quinta-feira, 13 de março de 2014

Machado de Assis (A Igreja do Diabo)

 CAPITULO I



DE UMA IDÉIA MIRÍFICA

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo:

- Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

CAPITULO II

 ENTRE DEUS E O DIABO

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

- Que me queres tu? perguntou este.

- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

- Explica-te.

- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa ideia, não vos parece?

- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,

- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

- Vai

- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma ideia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

- Velho retórico! murmurou o Senhor.

- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.

- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

- Já vos disse que não.

- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

- Negas esta morte?

- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

CAPITULO III

 A BOA NOVA AOS HOMENS


Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

CAPITULO IV

FRANJAS E FRANJAS

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinquenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:

- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

Fonte:
www.tdnet.com.br

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) III


Teddy levou-a para o quarto, à hora de dormir, e teimou em fazê-la deitar-se junto ao seu peito. Rikki-tikki resignou-se, mas logo que o menino caiu no sono saltou dali para rondar a casa. No escuro que fazia deu de encontro com Chuchundra, o rato mosqueado, que, como sempre, se ia esgueirando rente à parede.

Chuchundra é um animalzinho triste, que choraminga toda noite, experimentando ganhar coragem para correr pelo meio dos quartos sem jamais o conseguir.

- Não me mate ! exclamou Chuchundra quase em lágrimas.

- Julgas por acaso que um matador de serpentes persiga ratos mosqueados? - respondeu Rikki com desprezo.

- Os que matam serpentes serão por ela mortos - disse Chuchundra sempre choroso. - E como estarei seguro de que Nag não me tome por você durante alguma noite escura ?

- Não há o menor perigo, respondeu Rikki-tikki, porque Nag mora no jardim e você não anda por lá.

- Meu primo Chua, o rato, contou-me que... - ia dizendo Chuchundra, mas interrompeu-se.

- Que contou ele ?

- Caluda! Nag anda por toda parte, Rikki. Você devia conversar com Chua, no jardim.

- Não o conheço. Conte logo o que ele disse. E depressa, Chuchundra, que se não...

Chuchundra sentou-se e duas lágrimas lhe rolaram pelos bigodes.

- Sou um coitadinho, soluçou ele, que nunca teve coragem de correr pelo meio dos quartos... Caluda! Não é preciso que eu fale. Não está ouvindo nada, Rikki?

Rikki-tikki pôs-se à escuta. A casa estava imersa no maior silencio, mas mesmo assim pareceu-lhe ouvir um imperceptível "crá-crá...", um leve rumor como de abelha caminhando sobre vidro de vidraça ... um esfregar seco de escamas sobre o tijolo.

- É Nag, ou a esposa de Nag, que para cá vem vindo pelo cano d'água do banheiro, murmurou a mangusta. Você tem razão, Chuchundra. Eu devia ter conversado com Chua.

Disse e dirigiu-se, cautelosa, para a sala de banho de Teddy, onde nada encontrou; de lá encaminhou-se para a sala de banho da mãe de Teddy. Viu logo no rodapé da parede urna abertura para o escoamento da água, através da qual pode ouvir a conversa de Nag e Nagaína lá fora, no
jardim. Dizia Nagaína:

- Quando a casa ficar vazia ela terá de mudar-se daqui - e nós então ficaremos de posse do jardim. Entre devagar e não se esqueça de que o homem que matou Karait é a pessoa que deve ser mordida em primeiro lugar. Depois venha contar-me como a coisa foi e combinaremos o modo de atacar Rikkitikki.

- Mas está você certa de que teremos alguma coisa a ganhar matando tanta gente? - indagou Nag.

- Teremos tudo a ganhar. Havia mangusta no jardim quando a casa esteve desabitada? Se a casa ficar novamente vazia voltaremos a ser os donos do jardim - e não se esqueça de que logo que os nossos ovos, no canteiro dos melões, terminem o choco (será talvez amanhã), as cobrinhas vão ter necessidade de espaço e sossego.

- Não pensei nisso, observou Nag. Vou iniciar o ataque, mas acho inútil dar caça a Rikki-tikki logo em seguida. Matarei o homem, a mulher e, caso possa, também o menino; depois voltarei tranqüilamente. Vendo a casa vazia, Rikkitikki muda-se logo.

Rikki-tikki estremeceu do focinho a cauda, de raiva, ao ouvir tal conversa. Logo em seguida a cabeça de Nag surgiu na abertura, seguida de metro e meio de corpo escamoso e frio. Apesar de furiosa, Rikki-tikki não deixou de amedrontar-se diante do tamanho da serpente. Nag ergueu a cabeça e olhou para dentro do banheiro, então no escuro. Rikki viu seus olhos brilharem.

- Se a mato aqui, refletiu a mangusta, Nagaína virá a saber; e se para atacá-la eu espero que Nag saia do buraco, as vantagens ficam do lado dele. Que fazer?

Nag saiu do buraco e coleou pelo assoalho; Rikki ouvia-o beber num jarro bojudo de encher a banheira.

- Está bem, disse a cobra. Quando Karait foi morta, o homem tinha na mão um pau. Ele pode ter ainda esse pau, mas se vier ao banho pela manhã certo que não o trará consigo. Esperarei por esse momento. Está-me ouvindo, Nagaína? Vou esperar aqui até pela manhã.

Não veio nenhuma resposta de fora, o que fez crer à mangusta que a outra cobra já se tinha ido. Nag enrodilhou-se no jarro e Rikki permaneceu imóvel, como morta.

Ao cabo de uma hora, porém, começou a mover-se lentamente na direção do jarro. Viu que Nag estava adormecida; pôde correr os olhos pelo seu longo dorso a fim de estudar em que ponto morder.

- Se não lhe quebro a espinha do primeiro bote, pensou ela, Nag poderá ainda lutar - e se Nag luta, ai de Rikki!...

Considerou depois a espessura do pescoço da cobra logo abaixo do capelo e achou muito para sua boca; mas uma mordida mais para perto da cauda só serviria para tornar a serpente ainda mais furiosa.

- É preciso ser na cabeça, resolveu-se por fim; na cabeça, bem rente ao capelo; e, quando a agarrar, tenho de ficar agarrada, haja o que houver.

Deu o bote. A cabeça da cobra jazia um tanto afastada do jarro, bem sob a curva da asa; logo que seus dentes ferraram, Rikki encostou o cangote de encontro ao rebojo da vasilha, a fim de melhor manter a cabeça junto ao chão. Isso lhe deu melhor jeito. Mas foi sacudida da direita para a
esquerda e da esquerda para a direita, como rato seguro em boca de cão - e para diante e para trás, e para cima e para baixo, e em círculos largos e curtos. A mangusta, porém, que estava os olhos bem rubros, manteve-se firme, enquanto a cauda da serpente chicoteava às tontas, derrubando saboneteiras e escovas, e ressoando surda de
encontro ao metal da banheira. Sempre firme, a mangusta apertava os dentes cada vez mais, pois que, certa como estava de ser batida na luta, queria ao menos, para honra da raça, que a encontrassem de dentes cerrados. Sentia-se já completamente tonta, moída de golpes, como prestes a desfazer-se em pedaços, quando algo atrás dela estrondou
horrível, e uma fulguração quente a pôs sem sentidos, com a pelagem tostada.

Desperto pelo barulho, o pai de Teddy havia pulado da cama e viera disparar a sua espingarda de dois canos bem sobre o capelo da cobra.

Rikki-tikki, de olhos fechados, continuava de dentes cerrados, convencida de que estava morta e bem morta; mesmo assim percebeu que a cabeça da cobra não mais se mexia e que o homem a levantava do chão, dizendo:

- A mangusta outra vez, Alice; acaba de salvar as nossas vidas, esta amiguinha...

A mãe de Teddy acudiu, muito pálida, e contemplou os restos mortais de Nag, enquanto Rikki-tikki se arrastava para o quarto do menino, onde passou o resto da noite a estudar-se cuidadosamente, a ver se realmente estava partida em vinte pedaços, como supunha.

Ao romper da manhã mostrava-se muito satisfeita com a sua façanha.

- Tenho agora de justar contas com Nagaína, que é pior que cinco Nags; e há ainda os ovos que estão em fim de choco. Ai, ai, ai! Preciso ver Darzee...

Sem esperar pelo almoço, correu para o espinheiro, onde encontrou Darzee entoando um canto de triunfo no tom mais alto possível. A notícia da morte de Nag já havia dado volta ao jardim, depois que um criado lançou o cadáver da cobra à estrumeira.

- Ó estúpido chumaço de penas! exclamou Rikki-tikki encolerizada. É então tempo de cantar?

- Nag morreu - morreu - morreu! cantava Darzee. A corajosa Rikki-tikki agarrou-a pela cabeça e não largou mais. O homem veio com o canudo comprido que faz pum! e Nag foi partida em dois pedaços! Nunca mais nos comerá os filhotes...

- Tudo isso é verdade, mas onde está Nagaína? - indagou Rikki-tikki, olhando cautelosa para os lados.

- Nagaína chegou até a boca do esgoto do banheiro para chamar Nag - disse Darzee, mas Nag saiu na ponta dum pau, pendurada, e foi dormir no monturo. Cantemos louvores à grande mangusta de olho vermelho!

E Darzee estufou o papo e cantou...

- Se eu pudesse alcançar esse ninho, dava com os filhotes no chão! - gritou a mangusta. Vocês não sabem fazer nada a seu tempo. Aí no ninho estão os dois bem seguros, mas cá embaixo tudo me cheira a guerra e perigos. Pare um minuto com essa cantoria, Darzee!

- Pelo amor da grande, da bela, da heróica mangusta, vou calar-me - respondeu Darzee. Que é que teme a matadora da terrível Nag?

- Temos Nagaína. Onde anda ela?

- No monturo, perto da cocheira, chorando a morte do marido. Viva Rikki-tikki, a gloriosa heroína dos dentes brancosl

- Para o diabo meus dentes brancos! Não sabe você por acaso onde Nagaína guarda seus ovos?

- Sei, sim. Estão no canteiro dos melões, no lugar onde o sol bate o dia inteiro. Faz já muito tempo que ela os escondeu lá.

- E só agora lembra-se você de contar-me isso ? Perto do muro, não é?

- Será que Rikki-tikki quer comer os ovos da cobra?

- Comer, propriamente, não, Darzee. Venha cá. Se você tiver um grão de juízo na cabecinha, vai já à estrumeira, fingindo estar de asa quebrada, para que Nagaína o persiga até àquela moita. Tenho de ir ao canteiro dos melões, mas sem que Nagaína me veja.
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continua

Adélia Prado (Bagagem)

O livro Bagagem, foi a primeira publicação de Adélia Prado, de 1976, por indicação de Carlos Drummond de Andrade. Declaração da autora sobre a obra: "Meu primeiro livro foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento”.
Em seu poema "Fluência", ela relatou a sensação da estreia: "O meu alívio foi constatar que depois da festa o mundo continuava igual e a perplexidade que gerou Bagagem continuava intacta. Foi ver que a poesia não desertara de mim".

Do ponto de vista estilístico, destaca-se a combinação dos contrários, como tristeza e alegria, tanto quanto do lirismo e da ironia. Bagagem chamou a atenção da crítica pelo jeito diferente que a autora tem de dizer as coisas que sente e vê.

Em Bagagem, os poemas são distribuídos em quatro grandes seções. Essas seções se configuram segundo um variado mapa existencial, que se divide entre as coordenadas da “poesia”, do “amor” e da “memória”, além daquela “alfândega”, de sentido mais escorregadio mas nem por isso menos sugestivo (pensemos num contraponto com o título do livro). O cotidiano é, sumariamente descrito, o espaço próprio das vivências imediatas, recebendo frequentemente a carga do trivial, que é a polaridade “terrena” das ofegantes aspirações ao sublime:

CONFEITO
Quero comer bolo de noiva,
puro açúcar, puro amor carnal
disfarçado de corações e sininhos:
um branco, outro cor-de-rosa,
um branco, outro cor-de-rosa.

É a poesia do cotidiano, não do grandiloquente. Claro que muitos escritores brasileiros já tinham praticado ou pregado a poetização do cotidiano antes dela - dos modernistas a Mário Quintana-, mas em Adélia Prado a transformação do ordinário em extraordinário é soberba, não fosse esse um adjetivo que ela abominaria. A notar, ainda, a sensualidade que ela empresta à religiosidade.

A questão do feminino surge na poesia adeliana no modo como ela dá a ler um conjunto de práticas culturalmente marcado, de modo que o sujeito lírico ora com ele se identifica, ora dele se afasta, num movimento pendular entre a tradição e a ruptura, o diálogo com os poetas masculinos e a explicitação de sua diferença, de que o poema "Com licença poética", que inicia Bagagem, é exemplar.

Nota: O poema "Com licença poética" parafraseia o "Poema de Sete Faces", de Drummond:
Poema de Sete Faces
Quando nasci,
um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai Carlos!
ser “gauche” na vida.
(C. Drummond de Andrade)

Vejamos então, a análise de alguns poemas que fazem parte da obra Bagagem.

1. COM LICENÇA POÉTICA
(Análise feita por Jaqueline Alice Cappellari, do curso de Letras das Faculdades Porto-Alegrenses de Educação, Ciências e Letras, orientada pela Profª Diana Maria Marchi.)

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Comentários: Os primeiros poemas de Adélia Prado, publicados em Bagagem, procuram exatamente isso: definir a imagem da poeta. Em "Com licença poética", ela assume sua sina de mulher-poeta ao passo em que se apresenta de forma simples e grandiosa ao mesmo tempo; sem deixar de explicitar suas antíteses, ou seja, as contradições do universo feminino, bem como suas diferenças diante do universo masculino.
Já no primeiro verso, é explícita a paródia a Carlos Drummond de Andrade, como já vimos, na qual a poeta deixa, a princípio, claro sua diferenciação. Em vez de um anjo coxo, conforme o conhecido poema drummondiano, trata-se de um anjo esbelto que anuncia o nascimento do eu-lírico de "Com licença poética".

Mais adiante, no terceiro, quarto e quinto versos, a poeta admite que ser mulher-poeta é uma tarefa árdua, visto que, carregar Manuel Bandeira, isto é, o peso de fazer poesia diante da existência de um poeta grandioso como Manuel Bandeira, realmente não seria fácil.

No quinto verso, quando o eu-lírico de "Com licença poética" define a mulher como “esta espécie ainda envergonhada”, podemos deduzir que a mulher é uma “espécie” ainda tímida, com resquícios da criação sob os preceitos católicos citados anteriormente, ou seja, que carrega uma “culpa”, não reconhecendo seu verdadeiro potencial, que lhe permite engendrar homens e fazer poesia.

Em relação ao sexto e ao sétimo verso, percebe-se que a poeta se mostra conformada com sua condição, isto é, aceita os pretextos que, ao longo dos anos, foram dados à mulher (mãe, dona de casa, esposa), pois ela não precisa mentir, é desdobrável, é aquilo que é.

Em seguida, nos próximos versos, a poeta enumera, de forma simples, algumas características da mulher que é, abordando questões sempre tão ligadas ao sexo feminino: medo de não conseguir casar, do parto. Sem rodeios, ela revela sua forma de fazer poesia: escreve o que sente. E isso é tido por ela como uma sina, faz parte de seu destino.

Assim, fica claro que se trata de uma mulher que cumpre a sina há tempos a ela destinada: casar, parir os filhos, cuidar da casa. E escreve. Enfim, ao mesmo tempo, não deixa de ser uma “nova mulher”, que se define, que se encontra e que tem consciência de, conforme o décimo segundo verso, inaugurar uma linguagem, fundar reinos.

Dessa maneira, ela planta sua semente através da poesia, fundando reinos que irão resultar na literatura feminina amadurecida dos tempos atuais. Reinos infinitos, que se ampliam de acordo com as conquistas da mulher nesta sociedade ainda tão desigual.

Entretanto, o eu-lírico declara que a dor não é amargura; e isso é dito entre parênteses, como um adendo, para que não seja esquecido. Sim, a mulher já sofreu muito, e ainda sofre, porém essa dor não se transformou em amargura, mas em crescimento, em poesia.

Conforme o décimo quarto verso, sua tristeza não tem linhagem, é comum e, assim, identifica-se com o coletivo. Contudo, seu desejo, sua disposição e sua determinação em busca da satisfação são características seculares, próprias da mulher. Para concluir, a poeta retoma a referência a Drummond; no entanto, mais uma vez, o utiliza como sua antítese. Dessa forma, permanece a idéia da superioridade feminina, visto que “ser coxo na vida é maldição pra homem. A mulher é desdobrável”, flexível, isto é, não aceita um destino defeituoso para o qual o homem sempre tentou persuadi-la. Enfim, ela é mulher.

2. GRANDE DESEJO
(Análise feita por Jaqueline Alice Cappellari, do curso de Letras das Faculdades Porto-Alegrenses de Educação, Ciências e Letras, orientada pela Profª Diana Maria Marchi.)

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai.
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.

A autora inicia dizendo que é uma mulher comum, do povo, mãe. Desse modo, observa-se a rima provocada pelo contraste dos nomes "Cornélia" e "Adélia", assim como o contraste de significado que esses dois nomes representam. Ela declara-se uma mulher simples por meio da enumeração de atos corriqueiros, banais, tais como fazer comida e bater o osso no prato pra chamar cachorro.

No sexto verso, para que ocorra uma aproximação ainda maior com o coletivo, Adélia diz que “quando dói” grita “ai”, pois não se trata de uma mulher revolucionária, que reprime sua dor em busca de determinado ideal, mas sim uma mulher que constitui sua força com base na sinceridade consigo mesma. Sendo assim, suas sensibilidades não têm governo. Ela se aceita tal como é, com seus momentos de dor e de irracionalidade.

O eu-lírico continua sua apresentação e, no décimo segundo verso, notamos sua religiosidade, outra constante na obra de Adélia Prado, como se a poeta fosse um enviado de Deus que cumpre a sina escrevendo aquilo que sente. Sua poesia está tão ligada à religião que, quando escrever seu livro, irá a uma igreja, talvez para batizá-lo; a uma lápide, a um descampado, talvez para agradecer. Então, nesse instante, a sensibilidade da poeta virá à tona e ela irá chorar, transformando-se numa dama requintada, pois tem um livro com seu nome; porém esquisita, já que é diferente, possui um destino que sabe qual é. Adélia é uma mulher do povo, e sua poesia não está vinculada nem possui fundo político, mesmo numa época em que as feministas estavam em plena atividade com seus discursos de emancipação.

A apresentação pessoal, no poema "Grande desejo", coloca-se com clareza: não se trata de uma mulher excepcional, revolucionária (leia-se, nem no nível ideológico, nem no nível estético), como Cornélia, a mãe dos irmãos Tibério e Caio, que propuseram a primeira lei da reforma agrária em Roma, e que, por isso mesmo foram condenados à morte, sendo valentemente defendidos pela mãe. Identifica-se apenas como Adélia, mas é uma mulher que rima, uma mulher do povo, e mulher de forno e fogão, que cuida de cachorro e grita quando algo lhe dói, mas tem a sensibilidade para as coisas boas da vida. Ao mesmo tempo, desenha-se requintada e esquisita, isso depois que já tiver composto um livro com seu nome – imagina-se, o próprio livro que o leitor tem naquele momento em mãos. Dessa maneira, vemos que a significação da mulher é uma das características fundamentais da obra de Adélia Prado.

3. A INVENÇÃO DE UM MODO
Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras
e se me surpreendem, explico cheia de verdade:
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"
Fico entre montanhas,
entre guarda e vã,
entre branco e branco,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto,
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,
vendo televisão,
ou tirando sorte com quem vou casar.
Porque que tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li:
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.

No poema "A invenção de um modo", o eu-lírico lança os fundamentos da nova estética em gestação, a qual se caracteriza pela busca do equilíbrio entre pólos opostos. Nada de extremismos – ou isto ou aquilo –, mas há o desejo da busca de unidade, de conjugação e intersecção: “entre paciência e fama quero as duas”, ou seja, isto e aquilo.

4. ENREDO PARA UM TEMA
(Análise feita por Angélica Soares, Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Letras da UFRJ)

Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que...disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.

O poema é uma referência poética ao anti-ecológico silenciamento das mulheres, onde, pelo refazer irônico do autoritarismo da supremacia masculina desvendam-se exigências coercitivas hierarquizantes imputadas, desde sempre, à mulher, em uma sociedade androcêntrica.

Aí, o emprego do discurso direto, que reconstrói na íntegra, a fala do pai, do apaixonado candidato a marido da filha e de D. Cristóvão parece garantir o caráter memorialístico do poema, na medida em que atenua a subjetividade lírica dos versos. O impacto entre a fantasia da filha e a ironia do pai e de D. Cristóvão (representantes máximos, nesse texto, do poder patriarcal) concorre para intensificar o sentido do silêncio feminino diante da lei. O calar-se, como parte da submissão, que se liga às idéias de fragilidade, passividade e dependência da mulher, espelha, nos versos, a oposição binária entre o feminino e o masculino construída. "Enredo para um tema" testemunha, literariamente, essa opressão.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/estudos/livros/bagagem