos e imundos.

LOUCURA

Louco é quem não acredita na loucura
E procura por todos os meios
Os erros justificar
E amar fica em segundo plano
É o desengano, como cigano,
Por aí, a andar, andar e andar

Que louco é esse que tem juízo
Que dá um sorriso e prega um aviso
Que sabe entrar, que sabe sair
Que sabe enfeitar
Mas também sabe mentir?

Loucura que impede de ser feliz
Que diz o que deve ser feito
Dentro das normas e das formas
Das convenções e lições
Isso é acomodação
Loucura mesmo é não viver
É não ter amor, é não ter paixão

UTOPIA

Viver bem é uma utopia
Que se busca apesar de loucos
Mas viver uma fantasia
É a alegria de poucos

Na imaginação, a miragem
Na rotina da vida, a viagem
De sonhos e realidade
De espera e ansiedade

Por uma paixão ou amor
Diversão e felicidade
Na ilusão do multicor
Se revela a ingenuidade

E nas raias da agonia,
Da utopia, da existência
Da ciência, da alquimia
Sem amor não se viveria
Sem amor não se viveria

ERA S. JOÃO

Não tem mais fogueira
Não tem mais balão
Não corto mais a bananeira
Nem tem mais adivinhação

Meu S. João eu não posso acreditar
Que nossos festejos, nossos folguedos
Estão para se acabar

Não tem mais quadrilha improvisada
Ela é estilizada
Anarriê, anavantú, né pá de quá não mais se canta
Ela parece escola de samba

Milho assado na fogueira
Cadê o traque e a bombinha
Que saudade da fumaceira
Do pé de moleque e da chuvinha

São João disse, São Pedro confirmou
Ser madrinha ou padrinho
Na fogueira meu amor
Sou compadre que o santo mandou

ALEGRIA

Hoje, eu vou brincar com a fantasia da folia
Como eu queria que você aqui estivesse
Que me quisesse, me dissesse que encontrava
Uma saída para essa tal de tristeza

Não sofro mais
Crises existenciais
Não, se você estiver comigo enfim
Pelos carnavais sem fim

Anda minha alegria como eu queria
Te ter pertinho de mim
Numa dança sem parar

Até o raiar do dia, alegria
Vem com a bondade de Deus
Manda pra tristeza um adeus, alegria
E teu povo contagia

CHOVE CHUVA

Chuva, deixa de farofa,
De chove não molha, me deixa em paz.
Hoje estou resfriado,sem grana e sem saco
Nada me compraz

E presta atenção no que digo,
Não brinca comigo, para de chover.
Eu sinto ter que lhe dizer, vaza, vai embora
E seja fugaz.

Chove chuva chove, mas não molha meu amor
Faça uma ação bonita, deixa de fita, só mata o calor.

Nesse chover no molhado deixando ensopado
O meu coração.
Como em Dançando na chuva, cai como uma luva,
Ensaio e ação.

No tempo todo encharcado,
Com todo cuidado pra não escorregar
Pois se qualquer pirueta,
É uma falseta pra me derrubar.

Chuva, dê licença, a sua presença
A sua sentença, me tira do sério.
Então se mande urgentemente
E concomitantemente me leve o tédio.

LIMITES

Quero falar sobre
Os extremos de pequenos
Espaços
Limites, tempos, distância,
Lenta velocidade
E intervalos.

Diminutos
Laços e abraços,
Discretos olhares,
Incontidos andares,
Mera felicidade
Entre o ter e o poder.

Separa-me
Dessa realidade,
Menor, igual, maior
Que meu desejo de ser,
De estar no limite
Do meu particular.

Prendam-me,
Deixem-me estar,
Na divisa do bem e do mal,
Entre o antes e o pós
O fundo e o raso
Entre laços e nós.

Viver de fachada,
Ou viver discreto,
É como concreto aparente,
Sente quem vê,
Excede o limite,
Da vida corrente

Fonte:
Clube Caiubi

Carlos Heitor Cony (O Cão e o Homem)

Já vi a mesma cena, aqui e no exterior. E acredito que todos nós já vimos coisa igual em qualquer parte do mundo.

Em Frankfurt, ainda ao tempo em que havia o muro de Berlim (na Alemanha havia disso), vi o mendigo do Primeiro Mundo estendido na calçada, cozinhando vasta bebedeira - havia umas 30 latas vazias de cerveja em volta dele.

Esparramado na calçada, ele atrapalhava o movimento dos passantes. Mas ninguém, nem mesmo os policiais, se atrevia a mexer nele, a recolher as latinhas de cerveja. Não era piedade nem um cochilo na tradicional vocação à ordem dos alemães.

É que o mendigo tinha ao lado um cão, que nem precisava latir para guardar o dono. Parecia um vira-lata, talvez o fosse. Tomava conta daquele pedaço da calçada, protegendo o sono do homem que com ele repartia os restos de comida arranjados nos restaurantes em volta.

Semana passada, em São Paulo, saindo do hotel, na Avenida Ipiranga, vi a mesma cena, o mendigo, emborcado num canto do edifício Copan e o cão ao lado, velando pelo dono. Se um milionário o chamasse, oferecesse incenso, ouro e mirra, o cão não se afastaria de sua guarda. Se um santo passasse e o atraísse para um monastério habitado por anjos e atapetado de flores, o cão nem se mexeria dali.

E o dono podia ser um desclassificado, um homem repudiado pela sociedade, pela família. Nem os pais nem os filhos nem os amigos querem saber dele, acham que o miserável está tendo o que merecia.

Para o cão, nada disso tem importância. O dono pode ser rei ou mendigo, santo ou criminoso. Fica a seu lado, sem esperar outra recompensa a não ser a de sentir o cheiro e a onipotência do homem, o homem frágil, tombado na rua, que ele protege daqueles que o abandonaram.

Fonte:
Folha de São Paulo - São Paulo - SP, 12/06/2001

Laurindo Ribeiro (Poemas Escolhidos)

O QUE SÃO MEUS VERSOS

Se é vate quem acesa a fantasia
Tem de divina luz na chama eterna;
Se é vate quem do mundo o movimento
C’o movimento das canções governa;

Se é vate quem tem n’alma sempre abertas
Doces, límpidas fontes de ternura,
Veladas por amor, onde se miram
As faces da querida formosura;

Se é vate quem dos povos, quando fala,
As paixões vivifica, excita o pasmo,
E da glória recebe sobre a arena
As palmas, que lhe of’rece o entusiasmo;

Eu triste, cujo fraco pensamento
Do desgosto gelou fatal quebranto;
Que, de tanto gemer desfalecido,
Nem sequer movo os ecos com meu canto;

Eu triste, que só tenho abertas n’alma
Envenenadas fontes d’agonia,
Malditas por amor, a quem nem sombra
De amiga formosura o céu confia;

Eu triste, que, dos homens desprezado,
Só entregue a meu mal, quase em delírio,
Ator no palco estreito da desgraça,
Só espero a coroa do martírio;

Vate não sou, mortais; bem o conheço;
Meus versos, pela dor só inspirados, —
Nem são versos — menti — são ais sentidos,
Às vezes, sem querer, d’alma exalados;

São fel, que o coração verte em golfadas
Por contínuas angústias comprimido;
São pedaços das nuvens, que m’encobrem
Do horizonte da vida o sol querido;

São anéis da cadeia, qu’arrojou-me
Aos pulsos a desgraça, ímpia, sanhuda;
São gotas do veneno corrosivo,
Que em pranto pelos olhos me transuda.

Seca de fé, minha alma os lança ao mundo,
Do caminho que levam descuidada,
Qual, ludíbrio do vento, as secas folhas
Solta a esmo no ar planta mirrada.

NO ÁLBUM DUMA SENHORA

Meu nome aqui deixara solitário
Escrito nessa cor;

Com que desde nascido as faixas d’alma
Tingiu-me o dissabor;

Meu nome aqui deixara solitário
Em traço negro incerto,
Qual friso do buril da desventura
Em claro plano aberto;

A não temer que alguém, que não soubesse
O que este nome diz,

Ao vê-lo neste livro me insultasse
Chamando-me feliz.

Saiba, pois, quem o ler, que de uma Virgem
No livro afortunado

Seu nome escuro, como seu destino,
Escreve um desgraçado!

Sobre ele verta a Virgem uma lágrima
Do seu pranto celeste,

Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.

Sim, ó Virgem, do pranto de teus olhos,
Concede, sim, concede

Uma lágrima triste ao pobre nome
Que lágrimas só pede!

De teus olhos quisera uma centelha
Um peito do vulcão;

Ao contrário, porém, só pede pranto
Um morto coração!

O sol ilumina, a gala ofende
Ao solo mortuário:
Só sobressaem os cristais do pranto
Dos mortos no sudário.

Eia, pois, cair deixa neste nome
O teu pranto celeste;
Que talvez se desbotem os negrumes
Do luto que o reveste.

A SAUDADE BRANCA
Composta por ocasião da morte de sua irmã e oferecida ao amigo Antônio Augusto de Mendonça Júnior.

Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada,
Minha flor? Que palidez!...

Ah!... já sei: n’um peito vário
Emblema foste de amor:
O peito mudou de afeto,
E tu mudaste de cor.

Mas não; só peito animado
Por constância e lealdade,
Unida pode trazer-te
Consigo, minha saudade.

Demais tu não mudas; seja
Qual for o destino teu,
Conservas sempre o aspecto
Que a natureza te deu.

Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada,
Minha flor? Que palidez!

Quem sabe se és flor, saudade?
Quem sabe? Da sepultura
Amor nas pedras penetra
Por milagre da ternura.

Quem sabe... (Oh! meu Deus não seja,
Não seja esta idéia vã!)
Se em ti não foi transformada
A alma de minha irmã?!

“Minha alma é toda saudades;
“De saudades morrerei” —
Disse-me, quando a minh’alma
Em saudades lhe deixei:

E agora esta saudade
Tão triste e pálida... assim
Como a saudade que geme
Por ela dentro de mim!...

A namorar-me os sentidos!
A fascinar-me a razão!...
Julgo que sinto a voz dela
Falar-me no coração!

Exulta, minh’alma, exulta!...
Aos meus lábios, flor louçã!
No meu peito... Toma um beijo...
Outro beijo, minha irmã!

Outro beijo, que estes beijos
Não te proíbe o pudor;
Sou teu irmão, não te mancham
Os beijos de meu amor.

Fala um pouco. Se almas podem
Em flores se transformar,
Sendo almas encantadas,
As flores podem falar.

Mas não falas?... não respondes?...
Oh! cruéis enganos meus!
Saudade, por que me iludes?
Minha irmã!... Meu Deus!... Meu Deus!...

Minha irmã!... minha ventura,
Esperança, encanto meu!
É teu irmão quem te chama!...
Responde!... fala!... Sou eu!

Dista muito o céu da terra?
Os anjos asas não têm?
Desata um vôo, meu anjo!
Não tardes, meu anjo! Vem!

Vem! Ao menos um momento
Quero ver-te, irmã querida:
Embora, depois de ver-te,
Fique cego toda a vida.

Mas não vens? Deus te não deixa
Vir ao mundo, meu amor?
Só devo encontrar no pranto
Lenitivo à minha dor?

Ah! minh’alma desfalece...
E o coração, que apressado
Com tanta força batia,
Mal palpita... está cansado.

Muda, sem termos, nem vozes
Me vai ralando a agonia:
A tempestade de angústias,
Mudou-se em melancolia.

Que é isto?! Como tão negro
Ficou-me todo o horizonte!
Que suor me banha o rosto!
Que peso sinto na fronte!

Ah! meu Deus! graças! aos olhos
O pranto sinto chegar;
Se a boca não fala, ao menos
Os olhos podem chorar.

Nós temos duas saudades;
Uma de sangue ensopada
Pela mão do desespero
No seio d’alma plantada;

Outra da melancolia
Toma o gesto, e veste a cor,
Exangue, pálida e fria,
Mas calada em sua dor.

Parece que a natureza
Quis provar esta verdade,
Quando diversa da roxa
Te criou, branca saudade.

Fonte:
Laurindo Ribeiro. Poesias Completas. Fundação Biblioteca Nacional/Ministério da Cultura

Irmãos Grimm (Rapunzel)

Era uma vez um homem e uma mulher que há muito tempo desejavam em vão ter um filho. Os anos iam passando e a mulher esperava que Deus fosse atender o desejo dela. Eles tinham uma pequena janela no fundo da casa de onde se podia ver um esplêndido jardim, cheio das mais belas flores e verduras. No entanto, ele era cercado por um muro alto, e ninguém se atrevia a escalá-lo, porque ele pertencia a uma feiticeira, que possuía grandes poderes e era temida por todo o mundo.

Um dia, a mulher estava de pé ao lado da janela e olhava para o jardim, quando ela viu um canteiro onde haviam plantado o mais lindo rapôncio (ou rapunzel) que ela jamais vira, e a planta era tão verde e fresca que ela queria pegar algumas, e desejava muito comê-las. Este desejo aumentava a cada dia que passava, e como ela sabia que não havia jeito de conseguir nem um pouquinho delas, ela começou a definhar, e foi ficando triste e abatida.

Até que um dia o marido dela ficou assustado, e perguntou:

— O que você tem, minha querida esposa?

— Ah, respondeu ela, se eu não puder pegar um pouco de rapôncio, que fica no jardim atrás de nossa casa, para comer, eu vou morrer. O marido, que a amava, pensou:

— Antes que a minha esposa morra, preciso trazer para ela um pouco de rapôncio, custe o que custar. Ao cair da noite, ele pulou o muro que dava para o jardim da feiticeira, pegou apressadamente um punhado de rapôncios, e levou para a sua esposa.

Imediatamente ela fez uma salada, e a comeu com grande satisfação. Ela, no entanto, gostou tanto, mas tanto mesmo do rapôncio que no dia seguinte por três vezes ela sentiu a mesma vontade de antes. Se ele quisesse ter um pouco de sossego, o seu marido deveria descer mais uma vez ao jardim. Quando começou a escurecer, portanto, ele decidiu ir lá novamente, mas assim que ele pulou o muro, ele ficou terrivelmente assustado, porque ele viu a feiticeira de pé diante dele.

— Como te atreves, disse ela com ódio nos olhos, descer ao meu jardim e roubar os meus rapôncios como se fosses um ladrão? Deves sofrer por isso!

— Ah, respondeu ele, permita que a misericórdia tome o lugar da justiça, eu só decidi fazer isso por motivo de necessidade. A minha esposa viu o seu rapôncio da janela, e sentiu uma vontade muito grande de comê-lo que ela teria morrido se não conseguisse alguns para comer. Então, a feiticeira deixou que o ódio diminuísse, e disse a ele,

— Se é assim como dizes, eu permitirei que leves contigo tanto rapôncio quanto desejares, mas, exijo porém, uma condição, tu darás a mim o filho que a tua esposa trará ao mundo; ele será bem tratado, e eu cuidarei dele como se fosse uma mãe.

O homem estava tão apavorado que concordou com tudo, e quando a mulher ficou de cama, a feiticeira apareceu de repente, deu à criança o nome de Rapunzel, e a levou embora consigo.

Rapunzel cresceu como a mais linda criança abaixo do sol. Quando ela completou doze anos de idade, a feiticeira a prendeu em uma torre, que ficava no meio de uma floresta, e não possuía nem escadas nem porta, porém, bem no alto havia uma pequena janela. Quando a feiticeira queria entrar, ela se colocava debaixo da janela, e gritava:
   
— Rapunzel, Rapunzel
Joga as tuas tranças para mim.

Rapunzel tinha um cabelo esplendoroso, finos como os fios de ouro, e quando ela ouviu a voz da feiticeira, ela soltava seu emaranhado de tranças, enrolava-os em torno dos ganchos da janela acima dela, e então os cabelos caiam o comprimento de vinte varas para baixo, e a feiticeira subia por ele.

Depois de um ano ou dois, aconteceu que o filho do rei cavalgava pela floresta e passava perto da torre. Então ele ouviu uma canção, que era tão linda que ele parou para ouvir. Esta era Rapunzel, que em sua solidão, passava o tempo deixando que a sua linda e doce voz ressoasse. O filho do rei quis subir até onde ela estava, e procurou a porta da torre, mas não encontrou nada. Foi para casa, mas a voz dela havia tocado tão profundamente o seu coração, que todos os dias, ele saía pela floresta para ouvi-la. Uma vez, quando ele estava assim de pé atrás de uma árvore, ele viu que uma feiticeira havia chegado, e ele ouvia quando ela gritou:

— Rapunzel, Rapunzel
Joga tuas tranças para mim.

Então Rapunzel descia as tranças de seus cabelos, e a feiticeira subia até lá em cima. Se essa é a escada por onde se sobe até o alto da torre, eu vou tentar a minha sorte uma vez,disse ele, e no dia seguinte, quando começou a escurecer, ele foi até a torre e gritou:

— Rapunzel, Rapunzel
Joga tuas tranças para mim.

Imediatamente os cabelos caíram e o filho do rei subiu.

A princípio Rapunzel ficou muito assustada quando tal homem, que seus olhos jamais haviam contemplado, se aproximou dela, mas o filho do rei começou a conversar com ela como um amigo, e disse-lhe que o seu coração havia sido tocado tão fortemente que isso não lhe permitia que ele tivesse sossego, e ele se sentiu obrigado a procurá-la. Então, Rapunzel perdeu o medo e quando ele lhe perguntou se ela o aceitaria como seu marido, e vendo ela que ele era jovem e belo, ela pensou:

— Ele me amará mais do que me ama a velha Senhora Gothel, e ela disse sim, colocando suas mãos sobre as dele.

Ela disse:

— Faço questão de ir-me embora contigo, mas eu não sei como descer. Sempre que vieres, traze contigo uma meada de seda, que eu vou tecer uma escada com ela, e quando ela estiver pronta eu descerei, e tu me levarás em teu cavalo. Eles combinaram que até que esse momento chegasse ele viria vê-la todas as noites, porque a velhinha somente vinha de dia. A feiticeira não desconfiou de nada, até que uma vez Rapunzel disse a ela:

— Diga-me, Senhora Gothel, porque será que a senhora é muito mais pesada para eu puxar do que o jovem filho do rei — ele sobe num instantinho.

— Ah, criatura perversa, gritou a feiticeira. — O que te ouço dizer! Pensei que a tivesse separado do mundo, e ainda assim me enganas!

Cheia de ódio, ela agarrou as lindas tranças de Rapunzel, deu duas voltas em sua mão esquerda, pegou uma tesoura com a direita, e snip, snap, cortou os cabelos dela, e as belas tranças foram jogadas no chão.
   
E a velha era tão impiedosa que levou a pobre Rapunzel para o deserto onde ela foi obrigada a viver triste e abandonada.

No mesmo dia, contudo, depois de ter expulsado Rapunzel, a feiticeira amarrou as tranças de cabelo que ela tinha cortado ao gancho da janela, e quando o filho do rei veio e gritou:

— Rapunzel, Rapunzel
Joga tuas tranças para mim.

Ela descia os cabelos. O filho do rei subiu, mas ele não encontrou sua bela Rapunzel lá em cima, mas, a feiticeira, que olhou para ele com olhos perversos e venenosos. Ahá, gritou ela, zombeteiramente.

— Viestes buscar a tua amada, mas o lindo pássaro não está mais cantando em seu ninho, o gato o comeu, e irá arranhar os teus olhos também. Rapunzel não existe mais para ti, não a verás mais.

O filho do rei sentiu um pesar muito grande, e desesperado, pulou para fora da torre.

Ele salvou a sua vida, mas os espinhos sobre os quais ele caiu, perfuraram os seus olhos. Então ele caminhou completamente cego pela floresta, não comia nada além de raízes e de frutas, e não fazia nada além de lamentar e chorar a perda de sua querida esposa. Desesperado, o príncipe caminhava qual um desesperado durante alguns anos, e, depois de muito tempo, chegou ao deserto onde Rapunzel, vivendo com os gêmeos a quem dera a luz, um menino e uma menina, vivia muito infeliz.

O príncipe ouviu uma voz, que lhe parecia muito familiar, e caminhou em direção a ela, e quando ele se aproximou, Rapunzel o conheceu, e abraçou o seu pescoço e chorou. Duas lágrimas suas molharam os olhos dele e eles ficaram claros novamente, e ele conseguiu ver como antes. Ele a levou para o seu palácio onde foi recebido com alegria, e eles viveram durante muito tempo depois, felizes e satisfeitos.

Fonte:
Contos de Grimm

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 48 – 24 de fevereiro de 1888

Juro-lhe, meu caro amigo
Leitor, pelo que há sagrado,
Que eu, que a triste regra sigo
De viver apoquentado;

Que suporto as sanguessugas
Humanas e desumanas,
Que não ganhei estas rugas
Em redes e tranquitanas;

Que aturo todo o importuno,
Que me refere a maneira
Por que o demo de um gatuno
Lhe foi levando a carteira;

Ou me conta tudo, tudo
(Mas tudo!) o que há padecido,
Para que, após longo estudo,
Ver que foi indeferido;

Que com ânimo quieto,
Leio, depois de almoçado,
Tudo o que sobre o arquiteto
Magalhães se há publicado;

Juro-lhe, leitor, repito,
Que cometer não quisera
O mais pequeno delito
Que este mundo haver pudera.

Furtar um par de galinhas,
Dizer algum nome feio,
Chegar mesmo às facadinhas,
Dar dois cachações e meio.

Não porque a moral condene
Tais atos; condena, é certo,
De um modo grave e solene,
Determinativo e aberto;

Nem também porque, somadas
As contas, mais ganha a gente
Passando as horas caladas
No belo sono inocente.

Não, senhor; outra é a causa,
É outra, uma certa lista,
Que é preciso ler com pausa,
Mente clara e clara vista.

Do rol dos processos digo
Que ao tribunal dos jurados
Foram, para seu castigo,
Inda agora apresentados.

Que traz esse rol? Descubro
Entre outros muitos nomes
Que em oitenta e seis, outubro,
Foi preso um Antônio Gomes.

Pronunciado em janeiro
De oitenta e sete, entra agora
No julgamento primeiro
Do que fez em tão má hora!

Mais três, um Afonso Rosa,
Um Coelho, uma tal Francisca
Xavier, trempe graciosa,
Ao parecer, pouco arisca.

Visto que foi agarrada
Logo em março, dezessete,
Em março pronunciada,
Em março de oitenta e sete!

Há também na lista um certo
Francisco Peres Soares,
Já em abril descoberto
E mandado a tomar ares;

O qual logo em maio teve
Pronúncia do seu delito;
Fez um ferimento leve,
Foi preso ao som de um apito.

Ora, com franqueza, vale,
Ser criminoso em tal era?
Uma peça de percale
Paga tão comprida espera?

Um tabefe, uma rasteira,
Mesmo uma canivetada,
Pagou de alguma maneira
A espera desesperada;

Portanto, e vistos os autos,
Dou de conselho prudência,
E digo aos homens incautos
Que inda o melhor é a inocência.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Teófilo Braga (O Figuinho da Figueira)

Recolhido no Algarve

Era uma vez um homem que tornou a casar, e tinha uma filha do primeiro casamento que era tratada pela madrasta mal a mais não poder. Tinham uma figueira lampa no quintal, para onde a madrasta mandava a enteada guardar os figos por causa da passarada.

Quando a pequena ia para o campo, a madrasta seguia-a também para contar os figos, dizendo-lhe que a matava se lhe faltasse algum.

Um dia veio o milhano e comeu três figos, por mais que a pequena o enxotasse. Quando estava já a anoitecer a madrasta veio revistar a figueira, e deu pela falta de três figos. Logo ali matou a enteada e a enterrou debaixo da figueira, e veio para casa dizendo que a rapariga tinha fugido.

O pai pensou que ela teria ido servir para alguma casa longe. Um dia que o pai passava por debaixo da figueira, ficou pasmado de ver debaixo dela muitas flores, e entre elas um lindo botão de rosa. Foi para as colher, mas sentiu uma voz, a dizer-lhe:

Não me arranquem os meus cabelos,
Que minha mãe os criou,
Minha madrasta os enterrou
Pelo figo da figueira
Que o milhano levou.
   
A princípio o homem ficou sem saber o que havia de fazer; mas por fim resolveu-se a fazer uma cova naquele lugar, para ver que coisa era.

Depois de estar já bem funda a cova, descobriu uma laje, levantou-a, e deu com uma escadaria por onde desceu. Quando chegou lá abaixo encarou com a filha, que estava muito linda e muito bem vestida:

– Filha, como é que vieste ter aqui?

– Quando a minha madrasta me enterrou, apareceu-me aqui esta casa, e todos os dias vem aqui uma senhora dar-me de comer.

O pai ficou vivendo com a filha, e não quis mais saber da mulher.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Alves Redol (Gaibéus)

Gaibéus é comumente aceito como o romance que marca o aparecimento do neo-realismo em Portugal.  Romance que retrata as modestas condições de vida dos camponeses da região do Ribatejo. Esse escritor do neo-realismo português revela-se, através de Gaibéus, um perfeito organizador de sensações e impressões, criando imagens de variados tipos, a partir do discurso poético. Sua linguagem expressa elevado grau de visualismo nas descrições das paisagens ribatejanas e nos gestos e expressões de suas personagens. Através da correspondência entre o discurso verbal e o discurso pictórico, Alves Redol consegue criar no leitor, a ilusão de ser um espectador que assiste a um espetáculo ou a sensação de estar diante de um quadro. 

Gaibéus é o primeiro romance de Alves Redol e foi publicado em 1939. É o ponto de partida da obra romanesca do autor. Mas é também o ponto de chegada de uma longa reflexão de Alves Redol sobre o significado e o papel da arte, o primeiro edifício do programa de uma literatura nova. Fiel ao seu ideário, antes de escrever Gaibéus, o autor realizou um amplo trabalho de campo - deslocou-se repetidas vezes à lezíria, chegou mesmo a instalar-se no campo para recolher dados sobre o trabalho nos arrozais. Os seus blocos de apontamentos contêm numerosas indicações técnicas sobre o cultivo do arroz.

Como viria a confirmar-se em obras posteriores, este primeiro trabalho do autor é uma das suas incursões ao país real, rural, de um povo trabalhador e explorado. Conta a vida desses jornaleiros que trabalhavam na monda do arroz numa das lezírias do Ribatejo. Homens e mulheres que vinham de outras terras, como alugados para um trabalho duro, de sol a sol, e de fraca paga. Alves Redol, com uma escrita nascida na oralidade do povo (e por isso o leitor tem de contar com algumas palavras e expressões menos comuns), retrata com um realismo cruel o modo de vida dos gaibéus (jornaleiro da província portuguesa do Ribatejo ou da Beira Baixa que vai trabalhar nas lezírias durante as mondas) que ganhavam o seu sustento na época das mondas do arroz. Os maus-tratos, as más condições de trabalho, a exploração nua e crua, o abismo social entre o proprietário e o assalariado, a resignação e passividade de uns e a consciência e angústia de outros, são o tema deste grande livro desse grande escritor tão pouco lembrado.

História simbólica do embate de duas diferentes mentalidades, a desunião entre gaibéus e rabezanos é triste e profético paradigma das oposições, ainda hoje bem marcadas, entre os camponeses dos minifúndios e os dos latifúndios. Redol acreditava que seria possível o casamento entre uns e outros quando descobrissem que a mesma fome os une.

As personagens são uma e todas ao mesmo tempo. Um povo resignado que luta com afinco durante o tempo quente, antes da chegada do inverno, em condições extremas para fazer render os poucos cobres que lhes pagam por tamanha dureza. Por um lado o trabalho árduo de sol a sol, as doenças (malária), a fadiga e a teimosia em cada vez se fazer o trabalho mais rápido para mais rendimento obter, a sede, a fome, a pobreza extrema. Por outro lado, o modo como preenchiam as escassas horas de lazer, os sonhos de uma vida melhor, os projetos sem logro, o vinho para alegrar os espíritos. As mulheres ainda sofrem de outro tipo de exploração, sendo sujeitas aos caprichos do senhor das terras que as escolhe para os seus prazeres carnais.

E o futuro espelhado numa velha que acaba por enlouquecer, fraca e doente, mas com o mesmo anseio de pegar na foice para acabar o trabalho, iludindo-se, febrilmente delirante, no gabar-se de ainda ser o exemplo para os outros de como é uma verdadeira mondadeira.

Há também a personagem que remói as palavras duras dos capatazes e cerra de raiva os dentes na presença do patrão. Uma consciência da exploração de que é vítima, mas de que não tem fuga possível, a não ser, talvez, tentar a sorte em terras distantes como Brasil e África de onde alguns retornavam abastados.

E quando enfim o Inverno chega e a monda se acaba, os jornaleiros regressam com esse sabor amargo às suas terras de origem, preparando-se, no ano seguinte, para procurar trabalho no mesmo rancho, em outras lezírias…

Narrativa muito bem construída que, exceto por algumas palavras e expressões que requerem o uso do dicionário e um pouco de experiência junto das gentes rurais, se lê muito bem e com grande satisfação e curiosidade, uma vez que se trata do retrato fiel do homem português explorado até aos limites na década de trinta; portanto, que faz parte da nossa memória.

Alves Redol revela-se, através de Gaibéus, um perfeito organizador de sensações e impressões, criando imagens de variados tipos, a partir do discurso poético. Sua linguagem expressa elevado grau de visualismo nas descrições das paisagens ribatejanas e nos gestos e expressões de suas personagens. Através da correspondência entre o discurso verbal e o discurso pictórico, Alves Redol consegue criar no leitor, a ilusão de ser um espectador que assiste a um espetáculo ou a sensação de estar diante de um quadro.

Fonte:
Passeiweb

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Ariano Suassuna (Poemas Escolhidos)

O MUNDO DO SERTÃO

(com tema do nosso armorial)

Diante de mim, as malhas amarelas
do mundo, Onça castanha e destemida.
No campo rubro, a Asma azul da vida
à cruz do Azul, o Mal se desmantela.

Mas a Prata sem sol destas moedas
perturba a Cruz e as Rosas mal perdidas;
e a Marca negra esquerda inesquecida
corta a Prata das folhas e fivelas.

E enquanto o Fogo clama a Pedra rija,
que até o fim, serei desnorteado,
que até no Pardo o cego desespera,

o Cavalo castanho, na cornija,
tenha alçar-se, nas asas, ao Sagrado,
ladrando entre as Esfinges e a Pantera.

AQUI MORAVA UM REI

"Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.”

O AMOR E A MORTE

Com tema de Augusto dos Anjos

Sobre essa estrada ilumineira e parda
dorme o Lajedo ao sol, como uma Cobra.
Tua nudez na minha se desdobra
— ó Corça branca, ó ruiva Leoparda.

O Anjo sopra a corneta e se retarda:
seu Cinzel corta a pedra e o Porco sobra.
Ao toque do Divino, o bronze dobra,
enquanto assolo os peitos da javarda.

Vê: um dia, a bigorna desses Paços
cortará, no martelo de seus aços,
e o sangue, hão de abrasá-lo os inimigos.

E a Morte, em trajos pretos e amarelos,
brandirá, contra nós, doidos Cutelos
e as Asas rubras dos Dragões antigos.

A MOÇA CAETANA A MORTE SERTANEJA

Com tema de Deborah Brennand
Eu vi a Morte, a moça Caetana,
com o Manto negro, rubro e amarelo.
Vi o inocente olhar, puro e perverso,
e os dentes de Coral da desumana.

Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel,
os peitos fascinantes e esquisitos.
Na mão direita, a Cobra cascavel,
e na esquerda a Coral, rubi maldito.

Na fronte, uma coroa e o Gavião.
Nas espáduas, as Asas deslumbrantes
que, rufiando nas pedras do Sertão,

pairavam sobre Urtigas causticantes,
caules de prata, espinhos estrelados
e os cachos do meu Sangue iluminado.

A MORTE — O SOL DO TERRÍVEL

Com tema de Renato Carneiro Campos

Mas eu enfrentarei o Sol divino,
o Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei porque a teia do Destino
não houve quem cortasse ou desatasse.

Não serei orgulhoso nem covarde,
que o sangue se rebela ao toque e ao Sino.
Verei feita em topázio a luz da Tarde,
pedra do Sono e cetro do Assassino.

Ela virá, Mulher, afiando as asas,
com os dentes de cristal, feitos de brasas,
e há de sagrar-me a vista o Gavião.

Mas sei, também, que só assim verei
a coroa da Chama e Deus, meu Rei,
assentado em seu trono do Sertão.

LÁPIDE
Com tema de Virgílio, o Latino, e de Lino Pedra-Azul, o Sertanejo

Quando eu morrer, não soltem meu Cavalo
nas pedras do meu Pasto incendiado:
fustiguem-lhe seu Dorso alardeado,
com a Espora de ouro, até matá-lo.

Um dos meus filhos deve cavalgá-lo
numa Sela de couro esverdeado,
que arraste pelo Chão pedroso e pardo
chapas de Cobre, sinos e badalos.

Assim, com o Raio e o cobre percutido,
tropel de cascos, sangue do Castanho,
talvez se finja o som de Ouro fundido

que, em vão – Sangue insensato e vagabundo —
tentei forjar, no meu Cantar estranho,
à tez da minha Fera e ao Sol do Mundo!

DÉCIMAS ANTE UM RETRATO DE CAMÕES

Se, na noite de chuva, a Tempestade
em solitários galhos acoitados,
revivesse os Navios naufragados
e o travoso gemer da Soledade;
se, da grave assonância da Vontade
entrevesse se pudesse o sacrifício
nesse claro e cansado Frontispício
quem, mais do que teus Olhos, cantaria
da vida o Caso cego e a galhardia,
a Luz flamante e o sacro Desperdício?

Teus olhos! Mas quem pode apaziguá-los?
Se, num, a flecha agónica demora,
noutro há bruma, salgueiro e Harpa sonora,
entre os passos do Rei com seus vassalos.
O pó e o sangue,as patas dos Cavalos
repousam nesse sulco fatigado.
E, se o bravo Queixume informulado
evoca os destroços areais,
o ressonar dos Bosques provençais
doura na Morte a mágoa do pecado.

Pensar que foste criança e que aspiraste
o cheiro da Madeira mal queimada;
que, ao perseguir, insone, a Madrugada,
a chama do Desterro desejaste.
O Sal marinho, as folhas que esmagaste,
e vida e nome, pássaro e Memória.
Pois, se Fortuna e treva derisória
urdiram tua Sorte alada e escura,
foi que o porvir tecera, na Espessura,
da Cadência já morta o Canto e a glória.

Pureza e dolo. A Sombra se amontoa
- destroço ressurrecto e trespassado -
na prisão a quem a um tempo foste atado,
no Barco que te chama e te enevoa.
Debalde! A Fonte é cortadora Proa,
barba barroca é Quilha e madeirame.
E o Cedro, a Infanta, a coifa de beirame,
tudo isso e tudo mais que não se exprime
- que não se diz - e é o que talvez redime
o atravessar das águas e o Velame.

Assim, não mais o som desse Acalanto,
não mais o Apelo, só, do já passado:
que teu Anjo o receba, dissipado,
numa Páscoa de fogo e tenso Canto.
Pois se o Eco de sono e louro acanto
não te pôde levar o que pressente,
num sussurro fraterno e Sopro ardente
chegue a ti meu Duende extraviado
e o Sonho, anseio extinto e renovado,
que é Pena e mudez de meu presente.

NOTURNO
 

Têm para mim Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.

Será que mais Alguém vê e escuta?

Sinto o roçar das asas Amarelas
e escuto essas Canções encantatórias
que tento, em vão, de mim desapossar.

Diluídos na velha Luz da lua,
a Quem dirigem seus terríveis cantos?

Pressinto um murmuroso esvoejar:
passaram-me por cima da cabeça
e, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
a ventania me agitando em torno
esse cheiro que sai de teus cabelos.

Que vale a natureza sem teus Olhos,
ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?

Da terra sai um cheiro bom de vida
e nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mão...

Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Águas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.

Ó meu amor, por que te ligo à Morte?

Ariano Suassuna (1927)

Ariano Vilar Suassuna nasceu na cidade de João Pessoa, Paraíba, no dia 16 de junho de 1927, filho de João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Villar.

Fez o curso primário no município de Taperoá/PB.

Em 1942, a família Suassuna se transfere para o Recife onde Ariano complementa seus estudos .

Em 1946, entrou para a Faculdade de Direito do Recife, onde conheceu um grupo de escritores, atores, poetas, romancistas e pessoas interessadas em arte e literatura, entre os quais, Hermilo Borba Filho, com o qual fundou o Teatro de Estudantes de Pernambuco.

Em 1947, escreveu sua primeira peça de teatro: “Uma mulher vestida de sol”, baseada no romanceiro popular do Nordeste brasileiro e com ela ganhou o prêmio Nicolau Carlos Magno, em 1948.

Concluiu o curso de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais em 1950.

Entre 1951 e 1952, volta a Sousa, para curar-se de uma doença pulmonar. Lá escreveu e montou Torturas de um coração. Em seguida, retorna a Recife, onde, até 1956, dedica-se à advocacia e ao teatro.

No dia 19 de janeiro de 1957, casa-se com Zélia de Andrade Lima, com a qual teve seis filhos: Joaquim, Maria, Manoel, Isabel, Mariana e Ana.

Em 1959, em companhia de Hermilo Borba Filho, fundou o Teatro Popular do Nordeste, que montou em seguida a Farsa da Boa Preguiça (1960) e A Caseira e a Catarina (1962).

No início dos anos 60, interrompeu sua bem-sucedida carreira de dramaturgo para dedicar-se às aulas de Estética na UFPE.

Foi membro fundador do Conselho Federal de Cultura, do qual fez parte de 1967 a 1973 e do Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, no período de 1968 a 1972.

Foi nomeado, em 1969, Diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, ficando no cargo até 1974.

Ligado diretamente à cultura, iniciou em 1970, em Recife, o “Movimento Armorial”, interessado no desenvolvimento e no conhecimento das formas de expressão populares tradicionais. Convocou nomes expressivos da música para procurarem uma música erudita nordestina que viesse juntar-se ao movimento, lançado em Recife, em 18 de outubro de 1970, com o concerto “Três Séculos de Música Nordestina – do Barroco ao Armorial”, na Igreja de São Pedro dos Clérigos e uma exposição de gravura, pintura e escultura.

Doutorou-se em História pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1976.

Foi professor da UFPE por 32 anos, onde ensinou Estética e Teoria do Teatro, Literatura Brasileira e História da Cultura Brasileira.

Entre 1958-79, dedicou-se também à prosa de ficção, publicando o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971) e História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão / Ao Sol da Onça Caetana (1976), classificados por ele de “romance armorial-popular brasileiro”.

Ariano Suassuna construiu em São José do Belmonte, onde ocorre a cavalgada inspirada no Romance d’A Pedra do Reino, um santuário ao ar livre, constituído de 16 esculturas de pedra, com 3,50 m de altura cada, dispostas em círculo, representando o sagrado e o profano. As três primeiras são imagens de Jesus Cristo, Nossa Senhora e São José, o padroeiro do município.

Membro da Academia Paraibana de Letras e Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2000).

Em 2004, com o apoio da ABL, a Trinca Filmes produziu um documentário intitulado O Sertão: Mundo de Ariano Suassuna, dirigido por Douglas Machado e que foi exibido na Sala José de Alencar.

Em 2002, Ariano Suassuna foi tema de enredo no carnaval carioca na escola de samba Império Serrano; em 2008, foi novamente tema de enredo, desta vez da escola de samba Mancha Verde no carnaval paulista. Em 2013 sua mais famosa obra, o Auto da Compadecida será o tema da escola de samba Pérola Negra em São Paulo.

Em 2006, foi concedido título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Ceará, mas que veio a ser entregue apenas em 10 de junho de 2010, às vésperas de completar 83 anos. "Podia até parecer que não queria receber a honraria, mas era problemas de agenda", afirmou Ariano, referindo-se ao tempo entre a concessão e o recebimento do título.

Dramaturgo, romancista, poeta, ensaísta, defensor incansável da cultura popular, das raízes brasileiras e, especialmente nordestina, é autor de várias obras:

    Uma mulher vestida de Sol, (1947);
    Cantam as harpas de Sião ou O desertor de Princesa, (1948);
    Os homens de barro, (1949);
    Auto de João da Cruz, (1950);
    Torturas de um coração, (1951);
    O arco desolado, (1952);
    O castigo da soberba, (1953);
    O Rico Avarento, (1954);
    Auto da Compadecida, (1955);
    O casamento suspeitoso, (1957);
    O santo e a porca, (1957);
    O homem da vaca e o poder da fortuna, (1958);
    A pena e a lei, (1959);
    Farsa da boa preguiça, (1960);
    A Caseira e a Catarina, (1962);
    As conchambranças de Quaderna, (1987);
    Fernando e Isaura, (1956)"inédito até 1994".

Romance

    A História de amor de Fernando e Isaura, (1956);
    O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, (1971);
    História d'O Rei Degolado nas caatingas do sertão /Ao sol da Onça Caetana, (1976)

Poesia


    O pasto incendiado, (1945-1970);
    Ode, (1955);
    Sonetos com mote alheio, (1980);
    Sonetos de Albano Cervonegro, (1985);
    Poemas (antologia), (1999).

Fontes:
MEMORIAL do imperador d `A pedra do reino. Jornal do Commercio, Recife, 15 jun. 1997. Especial, p.2.
SOUTO MAIOR, Mário. Dicionário de folcloristas brasileiros. Recife: 10-10 Comunicação e Editora, 1999. p.31.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

Rachel de Queiroz (A Fábula do Homem e seu Garrafão)

Pelo interior do Brasil é comum a presença de um cara que é chamado de "propagandista". Aqui pelo estado do Rio, antes da camelotagem desenfreada, ele era chamado também de "camelô".

Usava roupa vistosa, por exemplo: paletó xadrez vermelho e verde, calças bois de rose, gravata azul-bebê. Em geral fazia propaganda de remédios que curam tudo, todos os males do mundo e até maus pensamentos.

Ouvi que vendia xarope contra sífilis e, referindo-se às doenças "sexualmente transmissíveis", falava poeticamente em "mal de amores".

E foi a propósito de propagandistas que recordávamos ontem, minha irmã e eu, um caso que nosso pai nos contava garantindo que era verdadeiro.

Sucedeu numa cidade cujo nome ele não dava, para "evitar constrangimentos".

O sujeito já desceu do trem vestido a caráter: terno de listras colorido, sapato pampa, camisa roxo-batata, gravata amarela.

Na pensão registrou-se, levou a mala à sua vaga no quarto e, portando um grande rolo de papel debaixo do braço, pediu permissão à dona da casa para expor à sua porta um cartaz, que dizia o seguinte: "Hoje, às 16 horas, venham ver o homem que entra no garrafão!"

Dali, foi à igreja à procura do vigário, solicitando a sua reverência licença para dar uma demonstração estupefata, tendo como palco a escadaria da matriz. O padre ficou meio espantado quando leu o cartaz, mas acedeu. Também queria ver aquilo. Os outros cartazes foram espalhados pelas ruas, saturando todo o lugarejo.

Claro que a curiosidade foi enorme. Fizeram-se apostas, teve gente que rasgava nota de cem em duas, que é a maneira mais popular de registrar apostas sem papel escrito. Quem vai ganhar vai receber do outro a sua metade da nota.

Logo depois do almoço, o nosso homem foi à farmácia, onde negociou o aluguel de um garrafão de vidro, desses que transportam água destilada. Da pensão conseguiu ainda uma mesinha, e assim, pontualmente às quatro da tarde, lá estava ele com seus trajes multicores e os seus apetrechos, pronto para a "demonstração".

A praça pululava de gente. Faziam-se as mais ousadas conjecturas: "O garrafão é de borracha transparente. No que o homem for entrando, ele estica, até caber". Outros acreditavam em hipnotismo. "Ele hipnotiza todo mundo e aí a gente acredita que ele entrou em qualquer coisa." Outros achavam que era só um truque: "Não sei como é, mas tem que ser um truque".

E assim, ele começou a falar sob aplausos e assobios. Delicadamente pediu silêncio à multidão: ia começar o espetáculo.

Tirou o casaco, tirou a gravata, pôs no chão o chapéu de palhinha, mostrou as mãos vazias. Então, lentamente, lentamente, tentou enfiar a mão direita pelo gargalo do garrafão. Não cabia, claro. Estirou o polegar, introduziu o dedo no gargalo - entrou! Mas parou na junta. Ele suspirava, mas, com a mão esquerda, tentou de novo: não entrou. Descalçou os sapatos, experimentou o pé - qual! Não entrou mesmo - era ainda maior que a mão. Tentou o nariz, até que ralou e minou sangue. Não entrou também.

E, diante do silêncio atônito da multidão, o homem abriu os braços de pura impotência e constatou desolado:

- Realmente, foi impossível. Mas vocês bem que viram: eu tentei!

(Correio Braziliense em 07/01/2002)

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

João Ubaldo Ribeiro (Viajar, viajar)

Estou em Paris e sou um fenômeno. Pagaram minha passagem, deram-me ajuda de custos e aqui estou eu. Dirão vós: que há de tão fenomenal nisso? Afinal, alguns brasileiros, talvez em número bem maior do que estimamos, já estiveram ou estarão em Paris. Verdade, verdade, mas meu caso é raro, pois que sou o único que se queixa de viajar a uma cidade sem rival e, com perdão da má palavra, imperdível, ainda por cima sem gastar praticamente nada do parco dinheirinho que ganho escrevendo coisas sem as quais o mundo permaneceria tal e qual. Verdade, verdade, mas encaro minhas viagens como uma sina, porque detesto viajar e cada vez detesto mais. Conto-vos por quê, na esperança de encontrar alguma compreensão.

Viajar dá trabalho, em primeiro lugar. Não sei, e não por falta de empenho, Deus é testemunha, fazer malas. Por alguma razão que escapa a meu entendimento, tudo o que já foi posto com folga na mala, por minha heróica consorte, sobra na hora de voltar. Diriam vós: “Ah, o safardana passa o tempo nas lojas, se entope de compras e aí não vê jeito de encontrar lugar na mala para botar tudo”. Ledo engano, eu não compro nada, fujo de lojas e, atentai para o que vos chamo a atenção, sou do tempo em que Nova York era uma viagem na qual as senhoras elegantes usavam chapéu, não era coisa para qualquer um. Hoje, Nova York talvez seja mais fácil de alcançar do que a Barra da Tijuca, nos horários de pique. E pensando bem, quem vai à Barra não precisa de Nova York: está tudo lá, inclusive em inglês, língua hoje pouco falada na Nova York propriamente dita.

Mas o que acontece comigo e as malas é um mistério. Rotineiramente, as roupas se duplicam, os bagulhos e remédios que todo coroa e paranóico, categorias em que me encaixo belamente, carrega consigo se transformam num mar de caixas e embalagens, camisas e afins assumem proporções extraordinárias e vários problemas correlatos me afligem. Enfim, para vos confessar a mais pura verdade, eu levo uma sacola extra em qualquer viagem ao exterior. Ela vai vazia dentro da mala principal e, empanturrada, se torna indispensável na volta. Devo reconhecer que, em meu favor, depõe o fato de sempre me darem livros, com dedicatórias, que não tenho coragem de jogar na cesta e até me deram, numa vez em que estive na feira de Arles, na Provence, dois salames - não sei se estavam querendo me dizer alguma coisa não tão sutil.

E tem o problema da viagem de avião, agora sem poder fumar e com uma comida que provocaria tumultos e apedrejamentos em qualquer bandejão do planeta. Classe econômica, turística, ou outro eufemismo para o que as equipes de bordo chamam de “galpão”, é um horror que Dante não pôde incluir em seu inferno (se já houvesse aviões naquele tempo, ele botaria algum desafeto nela), notadamente quando um grupo em excursão começa a tocar violões e pandeiros, geralmente, não sei bem por quê, cantando o “Trem das onze”. Para não falar no fato de que as poltronas, nome artístico aplicado a cadeiras claustrofobilizantes, não deixam espaço nem para um anão (“verticalmente prejudicado”, perdão; de vez em quando esqueço de ser politicamente correto, perdão, perdão) sentar. Imagino que alguns nórdicos altões já se submeteram a amputações voluntárias, no aeroporto mesmo, antes de embarcarem em certas classes econômicas.

E tem o problema da cara errada. Minha cara é sempre errada. Os únicos lugares em que eu não tenho, acho eu, a cara errada são Itaparica, Aracaju, uns dois bairros ou favelas de São Paulo e aqui o Leblon mesmo. Nos Estados Unidos, tenho cara de cucaracha. Na Alemanha, tenho cara de turco. Na França, tenho cara de árabe. Em Milão, tenho cara de calabrês. Em Buenos Aires, tenho cara de brasileiro. E, no meu passaporte, tenho cara de contrabandista de maconha paraguaio. Acresça-se a isto o fato de que, mesmo vestido com um terno caro, transformo-o imediatamente em andrajos, tal a minha elegância inata. Quem não passou pelo que eu já passei, por problemas de cara errada, não faz idéia do doloroso transe que isso constitui. E, pior ainda, consigo me dar bem em inglês, língua desconhecida em Miami e Manhattan, mas meu francês seria considerado de baixo nível numa escola para débeis mentais até os oito anos de idade (depois eu seria internado, francês não dá moleza para ninguém), ainda mais alguém com a minha cara.

Mas, assim mesmo, viajo. É sina, carma, já me conformei. Conheci Nova York, na época via Belém, Trinidad e Porto Rico, antes de conhecer Rio e São Paulo. Estou aqui em Paris, caros amigos. Vou dar uma rezadinha na Notre Dame, vou passear no Quartier Latin e vou até entrar, pela terceira vez, na fila do Museu do Louvre. Isso se conseguir sobreviver ao trauma de carregar o laptop, que fica dez quilos mais pesado a cada quilômetro - estimativa modesta para o que nos obrigam a caminhar por minuto em aeroportos, inclusive o Tom Jobim. Sim, e desta vez a Alfândega não me pegou, o que, aliás, não me surpreendeu muito, porque a Alfândega só costuma me pegar feio em Portugal, de cujos aeroportos já quis até dar uma escapulidazinha para ver se conseguia comprar um baseado e assim fazer a felicidade do fiscal que não acreditava em minha condição de escritor e, com a cara muito sabida (foi no Porto, não em Lisboa, manda a honestidade que eu faça a ressalva), contestou-a, dizendo que na minha mala não havia livros.

- Mas eu não sou livreiro - disse eu. - Sou somente escritor.

- Pois sim - respondeu ele, enquanto apalpava, com cara de quem gostaria de usar uma gilete, o único paletó em minha mala, e até hoje deve estar convicto de que foi vítima de alguma astúcia brasileira desconhecida. Enfim, eis-me em Paris. Prometo que, na minha rezadinha em Notre Dame, dou carona a todos vós. Mal não há de trazer-vos.

O GLOBO em 24/03/2002

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

Laurindo Ribeiro (Poesias Avulsas)

A LINGUAGEM DOS TRISTES

Se houver um ente, que sorvido tenha
Gota a gota o veneno da amargura;
Que nem nos horizontes da esperança
Veja raiar-lhe um dia de ventura;

Se houver um ente, que, dos homens certo,
Neles espere certa a falsidade;
Que veja um laço vil num rir de amores,
Uma traição nos mimos da amizade;

Se houver um ente, que, votado às dores,
Todo com a tristeza desposado,
De cruéis desenganos só nutrido,
Somente males a esperar do fado;

Que venha, acompanhar-me na agonia,
Qu’esta minh’alma, sem cessar, traspassa!
Venha, qu’há muito luto, a ver se encontro
Quem sinta, como eu, tanta desgraça

Venha, sim, que talvez por nosso trato
Uma nova linguagem seja urdida,
Em que possam falar-se os desgraçados,
Que do mundo não seja traduzida.

Por lei inexorável do destino,
Quem gemer à desgraça condenado,
Inda lidando no lidar do mundo,
Há de viver do mundo desterrado.

E em que desterro! Os outros só nos tiram
Os olhos do lugar do nascimento;
A desgraça, porém, do mundo inteiro
Desterra o coração e o pensamento.

Ao menos a linguagem deste exílio
Mais suportável torne a vida crua;
Tenha ao menos a terra da desgraça
Uma linguagem propriamente sua.

E quem tê-la melhor? Por mais que fale
O sedutor prazer em frase ardente,
Por mais que se perfume e se floreie,
Nunca é, como a dor, tão eloqüente.

Nos fenômenos d’alma o corpo sempre
Do seu modo de obrar diversifica:
Pelas quebras da orgânica fraqueza
A força esp’ritual se multiplica.

Quando, livre, o esp’rito aos céus remonta,
Da Eternidade demandando o norte,
Toda força primeva recobrando —
Tomba a matéria, e cai nas mãos da morte!

Quando o gás do prazer dilata o seio,
A força do sentir dormente acalma;
Quando a pressa da dor o seio aperta,
A força do sentir se expande n’alma.

Assim novas palavras, novas frases,
Nova linguagem, pede o sofrimento;
Porque dobra o sentir, e duplas asas
P’ra vôos duplos colhe o pensamento:

Não, não pode em seus termos quase inertes,
Esse falar comum de cada dia,
Deste duplo sentir, d’idéias duplas,
Exprimir fielmente a valentia.

Enganai-vos, ditosos! Vossas falas,
Anos que falem, nunca dizem tanto,
Quanto num só momento dizer pode
Um suspiro, um soluço, um ai, um pranto.

Eia, pois, tristes! eia!... desde agora
Uma nova linguagem seja urdida,
Em que possam falar-se os desgraçados,
Que do mundo não seja traduzida.

Veja o mundo, de gozos egoísta,
Qu’os tristes nada têm de suas lavras:
Que, orgulhosos na pátria da desdita,
Nem dos ditosos querem as palavras.

BEIJO DE AMOR

Se me queres ver ainda,
Recobra da vida a flor;
Deixa remoçar-me a vida
Um beijo de teu amor.

 De minha vida a ventura
Teus lábios guardam consigo,
Dá-me um só beijo e verás
Se é mentira o que eu te digo.

Como a flor, do sol a um beijo,
Se quiseres, podes ver,
A minh’alma, semimorta,
Num teu beijo reviver.

De minha vida a ventura,
Teus lábios guardam consigo,
Dá-me um só beijo e verás
Se é mentira o que eu te digo.

Só esperá-lo me alenta,
Me conforta o fado meu;
Imagina só por isso
Quanto pode um beijo teu.

De minha vida a ventura,
Teus lábios guardam consigo,
Dá-me um só beijo e verás
Se é mentira o que eu te digo.

A ROMÃ (lundu)

Entre as frutas que há no mundo
Não há uma fruta irmã
Na beleza e na doçura
Da que se chama romã.

Tem coroa de rainha,
Roxa cor na casca tem,
Quando racha, me retrata
A boquinha de meu bem.

Nos meus lábios sequiosos
Dum néctar sinto a doçura
Quando sedento lhe ponho
A boca na rachadura.

Pela primeira vez vi
Num jardim pela manhã,
O meu bem que em vez de flores
Só trazia uma romã.

DE TI FIQUEI TÃO ESCRAVO

De ti fiquei tão escravo
Depois que teus olhos vi,
Que só vivo por teus olhos,
Não posso viver sem ti.

Contemplando o teu semblante
Sinto a vida me escapar.
Num teu olhar perco a vida,
Ressuscito noutro olhar.

 Mas é tão doce
Morrer assim.
Lília, não deixes
De olhar p’ra mim.

Num raio de teus olhares
Minh’alma inteira perdi.
Se tens minh’alma nos olhos,
Não posso viver sem ti.

A qualquer parte que os volvas,
Minh’alma sinto voar,
Inda que livre nas asas,
Presa só no teu olhar.

Mas é tão doce
Prisão assim.
Lília, não deixes
De olhar p’ra mim.

Que era meu fado ser teu
Ao ver-te reconheci,
Não se muda a lei do fado,
Não posso viver sem ti.

Por não ver inda completa
Minha doce escravidão,
Se me ferem teus olhares,
Choro sobre meu grilhão.

Mas é tão doce
Prisão assim.
Lília, não deixes
De olhar p’ra mim.

Fonte:
Laurindo Ribeiro. Poesias Completas. Fundação Biblioteca Nacional

Teófilo Braga (O Peixinho Encantado)

Recolhido no Algarve

Era uma pobre mulher, que tinha um único filho, e esse era parvo, e não queria trabalhar. Coitadinha, não lhe servia senão para comer.

Um dia que ia para o mato buscar lenha um rapazinho da vizinhança, ela pediu-lhe para que levasse consigo o tolinho, e lhe ensinasse a fazer um feixinho. Quando chegaram ao monte, o rapaz foi cortar dois molhos de lenha, e o parvo pôs-se a brincar ao pé de uma ribeira. Ali esteve sem pensar em nada, a ver os peixinhos na água; eis senão quando salta um peixinho mesmo às abas do parvo, que lhe botou logo as unhas. O peixinho assim que se viu nas mãos do parvo, disse-lhe:

– Não me mates, que em paga, quando quiseres alguma coisa, basta dizeres: «Peço a Deus e ao meu peixinho que me dê tal e tal, que tudo há de sair como pedires».

O parvo, assustado deixou o peixinho cair-lhe da mão, o qual desapareceu na ribeira. O outro rapaz bem chamava por ele para vir erguer o seu molho; ele foi, e quando viu que o molho era pesado, disse:

– Peço a Deus e ao meu peixinho que me ponha a cavalo neste feixe de lenha.

Saltou para cima do molho, que o levou a galope pelo mato fora e por toda a cidade até chegar a casa da mãe. O rei estava à janela do palácio, e ficou admirado; chamou a filha:

– Vem ver o parvo a cavalo num feixe de lenha.
   
A princesa desatou a rir, quando o viu; mas o parvo disse baixinho:

– Peço a Deus e ao meu peixinho, que a princesa tinha um menino meu.

Tempo depois começou a princesa a padecer; todos os médicos foram de opinião, que a princesa andava ocupada. O rei ficou desesperado e pediu-lhe por todos os santos que a filha lhe dissesse quem tinha sido o causante de uma tal vergonha. A princesa jurava por tudo que não sabia explicar aquilo; o rei mandou botar um pregão, de que quem viesse confessar que era pai do menino casaria com a princesa.

Depois de tempo, veio o parvo ao palácio para falar ao rei:

– Venho dizer a vossa real majestade, que eu é que sou o pai do menino da princesa.

O rei ficou espantado, a princesa não sabia o que estava ouvindo. O parvo contou então tudo o acontecido. O rei para se confirmar disse-lhe:

– Pois pede ao teu peixinho que te faça aparecer agora aqui muito dinheiro.

O dinheiro caiu-lhe de todos os lados.

– Pede ao teu peixinho que te faça um moço muito perfeito e muito esperto.

O parvo ficou logo mais formoso que todos os príncipes, casou com a filha do rei, e pela sua grande esperteza ficou governando.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português