domingo, 2 de março de 2014

Vanda Alves (Aquarela de Trovas)


A leve pipa, enfunada,            
pela brisa zombeteira,
une toda a criançada
numa alegre brincadeira.

Amizade e lealdade,
sempre juntas, de mãos dadas:
correntes de identidade
entre almas entrelaçadas.

Amo o branco simplesmente, 
por ser a cor que nos traz
a sensação envolvente
de uma bandeira da paz.

Amor: dádiva divina            
que entrelaça corações;
sem prisão e na surdina,
nos faz viver emoções!

Ao lento passar das horas,            
aumentam as agonias...
Quanto mais tempo demoras,
mais sinto as noites vazias.

Ao vento não lances praga,
pensa, repensa e medita,
pois a boca sempre paga
pela frase que foi dita!      

A saudade, simplesmente,         
como vem logo se vai,
lembra bem o sol poente
no instante que a noite cai.

Assim como sonhos vão,
pelos trilhos do infinito…
outros mais devolverão
paz ao coração aflito…

A sua ausência, crescendo,     
faz aumentar os meus medos
e eu vejo a paz escorrendo,
lenta, por entre meus dedos.

A vida, em sua beleza,
deu-me tantas emoções,
que, mesmo ao sentir tristeza,
há doces recordações.

Bela legenda a se olhar,
que nos dá… esperança irmãos:
Ver os jovens a amparar
o mundo nas suas mãos.

Coloco azul no pincel,
pinto o céu, também o mar…
e deixo no alvo papel,
a luz da lua brilhar!

Cultivada no seu peito,              
desejo ser um jasmim.               
Sei não ser o amor perfeito,
mas me queira mesmo assim.

Depois que se aposentou,
seu pijama é só frangalho,
pois nunca mais o tirou
para não lhe dar trabalho.

Despindo folhas e flores,       
o inverno, o vento conduz,
e a árvore, sem pudores,
vai mostrando os galhos nus.

Deus nos dá sabedoria,            
para o bem que nos conduz     
ao amor que, com a alquimia,
nos torna um farol de luz!

Devemos andar na linha
e com prudência também:
“tino e caldo de galinha”
não fazem mal a ninguém!

Doce palavra vibrante,
lapidada na emoção…
É a trova um raro brilhante,
moldado na nossa mão.

Ela, num dia encantado,
o sonho vai realizar:
leva, mudo e acorrentado,
o seu noivo, para o altar.

Em meus tempos de criança,
pelas poças, num tropel,
lançava minha esperança,
em barquinhos de papel…

Em seu roçar, minha pá,       
peço que no seu vaivém
leve a saudade pra lá              
e traga pra cá o meu bem.

Flechado por um cupido      
vai se inspirando o poeta...
Faz versos de amor doído,
por uma paixão secreta!

Imprimo minhas pegadas,
sofridas pelo abandono,
nas folhas amareladas
pinceladas pelo outono…

Juraste-me ser fiel;
desse nosso amor, contudo,
hoje resta o velho anel
num estojo de veludo.

Lá em casa, quando anoitece,
dormir não há quem consiga:
gulosa, a sogra parece
ter alarme na barriga.     

Juraste-me ser fiel,                   
mas do nosso amor, contudo,
hoje resta o velho anel
num estojo de veludo.

Mas foi batida de frente?
Não, foi mesmo de limão,
que provocou o acidente
do bebum na contramão 

Meu relógio, de hora em hora,
badala a mesma canção:
aquela trilha sonora
que embalou nossa afeição.

Meu tempo tornou-se esparso…
Por mais que tente retê-lo,
nem com tintura disfarço
o cinza do meu cabelo.

Mulher, em sua contenda,
sempre tem o desafio
de tecer a linda renda,
desatando os nós do fio…

Na chama ardem fauna e flora,     
daí a tristeza grassa
e a natureza então chora
envolta em negra fumaça!

Na minha busca amorosa,
não invejo amor alheio,
pois mesmo a vida ditosa
tem seus espinhos no meio.

Não se ata  pelas algemas,
mazelas ao cidadão,
que enfrenta  tantos dilemas
doando vida à  nação.

Na sala da academia,
fonte da literatura,
jorra emoção em poesia,
para a sede da cultura.        

Na vida, eu prefiro o jogo,
não de azar, de sedução...
e, em vez de cartas, o fogo
que incendeia uma paixão.

Na vida vivo tentando,           
tornar meu mundo risonho,     
pois a tristeza vem quando,
existe ausência de um sonho.

No cinema… entre suspiros,
e ao pulsar dos corações,
o casal, dançando em giros,
nos inflama de emoções…

Noite tecida de espera     
e orvalhada pelo pranto:   
essa lembrança que gera,
a nudez do desencanto.

No movimento do mar,
bailando, ondas vêm e vão,
na rua, me encanta olhar:
o vaivém da multidão.

No mundo das ilusões,
havendo entrega total,
se entrelaçam corações
numa paixão virtual…

No refúgio do meu sonho,
em dias de maré cheia,
sigo driblando risonho,
medos… nas dunas de areia.

No regaço dos teus braços,
feliz, carregada ao léu,
sinto na escalada os passos,
nas nuvens… levar-me ao céu!

Numa linda cena antiga,
recordo…um amor na tela,
que se embala na cantiga,
num jantar à luz de vela…

Numa praia, é lindo amar,
contemplando o sol se pôr;
ondas balançando o mar,
e a rede embalando o amor!

Num dia de chuva e raio,
do chefe ninguém me aparta,
tropeço nele... e não saio,
pois não há raio que o parta. 

Nunca temer al futuro,
porque Dios quita la cruz,
me lleva al puerto seguro,
siendo mi rastro de luz!     

O barco, pede passagem
quando a terra descortina
e o farol troca mensagem
piscando a luz na surdina…

O bebum faz arruaça
se em toda blitz é parado,
de tanto tomar cachaça,
só sopra todo babado.  

O jardim, nos seus atalhos,   
unindo vários canteiros,
tece colcha de retalhos,
ungido com doces cheiros...

O mendigo solitário,
perambula pela rua.
Ao redor só o cenário
de uma imensa e fria lua.

O nosso amor em tormenta       
nos pede tempo a pensar...
Mas, nem mesmo em marcha lenta,
ele consegue engrenar.

O valor da roça encerra       
o beijo do sol ardente            
que, fertilizando a terra,
sacia a fome da gente.        

Pela emoção mais secreta,      
seja de alegria ou dor,
a lua inspira o poeta,
na trova que vai compor.

Pela seca, esmorecido,   
abandono o meu rincão.  
No meu rosto entristecido
há mais água que no chão.

Pelo caminho plantei,
as sementes de amizade,
e um patrimônio eu herdei
colhendo a felicidade.

Pelo muro da lembrança,
onde passo …. a caminhar,
vejo a sombra, por vingança,
minha imagem remoçar…

Pensando na tua imagem,         
em sonhos,sempre te vi...
Que importa se era miragem,
importa o amor que vivi!

Poder viver, quem me dera,
sentindo o vento a soprar,
sair da gaiola à espera
da liberdade… e voar !

Por ciúmes, no passado,                
o nosso amor foi desfeito...
Ficou o sonho tatuado
na penumbra do meu peito.

Príncipe da Trova! Honrosa,
nossa entidade acentua:
cada pétala da rosa
contém uma trova sua…

Professora viga mestra,
que sustenta a educação,
regendo afinada orquestra
do saber e da instrução…

Quando em seus braços me enlaça,
nessas chuvas tropicais,
nosso amor ganha mais graça…
enfrentando os temporais.

Quando faz soar o alarme,
lá no prédio da perua,
na sua ronda o gendarme
só vê peladão na rua...   

Quero ter a plenitude,               
de levantar o estandarte,           
com caridade e virtude,
de alguém que parte e reparte!

Recordo, ao passar das horas,           
do meu tempo de criança...
Alegre, contando auroras,
tecendo a doce lembrança.

Restam horas já passadas,
da história de uma paixão:
lembranças esfumaçadas,
nas sombras do carrilhão.

São Francisco nasceu nobre,    
mas despiu-se da riqueza,
cuidou da fauna e do pobre...
e cobriu-se de grandeza.

Se existe um amor sublime         
embalando o coração
um deslize se redime
num pedido de perdão.

Sempre e sempre se convença
de que há distância infinita
entre aquilo que se pensa
e aquilo que a vida dita...         

Só… sentada olhando o mar
sinto a triste solidão
e a onda põe-se a chorar,
em sua arrebentação.

Trovadores em repentes,
se unem num elo de luz...
e as trovas formam correntes:
de emoção... que nos seduz.

Tu ausência me despierta
la impresión de ser dejada...
como una playa desierta
cuando passa la temporada.

Vem Deus, na luz da harmonia, 
a família abençoar:
ofertando o pão do dia
comungado em cada lar.

Fonte:
A Autora

Rachel de Queiroz (A Vida em Pedaços)

Essas moças e moços - quase sempre muito jovens -, que de vez em quando aparecem para me entrevistar, perguntam sempre - quase sem exceção - como foi que comecei a escrever. Esperam que eu diga o momento exato em que me apareceu a vocação, se foi de dia ou de noite, se comecei a escrever o livro, direto, e fui até o ponto final, e por aí vai. Perguntam muito também sobre a minha vida, o que aconteceu, e depois, e depois, e depois... Tento explicar, na medida do possível, que a vida da gente não é uma sequência, como numa história em quadrinhos, em que um fato acontecido num quadro tem a sua lógica no quadro seguinte; e que a nossa memória também não é uma coisa contínua, uma lembrança sucedendo a outra. Eles ficam meio decepcionados, mas procuro satisfazê-los contando alguma coisa da minha vida. Pelo menos os pedaços de que me lembro.

Bem, quando adolescente resolvi ser atriz. É que passara por Fortaleza uma companhia de operetas e, é lógico, fiquei toda alvoroçada. Meu pai, do sertão, me comprou uma assinatura para duas pessoas e me mandou para a cidade. Acompanhada de uma velha amiga da família, fomos a todas as récitas (menos a Casta Susana, que era imprópria). Essa temporada me virou a cabeça.

Nunca mais perdi companhia teatral de passagem pela terra; e, na falta, ia aos espetáculos dos amadores locais. Estava decidida a minha vocação. Ia ser atriz. Lia toda peça de teatro em que punha a mão, me sonhava uma grande atriz, uma Duse, ou, no mínimo, uma Lucilia Peres. Mas nunca falei desses sonhos a ninguém: fracassando, ninguém poderia me fazer cobranças. Verdade que eu antes quisera ser violinista. Por causa de uma foto saída numa revista de uma violinista (ou pianista?) polonesa, por nome Luba; tinha cabelo ruivo, trajava veludo preto, com uma cauda longa que arrastava atrás de si, como uma onda. A dificuldade é que eu nunca tivera a mínima musicalidade, nunca chegara perto de um piano ou de um violino. Só a figura da artista me encantava; o instrumento era acessório. Guardei anos aquela página recortada, com a imagem colorida da Luba.

Muito cedo me meti a escrever, porque na nossa casa livro e leitura tinham lugar principal. Pessoa que não lesse (e que não escrevesse um pouco, nem que fosse às escondidas) não era propriamente um ser humano.

Mas eu era a única menina no meio de quatro irmãos: imagine-se as críticas deles todos gozando a "literata"! Assim, na moita, aos 12, 14 anos, é que fazia os meus contos; estava na fase romântica, - Victor Hugo, Dumas, Rostand - Ah, Cirano! (no colégio as freiras me obrigaram muito cedo a ler francês). E José de Alencar (Diva), e Júlio Diniz (Fidalgos da Casa Mourisca), e até Camilo (Amor de Perdição). Claro que nos meus contos pululavam as noites sombrias, os amores impossíveis, os pais ferozes, as traições e as juras. Contudo, mal dava o ponto final no dramalhão, eu tratava de rasgar tudo, com medo do patrulhamento dos meninos e - horror dos horrores - que minha mãe, ela sim, com o seu bom gosto literário, os descobrisse. Para não correr riscos e porque me parecia mais bonito, eu fazia uma fogueirinha no quintal com os meus escritos e os meninos começaram a dizer que eu andava fazendo bruxaria - ideia que, aliás, me agradou enormemente. E, então, inventei um ritual: consumida a fogueira, enterrava cuidadosamente as cinzas.

Tentei então fazer versos; mas em versos eu era ainda pior. Não esperava para os queimar nem que chegasse o dia seguinte, liquidava-os recém-nascidos.

Com 15 anos me diplomei em professora. O que não foi uma boa ideia: saindo do curso tão cedo, não tinha nenhuma base de estudo; precisei refazer sozinha tudo o que devera ter estudado numa faculdade. Por sorte, fomos então morar na fazenda, onde havia a grande livraria de minha mãe; nela iniciei o meu curso particular de literatura. A leitura me ficou como uma obsessão. Lia de dia, lia de noite. Como no sertão não havia luz elétrica, meu pai me arranjou um foto-mobile: é um castiçal oco onde se enfia uma vela; e à medida em que a vela se consome, é impulsionada para cima por uma mola que a mantém sempre à mesma altura; coroando tudo, uma pequena manga de vidro que protege a chama contra o vento. Noite havia em que eu consumia até três velas e das grossas!

Esqueci de contar que antes da fase romântica, atravessei a fase Júlio Verne. Eram uns volumes encadernados em pano, com figuras relativas às aventuras dos heróis, ilustrando a capa. Tradução de Portugal, letrinha miúda. Me encarnei nos filhos do Capitão Grant, dei a volta ao mundo em 80 dias, fiz sete semanas em um balão, fui num foguete à Lua. Mas, acima de todos, a grande paixão: Vinte Mil Léguas Submarinas. Acho que se puxasse pela memória, ainda seria capaz de repetir de cor algumas frases do Capitão Nemo!

Eu ia pelos 16 anos quando me meti a fazer uma "carta de leitor" para um jornal de Fortaleza, comentando com alguma irreverência a recente eleição da Rainha dos Estudantes. Prudentemente assinei a peça com um pseudônimo: Rita de Queluz (aproveitando minhas iniciais). A carta agradou; e na Fortaleza daquele tempo, puseram-se a procurar quem seria aquela Rita, acabaram descobrindo. E eu fui então ser jornalista. Fazia uma crônica por semana, tomava conta da página literária.

De lá pra cá não teve mais jeito. Já "veterana" aos 18 anos, deu-me um impulso de escrever um livro, um romance. Só o mostrei a meu pai e minha mãe quando estava pronto. Foi O Quinze, publicado em l930.

De lá até hoje não parei mais, quer em jornal, quer em livro. Mas não posso dizer que foi propriamente uma vocação. Nunca nos meus sonhos juvenis pensei em me tornar uma escritora. O que eu queria mesmo era ser atriz. Jamais o fui. Nunca pisei num palco, nem mesmo de amadores. Como nunca vesti um vestido longo, de veludo preto, segurando na mão, com elegância, a grande cauda suntuosa.

E é isso aí, meus queridos. A vida da gente é assim, sem nada planejado, feita aos pedaços como um quebra-cabeça onde sempre falta - ou se perdeu, alguma daquelas peças coloridas.

Fonte:
Jornal O Estado de São Paulo . 07  de setembro de 2002

Teófilo Braga (O Príncipe que foi Correr sua Ventura)

Recolhido no Algarve

Havia numa terra um rei que tinha um filho, que não fazia senão pedir-lhe para ir correr o mundo; o rei por fim não pôde mais ter mão, e deu-lhe um grande saco de dinheiro para a partida. Depois de ter andado muito, foi dar a uma estalagem onde encontrou um outro viajante. Conversaram, mas o viajante perguntou ao príncipe se não gostava de jogar; daí a instante já estavam ferrados ao jogo. O viajante ganhou-lhe o saco de dinheiro, e não tendo mais que lhe ganhar, propôs-lhe que jogassem mais uma vez, e no caso de o príncipe ganhar tornava a dar-lhe o saco de dinheiro, e no caso de perder o príncipe ficaria preso por três anos naquela casa, e o serviria como criado por mais outros três. O príncipe aceitou a proposta, jogou e perdeu. O viajante tomou conta dele, prendeu-o em uma loja, e deu-lhe pão e água de um dia para três anos.

O príncipe chorava a sua má cabeça; ao fim de três anos vieram soltá-lo, e ele pôs-se a caminho para ir para casa do viajante, que era rei, servi-lo como criado. Depois de ter andado muito, encontrou uma mulher com uma criancinha ao colo a chorar com fome. O príncipe ainda levava o resto de um naco de pão e um pingo de água e deu tudo à mulher. Ela em agradecimento disse-lhe:

— Olhe, santinho, vá você sempre andando, e quando lhe vier um cheiro muito grande, é porque está perto de um jardim que está no caminho; entre para dentro, e vá-se esconder ao pé do tanque. Então hão de vir três pombas tomar banho, e à última que se despir tire-lhe o vestido de penas e não lho torne a dar senão em troca de três coisas que ela lhe der. Aconteceu tudo como a mulher lhe tinha dito; apanhou o vestido de penas da pombinha, e ela para o tornar a ter deu-lhe um anel, um colar e uma pena, dizendo-lhe:

— Quando te vires em alguma aflição e disseres: «Valha-me aqui a pomba», hei de te acudir; eu sou a filha do rei que vais servir, que tem uma grande raiva a teu pai, e que te ganhou tudo ao jogo para dar cabo de ti.

O príncipe apresentou-se em casa do rei, que lhe deu logo esta ordem:

— Toma este trigo, este milho e esta cevada para semeares, contanto que eu amanhã coma pão destas três qualidades.

O príncipe ficou espantado, mas o rei não quis saber de explicações; foi ele para o seu quarto todo atrapalhado da sua vida, e pega na pena dizendo:

— Valha-me aqui a pomba!

A pomba apareceu, e ficou sabendo tudo; e ao outro dia trouxe-lhe as três qualidades de pão para o príncipe ir entregar ao rei. Quando o rei viu cumpridas as suas ordens, disse-lhe:

— Pois bem; já que foste capaz disto, vai agora ao fundo do mar buscar o anel que a minha filha mais velha lá perdeu.

Voltou o príncipe para o quarto e tornou a chamar pela pombinha; ela acudiu:

— Olha, amanhã vai para a praia e leva uma bacia e uma faca e mete-te num barco.

Assim fez; a pomba meteu-se com ele no barco e foi por esses mares fora. Já tinham andado muito, quando ela disse que lhe cortasse a cabeça, de modo que não caísse uma gota de sangue no chão, e a atirasse para o mar. Seguiu tudo à risca. Passado pouco tempo saiu do mar uma pomba com um anel no bico, largou-o na mão do príncipe e foi lavar-se no sangue que estava na bacia; tornou-se na cabeça de uma bela donzela e depois tornou a desaparecer. O príncipe foi entregar o anel ao rei, que ficou mais desesperado, e lembrou-se de lhe dar um maior trabalho:

— Hoje de tarde hás de sair no meu poldro, para o ensinares.

O príncipe foi para o seu quarto e tornou a chamar pela pombinha, que lhe respondeu:

— Olha, o meu pai quer ver se te mata por algum feitio; porque o poldro é ele mesmo, o selim é minha mãe, minhas irmãs são os estribos, e eu sou o freio. Não te esqueças de levar um bom cacete porque podes consolar-te com uma carga de pau neles.

O príncipe montou no poldro, moeu-o com pancadas, e tais coisas fez que quando recolheu a casa e foi dar parte ao rei que o poldro estava manso, achou o rei de cama todo em panos de vinagre, a rainha feita numa salada, as filhas derreadas, menos a mais nova. Nessa noite foi ela ter com o príncipe e disse-lhe:

— Agora, que estão todos doentes é que é boa ocasião de fugirmos; vai à cavalariça e apronta o cavalo mais magro que lá achares.
   
O príncipe caiu na asneira de aprontar o mais gordo. Quando se puseram a caminho, e ela viu o cavalo gordo ficou muito contrariada, porque este cavalo andava como o vento, e o magro andava como o pensamento. Mas sempre fugiram. De noite o rei precisou da filha para o virar, e chamou por ela; nada. A rainha, que era refinada bruxa, pescou logo que a filha tinha fugido com o príncipe, e disse ao marido que saltasse já fora da cama e que os fosse apanhar. O rei levantou-se a gemer com dores, foi à cavalariça e quando viu o cavalo magro ficou seguro de pilhá-los. Montou e partiu. A filha, que ia sempre desconfiada que dessem pela falta dela, avistou de longe o pai, e de repente transformou o cavalo em uma ermida, a si em uma santa e o príncipe em um ermitão.

Chegou o rei ao pé da capelinha, e perguntou se não tinha visto passar por ali uma menina com um cavalheiro. O ermitão levantou os olhos do chão e disse que por ali não passara vivalma. O rei foi-se embora aborrecido, e foi dizer à mulher que só tinha encontrado uma ermida com uma santa e um ermitão.

— Pois eram eles, disse a velha desesperada; se me tivesses trazido um bocadinho do vestido da santa ou um bocadinho de caliça da parede, tinha-os agora aqui em meu poder.

E tornou a fazer partir o velho no cavalo mais ligeiro que o pensamento. O velho foi avistado ainda de longe pela filha, que fez do cavalo um terreno, de si uma roseira carregadinha de rosas, e do príncipe o hortelão. Repetiu-se a mesma coisa; o velho virou para trás, mas a velha bruxa avisava-o:

— Se me tivesses trazido uma rosa dessa roseira, ou um punhadinho de terra, já cá os tinha em meu poder. Mas deixa estar, que desta vez vou eu também.

Quando a menina avistou a mãe sentiu um grande medo, porque sabia o poder que tinha; apenas teve tempo de fazer do cavalo um poço fundo, de si fez uma eiró, e do príncipe um cágado. A velha chegou à borda do poço, e conheceu-os logo. Perguntou à filha se não estava arrependida, e se quisesse voltar para casa que lhe perdoava. A eiró dizia com o rabo que não. A velha disse ao marido que atirasse uma bota ao poço para trazer uma gota d’água, porque só com isso ficava com poder para agarrar a filha. Quando o rei tirava a bota cheia de água, o cágado saltou para dentro dela e entornou-a toda; com a outra bota deu-se o mesmo caso.

Então a rainha muito zangada rogou ao cágado a praga que ele se esquecesse da princesa. Continuaram o seu caminho, mas a menina sempre muito triste. E quando o príncipe lhe perguntava o motivo da sua tristeza, ela respondia:

— É porque tenho a certeza de que me hás de esquecer.

Chegaram por fim à terra donde o príncipe era natural; deixou a menina em uma estalagem, e foi pedir ao pai licença para lhe apresentar a sua noiva. Com a alegria que teve de ver a família esqueceu-se da menina. O pai tratou de lhe fazer o casamento; quando a menina soube disto teve uma grande aflição e gritou:

— Valham-me aqui minhas irmãs.

Apareceram-lhe. A mais velha disse:

— Não te aflijas; tudo se há de arranjar.

E deu ordem à estalajadeira que quando passasse algum criado do rei a comprar aves, que fosse ao quarto da irmã e vendesse três pombinhas que estariam lá. Assim foi; o criado do rei comprou as três pombinhas, e como eram muito lindas foi mostrá-las ao príncipe.

O príncipe estava admirado, e quando ia pegar nelas uma saltou para cima da janela, e disse:

— Quando nos ouvir falar, ainda mais admirado há de ficar.

Outra saltou para cima de uma mesa, e disse:

— Vai falando, vai falando, que ele se irá recordando.

A pombinha que lhe tinha ficado na mão saltou-lhe para cima do ombro e perguntou-lhe:

— Veja, príncipe, se este anel lhe serve.

O príncipe viu que sim. Depois deu-lhe um colar, e também servia. Por fim deu-lhe a pena, e só quando leu o nome da pomba é que se tornou a lembrar, e então casou com ela.
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Notas
 
Nos Contos populares portugueses, há uma variante de Coimbra com o título Branca-flor.

Nos Contos populares brasileiros, há uma variante com o título Cova da linda flor.

Este conto acha-se em quase todos os seus detalhes com o título As três pombas, nos Contos e tradições do Tirol italiano, de Schneller.

Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

Vuldembergue Farias (Versos Melódicos) III

Vuldembergue é de Fortaleza/CE
 

SEGREDO

Na imensidão do teu sorriso me perco em vida,
Sentida, vadia,
Vazia de medo
Segredo que guardo em mim, assim brinquedo
São fortes emoções pra ternos corações
Quero revirar-te pelo avesso, amar-te
Na mais completa intensidade me render aos seus caprichos
Feito bichos, amar sem pressa ou depressa
Chegar ao seu final, afinal
O que fazemos, desfazemos, refazemos tudo
E começar de novo olhando estrelas
Como aquarelas
Tão perto assim
E quem que está no céu, oh lua, tão tua?

DELÍRIOS
 

Tua boca, tuas cores, teus sabores meu desejo
O teu cheiro, tuas curvas, quando turvas minha visão
Os prazeres são momentos bem felizes
Quando dizes coisas dentro dos lençóis
Como nós sempre ávidos do outro
Como loucos nos fartamos de amor

Tua boca, tuas cores, teus sabores meu desejo
O teu cheiro, tuas curvas, quando turvas minha visão
No ardor da entrega indecente
Na corrente do sangue audacioso
Nós vivemos um delírio inconsequente
Na volúpia do desejo impetuoso

APELO
 

Um amigo disse entre os senões
Essa vida já está muito feia
Para se falar de decepções
O que nos norteia
É o amor, a alegria e as emoções

Deixo de lado o crime, a maldade e o medo
Aqui eu faço um apelo
Vamos sentir o calor humano, a luz da lua
E o brilho do sol no meio da rua

Não se fala mais em romantismo
Mas somente no consumismo
Canto a vida, mar e amor
Na felicidade estou

Porque isso não é viagem,
Fora de moda ou bobagem
Utopia, infantilidade
Mas é pura autenticidade

CRENDICE POPULAR
 

A crendice vem da ignorância
Do medo e feitiço, do diabo
Aparece em toda circunstância
De temor, do inferno e pecado
Para conquistar os favores
Na esperança de não ter mais dores

São promessas também simpatias
Nas novenas, nos cultos, nos dias
Destinados aos santos protetores
Das famílias
Medo da perseguição, dos temores
Dos espíritos inferiores
Do vacilo aparece até a mais nórdica Valquíria

O Saci, Curupira, Yara
Mãe d’água, Caipora, Quebranto,
Negrinho, Boto, Besta-fera
Anhangá,
Lobisomem, Cuca e fantasma
Olho-gordo, bruxa, mau-olhado
Mula-sem-cabeça, Boitatá

Da crendice formou-se uma idéia
Progressão da cultura popular
O medo fez nascer a platéia
De crendeiros a acreditar

GIRASSOL

Como o girassol que acompanha
Por natureza o sol
Os meus olhos se derramam
Pelas ruas como um farol

Como o girassol na luz
Eu também te sigo os passos
E o meu olhar reluz
Quando perto de mim passas

Cada olhar é diferente
Mesmo o meu e o do girassol
Cada um olha pra frente
Em busca de um farol

Que ilumine o caminhar
Um quer ver o sol
O outro o teu olhar
Pois ninguém quer ficar só

VIVER BEM

Como disse Ortega Y Gasset, o espanhol
Somente o supérfluo é necessário
O mundo não é indiferente para o homem sob o sol
E não importa só viver, mas viver bem é o cenário

Ser feliz sem um olhar estressante
Sem muro e sem conduta extravagante
Eis a questão!
Em minha opinião
Viver bem nesse mundo
Não pode ser o eu sozinho
Pois até entre os espinhos
Nasce um amor profundo

PIRAGEM

Queria ser como um mestre de bateria brincando nas ruas
Queria ser como uma nave no mundo da lua
Queria ser com um passista no Maracanã do samba
Queria ser uma alegria no meio da rua

Entre tantos e quantos
Entre mundos e fundos
Poeiras e santos
Entre cores e assuntos

Na organização da escola
A flutuação no espaço
No compasso e no passo
A alegria do palhaço

Me encontro ansioso
Vou pro meio da praça
Canto um canto mentiroso
Chuto o pau da barraca

Me encontro ansioso
Vou pro meio da rua
Conto um conto mentiroso
Vou pro mundo da lua

QUE VIDA!

Mãos vazias, coração cheio de nada
Mente desocupada
Vida sem emoção
Obedecer é preciso
Não é o paraíso
Nem é felicidade
Não é amor
É nada, é mesmo nada

Vida, vida, vida
Até quando essa bendita
Vida de submissão?
Vida sem segredo

Sem aventura
Sem sentimento
Só amargura
E medo

AÇÃO E REAÇÃO

Nas voltas do mundo
Procura-se a paz
Muito mais que na guerra vã
Ou na insana mente
De quem nem tem talismã

Em cada humana
Ação reage a terra
Destruindo com furor
A natura não erra
É enchente, é frio e calor

De cada ação
Vem a reação
Como chapa de ferro quente
Que não perdoa
E queima intensamente

Fonte:
Clube Caiubi

Graciliano Ramos (Infância) 1a. Parte

Publicado em 1945, Infância é uma autobiografia de Graciliano Ramos que prova ser possível uma obra somar os elementos pessoais com os sociais. Muito do que o autor confessa em suas memórias são problemas que afetaram não só a ele mesmo, mas também o seu meio. Sua dor é também a dor de nosso mundo. Este livro pode ser lido como romance, um conjunto de contos, e como elaboração ficcional de elementos da memória biográfica do autor. Considerando como unidade, contempla um período de amadurecimento da criança exposta como protagonista. Além disso, esse livro lida com elementos que nos fazem entendê-lo como base de todo o universo literário do autor. Nele vemos temáticas que vão povoar suas obras-primas: São Bernardo, Vidas Secas e Angústia.

Em toda a narrativa de Infância, a criança, Graciliano, passa por um processo de aprendizagem e amadurecimento interior, principalmente ao aprender lidar com as perdas e as dores. O momento de descoberta da leitura surge de forma mágica e prazerosa. O livro torna-se um “objeto de desejo” ao ser proibido, pois desperta curiosidade.

No que diz respeito à linguagem, já é lugar-comum da crítica afirmar que Infância é o livro mais bem escrito de quantos realizou Graciliano Ramos, uma vez que aí estariam combinadas a concisão linguística – marca inconfundível do autor – e um intenso lirismo, dificilmente encontrado em seus demais textos. Sem se esgotar, a luta sôfrega que o escritor sabidamente empreendeu com a língua parece aqui alcançar um ponto de equilíbrio, no qual a palavra flui mais natural (menos torturada), e seu potencial expressivo eleva-se enormemente, alcançando muitas vezes o poético.

Em Infância as fronteiras entre o tecido ficcional e referencial se misturam na tessitura narrativa, pois o sujeito empírico recria o passado e procura dar-lhe sentido. O passado do menino entre os seus familiares, principalmente no convívio como os pais e os irmãos, surge através do resgate da memória do escritor adulto. Ao descrever a insignificância do homem frente às circunstâncias da vida, o narrador apresenta-nos o primeiro contato da criança com as letras, descrevendo a experiência árdua que ela teve com as “malditas letras”; entretanto, o prazer de “decifrá-las só acontece na vida da criança quando o texto se torna “objeto proibido” que seduz e desperta curiosidade e interesse.

Na obra pode-se perceber uma nuance particular da junção ética/estética que promove a obra do autor de Insônia: além de dar visibilidade e voz aos seres marginalizados que habitam seus textos, como ocorre na maior parte de seus romances e, via de regra, é um procedimento associado ao posicionamento político do escritor, aqui Graciliano Ramos parece dar um passo a mais, ao abrir espaço e manifestar simpatia não só pelos oprimidos, mas também por aqueles que, circunstancialmente, oprimem. Perpassa o livro um desejo profundo de compreensão do outro, desejo que luta contra mágoas e preconceitos bastante arraigados. Ainda que o traço crítico do autor se mantenha constante, não o deixando deslizar para uma atitude compassiva para com o que relata, o resultado dessa mistura de denúncia e compreensão é uma obra ambígua, aberta: a um só tempo dura e terna.

O primeiro aspecto que chama a atenção é a descrição de Graciliano como uma criança oprimida e humilhada, pois é um ser fraco diante de adultos, mais fortes. Este é um dos cernes de sua visão de mundo: a opressão. Quem tem poder, naturalmente massacra, sufoca.

Também faz parte do seu escopo a secura das relações humanas. De acordo com a obra em questão, esse defeito já vem do seio da família. Sua mãe era extremamente ríspida, fria, o que se percebe pelos apelidos com os quais se dirigia a Graciliano Ramos: cabra-cega (por causa de uma doença que teve nos olhos que impossibilitava sua visão) e bezerro-encourado (bovino órfão que recebia o couro de um outro, já morto, para que a mãe deste, enganada pelo cheiro, permitisse a amamentação do desprestigiado).

Outro ponto perturbado na relação familiar é seu pai, que se mostra extremamente autoritário, déspota e tirano em muitos momentos. O episódio em que surra o filho por achar que este havia sumido com um cinturão (descobre depois que a acusação era falsa) é dos mais dramáticos. Talvez só perca para o momento em que esse autoritarismo se mistura a abuso de poder e injustiça em cima do mendigo Venta-Romba. Discretamente o narrador procura uma justificativa, como os problemas financeiros do pai, mas o estrago na confiança no ser humano já era irremediável.

A situação do protagonista é, portanto, de constante opressão. Mesmo quando não se faz de forma explicitamente violenta, realiza-se por meio dos risos e gozações extremamente humilhantes. Até seu processo de alfabetização é angustiante. Nasce aqui o escritor pessimista, amargo, desencantado com o mundo.

No entanto, sua salvação, ou pelo menos válvula de escape, vai-se manifestar na literatura. Acometido pela doença que o fez ficar temporariamente cego e preso em seu quarto, desperta para o encantamento das palavras, analisando-as, namorando-as, principalmente nas cantigas folclóricas entoadas por sua mãe durante os trabalhos domésticos. Um salto maior surge no contato com a enorme biblioteca de Jerônimo Barreto, que permitiu ao garoto ampliar seus horizontes para um mundo diferente da mesquinharia em que havia crescido. E o escritor nasce com o apoio de Mário Venâncio.

Liberto, graças à literatura, distancia-se da infância. Entra no universo dos adultos. Parte para o mundo. Vai torto, desajeitado, mas firme, resoluto. Sua arte de manejar as palavras será sua arma. Por demais eficiente.

O livro é formado por pequenos capítulos, cada um encerrando uma visão fechada sobre um aspecto da vida do pequeno Graciliano: a casa no sertão, a mudança para Buritis, a lojinha do pai, a primeira ida ao colégio, o padre.

A seguir, segue-se um resumo dos capítulos que compõem a obra.

Nuvens

Este capítulo, em meio às nuvens em que está mergulhado o passado mais remoto do narrador, é uma pequena súmula de toda a obra. Flagra-se a personagem descrevendo os pais não como seres humanos, mas como seres ineficientes na afetividade, secos e opressores. A animalização na descrição deles é constante. A literatura, na forma de cantigas folclóricas, é apresentada como elemento capaz de aliviar o cotidiano sufocante da criança Graciliano Ramos. O primeiro contato que o menino teve com as letras aparece neste capítulo. O contato se deu em uma Escola que servira de pouso para a sua família numa viagem que eles fizeram de Alagoas para o sertão pernambucano. O menino, que estava com uma idade entre dois e três anos, tem diante de si a imagem de uma sala de aula com um velho de barbas longas e os meninos que “seguravam folhas de papel e esgoelavam-se: - um b com a – b, a: ba, um b com um e – b, e: be”. É nesse instante que a criança sai da escuridão e começa a perceber as coisas ao seu redor, por isso ela guarda a imagem da sala de aula e de D. Maria lendo, de forma capenga, um longo romance de quatro volumes. A imagem do professor público que o menino vira quando ainda era bem pequeno não será esquecida, reaparecendo em vários momentos de sua infância.

Manhã

Retomam-se temas do capítulo anterior, ligados à opressão a que é submetido o protagonista. Abre-se especial atenção aos seus avôs, o paterno muito culto e o materno forte, rude, não civilizado. Há destaque para a descrição da natureza do sertão.

Verão

Com a chegada do verão, vem a seca. A Natureza, pois, é descrita como aplacadora, mais um elemento opressor em sua infância, tanto que lhe causa uma sede terrível em certa ocasião. Neste capítulo o pai é apresentado com uma figura explosiva, uma qualidade que o narrador só vai entender muito tempo depois, quando toma consciência das dificuldades econômicas pelas quais o velho passava.

Um Cinturão

Capítulo fortíssimo. O pai, muitas vezes descrito de forma fria como “o homem”, não encontra seu cinturão. Inquire Graciliano, que, assustado, não consegue falar nada. Descarrega sua raiva surrando a criança. “Aliviado”, ao voltar para a rede acaba descobrindo o objeto que tanto procurava. Nota-se que a intenção do agressor é reparar o erro, mas sentimentos devem ter-se misturado, como orgulho, vaidade e medo de perder a autoridade. Talvez um desses elementos, ou todos, justifiquem o fato de o pai hesitar (queria pedir desculpas?) e acabar voltando para a rede e dormir. A consequência desse episódio é grave: Graciliano ganha uma desconfiança em relação à justiça dos homens.

Uma Bebedeira


Graciliano e sua família estão fazendo visita. Ganha destaque neste capítulo o incômodo que as roupas de visita provocam na personagem, principalmente os sapatos. Lembra o capítulo “Festa”, de Vidas Secas, do mesmo autor. É relevante também a presença das mulheres da casa visitada, que trarão um bem-estar excessivo, quase erótico, ao menino. Elas é que acabam embebedando-o. O álcool, dominando-o, dá-lhe sensação de poder, fazendo-o ter certas liberdades, desafiando o olhar repressor de sua mãe.

Chegada à Vila

A família de Graciliano larga o campo e se desloca para a vila, descrita como um mundo estranho para o menino. Fica abismado com o ajuntamento de casas, pela falta de espaço e mais ainda quando vê um sobrado, ou, no seu entender, uma casa em cima da outra.

A Vila

Continua a descrição abismada que faz das pessoas e do modo de vida da vila.

Vida Nova

Na Vila, o pai do narrador torna-se comerciante, o que o mergulhará em várias dificuldades. É neste capítulo que o protagonista fala de seu medo de fantasmas, o que o faz dormir num colchãozinho na sala. Dedica-se, nas madrugadas, a prestar atenção ao ruídos dos sapos, que, em sua linguagem, falariam das mesmas opressões que o menino vivencia em sua tosca infância.

Padre João Inácio

Este capítulo dedica-se à descrição do Padre João Inácio, extremamente rude com seus fiéis. No entanto, mostrou-se extremamente dedicado a doentes graves. Torna-se personagem dura, mas admirável. Dessa forma, Graciliano acaba aprendendo que certas pessoas têm em sua rispidez apenas uma casca que envolve um caráter humano.

O Fim do Mundo

Outro capítulo que nos surpreende apresentando uma personagem grosseira mostrando um lado humano. Dessa vez é a mãe do protagonista, que, após ler um texto religioso sobre o fim do mundo, mergulha em um desespero imenso. Abraça-se ao filho e desmancha-se em choro. Incrível é notar como pessoas tão massacradas têm, ainda assim, um apego à existência e ao mundo injusto em que vivem. Neste capítulo a mãe de Graciliano, que era “grande e temerosa”, ficará em estado de choque, demonstrando para o filho uma imensa fraqueza diante de um texto que lia. A mãe, que lia periodicamente um romance de quatro volumes, procura substituir as aventuras romanescas pelos folhetos salesianos que eram distribuídos pelos correios. É nesse entretenimento cotidiano da leitura religiosa que a leitora se depara com algo inusitado, o menino que tudo observava relata a seguinte cena:

Purificando-se nessa boa fonte, minha mãe às vezes necessitava expansão: transmitia-me arroubos e sustos. Uma tarde, reunindo sílabas penosamente, na gemedeira habitual, teve um sobressalto, chegou o rosto no papel. Releu a passagem – e os beiços finos contraíram-se, os olhos abotoados cravaram-se no espelho de cristal. Certamente se inteirava de um sucesso mau e recusava aceitá-lo. (...) A pobre mulher desesperava em silêncio. Apertava as mãos ossudas, inofensivas; o peito magro subia e descia; limitando a mancha vermelha da testa, uma veia engrossava. (...) Afinal minha mãe rebentou em soluços altos, num choro desabalado. Agarrou-me, abraçou-me violentamente, molhou-me de lágrimas. Tentei livrar-me das carícias ásperas. Por que não se aquietava, não me deixava em paz?

A exaltação diminuiu, o pranto correu manso, estancou, e uma vozinha triste confessou-me, entre longos suspiros, que o mundo ia acabar. Estremeci e pedi explicações. Ia acabar. Estava escrito nos desígnios da Providência, trazido regularmente pelo correio.

Diante dessa situação, a criança duvida do fim do mundo e faz as suas reflexões, o narrador explicita sobre o fato o seguinte parecer: “Não percebendo o mistério das letras, achava difícil que elas se combinassem para narrar a infeliz notícia. Provavelmente minha mãe se tinha equivocado, supondo ver na folha desastres imaginários”, e , não concordando com tamanho disparate anuncia que era “conversa: o mundo não ia acabar”, a mãe estranha a rebeldia do menino ao afirmar que: “os doutores conheciam as trapalhadas do céu e adivinhavam as consequências delas”.
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continua…

Fonte:
Ilca Vieira de Oliveira, Doutora em Literatura Comparada (UFMG) e professora de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Montes Claros. Disponível em Passeiweb.

sábado, 1 de março de 2014

Trova 263 - Dorothy Jansson Moretti (Sorocaba/SP)


Rachel de Queiroz (Os Aprendizes)

Esse caso passou-se, faz tempo, pouco depois de nos mudarmos para o Leblon, que era ainda um bairro adorável e tranquilo, sem grades nos edifícios - aliás, poucos edifícios e ainda muitas casas com jardim e quintal. Hoje, não sei se foi o Leblon que mudou, mas quanto a mim, sei que mudei muito, quase não saio de casa e, em sã consciência, não posso dizer se é melhor agora ou era melhor então.

Mas voltemos à historinha que eu ia contar: A gente saiu à praia manhã cedinho, quase com escuro. O tal vendedor de mexilhão nos avisara que chegava às cinco horas, trazendo os mexilhões da Ilha das Cigarras, sem poluição, arrancados das pedras, e não de casco de barco, como vendem por aí. Nós chegamos às 5, as luzes do calçadão ainda acesas, mas do vendedor nem sinal. Sentamos na calçada, mas soprava um ventinho frio, resolvemos caminhar um pouco. Não se tinha andado quase nada, quando demos com um pequeno ajuntamento em torno de qualquer coisa que estava dentro de um desses valões cavados na praia pela ressaca.

Um monte oblongo de areia molhada interrompia o valão. E na borda desse monte de areia apareciam os dedos de um pé, com as unhas pintadas de vermelho vivo. E os dedos mexiam!

Um moço forte, corredor de cooper - ainda se diz assim? - ajoelhou junto e começou a afastar com as mãos a areia frouxa e úmida que cobria o outro pé, a perna, as coxas. Uma mulher ajoelhada perto de onde deveria estar a cabeça, cavava também e de repente gritou "Está mesmo viva!".

Nessa altura já uns dez pares de mãos desenterravam a moça que não estava nua como a princípio se pensara, mas trajava short e bustier. Então a mulher da cabeça gritou: "Não está respirando, não está respirando mais!"

O moço corredor mudou de posição; tomou o lugar da mulher, afastou do rosto da moça - morta ou desacordada? - o cabelo empapado de areia, olhou em torno e anunciou: "Vou fazer respiração boca a boca!"

As pessoas se aproximaram mais, avidamente, como se fossem assistir a uma cena de sexo explícito. O moço, que até se parecia um pouco com galã de televisão, enterrou a mão sob a nuca da vítima e tacou-lhe um beijo, no melhor estilo de novela. Os dedos dos pés mexeram de novo; o rapaz levantou a cabeça e disse, sóbrio: "Reparem, ela já está respirando."

Aí uma menina gorda, que a mãe levava pela mão, evidentemente para obrigar a exercício, comentou bem alto: "Também, com aquele tamanho chupão!"

A mãe deu um beliscão no braço grosso da filha, e ralhou: "Que palavra feia!

Onde você aprendeu isso?"

Agora já era visível para todos que a moça respirava. Foi puxada do buraco, meio sentada, apoiada ao peito do seu salvador.

A mãe da filha gorda perguntou de repente: "Terá sido estuprada?" E um idoso senhor de uniforme esportivo, tranquilizou: "Não, olhe o calçãozinho dela, está direito no lugar."

Aí alguém viu, no pescoço da moça, uns arranhões que ainda sangravam levemente, misturados com a areia. O senhor de roupa esportiva continuava observando: "São arranhões feitos por unhas."

"Quem sabe não foi um vampiro?" - falou a garota gorda.

Ninguém falou nada, mas alguns se entreolharam.

A mulher, ainda ajoelhada, pegou nas mãos largadas da vítima, olhou os dedos: "Roubaram também um anel. Está arranhado, olhem!"

Sempre encostada ao peito do rapaz, a moça afinal abriu os olhos e, vendo toda aquela gente aglomerada ao seu redor soltou um grito. Mas descobrindo apenas faces benévolas, perguntou ansiosa: "Cadê os pivetes?" Todo mundo rosnou: "Ah, foram os pivetes!" E a moça explicou entrecortado: "Me bateram na cabeça, eu caí." Daí, não se lembrava mais.

O senhor disse: "Bateram nela, desacordaram, arrastaram para o valão, cobriram de areia..." Outros completaram: "A sorte é que a areia foi pouca, não sufocou." Alguém de repente exclamou: "E a polícia? É bom chamar a polícia. Onde tem um telefone?"

Nos oferecemos, nossa casa era perto. Saímos correndo, para telefonar. E cruzamos com o homem dos mexilhões que parou, espantado, vendo que eu passava célere, lhe dizendo: "Só depois, só depois!"

 Fonte:
Jornal Estado de São Paulo . 14 de setembro de 2002

Helvécio Barros (Baú de Trovas)

Macau, Rio Grande do Norte 30 de abril de 1909.
Bauru 27 de setembro de 1995


A amizade não quer palmas
por ajudar seus irmãos.
Deus olha o fundo das almas
e nunca a palma das mãos.

Abro a janela bem cedo
e ouço músicas bizarras...
- São as vozes do arvoredo,
no coro de mil cigarras...

Ah! Quantos vão pelo mundo,
sem calor, de alma abatida,
fugindo a cada segundo
da própria sombra da vida!

Amigos só de lorota,
há na terra em profusão!
- Mas os bons a gente nota
num só aperto de mão...

Andei aos trancos na vida,
como humilde peregrino:
– Cheguei ao fim da subida,
sem chegar ao meu destino!

A própria infância também,
é do Passado uma voz:
- Saudade, às vezes, de alguém
que vive dentro de nós...

A trova simples, sonora
parece flor do sertão!
A gente fácil decora,
mas quem sente é o coração

Cabelos brancos ao vento,
- Saudade feita de neve!
Mil fibras de sentimento
dizendo a tudo até breve!...

Carro de bois do sertão,
acordando as madrugadas,
a ouvir-te a triste canção,
ouço o choro das estradas...

Carta de afeto relida,
de quem nos quis muito bem,
traz um pedaço de vida,
na saudade que contém.

Definir foi sempre em vão,
da saudade o seu por quê...
- Mas, se vem do coração,
saudade, enfim, é você...

Do Sonho sou vagabundo,
trilhando rumos diversos...
Não tendo nada do Mundo,
o Mundo abraço nos versos.

Duas almas bem unidas
ninguém separa jamais.
Às vezes, são duas vidas,
que a vida já fez iguais!

Em qualquer templo que seja,
sorri a noiva em seu véu...
- De flores, cobre-se a igreja!
- De sonhos, veste-se o Céu!

Há caprichos diferentes
em certas cartas lacradas:
são os gritos contundentes
das reticências caladas…

Há sempre um dia cinzento
vivendo dentro de nós...
- Reticências de um lamento...
- Tristeza que não tem voz!

Mesmo com truques velados,
tinha a mocinha de outrora
mais tolerantes pecados
e menos pernas de fora...

Muita lágrima sentida
em silêncio sei que enxugas...
- São reticências da vida
pelo caminho das rugas...

Não chores, criança pobre,
o teu casebre sem luz,
que há muita mansão de nobre,
onde há Natal sem Jesus.

Não choro, na solidão,
a vida que vai passando,
choro, apenas, com razão,
o que a vida vai matando!...

Não te julgues o primeiro,
nem que sejas um portento:
quanto mais alto o coqueiro,
mais fácil se verga ao vento!

Na vida o nosso papel
é tal qual o pirulito:
- Quando a língua chega ao mel,
o dente trinca o palito...

Nesta cabana esquecida
e sem você, quem sou eu?...
– Um resto, talvez, de vida
que a própria vida esqueceu!...

Ninguém altera jamais,
nossos caminhos terrenos:
- Alguns têm tudo demais!
- Outros têm tudo de menos!

Ninguém por certo é perfeito
numa total plenitude.
- Quem conhece o seu defeito
já tem alguma virtude.

O lar é viga, cimento,
a modelar gerações!
- Cartilha do sentimento,
feita de mil corações!

Pioneiro da bondade,
foi Jesus, sempre a servir!
– Ensinou a humildade,
de dar e nunca pedir!

Quando alguém foge à virtude
e pisa as rosas do Amor,
passa a ser espinho rude,
já que não soube ser flor!

Quem sonha é sempre criança,
na vida não tem idade...
- Vive tecendo Esperança!
- Vive juntando Saudade!

Ribeirão Preto, é sucesso,
é vida que se renova,
se canta a luz do progresso,
vibra na festa da Trova.

Sem ver distinção de raça,
dá a todos tua mão!
– Que eu sofra, meu Deus, mas faça,
de cada amigo um irmão!

Tal qual arisca serpente,
a mulata, quando passa,
mexe com tudo da gente,
belisca o sangue da raça...

Tributos e dissabores
a vida nos deu dobrados:
– tu choras por  minhas dores,
eu choro por teus pecados!

Um grande amor não se esquece!
Nada no mundo o destrói!...
Quanto mais longe, mais cresce!
Quanto mais perto, mais dói!

Velho mar, soturno e rude,
entre nós – que afinidade:
gemendo a mesma inquietude,
chorando a mesma saudade...

Teófilo Braga (A Paraboinha de Ouro)

Recolhido no Algarve

Era de uma vez três irmãs, que viviam juntas; a mais nova punha à janela uma bacia com água e ali vinha espanejar-se um passarinho, que era um príncipe encantado, que falava com ela.

As irmãs tomaram-lhe grande inveja, e procuraram jeito de acabar com as conversas; espreitaram e viram o príncipe, e meteram na bacia de água muitas navalhas de barba.

Quando ao outro dia veio o passarinho lavar-se, cortou-se e foi-se embora; a pequena veio à hora do costume, e o passarinho não aparecia; só quando olhou para a água e a achou cheia de sangue e com as navalhas de barba, é que compreendeu a traição das irmãs.

Foi por esse mundo além, perguntando se alguém sabia onde estava o príncipe encantado; até que chegou a casa da Lua. A mãe da Lua disse-lhe:

– Ai menina, que vem aqui fazer? Se o meu filho a acha cá… Olhe que ele tem uma cara muito zangada.

A menina sempre lhe contou o que queria, e a velha escondeu-a e disse-lhe que havia de perguntar ao filho, onde é que estava o príncipe. Por fim entra a Lua, muito zangada, dizendo:

– Cheira-me aqui a fôlego vivo.

A velha lá sossegou a Lua, e perguntou o que a menina queria; respondeu a Lua:

– Eu sei lá dele! Todos os que estão doentes me fecham as janelas assim que anoitece! O Vento é que há de saber.
   

A mãe da Lua deu à menina uma paraboinha de ouro, e ela foi ter à casa do Vento. A mãe do Vento também perguntou ao filho, e ele disse:

– O príncipe está muito longe e eu já lá cheguei, mas como está doente fecharam-me todas as janelas. O Sol é que sabe onde é que o príncipe está.

A menina foi-se embora, e a mãe do Vento deu-lhe uma roca de ouro cravejada de diamantes. Até que chegou à casa do Sol; a mãe tratou-a muito bem, e nisto entrou o Sol muito radiante e alegre, e disse onde é que estava o príncipe, e ensinou-lhe o caminho. A mãe do Sol deu-lhe um fuso de ouro.

A menina chegou defronte do palácio e sentou-se, mas estava tudo fechado. Puxou da sua paraboinha e pôs-se a enrolar. As criadas do palácio viram aquilo e foram-no dizer à rainha, que lhe mandou dizer que queria comprar aquela paraboinha. Ela respondeu:

– Só se me deixarem entrar no quarto do príncipe.

E pôs para o lado a paraboinha, e começou a fiar na roca de ouro cravejada de diamantes. Foram dizê-lo à rainha, e ela tornou a mandar-lhe pedir que lhe vendesse a roca e a paraboinha; a menina respondeu, que só se a deixassem entrar no quarto do príncipe.

A rainha quis, e a menina foi ter ao quarto aonde estava o príncipe doente e cheio de feridas. A menina chegou-se ao pé da cama, falou-lhe, e ele conheceu-a; contou-lhe então a traição que as irmãs lhe fizeram com inveja.

O príncipe ficou muito contente com a verdade e melhorou de repente, contou tudo à rainha e casou e viveram ambos muito felizes.
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Paraboinha =Aparelho em forma de carretel para enrolar fios.


Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas "Trovia" - n. 171 - março de 2014)



Felizes os trovadores,
romancistas de quadrinhas,
que fazem de seus amores
romances de quatro linhas.
Durval Mendonça
 

Minha mãe verteu mais pranto
que a mãe de Nosso Senhor.
A Virgem chorou um Santo;
minha mãe – um pecador!
José Maria M. de Araújo

Feiticeira de alma nua,
eu danço liberta, ao léu.
Sob o feitiço da lua,
não tem limite o meu céu!
Nádia Huguenin
 

Quando o poeta escrevia,
a rima era tão perfeita,
que a mão esquerda sentia
ciúmes da mão direita!
Newton Meyer
 

A mulher sempre é mais pura,
mais bonita e mais completa
quando a ponho na moldura
dos meus olhos de poeta!
Orlando Brito

Num processo singular,
em seu trabalho fecundo,
a mulher, dona do lar,
tornou-se dona do mundo!
Rodolpho Abbud

 



“Me apavora o fim do mundo",
diz ao amigo o Garcês.
"Pois eu já não vou tão fundo...
meu fantasma é o fim  do mês..."
Dorothy Jansson Moretti – SP

Roubar não tenho costume,
mas, quando fico sozinho,
roubo um olhar de ciúme
da mulher do meu vizinho.
Evandro Sarmento – RJ
 

Se o teu noivado vai mal,
é claro que isso me importa:
goteira no teu quintal
é "chuva na minha horta"!
José Ouverney – SP

Com Luiz Hélio ou como anônimo,
meu trovar não é bem sábio.
Necessito de um pseudônimo...
– Quem me dera "Luiz Otábio!"
Luiz Hélio Friedrich – PR

Separou-se... e com mais pique
justifica encabulada:
marido que dá chilique
não consegue dar mais nada...
Maria Nascimento – RJ
 

O garoto serelepe
matava as aulas... e, ausente,
de tanto gostar de "rap",
se tornou um "rap...etente"...
Pedro Mello – SP
 

Minha vizinha, coitada,
ao visitar sua prima,
tropeçou... caiu da escada...
e foi “para o andar de cima”...
Therezinha Brisolla – SP



 
Trate o velho com respeito;
dê-lhe o amor que possa dar.
Mas não lhe roube o direito
de a si mesmo governar!
A. A. de Assis – PR
 

A liberdade prospera
onde existe honestidade.
Muito mais que uma quimera,
ela é a expressão da verdade.
Agostinho Rodrigues – RJ

Tão forte nos abraçamos
confundidos no entrelaço,
que eu acho até que trocamos
os corações nesse abraço!
Almerinda Liporage – RJ

Namorei sonhos distantes,
que senti, mas não toquei;
e até dos sonhos errantes,
confesso: também gostei!
Antonio Manoel Abreu Sardenberg – RJ

O medo é perturbador
e afeta a nossa razão;
faz que coisas sem valor
pareçam mais do que são.
Amilton Monteiro – SP

Num mundo violento onde  
morre o peão pelo rei,
quanta injustiça se esconde  
sob a máscara da Lei!
Antonio Juraci Siqueira – PA

Vejo uma luz lá no céu,
por certo é o teu paraíso!...
– Minha vida foi-se ao léu;
acabou-se o meu sorriso.
Ari Santos de Campos – SC

Lavrador, ao fim do dia,
após a lida no chão,
tua enxada rodopia
celebrando a produção!
Arlene Lima – PR

Se fazer bem é o que vale,
faça o bem sem ver a quem,
pois não há bem que se iguale
ao bem de fazer o bem!
Arlindo Tadeu Hagen – MG

Saudade dos meus passeios
pelo teu corpo sensual:
a boca, as pernas, os seios,
o et cétera e tal...
Bruno Pedina Torres – RJ

Minha vida ganha impulso
e mais impulso ganho eu,
sempre que sinto o teu pulso
pulsando junto do meu!...
Carolina Ramos – SP

Olhando fotos antigas,
tenho saudade de mim.
– Hoje, maduras espigas;
ontem, um frágil jardim.
Clevane Pessoa – MG

No colo a filha do filho
pela avó é acalentada,
qual noite sem luz e brilho
embalando a madrugada.
Conceição Assis – MG

Quisera ter coisas novas
escritas, mas tudo em vão.
Só encontrei algumas trovas
no escrínio do coração.
Cônego Telles – PR
 

Nada soy pues nada tengo
yo llegué desnuda al mundo,
sin riqueza ni abolengo
por eso en el amor me hundo.
Cristina Olivera Chávez – EUA

Saia da cruz oh Jesus!
não fique pregado assim,
venha trazer tua luz,
estenda os braços pra mim!
Cyroba Ritzman – PR

Amor, senhor da utopia;
tempo, senhor da razão.
Mas, nessa eterna porfia,
sempre vence o coração,
Dáguima Verônica – MG

Não tens culpa, velha enxada,
desbeiçada, cabo torto,
por só colheres o nada
do ventre de um solo morto!...
Darly O. Barros – SP

Em vez do vício, a virtude
e... da revolta, a harmonia...
Quisera que a juventude
se drogasse de poesia!
Delcy Canalles– RS

Ah! mundo cão, mundo louco,
de guerras pelo poder...
Só necessito de um pouco
de sossego pra viver.
Djalma Mota – RN
 

Quando a lembrança me invade
no porto da vida – e quanto! –
brilha o farol da saudade
sob a neblina do pranto!
Domitilla Borges Beltrame – SP
 

Luiz Otávio, em teu reinado,
onde o plágio não se aprova,
que bom fosses plagiado
em teu amor pela trova!
Edmar Japiassú Maia – RJ

Urge o tempo, faz-se escasso,
e, ao sofrer na despedida,
o nosso amor, sem espaço,
mostra a vida não vivida.
Eliana Jimenez – SC

Pouco importa que tu venhas
apressado, em teu fulgor,
pois trazes contigo as senhas
para os feitiços do amor!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Essa lágrima sentida
que nos teus olhos aflora
é uma prova enternecida
de que um homem também chora!
Ercy Maria Marques de Faria – SP

Sabendo a hora em que estás,
farás do tempo um espaço
para um cantinho de paz
e a imensidão de um abraço!
Flávio Stefani – RS

Em cada beijo roubado,
que roubo de ti, meu bem,
sinto o gosto do pecado
que o beijo roubado tem!
Francisco Garcia – RN

Sem disfarce, sem retoque,
vou vivendo a vida assim:
pedindo a Deus que coloque
beleza dentro de mim.
Francisco Pessoa – CE

Amor à primeira vista,
foi isso, mar, que eu senti.
Ninguém há que te resista,
quando está diante de ti!
Gislaine Canales – RS

Fiquei velho a contragosto,
mas não posso reclamar.
Se o tempo amassou meu rosto,
não doeu, foi devagar.
Humberto Del Maestro – ES

Não haverá sociedade
que possa ser construída
sem a fé na humanidade
e o respeito pela vida!
J.B.  Xavier – SP

Um desejo singular
me ocorre, claro e preciso:
devagarinho beijar
ternamente o seu sorriso.
Jeanette De Cnop – PR

Parecendo estar brincando
no céu, em formações várias,
as nuvens vão desenhando
figuras imaginárias...
Jesse Nascimento – RJ

Quantas pedras removidas
e quantas por remover.
Provações em nossas vidas
que só nos fazem crescer!
João B. Xavier Oliveira – SP

Os meus versos se calaram,
à saudade sucumbi,
minhas lágrimas secaram
de tanto chorar por ti...
João Costa – RJ

Largo sorriso é o recado
nascido do coração:
aquele abraço apertado
no reencontro com o irmão!
Jorge Fregadolli – PR

Como filme de cinema,
ao fitar a tua face,
te dediquei um poema
do amor que agora... renasce.
José Feldman – PR

A inspiração não me veio
trazer um verso feliz,
mas em teus olhos eu leio
a trova que não te fiz.
José Lucas de Barros – RN

Ao relento, no abandono,
dorme o menino de rua,
tendo por guarda do sono
os olhos tristes da lua.
José Valdez – SP

De volta, naquela viagem,
carregando o olhar tristonho,
via de perto a paisagem,
mas bem distante o meu sonho...
Lucília Decarli – PR

No teatro, hoje em ruínas,
tantos sonhos eu plantei,
que as lembranças peregrinas
nem percebem que parei...
Luiz Antônio Cardoso – SP

Do simples pó eu procedo,
sei que a ele hei de voltar;
a vida não tem segredo:
é um eterno retornar.
Luiz Carlos Abritta – MG

Na estrada das aventuras
vemos quedas sem guarida,
algumas tão prematuras,
outras no fim da corrida.
Luiz Damo – RS

Não busco da vida o intento
senão de ser, todo dia,
feliz a cada momento
no meu ninho de poesia!
Mara Mellini – RN
 

Aos bravos, lutar compensa,
mesmo se a luta é renhida.
Só os fracos pedem dispensa
ante os dilemas da vida!
Maria Lúcia Daloce – PR

Eu já fui um beija-flor
em outras vidas passadas:
era segredo em louvor
às flores desamparadas.
Maria Luíza Walendowsky – SC

Ponho meus olhos no espaço
e tropeço entre as estrelas.
Penso em ti: entre elas passo
e nem sequer chego a vê-las.
Maria Thereza Cavalheiro – SP

De uma única costela,
nosso Deus fez a mulher;
se há criatura mais bela?
– Desdiga-me quem puder!
Maurício Friedrich – PR

Há um mistério na neblina
que dá medo, mas seduz,
porque a sua eterna sina
é tirar, do dia, a luz.
Olga Agulhon – PR
 

Nada recebe quem nega
dar amor ou coisa assim:
só colhe flores quem rega
dia e noite o seu jardim.
Olympio Coutinho – MG

Tudo na vida tem preço
e prazo de validade...
Quando tu vais, não te esqueço:
pago teu preço em saudade!
Renato Alves – RJ

Ao abrir minha janela,
inundada de luar,
mais forte a lembrança dela
fez a saudade apertar.
Roberto Pinheiro Acruche – RJ

Mulher de rara beleza
não deve, jamais, pintar-se,
pois obra da natureza
não necessita disfarce.
Ruth Farah – RJ

Ó Senhor! Com teu poder
deixa na praia eu sonhar,
pois as ondas irão ver
que eu também pertenço ao mar.
Sarah Rodrigues – PA

Das estrelas não esperes
mais que palavras ao vento;
as estrelas são mulheres
que piscam sem sentimento.
Selma Patti Spinelli – SP
 

Em meu Deus tudo é perfeito,
dos céus aos vermes do chão.
Quem por Ele anda direito
traz em paz o coração.
Thalma Tavares – SP
 

Vais partir... Que diferença
fará se te vais, enfim,
pois mesmo em minha presença
vives distante de mim!
Thereza Costa Val – MG

Por ciúmes, no passado,
o nosso amor foi desfeito...
Ficou o sonho tatuado
na penumbra do meu peito.
Vanda Alves – PR

No seu espaço abrangente,
a vida é espaço comum:
mistura um pouco da gente
na vida de cada um.
Vanda Fagundes Queiroz – PR

Ao raiar de um novo dia,
quantas razões de viver!
A esperança se irradia
nas brumas do amanhecer!
Wagner Lopes – MG

Pode o “sim’ gerar bonança
e o “não” matá-la de vez.
Que seria da esperança
se não houvesse o “talvez”?
Wanda Mourthé – MG

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Machado de Assis (Iaiá Garcia)

Iaiá Garcia foi escrito em 1878 e a trama se desenrola entre os anos de 1866 e 1871. Casamentos arranjados, amores proibidos e jogos de interesse compõem este painel que retrata a sociedade contemporânea ao autor.

Uma história singela, ao gosto romântico e um tanto convencional, em Iaiá Garcia, Machado de Assis começa a revelar as qualidades que mais tarde farão dele um grande romancista: a finura de estilo, o senso de humor que já desponta aqui e ali, a recriação de ambientes, a exata caracterização de personagens, principais ou secundários, como Raimundo, o preto africano, escravo liberto e inteiramente dedicado a Luís Garcia. Mas está longe ainda dos seus grandes momentos de criação literária, que se iniciam a partir do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Iaiá Garcia antecipa a experimentação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, e portanto, este romance não se encaixa na primeira fase de Machado propriamente dita, mas deve ser considerado como uma obra de transição.

O último dos romances da primeira fase de Machado de Assis, Iaiá Garcia apresenta uma clara influência de José de Alencar; os personagens e a trama são tipicamente românticos, mas já pode se ver que algo não está totalmente romântico: personagens secundários mais realistas e nada de vilões; os amores de Jorge por Estela e de Procópio por Iaiá são honestos, mas efêmeros; Estela recusa o casamento não por não amá-lo, mas por diferenças de classe social (ela é mais pobre); e Estela e Luís não se casam por amor e sim por um misto de estima e conveniência.

A personagem mais atuante é Estela, que verdadeiramente conduz a ação promovendo a felicidade dos que a cercam, como Luiz Garcia, Iaiá e Jorge.

Enredo

O enredo se constitui de uma série de incidentes que giram sempre em torno do mesmo ponto, a realização ou a não-realização de um casamento. Todos os atos das personagens são conduzidos, de modo direto ou indireto, para a consecução ou para o impedimento desse objetivo. Assim, a ação do romance arma-se sobre a mesma sequência básica, repetida ao longo do relato com ligeiras variações, mas mantendo sistematicamente os elementos essenciais.

Como já citado, Iaiá Garcia trata do conflito social entre as classes, aproveitando como eixo o romance entre Jorge, um cavalheiro de alta sociedade e Estela, uma jovem pobre.

O romance se inicia com a apresentação de Luís Garcia, pai de Lina Garcia, chamada em seu círculo familiar de Iaiá. A personagem é convocada por Valéria para que a ajude a convencer o filho a alistar-se no exército brasileiro e participar da Guerra do Paraguai. Na descrição da personagem, ao iniciar o romance, Machado de Assis chama a atenção do leitor para certos aspectos de Luís Garcia:

No momento em que começa esta narrativa, tinha Luís Garcia quarenta e um anos. (...) Suas maneiras eram frias, modestas e corteses; a fisionomia um pouco triste. Um observador atento podia adivinhar por trás daquela impassividade aparente ou contraída as ruínas de um coração desenganado. Assim era; a experiência, que foi precoce, produzira em Luís Garcia um estado de apatia e ceticismo, com seus laivos de desdém.

Nessa primeira descrição, podemos notar que não há nada a se esconder: o narrador apresenta as principais peculiaridades da personagem. Não é um “observador atento” que é chamado à leitura, pois o próprio narrador dá ao leitor a chave para o entendimento das futuras decisões tomadas por Luís Garcia logo na primeira página do romance. A descrição, nesse caso, funciona como um objeto de desvelamento: mostra aos leitores a impossibilidade de imputar à personagem qualquer outro caráter que não seja o de um “coração desenganado”.

No romance não há nada de oculto no caráter de Luís Garcia. Tudo sobre o pai de Iaiá foi dito na primeira oportunidade pelo narrador, de modo que a atenção do leitor ficasse presa à camada mais imediata do texto: aquela dos fatos a serem narrados.

A partir daí, pode-se dizer que a narrativa de Machado de Assis em Iaiá Garcia encontra-se a meio caminho entre o romance de feição popular e o problemático. Se por um lado há descrições que reduzem as personagens psicologicamente, mantendo a atenção do leitor voltada para a superfície mais direta da trama, por outro lado há a presença de certas sutilezas psicológicas que produzem um nível de problematicidade maior a ser enfrentado pelo leitor.

Logo após a descrição do pai, o narrador passa rapidamente para a descrição da filha:

Entretanto, das duas afeições de Luís Garcia, Raimundo era apenas a segunda; a primeira era uma filha. (...)
Contava onze anos e chamava-se Lina. O nome doméstico era Iaiá.(...) A boca desabrochava facilmente um riso, — um riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade.

Logo após a apresentação de Iaiá, temos a descrição do ambiente doméstico de seu pai. Vemos, nessa parte da narrativa, que a filha de Luís Garcia apresenta sutilezas psicológicas importantes. Observemos com cuidado:

(...) Dessa comparação extraiu a ideia do sacrifício que o pai devia ter feito para condescender com ela; ideia que a pôs triste, ainda que não por muito tempo, como sucede às tristezas pueris. A penetração madrugava, mas a dor moral fazia também irrupção naquela alma até agora isenta da jurisdição da fortuna. (ASSIS, 1975, p. 79)

Machado, nesse momento, apresenta-nos um problema: Iaiá reconhece que o pai sacrificou-se ao lhe dar um piano de presente. Porém, como as tristezas pueris não duram, logo ela delicia-se com o presente. O que se mostra importante neste breve trecho é a presença de uma palavra-chave da narrativa de Iaiá Garcia. Palavra que constitui o verdadeiro palco da discussão nesta obra: a moral. Percebe-se que desde cedo (a personagem contava nessa época com onze anos de idade) Iaiá compreende a “dor moral” que o pai tem de sofrer, para que possa lhe dar educação e conforto. O romance trata, portanto, da aprendizagem de Iaiá em um novo mundo: o mundo da tensão entre o social e o natural, mediante o jogo imposto pelo narrado acerca da moral.

O primeiro momento de tensão da narrativa ocorre já no segundo capítulo do romance. Na verdade, trata-se de uma fórmula que se repetirá em toda a trama: a realização ou não de um casamento, como já vimos.

Temos a tríade Estela – Valéria – Jorge que representa a dinâmica entre o natural e o social por meio do casamento. A convocação de Luís Garcia para interagir nessa dinâmica, sendo esse o tema do segundo capítulo do romance, não afeta o trinômio, pois, como sabemos, ele não participará diretamente da tensão. Porém, caberá a essa personagem o papel de julgar, sendo complementado pelo narrador. O diálogo entre Valéria, Luís Garcia e Jorge é recheado de julgamentos morais que levam o leitor a uma dubiedade: ao separar seu filho de Estela, a verdadeira motivação de Valéria é egoísta, mas, por outro lado, existem grandes vantagens sociais para o jovem rapaz.

Sob esse aspecto, basta que observemos a descrição que Machado de Assis faz de Estela:

Simples agregada ou protegida, não se julgava no direito a sonhar posição superior e independente; e dado que fosse possível obtê-la, é lícito afirmar que recusara, porque, a seus olhos seria um favor, e sua taça de gratidão estava cheia. (...)
Pois o orgulho de Estela não lhe fez somente calar o coração, infundiu-lhe a confiança moral necessária para viver tranquila no centro mesmo do perigo.

A dissimulação, característica própria do universo feminino e romanesco, é resgatada no momento em que Estela descobre seu amor por Jorge:

No meio de semelhante situação, que sentia ou pensava Estela? Estela amava-o. No instante em que descobriu esse sentimento em si mesma, pareceu-lhe que o futuro se lhe rasgava largo e luminoso; mas foi só nesse instante. Tão depressa descobriu o sentimento, como tratou de o estrangulá-lo ou dissimular, — trancá-lo ao menos no mais escuro do coração, como se fora uma vergonha ou pecado. (ASSIS, 1975, p. 97)

Sendo assim, a primeira tensão do romance é a seguinte: Jorge ama uma mulher que não é compatível com sua condição social. A mãe do rapaz se mostra contrária a essa união, mas Estela descobre que também o ama. No entanto, Estela, dominada pelo orgulho, rechaça a possibilidade de uma união, pois, em seu entendimento, entregar-se a Jorge seria assumir seu papel de agregada. Assim, a mulher passa a dissimular seus sentimentos, tornando-se superior ao amado por meio da frieza para com ele.

Apesar de Estela esconder seus sentimentos, é Valéria que domina por ser mais experiente na arte da dissimulação. Ou seja, Valéria, desde o primeiro momento, percebe que há um perigo a ser vencido: Jorge não pode casar-se com Estela:

Valéria reparou na atitude dos dois; mas como possuía a qualidade de dissimular as impressões, não alterou nem o gesto nem a voz. Os olhos é que nunca mais os deixaram. (ASSIS, 1975; p.102)

Sempre vigilante, e apesar de todos os percalços, Valéria despacha o filho para o Paraguai. Porém, antes de morrer, casa Estela com Luís Garcia, sendo este o segundo trinômio da trama: Estela – Valéria – Luís Garcia.

Aqui se configura uma pequena mudança: todos são a favor do casamento. Em primeiro lugar, Valéria vê nesta união a resposta para seus problemas; por isso, oferece o dote de casamento para Estela. Em vista desse fato, percebe-se claramente a maestria de Valéria:

Com essa ideia opressiva entrou ela na casa da viúva, cuja recepção lhe desabafou o espírito do mais espesso de suas preocupações. Valéria beijou-a, com um gesto mais maternal que protetor. Nem lhe deixou concluir a frase de agradecimento; cortou-a com uma carícia (...) dissimulação generosa, que Estela compreendeu, porque também possuía o segredo dessas delicadezas morais.

Ou seja, Estela acaba por reconhecer em Valéria alguém superior às suas forças. A orgulhosa agregada não conseguiu separar-se de sua protetora, pois, reconhecendo-lhe a superioridade na arte da dissimulação, não lhe sobra recursos a não ser retornar à esfera de proteção da viúva.

Logo após esse episódio, Estela e Luís Garcia discutem sobre o projeto de se unirem:

— Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casarmos é por nos julgarmos friamente dignos um do outro.
— Uma paixão de sua parte, em relação à minha pessoa, seria inverossímil, confessou Luís Garcia; não lha atribuo. Pelo que me toca, era igualmente inverossímil um sentimento dessa natureza, não porque a senhora não pudesse inspirar, mas porque eu já não o poderia ter.
— Tanto melhor, concluiu Estela; estamos na mesma situação e vamos começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranquilo. Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro.

Do diálogo entre as personagens não deriva, por certo, um julgamento amoroso, pois se trata de um julgamento moral, que fora impulsionado pela mãe de Jorge. A mesma senhora que, para recompensar esse matrimônio, entrega o dote de Estela. A união entre o indiferente Luís Garcia e a orgulhosa viúva é uma união de características que não se confundem, mas que podem vir equilibrar a economia doméstica da casa de Iaiá Garcia. O real motivo do casamento para Luís é Iaiá, que já reconhecera Estela como uma mãe possível, mas que em sua ingenuidade não participou dos planos de Valéria.

Jorge retorna da guerra para descobrir a amada em matrimônio com seu melhor amigo, e a mãe morta. Lembremos que os dois primeiros trinômios de tensão da narrativa tiveram como motivo inspirador as próprias resoluções de Valéria. Devemos lembrar ainda que uma personagem fora dos trinômios serve de catalisador dos acontecimentos – no primeiro trinômio, temos Luís Garcia; no segundo, Iaiá. O próximo trinômio apresentará Iaiá como uma de suas peças fundamentais.

Agora temos Luís Garcia – Iaiá Garcia – Jorge. É Iaiá, centro deste trinômio, que desenvolve a dinâmica da narrativa. Aqui trata-se do casamento como salvaguarda de uma situação: Iaiá pretende casar-se com Jorge pelo amor que tem ao pai. Vejamos como se configura o problema:

(...) Luís Garcia disse algumas palavras a respeito do filho de Valéria.
— Pode ser que eu me engane, concluiu o cético; mas persuado-me que é um bom rapaz.
Estela não respondeu nada; cravou os olhos numa nuvem negra, que manchava a brancura do luar. Mas Iaiá, que chegara alguns momentos antes, ergueu os ombros com um movimento nervoso.
— Pode ser, disse ela; mas eu acho-o insuportável.

E ainda:

A verdadeira causa era nada menos que um sentimento de ciúme filial. Iaiá adorava o pai sobre todas as coisas; era o principal mandamento de seu catecismo. Instigara o casamento, com o fim de lhe tornar a vida menos solitária, e porque amava Estela. O casamento trouxe para casa uma companheira e uma afeição; não lhe diminuiu nada do seu quinhão de filha.
Iaiá viu, entretanto, a mudança nos hábitos do pai, pouco depois de convalescido, e sobretudo desde os fins de setembro. Esse homem seco para todos, expansivo somente na família, abriria uma exceção em favor de Jorge (...)

A primeira motivação de Iaiá é separar Luís Garcia de Jorge por conta de um ciúme filial. Entretanto, o que acontece é o oposto: pouco a pouco, Jorge aproxima-se de Iaiá sem perder a admiração de Luís Garcia. Em realidade, essa admiração moral aumenta. E Iaiá ainda não tinha os planos de casamento. Até então, seu objetivo era afastar Jorge de seu pai.

No capítulo X, há a mudança na resolução de Iaiá. E, seguindo a ordem da narrativa, um fator externo desencadeia a mudança: a releitura de uma das cartas de Jorge nos tempos de guerra, releitura para o pai e leitura para Estela e Iaiá – que “lê” os olhos da madrasta.

Iaiá, mesmo com um pretendente certo, começa a aproximar-se de Jorge. Procópio Dias, o pretendente cuja moral é execrada tanto pelo narrador quanto por Jorge, precisa viajar para recuperar uma herança. O afastamento de Procópio, como anteriormente o afastamento de Jorge, configura a aproximação das personagens, que terminará no matrimônio de ambos. Procópio pede a Jorge para cuidar de Iaiá. E Iaiá inicia seu plano para conquistar o antigo amado de Estela. Como já vimos, o objetivo de Iaiá não é a disputa mas a salvaguarda de seu pai, pois ela sabia o perigo que representava Jorge em sua casa.

A filha de Luís Garcia, enfim, consegue seu objetivo. Jorge jura-lhe amor e os dois iniciam os preparativos para o casamento. Contudo, o pai de Iaiá encontra-se enfermo e acaba por falecer.

Regida pelo orgulho, Estela percebe logo que Iaiá deseja casar-se com Jorge por algum motivo além de seus próprios sentimentos. Vejamos a reação da personagem à situação em que é mera espectadora:

O procedimento da enteada, a súbita conversão às atenções de Jorge, toda aquela intimidade visível e recente, acordara no coração de Estela um sentimento, que nem aos orgulhosos poupa. Ciúme ou não, revolvera a cinza morna e achou lá dentro uma brasa. (...)
 
(...) O orgulho vencera uma vez; agora era o amor, que, durante anos de jugo e compressão, criara músculos e saía a combater de novo. A vitória seria uma catástrofe, porque Estela não dispunha da arte de combinar a paixão espúria com a tranqüilidade doméstica; teria as lutas e as primeiras dissimulações; uma vez subjugada, iria direto ao mal.

Vemos que os ciúmes de Estela continuam relacionados a uma situação em que o orgulho é o verdadeiro motivo, pois, mesmo reconhecendo o amor que Jorge, ela pretende provar que é moralmente superior. Com a morte de Luís Garcia, no capítulo XV, Estela poderia desobrigar-se dos impedimentos morais que a colocaram na situação acima mencionada. Todavia, devemos lembrar que Estela era também mãe de Iaiá. Esse fato, gerado pela convivência das duas em casa do pai de Lina, poderia ser exatamente o sucesso da nova empreitada da viúva: casar os até então noivos Jorge e Iaiá.

Porém, Iaiá não desejava mais casar com o filho de Valéria. Vejamos os motivos:

Mas duas circunstâncias a induziram ao desfecho; era a primeira a revelação de Procópio Dias, confirmação de suas suspeitas; a segunda foi o espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos, naquela noite, logo depois de se despedir do noivo. Sabendo que a madrasta estava no gabinete do pai, ali foi ter e espreitou pela fechadura; viu-a sentada com a cabeça inclinada ao chão, desfeito o penteado, mas desfeito violentamente, como se lhe metera as mãos em um momento de desespero, e caindo-lhe o cabelo em ondas amplas sobre a espádua, com a desordem da pecadora evangélica. Iaiá não a viu sem que os olhos se umedecessem.

— Que se casem! disse a moça resolutamente.

Embora ainda ame Jorge, a menina decide desfazer a promessa porque sua madrasta o ama e não há impedimento moral algum para que se faça a união. É aqui que vemos como a “puberdade moral” de Iaiá torna-a superior aos procedimentos de Estela:

Ergueu-se e procurou beijá-la. A madrasta recuou instintivamente a cabeça; era um gesto de repugnância, que a fisionomia ingênua e pura de Iaiá para logo dissipou. Em tão verdes anos, sem nenhum trato social, era lícito supor na menina tamanha dissimulação?

Sim, pois Iaiá sabia da paixão de Jorge e do amor que Estela tentava esconder. É claro que o orgulho de Estela passa a interpretar as atitudes de sua enteada como “um impulso desinteressado”. Porém, o leitor sabe que não se trata disso, mas de uma batalha, em todo o romance, de fingimentos para atingir determinados objetivos em torno do contrato social chamado casamento. Estela, perdida em meio à batalha das ilusões, ainda ama Jorge, que não mais a ama.

Entretanto, Estela não deseja casar com Jorge, pois seu orgulho a impede. Assim, após o noivo de Iaiá recorrer à futura sogra por meio de uma carta, Estela decide intervir. Vai ao encontro da jovem e inicia o mais longo diálogo do texto, resultando em um casamento por amor e o afastamento de alguém, neste caso, Estela, que deixa o Rio de Janeiro e, ao fazer isso, demonstra que a única coisa a escapar ao naufrágio das ilusões é a moral, respondendo assim a indeterminação dada pela palavra “coisa” na frase final do romance: “Era sincera a piedade da viúva. Alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões”.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/estudos/livros/iaia_garcia. Publicado em  06/06/2013.