quinta-feira, 13 de março de 2014

Adélia Prado (Bagagem)

O livro Bagagem, foi a primeira publicação de Adélia Prado, de 1976, por indicação de Carlos Drummond de Andrade. Declaração da autora sobre a obra: "Meu primeiro livro foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento”.
Em seu poema "Fluência", ela relatou a sensação da estreia: "O meu alívio foi constatar que depois da festa o mundo continuava igual e a perplexidade que gerou Bagagem continuava intacta. Foi ver que a poesia não desertara de mim".

Do ponto de vista estilístico, destaca-se a combinação dos contrários, como tristeza e alegria, tanto quanto do lirismo e da ironia. Bagagem chamou a atenção da crítica pelo jeito diferente que a autora tem de dizer as coisas que sente e vê.

Em Bagagem, os poemas são distribuídos em quatro grandes seções. Essas seções se configuram segundo um variado mapa existencial, que se divide entre as coordenadas da “poesia”, do “amor” e da “memória”, além daquela “alfândega”, de sentido mais escorregadio mas nem por isso menos sugestivo (pensemos num contraponto com o título do livro). O cotidiano é, sumariamente descrito, o espaço próprio das vivências imediatas, recebendo frequentemente a carga do trivial, que é a polaridade “terrena” das ofegantes aspirações ao sublime:

CONFEITO
Quero comer bolo de noiva,
puro açúcar, puro amor carnal
disfarçado de corações e sininhos:
um branco, outro cor-de-rosa,
um branco, outro cor-de-rosa.

É a poesia do cotidiano, não do grandiloquente. Claro que muitos escritores brasileiros já tinham praticado ou pregado a poetização do cotidiano antes dela - dos modernistas a Mário Quintana-, mas em Adélia Prado a transformação do ordinário em extraordinário é soberba, não fosse esse um adjetivo que ela abominaria. A notar, ainda, a sensualidade que ela empresta à religiosidade.

A questão do feminino surge na poesia adeliana no modo como ela dá a ler um conjunto de práticas culturalmente marcado, de modo que o sujeito lírico ora com ele se identifica, ora dele se afasta, num movimento pendular entre a tradição e a ruptura, o diálogo com os poetas masculinos e a explicitação de sua diferença, de que o poema "Com licença poética", que inicia Bagagem, é exemplar.

Nota: O poema "Com licença poética" parafraseia o "Poema de Sete Faces", de Drummond:
Poema de Sete Faces
Quando nasci,
um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai Carlos!
ser “gauche” na vida.
(C. Drummond de Andrade)

Vejamos então, a análise de alguns poemas que fazem parte da obra Bagagem.

1. COM LICENÇA POÉTICA
(Análise feita por Jaqueline Alice Cappellari, do curso de Letras das Faculdades Porto-Alegrenses de Educação, Ciências e Letras, orientada pela Profª Diana Maria Marchi.)

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Comentários: Os primeiros poemas de Adélia Prado, publicados em Bagagem, procuram exatamente isso: definir a imagem da poeta. Em "Com licença poética", ela assume sua sina de mulher-poeta ao passo em que se apresenta de forma simples e grandiosa ao mesmo tempo; sem deixar de explicitar suas antíteses, ou seja, as contradições do universo feminino, bem como suas diferenças diante do universo masculino.
Já no primeiro verso, é explícita a paródia a Carlos Drummond de Andrade, como já vimos, na qual a poeta deixa, a princípio, claro sua diferenciação. Em vez de um anjo coxo, conforme o conhecido poema drummondiano, trata-se de um anjo esbelto que anuncia o nascimento do eu-lírico de "Com licença poética".

Mais adiante, no terceiro, quarto e quinto versos, a poeta admite que ser mulher-poeta é uma tarefa árdua, visto que, carregar Manuel Bandeira, isto é, o peso de fazer poesia diante da existência de um poeta grandioso como Manuel Bandeira, realmente não seria fácil.

No quinto verso, quando o eu-lírico de "Com licença poética" define a mulher como “esta espécie ainda envergonhada”, podemos deduzir que a mulher é uma “espécie” ainda tímida, com resquícios da criação sob os preceitos católicos citados anteriormente, ou seja, que carrega uma “culpa”, não reconhecendo seu verdadeiro potencial, que lhe permite engendrar homens e fazer poesia.

Em relação ao sexto e ao sétimo verso, percebe-se que a poeta se mostra conformada com sua condição, isto é, aceita os pretextos que, ao longo dos anos, foram dados à mulher (mãe, dona de casa, esposa), pois ela não precisa mentir, é desdobrável, é aquilo que é.

Em seguida, nos próximos versos, a poeta enumera, de forma simples, algumas características da mulher que é, abordando questões sempre tão ligadas ao sexo feminino: medo de não conseguir casar, do parto. Sem rodeios, ela revela sua forma de fazer poesia: escreve o que sente. E isso é tido por ela como uma sina, faz parte de seu destino.

Assim, fica claro que se trata de uma mulher que cumpre a sina há tempos a ela destinada: casar, parir os filhos, cuidar da casa. E escreve. Enfim, ao mesmo tempo, não deixa de ser uma “nova mulher”, que se define, que se encontra e que tem consciência de, conforme o décimo segundo verso, inaugurar uma linguagem, fundar reinos.

Dessa maneira, ela planta sua semente através da poesia, fundando reinos que irão resultar na literatura feminina amadurecida dos tempos atuais. Reinos infinitos, que se ampliam de acordo com as conquistas da mulher nesta sociedade ainda tão desigual.

Entretanto, o eu-lírico declara que a dor não é amargura; e isso é dito entre parênteses, como um adendo, para que não seja esquecido. Sim, a mulher já sofreu muito, e ainda sofre, porém essa dor não se transformou em amargura, mas em crescimento, em poesia.

Conforme o décimo quarto verso, sua tristeza não tem linhagem, é comum e, assim, identifica-se com o coletivo. Contudo, seu desejo, sua disposição e sua determinação em busca da satisfação são características seculares, próprias da mulher. Para concluir, a poeta retoma a referência a Drummond; no entanto, mais uma vez, o utiliza como sua antítese. Dessa forma, permanece a idéia da superioridade feminina, visto que “ser coxo na vida é maldição pra homem. A mulher é desdobrável”, flexível, isto é, não aceita um destino defeituoso para o qual o homem sempre tentou persuadi-la. Enfim, ela é mulher.

2. GRANDE DESEJO
(Análise feita por Jaqueline Alice Cappellari, do curso de Letras das Faculdades Porto-Alegrenses de Educação, Ciências e Letras, orientada pela Profª Diana Maria Marchi.)

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai.
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.

A autora inicia dizendo que é uma mulher comum, do povo, mãe. Desse modo, observa-se a rima provocada pelo contraste dos nomes "Cornélia" e "Adélia", assim como o contraste de significado que esses dois nomes representam. Ela declara-se uma mulher simples por meio da enumeração de atos corriqueiros, banais, tais como fazer comida e bater o osso no prato pra chamar cachorro.

No sexto verso, para que ocorra uma aproximação ainda maior com o coletivo, Adélia diz que “quando dói” grita “ai”, pois não se trata de uma mulher revolucionária, que reprime sua dor em busca de determinado ideal, mas sim uma mulher que constitui sua força com base na sinceridade consigo mesma. Sendo assim, suas sensibilidades não têm governo. Ela se aceita tal como é, com seus momentos de dor e de irracionalidade.

O eu-lírico continua sua apresentação e, no décimo segundo verso, notamos sua religiosidade, outra constante na obra de Adélia Prado, como se a poeta fosse um enviado de Deus que cumpre a sina escrevendo aquilo que sente. Sua poesia está tão ligada à religião que, quando escrever seu livro, irá a uma igreja, talvez para batizá-lo; a uma lápide, a um descampado, talvez para agradecer. Então, nesse instante, a sensibilidade da poeta virá à tona e ela irá chorar, transformando-se numa dama requintada, pois tem um livro com seu nome; porém esquisita, já que é diferente, possui um destino que sabe qual é. Adélia é uma mulher do povo, e sua poesia não está vinculada nem possui fundo político, mesmo numa época em que as feministas estavam em plena atividade com seus discursos de emancipação.

A apresentação pessoal, no poema "Grande desejo", coloca-se com clareza: não se trata de uma mulher excepcional, revolucionária (leia-se, nem no nível ideológico, nem no nível estético), como Cornélia, a mãe dos irmãos Tibério e Caio, que propuseram a primeira lei da reforma agrária em Roma, e que, por isso mesmo foram condenados à morte, sendo valentemente defendidos pela mãe. Identifica-se apenas como Adélia, mas é uma mulher que rima, uma mulher do povo, e mulher de forno e fogão, que cuida de cachorro e grita quando algo lhe dói, mas tem a sensibilidade para as coisas boas da vida. Ao mesmo tempo, desenha-se requintada e esquisita, isso depois que já tiver composto um livro com seu nome – imagina-se, o próprio livro que o leitor tem naquele momento em mãos. Dessa maneira, vemos que a significação da mulher é uma das características fundamentais da obra de Adélia Prado.

3. A INVENÇÃO DE UM MODO
Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras
e se me surpreendem, explico cheia de verdade:
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"
Fico entre montanhas,
entre guarda e vã,
entre branco e branco,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto,
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,
vendo televisão,
ou tirando sorte com quem vou casar.
Porque que tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li:
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.

No poema "A invenção de um modo", o eu-lírico lança os fundamentos da nova estética em gestação, a qual se caracteriza pela busca do equilíbrio entre pólos opostos. Nada de extremismos – ou isto ou aquilo –, mas há o desejo da busca de unidade, de conjugação e intersecção: “entre paciência e fama quero as duas”, ou seja, isto e aquilo.

4. ENREDO PARA UM TEMA
(Análise feita por Angélica Soares, Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Letras da UFRJ)

Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que...disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.

O poema é uma referência poética ao anti-ecológico silenciamento das mulheres, onde, pelo refazer irônico do autoritarismo da supremacia masculina desvendam-se exigências coercitivas hierarquizantes imputadas, desde sempre, à mulher, em uma sociedade androcêntrica.

Aí, o emprego do discurso direto, que reconstrói na íntegra, a fala do pai, do apaixonado candidato a marido da filha e de D. Cristóvão parece garantir o caráter memorialístico do poema, na medida em que atenua a subjetividade lírica dos versos. O impacto entre a fantasia da filha e a ironia do pai e de D. Cristóvão (representantes máximos, nesse texto, do poder patriarcal) concorre para intensificar o sentido do silêncio feminino diante da lei. O calar-se, como parte da submissão, que se liga às idéias de fragilidade, passividade e dependência da mulher, espelha, nos versos, a oposição binária entre o feminino e o masculino construída. "Enredo para um tema" testemunha, literariamente, essa opressão.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/estudos/livros/bagagem

quarta-feira, 12 de março de 2014

Machado de Assis (Médico é remédio)

Em que diabo conversam estas duas moças metidas na alcova? Conversam do Miranda, um rapaz engenheiro, que vai casar com uma amiga delas. Este Miranda é um noivo como qualquer outro, e não inventou o quadrado da hipotenusa; é bonito, mas não é um Apolo. Também não é rico. Tem mocidade, alguma instrução e um bom emprego. São vantagens, mas não explicam que as duas moças se fechem na alcova para falar dele, e muito menos que uma delas, a Julieta, chore às bandeiras despregadas.

Para compreender ambas as coisas, e principalmente a segunda, é preciso saber que o nosso Miranda e Julieta amaram-se algum tempo. Pode ser mesmo que ele não a amasse; ela é que com certeza morria por ele. Trocaram muitas cartas, as dele um pouco secas como um problema, as dela enfeitadas de todos os retalhos de frases que lhe lembravam dos romances. Creio mesmo que juraram entre si um amor eterno, não limitado à existência do sol, no máximo, mas eterno, eterno como o próprio amor. Vai então o miserável, aproveita-se da intimidade de Julieta com Malvina, namora a Malvina e pede-a em casamento. O que ainda agrava este fato é que Malvina não tinha melhor amiga que Julieta; andaram no colégio, eram da mesma idade e trocavam as suas mais íntimas confidências. Um dia Julieta notou certa frieza na outra, escassez de visitas, poucas cartas; e tão pouco advertiu na causa que, achando também alguma diferença no Miranda, confiou à amiga as suas tristezas amorosas. Não tardou, porém, que a verdade aparecesse. Julieta disse à amiga coisas duras, nomes feios, que a outra ouviu com a placidez que dá a vitória, e perdoou com magnanimidade. Não é Otávio o demente, é Augusto.

Casam na quarta-feira próxima. O pai da noiva, amigo do pai de Julieta, mandou-lhe um convite. O ponto especial da consulta de Julieta a esta outra amiga Maria Leocádia, é se ela deve confessar tudo à mãe para que não a leve ao casamento. Maria Leocádia reflete.

— Não, respondeu ela finalmente: acho que você não deve dizer nada. Estas coisas não se dizem; e, demais, sua mãe não fará caso, e você tem sempre de ir...

— Não vou, não vou... Só amarrada!

— Ora, Julieta; deixa disso. Você não indo, dá um gosto a ela. Eu, no caso de você, ia; assistia a tudo, muito quietinha, como se não fosse nada.

— Velhaca! falsa! interrompia-se Julieta, dirigindo-se mentalmente à outra.

Maria Leocádia confessou que era uma perfídia, e, para ajudar a consolação, disse que o noivo não valia nada, ou muito pouco. Mas a ferida era recente, o amor subsistia e Julieta desatou a chorar. A amiga abraçou-a muito, beijou-a, murmurou-lhe ao ouvido as palavras mais cordiais; falou-lhe ao brio. Julieta enxugou as lágrimas; daí a pouco saía de carro, ao lado da mãe, com quem viera visitar a família da amiga.

O que aí fica passa-se no Rio de Janeiro, onde residem todas as pessoas que figuram no episódio. Há mesmo uma circunstância curiosa: — o pai de Julieta é um oficial de marinha, o de Malvina outro, e o de Maria Leocádia outro. Este último sucumbiu na guerra do Paraguai.

A indiscrição era o pecado venial de Maria Leocádia. Tão depressa falou com o namorado dela, o bacharel José Augusto, como lhe referiu tudo o que se passara. Estava indignada; mas o José Augusto, filósofo e pacato, achou que não era caso de indignação.

Concordava que a outra chorasse; mas tudo passa, e eles ainda teriam de assistir ao casamento de Julieta.

— Também o que faltava era ela ficar solteira toda a vida, replicou Maria Leocádia.

— Logo...

Cinco minutos depois, metiam o assunto na algibeira, e falavam de si mesmos. Ninguém ignora que os assuntos mais interessantes derrubam os que o são menos; foi o que aconteceu aos dois namorados.

Na rua, porém, José Augusto tornou a pensar na amiga da namorada, e achou que era naturalmente triste a situação. Considerou que Julieta não era bonita, nem rica; tinha uma certa graça e algumas prendas; mas os noivos não andavam a rodo, e a pobrezinha ia entrar em nova campanha. Neste ponto da reflexão, sentiu que estava com fome. Tomara apenas uma xícara de chá, e foi comer. Mal se sentou aparece-lhe um colega de academia, formado dois anos, que esperava por dias uma nomeação de juiz municipal para o interior. José Augusto fê-lo sentar; depois, olhou para ele, e, como ferido de uma ideia súbita, desfechou-lhe esta pergunta:

— Marcos, tu queres uma noiva?

Marcos respondeu que preferia um bife sangrento. Estava com fome... Veio o bife, veio pão, vinho, chá, anedotas, pilhérias, até que o José Augusto perguntou-lhe se conhecia Julieta ou a família.

— Nem uma nem outra.

— Hás de gostar dela; é interessantíssima.

— Mas que interesse...?

— Sou amigo da família.

— Pois casa-te.

— Não posso, retorquiu José Augusto rindo; tenho outras ideias, atirei o lenço a outra odalisca... Mas, sério; lembrei-me hoje de ti a propósito dela. Crê que era um bom casamento.

— Tem alguma coisa?

— Não, não tem; mas é só o que lhe falta. Simpática, bem-educada, inteligente, muito meiga; uma excelente criatura... Não te peço que te obrigues a nada; se não gostares ou tiveres outras ideias, acabou-se. Para começar vai sábado a um casamento.

— Não posso, tenho outro.

— De quem?

— Do Miranda.

— Mas é o mesmo casamento. Conheces a noiva?

— Não; só conheço o Miranda.

— Pois muito bem; lá verás a tua.

Chegou o sábado. O céu trouxe duas cores: uma azul para Malvina, outra feia e horrenda para Julieta. Imagine-se com que dor se vestiu esta, que lágrimas lhe não arrancou a obrigação de ir assistir à felicidade da outra. Duas ou três vezes, esteve para dizer que não ia, ou simplesmente adoecer. Afinal, resolveu ir e mostrar-se forte. O conselho de Maria Leocádia era o mais sensato.

Ao mesmo tempo, o bacharel Marcos dizia consigo, atando a gravata ao espelho:

— Que interesse tem o José Augusto de me fazer casar, e logo com a tal moça que não conheço? Esquisito, realmente... Se, ao menos, fosse alguma coisa que merecesse e pudesse...

Enfiou o colete, e continuou:

— Enfim, veremos. Às vezes estas coisas nascem assim, quando menos se espera... Está feito; não me custa dizer-lhe algumas palavrinhas amáveis... Terá o nariz torto?

Na véspera, o José Augusto dizia a Maria Leocádia:

— Queria guardar o segredo, mas já agora digo tudo. Ando vendo se arranjo um noivo
para Julieta.

— Sim?

— É verdade; já dei uns toques. Creio que a coisa pode fazer-se.

— Quem é?

— Segredo.

— Segredo comigo?

— Está bom, mas não passe daqui; é um amigo, o bacharel Marcos, um bonito rapaz. Não diga nada a Julieta; é muito orgulhosa, pode recusar, se entender que lhe estamos
fazendo algum favor.

Maria Leocádia prometeu que seria muda como um peixe; mas, sem dúvida, há peixes que falam, porque tão depressa entrou no salão e viu Julieta, perguntou-lhe se conhecia um bacharel Marcos, assim e assim...Julieta respondeu que não, e a amiga sorriu. Por que é que sorria? Por um motivo singular, explicou ela, porque alguma coisa lhe dizia que ele podia e viria a ser a consolação e a desforra.

Julieta estava linda e triste, e a tristeza era o que mais lhe realçava as graças naturais. Ela tratava de dominá-la, e conseguia-o às vezes; mas nem disfarçava tanto, que se não conhecesse por baixo da crosta alegre uma camada de melancolia, nem por tanto tempo que não caísse de espaço a espaço no mais profundo abatimento.

Isto mesmo, por outra forma, e com algumas precauções oratórias, lhe foi dito por José
Augusto, ao pedir-lhe uma quadrilha, durante a quadrilha e depois da quadrilha. Começou por lhe declarar francamente que estava linda, lindíssima. Julieta sorriu; o elogio fez-lhe bem. José Augusto, sempre filósofo e pacato, foi além e confessou-lhe em segredo que achava a noiva ridícula.

— Não é verdade? disse vivamente Julieta.

E depois, emendando a mão:

— Está acanhada.

— Não, não; ridícula é que ela está! Todas as noivas ficam bem. Olhe a cintura do vestido: está mais levantada de um lado que de outro...

— O senhor é muito reparador, disse Julieta sorrindo.

Evidentemente, estava gloriosa. Ouvia proclamar-se bela, e a noiva ridícula. Duas vitórias enormes. E o José Augusto não disse aquilo para cumprimentá-la. Pode ser que carregasse a mão no juízo que fez da noiva; mas em relação a Julieta disse a verdade, tal qual a sentia, e continuava a sentir fitando os lindos olhos da abandonada. Daí a pouco apresentou-lhe o Marcos, que lhe pediu uma valsa.

Julieta lembrou-se do que lhe dissera Maria Leocádia a respeito deste Marcos, e, posto não o achasse mau, não o achou tão especialmente belo que merecesse o papel que a amiga lhe atribuiu. Marcos, ao contrário, achou-a divina. Acabada a valsa, foi ter com José Augusto, entusiasmado.

— Realmente, disse ele, a tua recomendada é uma sílfide.

— Ainda bem. Bonita, não?

— Lindíssima, graciosa, elegante, e conversando muito bem.

— Já vês que te não enganei.

— Não; e, realmente, é pena.

— O quê?

— É pena que eu não ouse.

— Que não ouses? Mas, ousa, peralta. O que é que te impede de ousar?

— Ajudas-me?

— Se eu mesmo te propus!

José Augusto ainda nessa noite falou a Julieta acerca do amigo, louvou-lhe as qualidades sólidas e brilhantes, disse-lhe que tinha um grande futuro. Também falou a Maria Leocádia; contou-lhe o entusiasmo do Marcos, e a possibilidade de fazê-lo aceitar pela outra; pediu-lhe o auxílio. Que ela trabalhasse e ele, e tudo se arranjaria. Conseguiu ainda dançar uma vez com Julieta, e falou-lhe da conveniência de casar. Há de haver algum coração nesta sala, reflexionou ele, que sangre muito de amor.

— Por que não diz isso com mais simplicidade? redarguiu ela sorrindo.

A verdade é que Julieta estava irritada com o trabalho empregado em fazê-la aceitar um noivo, naquela ocasião, principalmente, em que era obrigada a fazer cortejo à felicidade da outra. Não falei desta nem do noivo; para quê? Valem como antecedentes da ação.

Mas que sejam bonitos ou feios, que estejam ou não felizes, é o que não importa. O que importa unicamente é o que vai suceder com a rival vencida. Esta retirou-se para casa aborrecida, abatida, dizendo mentalmente as coisas mais duras à outra; até a madrugada não pôde dormir. Afinal, passou por uma breve madorna, acordou nervosa e com sono.

— Que mulherzinha! pensava o José Augusto indo para casa. Embatucou-me com as  tais palavras: — Por que não diz isso com mais simplicidade? Foi um epigrama fino, e inesperado. E o ladrão estava bonita! Realmente, quem é que deixa a Julieta para escolher a Malvina! A Malvina é uma massa de carne, sem feitio...

Maria Leocádia tomou a peito o casamento da amiga e José Augusto também. Julieta não dava esperanças; e, coisa singular, era menos expressiva com a amiga do que o namorado desta. Tinha vergonha de falar com a outra em tais matérias. Por outro lado, a linguagem de José Augusto era mais própria a fazer-lhe nascer o amor, que ela sinceramente desejava sentir pelo Marcos. Não queria casar sem amor. José Augusto, posto que filósofo e pacato, adoçava as suas reflexões de uma certa cor íntima; além  disso, dava-lhes o prestígio do sexo. Julieta chegou a pedir-lhe perdão da resposta que lhe dera no dia das bodas de Malvina.

— Confesso, disse ela, que o amor não pode falar com simplicidade.

José Augusto concordou com esse parecer; e ambos entraram por uma tal floresta de estilo, que se perderam inteiramente. Ao cabo de muitos dias, foram achar-se à porta de uma caverna, de onde saiu um dragão azul, que os tomou e voou com eles pelos ares fora até à porta da matriz do Sacramento. Ninguém ignora o que estes dragões vão fazer às igrejas. Maria Leocádia teve de repetir contra Julieta tudo o que esta disse de Malvina.

Plagiária!

Publicado originalmente em A Estação 1883

Fonte:
Portal Domínio Público

Débora Novaes de Castro (Livro de Poemas)

MARIAS
 

Ó Maria,
cheia de graça,
não a divina, mas
Maria, da praça.

De tardezinha,
faces rosadas,
Marias na praça.

Maria, Maria,
não Santa Maria,
mas a doce Maria
tão rica de encantos,
nos volteios
da praça!

FRUTA-PÃO

Fruta, cipó,
índio, tacape,
pajé, pajelança,
oca, maloca,
milho... biju...
mandioca...

fogo, tição,
verde da folha,
tanga sem canga,
ponta de flecha,
indio que pesca
peixes com
lança...

caça, cocar
tupi-guarani,
mata, machado,
serra que mata,
menino acuado,
água... cipó...
fruta-pão?

MENINA DE TRANÇAS...
(Hom. ao Dia da Mulher)

Menina formosa,
dize teu nome:
Maria, Rosa, Isabela,
Ana, Rosani, Mariana...
mas dize-o agora,
menina feitiço
dos laços e fitas,
Dináura, Soraya,
Daniella?

Menina de tranças,
menina dengosa,
dize teu nome:
Delma, Ana Paula,
Neusa, Taís, Manuela,
 dize-o depressa
que o tempo tem pressa
e enreda teus sonhos,
sonhos de amor.

Menina de agora,
amanhã flor donzela,
se por capricho
ou mimos de flor
não dizes teu nome
de flor batizada,
na natureza,
teu nome é
M u l h e r!

SETEMBRO...

Quando Setembro vier,
em sua nave colorida
e perfumada,

serei mais espanto que luz,
mais esperança que o verde,
mais doce que o mel,
mais feliz que o rosal,

verei, deslumbrada,
os vitrais da catedral

e, de asas quebradas,
verei a Primavera partir
para recompor, noutros ares,
nova orquestração
de amores!

PREÇO DO SONHO

Se sonho
fosse mercadoria,
talvez se procedesse
assim:

Hei, você.
Quanto custa o sonho?

Não custa nada.
Pode sonhar.
mas não esqueça
a conta...

sonhos,
não custam nada.
O que se paga
é consultar.

SIGNO DO SOL

Enquanto
houver estrelas
nos olhos das crianças

o chão embrutecido
florescerá sob o signo
do sol, e haverá
esperança!

MORRE UM POEMA

A febre de escrever,
escalda-me a face...

ardo no silêncio,
crucificada no tempo,
de que nem sempre disponho
naquele justo momento...

e mais um poema se perde
na pedra sacrificial
da lágrima não
derramada!

RELÓGIO DE AREIAS

Pela janela aberta
vejo passar os sonhos.
São belos frutos maduros
polpudos...suculentos
tentando do lado de fora.

São lépidos, trigueiros,
brejeiros sonhos-romãs.
São alvas mãos pequeninas
tecendo coroas de virgens
pra festa de casamento.

Pela janela aberta
vejo passar os anos.
Eles fluem tão depressa
como um relógio de areias,
como um final de oração.

Fecho então a janela.
O sono é minha unção.

ANDARILHA

Caminho
dentro de mim...

Palmilho
o labirinto usual
de todos os momentos
possíveis e impossíveis
na descoberta da pedra
sofismal da vida.

Ao pensar
tê-la encontrado,
fantasmagórica miragem.
Desvencilho-me do espanto
retomo a caminhada.

Fonte:
Recanto das Letras

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) II

Rikki-tikki sentiu os olhos rubros e ardentes (quando os olhas duma mangusta ficam assim é que ela está em cólera), e sentou-se sobre a cauda e as pernas traseiras, qual pequenino canguru; olhou depois em torno e rangeu os dentes de raiva. Nag e Nagaína, porém, já haviam desaparecido dentro do ervaçal. Quando uma serpente erra o bote, nada diz nem denuncia o que pretende fazer em seguida. Rikki desistiu de persegui-la, porque não tinha a certeza de poder agüentar a luta com as duas. Em vista disso correu para o limpo e sentou-se, a refletir. Estava metida numa complicação muito séria.

Quem lê os velhos livros de história natural aprende que quando uma mangusta combate contra uma cobra e é mordida, foge dali para o mato a fim de mascar certas ervas curativas. Não é verdade. A vitória depende só de olho vivo e músculos prontos - arremesso de cobra contra salto de mangusta. E como olho nenhum pode seguir o movimento duma cabeça de cobra que dá bote, a agilidade defensiva da mangusta constitui maior prodígio que o efeito mágico de misteriosas ervas.

Rikki-tikki, verdadeira mangusta que era, não deixou de sentir-se satisfeita de ter tão habilmente evitado aquele golpe a traição. Veio-lhe disso mais confiança em si e quando Teddy desceu correndo para o jardim, mostrou-se com direito de ser admirada. No momento, porém, em que o menino se inclinava para ela, qualquer coisa mexeu-se na areia e uma vozinha disse:

- Cuidado ! Eu sou a Morte!

Era Karait, a pequenina cobra cor de areia, que costuma dissimular-se na poeira. Tem a mordedura venenosíssima, mas Darzee e a companheira, em vez de responderem, recolheram-se precipitadamente para dentro do ninho. É que do espesso do ervaçal viera um silvo surdo, um horrível som arrepiante... que fez Rikki-tikki dar um pulo para trás. E então, polegada a polegada, ergueu-se da erva a cabeça com o capelo ereto de Nag, a grande cobra negra de mais de dois metros de comprimento. Depois que se levantou de um terço acima do solo, ficou a bambolear-se da esquerda para a direita, exatamente como se balança um pé de taraxaco – e a cobra olhava para Rikki-tikki com esses olhos duros das serpentes, os quais nunca mudam de expressão, seja o que for que elas pensem.

- Quer saber quem é Nag? Sou eu, disse a cobra. O grande deus Brama pôs sua marca sobre todo o nosso povo, quando a primeira cobra estirou o seu capelo para o preservar do sol enquanto dormia... Olha para mim e treme, mangusta !

A cobra retesou o mais que pode o seu capelo, e Rikki-tikki pode ver sobre seu corpo as marcas em forma de argolas.

Por um minuto a mangusta sentiu medo; mas é impossível tal animalzinho sentir medo por muito tempo e, embora Rikki-tikki jamais houvesse encontrado uma cobra, sua mãe a nutrira de carne de cobras e lhe ensinara que o destino das mangustas é fazer guerra às cobras e devorá-las. Nag também sabia disso e lá no fundo do coração estava receosa.

- Muito bem, disse Rikki-tikki - e sua cauda eriçou-se de novo. - Com marcas de Brama ou não, acha que tem o direito de comer os filhotes de passarinho que caem do poleiro?

Nag vigiava os menores movimentos do ervaçal que se estendia por trás da mangusta. Sabia muito bem o significado de mangusta no jardim – simplesmente morte para si e sua família, mais cedo ou mais tarde. Era preciso, pois, apanhá-la de surpresa. Pensando assim, Nag moleou o corpo e disse:

- Conversemos ... Você come ovos. Por que não havemos nós de comer o que sai dos ovos? Responda.

- Olhe para trás, olhe para trás! - cantou disfarçadamente Darzee.

Rikki-tikki compreendeu instantaneamente o aviso, sem necessidade de voltar a cabeça para ver do que se tratava. E saltou para o ar, o mais alto que pode, ouvindo o ruído dum bote que falha. Era Nagaína, a companheira de Nag. Tinha vindo por detrás, sorrateiramente, enquanto Nag distraía a mangusta, a fim de dar cabo do inimigo por surpresa. Rikki-tikki, ainda no ar, ouviu o silvo de raiva da cobra lograda; depois veio ao chão e quase que caiu de costas. Se fosse mangusta de mais idade saberia que era aquele o momento de quebrar a espinha do inimigo com uma boa mordedura, mas apavorou-se com a terrível chicotada que recebeu e limitou-se a uma mordidela única, pulando de lado. Nagaína ficou a rabear, furiosa e malferida.

- Malvado! Malvado Darzee! - exclamou Nag.

E deu o salto mais impetuoso que pode na direção do ninho; Darzee, porém, o construíra de modo a pô-lo fora do alcance de qualquer serpente - e o ninho continuou lá em cima, a balouçar-se, inatingido.

Rikki-tikki sentiu os olhos rubros e ardentes (quando os olhas duma mangusta ficam assim é que ela está em cólera), e sentou-se sobre a cauda e as pernas traseiras, qual pequenino canguru; olhou depois em torno e rangeu os dentes de raiva. Nag e Nagaína, porém, já haviam desaparecido dentro do ervaçal. Quando uma serpente erra o bote, nada diz nem denuncia o que pretende fazer em seguida. Rikki desistiu de persegui-la, porque não tinha a certeza de poder agüentar a luta com as duas. Em vista disso correu para o limpo e sentou-se, a refletir. Estava metida numa complicação muito séria.

Quem lê os velhos livros de história natural aprende que quando uma mangusta combate contra uma cobra e é mordida, foge dali para o mato a fim de mascar certas ervas curativas. Não é verdade. A vitória depende só de olho vivo e músculos prontos - arremesso de cobra contra salto de mangusta. E como olho nenhum pode seguir o movimento duma cabeça de cobra que dá bote, a agilidade defensiva da mangusta constitui maior prodígio que o efeito mágico de misteriosas ervas.

Rikki-tikki, verdadeira mangusta que era, não deixou de sentir-se satisfeita de ter tão habilmente evitado aquele golpe a traição. Veio-lhe disso mais confiança em si e quando Teddy desceu correndo para o jardim, mostrou-se com direito de ser admirada. No momento, porém, em que o menino se inclinava para ela, qualquer coisa mexeu-se na areia e uma vozinha disse:

- Cuidado! Eu sou a Morte!

Era Karait, a pequenina cobra cor de areia, que costuma dissimular-se na poeira. Tem a mordedura venenosíssima, mas é tão minúscula que ninguém lhe presta atenção - o que a faz ainda mais perigosa.

Os olhos de Rikki-tikki tornaram-se novamente rubros e, erguendo-se, ela dirigiu-se para Karait, com o bamboleio de corpo herdado de sua raça. Parecia cômico aquele andar, mas era sábio, porque lhe punha o corpo num tal equilíbrio que num dado momento podia, veloz como o relâmpago, mudar de direção para onde conviesse, o que constitui grande vantagem para quem vive em luta com as serpentes. Rikki-tikki, ignorando isso, estava a fazer coisa muito mais perigosa do que combater Nag; Karait era tão pequenina e movia-se com tanta agilidade que, a não ser que fosse agarrada rente à cabeça, poderia, num contragolpe, atingir a mangusta no olho ou no focinho. Rikki não sabia disso e, com os olhos em fogo, bamboleava-se naquele balanço de equilíbrio, procurando o momento de dar o golpe. Karait avançou. Rikki saltou de lado e fugiu com o corpo, a tempo de livrar-se, por um fio de cabelo, do pequenino bote da cabecinha empoeirada.

Teddy gritou para dentro:

- Venham ver uma coisa! A mangustinha está caçando uma cobra!...

Rikki ouviu a mãe do menino dar um grito, enquanto o pai se precipitava para o jardim, de bengala na mão. Nesse entremeio Karait desferiu novo bote, que também falhou e Rikki-tikki caiu sobre ela, ferrando-a no ponto próprio, bem junto à cabeça. A mordedura paralisou-a, e Rikki ia devorá-la, a começar pela cauda, quando se lembrou que tais refeições deixam o corpo pesado. Ora, ela tinha necessidade de dispor, dum momento para outro, de toda a sua força e ligeireza para o recontro com as cobras grandes. Ficou, pois, em jejum e foi espojar-se no pó, sob uma touça de mamoeiros, enquanto o pai de Teddy dava umas últimas bengaladas no cadáver de Karait.

- Para que isso? - pensou Rikki-tikki. Eu já a matei.

A mãe de Teddy desceu ao jardim ainda aflita e tomando nos braços a mangusta apertou-a ao peito, dizendo entre lágrimas que ela havia salvo seu filho da morte; o pai do menino concordou que aquela mangustinha era providencial. Teddy olhava para os dois com os olhos muito arregalados.

E no íntimo Rikki-tikki divertiu-se com a cena, embora a não compreendesse. Ao jantar, passeando dum extremo a outro sobre a mesa, por entre pratos e copos, poderia ter-se regalado de tudo quanto quisesse; mas a lembrança de Nag e Nagaína a fazia manter-se em jejum. E conquanto lhe fosse agradável ser amimada pela mãe de Teddy, para cujo ombro saltou, seus olhos de quando em vez tornavam-se rubros e de sua garganta saía o grito de guerra: Rikk-tikk-tikki-tikki-tchek!
================
continua

A Natureza em Versos II

Fonte: Libreria Fogola Pisa
CARLOS EDUARDO POMPEU
O Tapete da Vida


 Que a morte venha ternamente
e a vida se esvaia lentamente,
para que eu possa, em placidez,
assistir aos meus últimos momentos.

Que sejam como os das flores
e das folhas do outono,
que ao soçobrarem,
quando dos galhos se desgarrem,
flutuem bailando no ar,
até pousarem num tapete,
casual e úmido,
de flores murchas,
 folhas mortas
e húmus.

NEWTON NAZARETH
Tarde de Verão


 Ebulição infernal, asfalto ferve,
Emana um insuportável vapor,
Vindo do meio dia com sol a pino,
Irradiando seus raios de calor.

 Nas áreas urbanas os arranha-céus,
Parecem unir-se quase no espaço,
E conspirando contra o oxigênio,
Cada vez bem mais difícil e escasso.

 Pessoas andam se esbarrando e trôpegas,
Às pressas e sequiosas por um bar,
Elas parecem suplicar por socorro,
Resfolegando e ansiando o ar.

 Temperatura alta, insuportável,
Face úmida, axilas molhadas,
Gotas de suor escorrem pelas têmporas,
Paletó nas mãos, camisas encharcadas.

 Nas praias superlotadas é a antítese,
Banhistas seminus expostos ao sol,
Distantes de tudo, longes, distraídos,
Mergulhando, ou praticando o “frescobol”.

 É a tranquilidade, é um oásis.
Nos bares da orla, chope e cerveja,
Alegria contagiante com risos,
Euforia, atmosfera benfazeja.

 Surge aos poucos uma pequena aragem,
Que vai se apresentando discretamente,
Mostrando velocidade que aumenta,
Cuja intensidade cresce fortemente.

 É o afamado vento sudoeste,
Respeitado por sua ferocidade.
Mais conhecido como um destruidor,
E o grande formador de tempestade.

 Agora já se nota uma ventania,
Com intensidade avassaladora,
Que vai derrubando tudo à sua frente,
Destruindo com fúria assustadora.

Faíscas de relâmpagos rasgam céu,
É vista uma escuridão vesperal,
Os roncos das trovoadas amedrontam,
É o prenúncio de um forte vendaval.

Vários pingos espessos se precipitam,
Aumentam a cada fração de segundo,
Chove exageradamente, sem parar.
Horrível, até parece o fim do mundo.

Ruas alagadas, trânsito infernal,
Todo sistema de sinais apagado,
Soam sirenes, pedidos de socorro.
Desastre total é o caos instalado.

Todos correm a esmo sem direção,
Desconhecendo riscos e o perigo,
Tropeçando, esbarrando-se, caindo,
A procura de proteção num abrigo.

Gradativamente a chuva diminui,
Silenciosa e serena sem alarde.
Por do sol já aparece no seu ocaso,
E se vislumbra os sinais do fim de tarde.

A noite chega imponente e majestosa,
O céu está sem nuvens todo estrelado,
No fundo a lua cheia resplandecente,
Irradia seu brilho prá todo lado.

Agora com toda calma e sem transtornos,
As pessoas caminham no calçadão,
O calor aos poucos volta como antes,
De uma noite típica de verão.

A cara da cidade volta ao normal,
Toda iluminada e sempre graciosa,
Esbanjando amor e hospitalidade,
Naquela que é linda e maravilhosa.

SUZANA MARIA CRUZ PEIXOTO
Poema em Aldravipéia


 paisagens
  formosas
  encantos
  da
  natureza
  Deus

a
  terra
  nosso
  berço
  nosso
  chão

o sertanejo
  escuta
  o
  capim
  crescer

chuvisco delicioso
  frescura
  de
  capim
  molhado

buquês
  de
  ipê
  florada
  da
  beleza

flores
  no
  jardim
  harmonia
  da
  vida

gotas
  de
  orvalho
  ornamento
  das
  flores

vento
  faz
  voar
  grãos
  de
poeira


o
  vento
  uivando
  açoita
  os
  arvoredos

pássaros
  na
  tempestade
  revoada
  sem
  rumo

outono
  chega,
  folha
  cai,
  árvore
  desnuda

límpidas
  águas
  nascentes:
  lágrimas
  da
  terra
   
chuá...
  chuá...
águas murmurantes
  da
  cascata


cascata
cristalina
sua
sina
sempre
cantar

chuê...
  chuê...
  o
rio
que
  canta

cursos
  dos
  rios
  caminhos
  sem
  volta
   
praia
  beira-mar
  delicada
brisa
que
  alisa

carinhosa
  brisa
  acaricia
  chega
  de
  mansinho

ondas:
  do
  mar

borbulhas
  lambendo
  praias

poderosa natureza
inesgotável
fonte
de
beleza

Fonte:
IV Troféu Literatura da Natureza, in http://www.reinodosconcursos.com.br

Lygia Fagundes Telles (Verde lagarto amarelo)

Este conto está inserido na obra Antes do baile verde, de Lygia Fagundes Telles.

Em Verde Lagarto Amarelo, escrito em 1969 e inédito até a publicação de Antes do baile verde, o tema desenvolvido no conto está relacionado à importância da infância e às consequências dos dramas infantis na vida de duas personagens adultas.

O espaço empregado para o desenvolvimento da história é tipicamente urbano, com o predomínio de cenas transcorridas no interior das residências das personagens.

Em Verde Lagarto Amarelo o tempo da história abrange um período de algumas horas.

O título do conto não fornece pistas ao leitor sobre o tema que será desenvolvido na narrativa. É transmitida apenas uma breve sensação de ambiguidade, pela citação de duas cores, verde e amarelo. Afinal, de que cor é o lagarto? O título talvez tenha sido escolhido com a intenção de despertar a curiosidade do leitor: apenas por seu intermédio não é possível a formação de um projeto virtual sobre o conto.

A narrativa é subjetiva, pois existe no discurso a presença de um “eu”, Rodolfo, o narrador autodiegético. O texto tem início com a utilização de discurso avaliativo, pelo narrador, para caracterizar a outra personagem, Eduardo. Os adjetivos empregados para se referir à maneira do rapaz andar são positivos, o passo é “macio”, o andar é “discreto”, “polido” (p. 8). E completa: “não chegava a ser felino” (p. 8). Esse esclarecimento feito pelo narrador parece servir para reforçar a impressão positiva sobre Eduardo. Assim, se ele anda sem fazer ruído, é com a intenção de não incomodar, e não para surpreender Rodolfo sorrateiramente, como faz um felino ao caçar uma presa.

Na sexta linha do conto, observa-se o emprego do discurso objetivo, “Ele sabe muito bem que estou sozinho, ele sabe que sempre estou sozinho” (p. 8). A opção do narrador pelo verbo “saber”, é significativa, pois o saber é inquestionável, faz parte de um discurso de autoridade. Na mesma frase verifica-se o advérbio “sempre”, que caracteriza o discurso iterativo, demonstrando para o leitor que a situação de Rodolfo não se altera com o passar do tempo, a solidão da personagem é permanente.

A narrativa tem focalização interna, o que quer dizer que o grau de informações do narrador é igual ao da personagem, ou seja, será narrado aquilo que a personagem sabe. A focalização é fixa – o leitor tem acesso aos pensamentos e sentimentos de Rodolfo. A outra personagem é focalizada, externamente, pelo narrador. É por meio do monólogo interior de Rodolfo que o leitor recebe informações sobre Eduardo. Assim, percebe-se que Eduardo é perspicaz, “Nada lhe escapava” (p. 8), bondoso, “Acabava sempre por me oferecer seu tesouro” (p. 9), preocupado com o bem-estar de Rodolfo, “Dizia isso para me poupar, estava sempre querendo me poupar” (p. 9). Pode-se, ainda, observar o emprego do advérbio, novamente a utilização do discurso iterativo, reforçando para o leitor que o comportamento de Eduardo em relação a Rodolfo é constante, previsível, conhecido.

Com o sorriso de Eduardo (pág. 9), têm início as recordações da infância, para Rodolfo. E o leitor recebe a informação que Eduardo é irmão de Rodolfo. A partir desse momento, o conto passa a ser construído com a intercalação de trechos que representam o passado das personagens, com outros que se situam no momento presente da narrativa, na cena que se desenvolve no apartamento de Rodolfo. O passado é composto por recordações da infância, nas quais Rodolfo faz conjeturas sobre o próprio comportamento e o dos outros membros da família, especialmente o do irmão e o da mãe. O presente é construído por meio dos diálogos entre as duas personagens, estratégia que proporciona ao leitor a sensação de contemporaneidade.

O diálogo entre os irmãos transcorre normalmente, com a evocação das qualidades de Eduardo por parte do narrador. A começar pela aparência. O leitor recebe a informação de que Eduardo é um homem bonito – tem “o cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua” (p. 9); “olhos cor de violeta” (p. 9); “os braços musculosos de nadador. Os pêlos dourados” (p. 10). Além disso, preocupa-se com o irmão, é sincero e generoso. Pela forma como Eduardo é apresentado, percebe-se que existe um engajamento afetivo do narrador em relação a essa personagem e que, aparentemente, o narrador procura fazer com que o leitor sinta simpatia por Eduardo.

Entretanto, a partir do trecho citado a seguir, o drama de Rodolfo passa a ser apresentado para o leitor:

Respirei de boca aberta agora que ele não me via, agora que eu podia amarfanhar a cara como ele amarfanhara o papel. Esfreguei nela o lenço, até quando, até quando?!... E me trazia a infância, será que ele não vê que para mim foi só sofrimento? Por que não me deixa em paz, por quê? Por que tem que vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar nada, não quero saber de nada!... (Telles, 1982, p. 10)

A ambiguidade presente no título do conto volta, agora, a aparecer. A surpresa e a curiosidade do leitor são desencadeadas pelo desabafo do narrador-personagem, feito por meio do emprego do monólogo interior. O que terá acontecido na infância para deixá-lo assim, sufocado, pela presença de um irmão que ele mesmo apresentou ao leitor como uma pessoa boa e sensível? As indagações presentes no discurso do narrador-personagem estão dirigidas a si próprio ou ao narratário? Essas perguntas podem servir como lacunas a serem preenchidas pelo leitor. Entretanto, até o momento em que aparecem na narrativa, o leitor não possui elementos suficientes para responder aos questionamentos lançados pelo narrador.

O leitor acompanha o drama de Rodolfo, que desde criança esconde-se da vida como “um lagarto no vão do muro” (p. 14), daí o título do conto. Parecendo-se com um jacaré em miniatura e tendo a cabeça semelhante à das serpentes, o lagarto possui aspecto assustador, o que faz com que grande parte das pessoas mantenha distância desse animal.

Entretanto, é inofensivo. Rodolfo identifica-se com o réptil. Possui aspecto desagradável e uma sudorese excessiva, que mancha “a camisa de amarelo com uma borda esverdinhada, suor de bicho venenoso, traiçoeiro, malsão” (p. 11). A camisa, molhada e manchada, “era uma pele enrugada aderindo à minha com meu cheiro, com a minha cor” (p. 11), o suor em excesso provocava a metamorfose metafórica de Rodolfo em lagarto.

Rodolfo afirma ser “um tipo meio esquisito”, “meio louco” (p. 12) o que parece ser uma máscara que utiliza para esconder a tristeza que sente, a amargura que traz dentro de si. Eduardo é diametralmente oposto ao irmão. A começar pela aparência. É um homem bonito, tem “o cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua” (p. 9); “olhos cor de violeta” (p. 9); “os braços musculosos de nadador. Os pêlos dourados” (p. 10). Eduardo preocupa-se com o irmão, é sincero e generoso.

Além de Rodolfo ser o narrador, é também seu o ponto de vista que orienta a perspectiva narrativa. Assim, as informações que o leitor recebe correspondem à imagem que ele tem de si mesmo e das outras personagens. A cada detalhe fornecido, percebe-se que Eduardo só possui qualidades, enquanto Rodolfo só tem defeitos. Parece que o narrador deseja, dessa maneira, promover a simpatia e a aversão do leitor pelas personagens citadas, respectivamente.

Ao visitar o irmão, Eduardo traz um pacote de uvas e uma outra “coisa”, uma “surpresa”, que ele só quer mostrar “depois” (p. 9). Esse é um índice de antecipação de desfecho, uma prolepse implícita.

Ao experimentar a uva, Rodolfo faz uma digressão, em discurso indireto livre. Nesse trecho, reproduzido a seguir, a metalinguagem é utilizada, o escritor reflete a respeito do processo de criação literária:

(...) Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa, sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto. (Telles, 1982, p. 9)

Durante a visita de Eduardo a Rodolfo, os dois conversam sobre trivialidades e relembram o passado, o que, para Rodolfo, é uma verdadeira tortura. A presença do irmão incomoda Rodolfo, principalmente por trazer de volta as lembranças dolorosas da infância, “será que ele não vê que para mim foi só sofrimento?” (p. 10). Eduardo era perfeito e a convivência com ele fez de Rodolfo um perdedor. Tudo o que Rodolfo quis na vida, Eduardo conquistou, foi assim com o amor da mãe, foi assim com Ofélia. Aparentemente, os acontecimentos se deram de modo natural, sem maldade por parte de Eduardo, o que não diminui a frustração de Rodolfo.

Aos poucos, a relação dos irmãos vai sendo exposta para o leitor. Ser obrigado a conviver com Eduardo é o pior castigo para Rodolfo. Ter que encarar o que poderia ser, mas que nunca alcançará. É um lagarto que observa com inveja um pássaro de plumagem colorida. As escamas nunca se transformarão em penas. O bicho está condenado a rastejar até o fim dos dias, nunca conseguirá voar. Não será olhado com admiração pelos outros, não será desejado, não será amado.

Eduardo machuca o irmão sem perceber. Convida-o para ser o padrinho de seu filho, que nascerá em breve, mas ao invés de Rodolfo ficar feliz, esse gesto só serve para aumentar o desespero. “Senti-me infinitamente mais gordo. Mais vil. Tive vontade de vomitar” (p. 13). Depois da angústia, a ironia: “Não pudera ser pai, seria padrinho. Não era ser amável? Um casal amabilíssimo” (p. 13). Rodolfo não queria um prêmio de consolação. Queria estar no lugar de Eduardo. Queria ser Eduardo.

A competição desigual que Rodolfo enfrenta desde o nascimento de Eduardo torna-se ainda pior porque o irmão o ama. “Desde menino eu já estava condenado ao seu fraterno amor” (p. 14), lamenta Rodolfo. O que deseja é que o irmão desapareça de sua vida: “Não precisaria me odiar, eu nem pediria tanto, bastava me ignorar, se ao menos me ignorasse” (p. 13). Eduardo tem a função de espelho para Rodolfo, é a partir da imagem do irmão que Rodolfo toma consciência da própria identidade. Olhando para as plumas do pássaro é que o lagarto percebe que as escamas que possui não são belas; tocando-as, perceberá que a pele é áspera. Conviver com os próprios defeitos e deficiências não é fácil. Mas, torna-se insuportável se, além disso, é necessário aguentar o sucesso do outro, assim tão próximo.

A consciência da diferença sufoca Rodolfo. Para resolver o problema, pensa em morrer, “Era menino ainda mas houve um dia em que quis morrer para não transpirar mais” (p. 11). Posteriormente, acredita que a solução seria a morte de Eduardo. Mas não tem a coragem de Caim. Apenas consegue torcer para que Júlio, um menino que desafia Eduardo para uma briga, o atinja mortalmente com o canivete, durante uma briga. Entretanto, arrepende-se: “E de repente me precipitei pela rua afora, eu o queria vivo, o canivete não!” (p. 15). Talvez Rodolfo tenha percebido que a morte de Eduardo não seria a solução para o seu problema. A ausência do irmão não faria com que ele, Rodolfo, ganhasse o amor e a admiração dos outros, instantaneamente. Depois da briga, Rodolfo carrega o irmão machucado nas costas, de volta para casa. Eduardo era um peso imenso para Rodolfo. Mas, se a situação era ruim com a presença dele, talvez só piorasse com a sua morte. Afinal, pelo menos Eduardo amava Rodolfo.

A convivência sufocante com Eduardo faz com que Rodolfo se torne cada vez mais introspectivo. Rejeitado pela mãe, acumulando anos de raiva e frustração, conscientizando-se de sua aparência repugnante, o que resta a Rodolfo é esconder-se, isolar-se do convívio social, transformar-se num eremita urbano. E adotar a função solitária de escritor – “Era o que me restara: escrever” (p. 16). Rodolfo é um escritor bem-sucedido. Seus livros vendem muito mas, apesar disso, não se sente completamente satisfeito. “Escritor, sim, mas nem aquele tipo de escritor de sucesso, convidado para festas, dando entrevistas na televisão: um escritor de cabeça baixa e calado, abrindo com as mãos em garra o seu caminho” (p. 14).

Chega-se ao clímax do conto. Rodolfo adivinha o motivo da visita do irmão. O impacto da descoberta faz com que ele sinta uma dor “quase física” (p. 16). A única coisa que era verdadeiramente sua, o único talento que sobrara para Rodolfo, seu único canal para se expressar e conseguir um pouco de admiração, era o ato de escrever, agora também “roubado” por Eduardo. A surpresa e a decepção são grandes demais. “Senti meu coração se fechar como uma concha” (p. 16). Eduardo tornar-se escritor, o que é sugerido pelo conto, cujo final permanece em aberto, sem a confirmação de Eduardo – é o golpe de misericórdia na tentativa de Rodolfo de manter a compostura.

A intertextualidade está presente no conto em pelo menos dois momentos distintos. Primeiramente, como já mencionada, com o drama entre os irmãos Abel e Caim, descrito na Bíblia. Caim sente inveja do outro, que é o predileto do Senhor, e a ira cresce a tal ponto que o leva a assassinar Abel. A intertextualidade é bastante explícita, podendo ser confirmada, inclusive, pela comparação do trecho bíblico no qual Deus pergunta a Caim: “Onde está teu irmão Abel? E ele respondeu: Não sei. Porventura sou eu o guarda de meu irmão?” (Dalbosco, 1980, p. 29), com a parte do conto em que a mãe interroga Rodolfo, “‘(...) onde está seu irmão?’ Encolhi os ombros, não sei, não sou pajem dele.” (p. 15).

A segunda intertextualidade, também bastante explícita, está presente na fala do pai dos rapazes: “Laura é como o rei daquela história (...) Só que, ao invés de transformar tudo em ouro, quando toca nas coisas, transforma tudo em beleza” (p. 14). A comparação é com o rei Midas, figura da mitologia greco-romana, que transformava em ouro tudo o que tocava. Nesse momento do conto, Rodolfo aproxima-se da mãe, ficando ao alcance das mãos; quer ser tocado pela mulher “com um pouco de amor” (p. 14), possivelmente acredite que esse toque terá o poder de transformá-lo.

Além do relacionamento de amor e ódio existente entre os dois irmãos, outro aspecto importante de Verde Lagarto Amarelo é a relação entre a mãe e os filhos. Laura não consegue disfarçar a predileção que sente pelo caçula, o que se torna a principal causa do sofrimento de Rodolfo. A mãe não se conforma com o fato de Rodolfo transpirar tanto, critica-o por estar sempre comendo. Não consegue ter um gesto de amor para com o primogênito. O comportamento de Laura, aliado à sua morte, ainda na infância dos meninos, tem reflexos negativos em toda a vida de Rodolfo.

Fonte:
Biblioteca Digital da UNESP

terça-feira, 11 de março de 2014

Machado de Assis (Metafísica das rosas)

Pour la rose, le jardinier est immortel, car de mémoire de rose, on n’a pas vu mourir un jardinier.
Fontenelle.


LIVRO PRIMEIRO

No princípio era o Jardineiro. E o Jardineiro criou as Rosas. E tendo criado as Rosas, criou a chácara e o jardim, com todas as coisas que neles vivem para glória e contemplação das Rosas. Criou a palmeira, a grama. Criou as folhas, os galhos, os troncos e botões. Criou a terra e o estrume. Criou as árvores grandes para que amparassem o toldo azul que cobre o jardim e a chácara, e ele não caísse e esmagasse as Rosas. Criou as borboletas e os vermes. Criou o sol, as brisas, o orvalho e as chuvas.

Grande é o Jardineiro! Suas longas pernas são feitas de tronco eterno. Os braços são galhos que nunca morrem; a espádua é como um forte muro por onde a erva trepa. As mãos, largas, espalham benefícios às Rosas.

Vede agora mesmo. A noite voou, amanhã clareia o céu, cruzam-se as borboletas e os passarinhos, há uma chuva de pipilos e trinados no ar. Mas a terra estremece. É o pé do Jardineiro que caminha para as Rosas. Vede: traz nas mãos o regador que borrifa sobre as Rosas e água fresca e pura, e assim também sobre as outras plantas, todas criadas para glória das Rosas. Ele o formou no dia em que, tendo criado o sol, que dá vida às Rosas, este começou a arder sobre a terra. Ele o enche de água todas as manhãs, uma, duas, cinco, dez vezes. Para a noite, pôs ele no ar um grande regador invisível que peneira orvalho; e quando a terra seca e o calor abafa, enche o grande regador das chuvas que alagam a terra de água e de vida.

LIVRO II

Entretanto, as Rosas estavam tristes, porque a contemplação das coisas era muda e os olhos dos pássaros e das borboletas não se ocupavam bastantemente das Rosas. E o Jardineiro, vendo-as tristes, perguntou-lhes:

— Que tendes vós, que inclinais as pétalas para o chão? Dei-vos a chácara e o jardim; criei o sol e os ventos frescos; derramo sobre vós o orvalho e a chuva; criei todas as plantas para que vos amem e vos contemplem. A minha mão detém no meio do ar os grandes pássaros para que vos não esmaguem ou devorem. Sois as princesas da terra. Por que inclinais as pétalas para o chão?

Então as Rosas murmuraram que estavam tristes porque a contemplação das coisas era muda, e elas queriam quem cantasse os seus grandes méritos e as servisse.

O Jardineiro sacudiu a cabeça com um gesto terrível; o jardim e a chácara estremeceram até aos fundamentos. E assim falou ele, encostado ao bastão que trazia:

— Dei-vos tudo e não estais satisfeitas? Criei tudo para vós e pedis mais? Pedis a contemplação de outros olhos; ides tê-la. Vou criar um ente à minha imagem que vos servirá, contemplará e viverá milhares e milhares de sóis para que vos sirva e ame.

E, dizendo isto, tomou de um velho tronco de palmeira e de um facão. No alto do tronco abriu duas fendas iguais aos seus olhos divinos, mais abaixo outra igual à boca; recortou as orelhas, alisou o nariz, abriu-lhe os braços, as pernas, as espáduas. E, tendo feito o vulto, soprou-lhe em cima e ficou um homem. E então lançou mão de um tronco de laranjeira, rasgou os olhos e a boca, contornou os braços e as pernas e soprou-lhe também em cima, e ficou uma mulher.

E como o homem e a mulher adorassem o Jardineiro, ele disse-lhes:

— Criei-vos para o único fim de amardes e servirdes as Rosas, sob pena de morte e abominação, porque eu sou o Jardineiro e elas são as senhoras da terra, donas de tudo o que existe: o sol e a chuva, o dia e a noite, o orvalho e os ventos, os besouros, os colibris, as andorinhas, as plantas todas, grandes e pequenas, e as flores, e as sementes das flores, as formigas, as borboletas, as cigarras os filhos das cigarras.

LIVRO III

O homem e a mulher tiveram filhos e os filhos outros filhos, e disseram eles entre si:

— O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façamos festas e danças para que as Rosas vivam alegres.

Então vieram à chácara e ao jardim, e bailaram e riram, e giraram em volta das Rosas, cortejando-as e sorrindo para elas. Vieram também outros e cantaram em verso os merecimentos da Rosas. E quando queriam falar da beleza de alguma filha das mulheres faziam comparação com as Rosas, porque as Rosas são as maiores belezas do universo, elas são as senhoras de tudo o que vive e respira.

Mas, como as Rosas parecessem enfaradas da glória que tinham no jardim, disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres: Façamos outras grandes festas que as alegrem. Ouvindo isto, o Jardineiro disse-lhes: — Não; colhei-as primeiro, levai-as depois a um lugar de delícias que vos indicarei.

Vieram então os filhos dos homens e as filhas das mulheres e colheram as Rosas, não só as que estavam abertas como algumas ainda não desabrochadas; e depois as puseram no peito, na cabeça ou em grandes molhos, tudo conforme ordenara o Jardineiro. E levando-as para fora do jardim, foram com elas a um lugar de delícias, misterioso e remoto, onde todos os filhos dos homens e todas as filhas das mulheres as adoram prostrados no chão. E depois que o Jardineiro manda embora o sol, pega das Rosas cortadas pelos homens e pelas mulheres, e uma por uma prega-as no toldo azul que cobre a chácara e o jardim, onde elas ficam cintilantes durante a noite. E é assim que não faltam luzes que clareiem a noite quando o sol vai descansar por trás das grandes árvores do ocaso.

Elas brilham, elas cheiram, elas dão as cores mais lindas da terra. Sem elas nada haveria na terra, nem o sol, nem o jardim, nem a chácara, nem os ventos, nem as chuvas, nem os homens, nem as mulheres, nada mais do que o Jardineiro, que as tirou do seu cérebro, porque elas são os pensamentos do Jardineiro, desabrochadas no ar e postas na terra, criada para elas e para glória delas. Grande é o Jardineiro! Grande e eterno é o pai sublime das rosas sublimes.

Publicado originalmente em Gazeta Literária 1883

Fonte:
Portal Domínio Público

A Natureza em Versos I

Fonte: Libreria Fogola Pisa
AGLAÉ TORRES
São Paulo/SP

Fragmentos de Sol e Lua

 

Plantadas na noite
as raízes da aurora
aprofundam-se no céu
asfixiando as estrelas
   Debruçando-se sobre o mundo
a gigantesca árvore-dia
emite claridade da copa
   voltada para a terra incendiada
Seus - os maduros frutos –
         Raios de Sol
iluminando a  Natureza
sonolenta.

 Entardecer
Fragmentos de dia encaixam-se
no quebra-cabeça colorido
de emoções em  arco-íris
tons fortes e fracos formando
um quadro de vida
captado na mente em vãos.

Incêndio no Céu...
O Sol descendo
pelo escorregador de nuvens
mergulha no horizonte
sem volta
abrasando o céu.

A lua branca emocionada
ocupa o lugar deixado pelo sol
e colhe saudades no dia vagaroso
do amor impossível de fusão.
Sem luz nem brilho,
desmaiada
em busca do calor do sol
desocupado.

A Lua no céu azul de noite clara
debruçada
refletindo o brilho e forma na piscina,
transformada
em lua cheia atrás das grades de galhos
 retratando a lua prisioneira.

Abriram-se no céu as venezianas de nuvens
 e a Lua espiou.
Lua Cheia.    

Deslizando pelo tule de nuvens
escondeu-se em escuro
e nesse entra-e-sai
ocultando-se e brilhando
fazendo-se desejada pelas ausências.
De repente
a Lua aparece plena, vitoriosa.
Venceu a batalha!

LUZARTE DE MEDEIROS BRITO
(São João do Sabugi/RN)

No Rancho

 

Aqui, sim, a vida é bela
na sombra deste ranchinho,
sentado à beira do mato,
meu mais doce e casto ninho,
como se, na vida, eu fosse
um liberto passarinho.

Contemplo campos e serras
azuladas, muito além...
No panorama do sul
vejo a cidade também,
mas ali, como nos campos,
belezas tantas não tem,

Lá existem belas praças
que os namorados desejam,
mas as flores mais viçosas
que os beija-flores beijam
não têm o mesmo perfume
das flores que aqui vicejam

Há festas e diversões,
parece um mar de orgia,
porém ali na cidade,
palco de tanta alegria
não tem a sombra do rancho
onde eu escrevo poesia.

Lá não tem a melodia
da passarada que canta,
nem cheiro virgem da terra
que a chuva do chão levanta,
por isso que do matuto
a felicidade é tanta.

O povo ali da cidade
se do caboclo faz troça,
é porque aquela gente
nunca veio aqui na roça
para também ser feliz
na sombra duma palhoça.

VERA MARIA DA PENHA

Rio Marinho

 

O rio Marinho,
Muito limpinho,
Todo alegrinho,
Corria faceiro
Pro lado do mar.

Levava  canoas
Pra lá e pra cá.
Vestia  as cores do mar
No empurrão da maré,
Que o forçava  subir
Em vez de correr
Pro lado do mar.
Era só travessura
No seu movimento
De ir e voltar.

Quando vinha a enchente
Usava veste barrenta,
E saltava sobre  as margens,
Só mesmo para  assustar
A gente ribeira
Que espiava com medo
Dele tudo levar.

O rio Marinho seguia limpinho,
Levando canoas pra lá e pra cá.
Tinha  águas salobras pro lado do mar.
Mas quem tinha pés sujos
Podia nelas lavar.
Por ele  passavam barcos,
Canoeiros destemidos,
Sem medo de afrontar.

Havia peixes a nadar.
Uma tarrafa bem lançada
Garantia o jantar.

O rio Marinho
Era rio e era mar.

Hoje, o rio Marinho
Tão pobrezinho
Perdeu sua glória
De barcos levar
Para  lá e pra cá.
Como um velho vencido,
desfila  pesado,
 vestido de preto.
Carrega em seu leito
dejetos humanos,
Sapatos, chinelos
Vestidos rasgados,
Sofás destruídos,
Animais falecidos...
A tudo ele arrasta,
Com muita penúria
Pro lado do mar.

Cheira tão mal
Que ninguém se atreve
Nele pisar.

E quando a enxurrada
Lhe dá  novo  banho
O que leva vomita
Com boca enojada
Nas águas do mar.

O rio Marinho
Era rio e era mar.

JURACI DA SILVA MARTINS

Aracuri

 

Teu canto é guerra,
Defende a terra,
Que é ventre e é seio,
Que é berço e é pão.
É o canto da fauna
Em serestas vigias,
Para a ecologia
A pedir proteção.
Deixai que nas matas,
Cantem os pássaros,
E os peixes nas águas
Possam viver.
Deixem nos campos
Andarem as emas,
E entre os serrados
A vida nascer.
Que as gralhas azuis
E os patos –arminhos,
Teçam seus ninhos
Sem nada temer.
Que as aves cativas,
cortem os ares,
Sobre os jaguares
Andantes da paz.
Que o canto de todos
No meio ambiente,
Impeçam na terra
A vida morrer.
Que os passarinhos
Cantem a beleza
Da natureza
Em doação.

VICÊNCIA JAGUARIBE
Fortaleza/CE

O Vento e a Lua


Lá fora o vento assovia
Uma canção ao luar.
À lua reverencia.
Ela não quer escutar.

Olhando através do frio
Pela janela se vê
Vê-se a lua num navio.
Delírio, só pode ser.

Em meio às nuvens navega
Em águas muito serenas.
Pobre vento: ora sossega
Ora expõe as suas penas.

Mas a lua, indiferente,
Continua a navegar.
O barco vai sempre em frente
Até o abismo encontrar.

Escura nuvem o apaga
Nenhum olho o pode ver.
Do vento o assovio vaga
Vai saudar o alvorecer.

Nós também vemos fugir
Em um navio fantasma,
Sem sequer se despedir,
O amor que nos cegava.

Somos ventos que assoviam
Para a pessoa que amamos
Que nem sempre desconfia
Do quanto a idealizamos.

Fonte:
IV Troféu Literatura da Natureza, in http://www.reinodosconcursos.com.br