quarta-feira, 26 de março de 2014

Joracy Camargo (Os mendigos)

Estamos diante da porta principal de uma velha igreja. No interior, a luz morta dos templos.

E eis ali um homem de cinquenta anos, barbas e cabelos compridos, olhar sereno, expressões messiânicas, em suma, uma cabeça que despertaria a atenção dos pintores retratistas; chapéu de feltro, velho e esburacado, paletó esfarrapado bem amplo, com os enormes bolsos cheios, volumosos; calças também escuras, remendadas "à la diable"; botinas velhas, deixando ver alguns dedos sem meias. Com uma bengala tosca nas mãos e um maço de jornais amarrotados.

É um mendigo.

Hélio anda com o desembaraço de homem velho, mas sadio. Ao avistar um rapaz que se aproxima, finge, instantaneamente e com muita prática, um  grande abatimento, uma expressão de angustioso sofrimento; e, apoiando-se na bengala, simula sentar-se a custo sobre os jornais que atirara no primeiro degrau da escada.

Estende o chapéu a um rapaz que, sem olhar, atira uma moeda, que ele apanha.

- Deus lhe pague... – diz Hélio, que olha para dentro da igreja e para os lados antes de ajeitar melhor os jornais, a bengala e o chapéu, tomando posição cômoda e definitiva para o trabalho...

 Olha em direção à rua e observa que outro mendigo se aproxima - mesma idade, mesmos farrapos, mas de aparência pior, porque revela um grande abatimento físico. Está mesmo esquálido e faminto.

Hélio distraidamente estende-lhe o chapéu:

- Ah! Desculpe... – diz sorridente. - Não tinha reparado que você é colega... Posso saber o seu nome?

- André. Ainda não fiz nada hoje, velhinho. Mas tenho cigarros. Aceita um?

- São bons?

- Hoje, até as pontas que consegui apanhar são de cigarros ordinários! – Diz, tirando do bolso uma latinha cheia de pontas de cigarros. – Sirva-se.

- Muito obrigado – agradece Hélio. - Não fumo cigarros ordinários. Quer um charuto?

- Olha lá! Aceito sim – exclama André espantado.

- É Havana! – torna Hélio. - Tenho muitos! Custam 10$000 cada um.

- Aceito, porque nunca tive jeito para roubar...

- Nem eu.

- Não foram roubados? – pergunta André.

- Foram comprados. Ainda não sou ladrão...

- Desculpe. É que...

- Não é preciso pedir desculpas. Não sou ladrão, mas podia sê-lo. É um direito que me assiste.

- Acha? – espanta-se André, sentando-se na escada

- Acho, mas sempre preferi trabalhar. Como trabalhar nem sempre é possível, resolvi pedir esmola, antes que fosse obrigado a roubar. Pedir dá menos trabalho.

- E é por isso que você pede?

- Só por isso. Conhece a história do mundo?

- Não.

- Antigamente, tudo era de todos. Ninguém era dono da terra e a água não pertencia a ninguém. Hoje, cada pedaço de terra tem um dono e cada nascente de água pertence a alguém. Quem foi que deu?

- Eu não fui...

Hélio acrescenta com ar sério:

- Não foi ninguém. Os espertalhões, no princípio do mundo, apropriaram-se das coisas e inventaram a Justiça e a Polícia...

- Pra quê?

- Para prender e processar os que vieram depois. Hoje, quem se apropria das coisas é processado pelo crime de apropriação indébita. Por quê? Porque eles resolveram que as coisas pertencessem a eles...

- Mas quem foi que deu?

- Ninguém. Pergunte ao dono de uma faixa de terra na Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, se ele sabe explicar por que razão aquela faixa é dele...

- Ora! É fácil. Ele dirá que comprou ao antigo dono.

- E o antigo dono?

- Comprou de outro.

- E o outro?

- De outro.

- E este outro?

- Do primeiro dono.

- E o primeiro dono, comprou de quem?

- De ninguém. Tomou conta.

- Com que direito? – e acrescenta: - Sem direito nenhum. Naquele tempo não havia leis. Depois que um pequeno grupo dividiu tudo entre si é que se fizeram os Códigos. Então, passou a ser crime... para os outros, o  que para eles era uma coisa natural...

- Mas – retruca André - os que primeiro tomaram conta das terras eram fortes e podiam garantir a posse contra os mais fracos.

- Isso era antigamente. Hoje os chamados donos não são fortes e continuam na posse do que não lhes pertence.

- Já sei: garantidos pela polícia, pelas classes armadas...

- Sim. Garantidos pelos que também não são donos de nada, mas que foram convencidos de que devem fazer respeitar uma divisão na qual não foram aquinhoados.

- E você pretende reformar o mundo? – torna André.

- Tinha pensado nisso, mas depois compreendi que a humanidade não precisa do meu sacrifício. Porque o número de infelizes avoluma-se assustadoramente...

- E foi por isso que desistiu de reformar o mundo? – pergunta André, sorrindo.

- Foi. Abandonei a sociedade e resolvi pedir-lhe o que me pertence. Exigir é impertinência; pedir é um direito universalmente reconhecido. Dá prazer a quem se pede, não causa inveja. Você já reparou que ninguém é contra o mendigo? Por que será? Porque o mendigo é o homem que desistiu de lutar contra os outros.

- Os homens não precisam de nós...

- Precisam, sim. - Precisam, mas não dependem; e é por isso que nos olham com ternura.

- Ora!... Quem é que precisa de um mendigo?

- Todos! Eles precisam muito mais de nós, do que nós deles. O mendigo é, neste momento, uma necessidade social. Quando eles dizem: "Quem dá aos pobres, empresta a Deus", confessam que não dão aos pobres, mas emprestam a Deus... Não há generosidade na esmola: há interesse. Os pecadores dão, para aliviar seus pecados; os sofredores, para merecer as graças de Deus. Além disso, é com a miséria de um níquel que eles adiam a revolta dos miseráveis...

- Mas quando agradecem a Deus, revelam o sentimento da gratidão.

- Não há gratidão – afirma Hélio. - Só agradece a Deus quem tem medo de perder a felicidade. Se os homens tivessem certeza de que seriam sempre felizes, Deus deixaria de existir, porque só existe no pensamento dos infelizes e dos temerosos da infelicidade. Quem dá esmola pensa que está comprando a felicidade, e os mendigos, para eles são os únicos
vendedores desse bem supremo.

- A felicidade é tão barata... – diz André desanimado.

- Engana-se. É caríssima. Barata é a ilusão. Com um tostãozinho compra-se a melhor ilusão da vida, porque quando a gente diz: "Deus lhe pague...", o esmoler pensa que no dia seguinte vai tirar cem contos na loteria... Coitados! São tão ingênuos... Se dar uma esmola, um mísero tostão à saída de um cabaré, onde se gastaram milhares de tostões em vícios e corrupções, redimisse pecados e comprasse a felicidade, o mundo seria um paraíso! O sacrifício é que redime. Esmola não é sacrifício! É sobra. E resto. É a alegria de quem dá porque não precisa pedir.

- Você é contra a esmola?

- Sou a meu favor e contra os outros. A sociedade exige que eu peça. Eu peço. E foi pedindo que me vinguei dela.

- Como assim?!

- Porque, obrigado a pedir, fui obrigado a enriquecer!

- Você é rico?! – indaga André meio em segredo.

- Riquíssimo! Não tive outro remédio...

- Há de me explicar como foi obrigado a ficar rico.

Hélio toma novamente um ar sério:

- A sociedade é muito defeituosa, meu velho. Pela lógica, o mendigo deveria ser sempre pobre. Pelo menos, enquanto fosse mendigo. Entretanto, pobres, realmente pobres, são os ricos. Pobres de espírito, pobres de tranqüilidade, de fraternidade, e, às vezes, até de dinheiro!

- Não estou entendendo nada...

Nisso, aquele senhor que entrara na igreja sai, visivelmente preocupado, agitado, indeciso.

Mais que depressa André lhe pede:

- Uma esmolinha pelo amor de Deus!...

Mas foi em vão – o homem nada lhe dá.

Hélio, por sua vez, também pede, estendendo-lhe o chapéu:

- Favoreça, em nome de Deus, a um pobre que tem fome!...

Aquele homem lhe dá uma esmola e sai agitadíssimo. André irrita-se.

- Conhece esse sujeito? – pergunta Hélio.

- Não.

- É o Vieira de Castro, presidente do Consórcio das fábricas de tecidos. Milionário. Tanto quanto eu! Observou a aflição desse homem, procurando igrejas a esta hora da noite? Sabe o que significa um momento de contrição religiosa de um milionário? - Egoísmo. Lutas entre eles! Miséria!... Pior do que a nossa!

- Do que a minha?!...

- Sim, porque a minha faria inveja ao homem mais rico do mundo... A minha miséria é a miséria mais confortável que há, pois...

André interrompe a conversa:

- Mas não me explicou ainda como foi obrigado a fazer fortuna.

- Pedindo e guardando. Fui obrigado a guardar, porque a sociedade me impedia de gastar. Esta roupa, que recebi como esmola, visto-a há 25 anos. Substituí-la por uma nova seria desmoralizar a minha profissão... Logo, fui obrigado a economizar, pelo menos, o valor de dois ternos por ano... cinqüenta ternos. Vinte e cinco contos!

- A 500$000 cada um?

- É quanto me custam agora... Obrigado a comer os restos de comida que os outros me davam, calculo a minha economia, por baixo, em 6$000 diários... sem gorjetas...

André faz os cálculos:

- Cento e oitenta por mês... 2 vezes nada, nada; 2 vezes 8, 16; 2 vezes 1, 2 e um 3; uma vez nada, nada; 1 vez 8, 8; 1 vez 1, 1; 6, 11 e vão 2. Dois contos cento e sessenta por ano...

- Em 25...

- Mais de 50 contos.

- Agora – orienta Hélio - acrescente outras despesas, como cinemas, teatros, esportes e certos luxos que me pareceram inconvenientes para um mendigo, e compreenderá como pode um mendigo enriquecer e um rico empobrecer.

- Tem razão.

- Nós vivemos acumulando as sobras da sociedade. E a sociedade pensa que as sobras não fazem falta... É a ilusão do lucro, porque não há lucro. O que há é uma necessidade menor no momento em que o dinheiro é maior. Quando a necessidade aumenta, o que era lucro passa a ser prejuízo. Se você não tiver necessidade de comprar um automóvel, não sentirá falta do dinheiro que ele custa. Se você não tiver nenhuma necessidade, o dinheiro que tiver no bolso será lucro. É sobra. Pouco se lhe dá deitá-la fora. E nós, os mendigos, somos a lata de lixo da humanidade.

- Mas você é rico mesmo?!

- Sou. Mas não tenho culpa nenhuma disso...

- E pretende continuar esmolando?

- Até o fim da vida. Não me dá trabalho nenhum... Não pago imposto, não estou sujeito a incêndio nem a falência...

- Mas - argumenta André - se vivesse dos rendimentos, também não precisaria trabalhar. Por que não emprega o seu dinheiro na indústria, no comércio ou na lavoura?

- Para quê, se não tenho necessidade de arriscar o meu capital?!

- Em compensação, ganharia muito mais.

- Puro engano. O lucro maior não é a maior quantidade de dinheiro que sobra. No comércio ou na indústria, quem ganha mais precisa gastar mais. No meu caso, dá-se o contrário: quanto mais ganho, menos preciso e devo gastar, para ganhar mais e mais. E depois, o que faço não é ganhar; é cobrar o que a sociedade me deve. E cobro humildemente, suavemente, em prestações módicas.

- Quanto lhe deve a sociedade?

- Tanto quanto deveria caber a mim, se houvesse uma divisão "camarada".

- Comigo essa gente tem sido muito caloteira... – diz André tristemente.

- É que você não sabe cobrar... - Como é que você pede uma esmola?

- Como todos os mendigos: "Uma esmola pelo amor de Deus!..."

- Isso é passadismo!... Ninguém mais ouve esse pedido. Deus é uma palavra sem expressão. Quando se diz "Ai, meu Deus!" - é como se estivesse dizendo: "Ora bolas!". Você nunca ouviu um ateu dizer: "Graças a Deus sou ateu"?

Fonte:
Joracy Camargo. Deus lhe Pague. primeiro ato

Dáguima Collection - Trova 3

Fonte:
Facebook da autora

Machado de Assis (Anedota Pecuniária)

Chama-se Falcão o meu homem. Naquele dia — quatorze de abril de 1870 — quem lhe entrasse em casa, às dez horas da noite, vê-lo-ia passear na sala, em mangas de camisa, calça preta e gravata branca, resmungando, gesticulando, suspirando, evidentemente aflito.

Às vezes, sentava-se; outras, encostava-se à janela, olhando para a praia, que era a da Gamboa. Mas, em qualquer lugar ou atitude, demorava-se pouco tempo.

— Fiz mal, dizia ele, muito mal. Tão minha amiga que ela era! tão amorosa! Ia chorando, coitadinha! Fiz mal, muito mal... Ao menos, que seja feliz! Se eu disser que este homem vendeu uma sobrinha, não me hão de crer; se descer a definir o preço, dez contos de réis, voltar-me-ão as costas com desprezo e indignação.

Entretanto, basta ver este olhar felino, estes dois beiços, mestres de cálculo, que, ainda fechados, parecem estar contando alguma coisa, para adivinhar logo que a feição capital do nosso homem é a voracidade do lucro. Entendamo-nos: ele faz arte pela arte, não ama o dinheiro pelo que ele pode dar, mas pelo que é em si mesmo! Ninguém lhe vá falar dos regalos da vida. Não tem cama fofa, nem mesa fina, nem carruagem, nem comenda. Não se ganha dinheiro para esbanjá-lo, dizia ele. Vive de migalhas; tudo o que amontoa é para a contemplação. Vai muitas vezes à burra, que está na alcova de dormir, com o único fim de fartar os olhos nos rolos de ouro e maços de título. Outras vezes, por um requinte de erotismo pecuniário, contempla-os só de memória. Neste particular, tudo o que eu pudesse dizer, ficaria abaixo de uma palavra dele mesmo, em 1857.

Já então milionário, ou quase, encontrou na rua dois meninos, seus conhecidos, que lhe perguntaram se uma nota de cinco mil-réis, que lhes dera um tio, era verdadeira.

Corriam algumas notas falsas, e os pequenos lembraram-se disso em caminho. Falcão ia com um amigo. Pegou trêmulo na nota, examinou-a bem, virou-a, revirou-a...

— É falsa? perguntou com impaciência um dos meninos.

— Não; é verdadeira.

— Dê cá, disseram ambos.

Falcão dobrou a nota vagarosamente, sem tirar-lhe os olhos de cima; depois, restituiu-a aos pequenos, e, voltando-se para o amigo, que esperava por ele, disse-lhe com a maior candura do mundo: — Dinheiro, mesmo quando não é da gente, faz gosto ver.

Era assim que ele amava o dinheiro, até à contemplação desinteressada. Que outro motivo podia levá-lo a parar, diante das vitrinas dos cambistas, cinco, dez, quinze minutos, lambendo com os olhos os montes de libras e francos, tão arrumadinhos e amarelos? O mesmo sobressalto com que pegou na nota de cinco mil-réis, era um rasgo sutil, era o terror da nota falsa. Nada aborrecia tanto, como os moedeiros falsos, não por serem criminosos, mas prejudiciais, por desmoralizarem o dinheiro bom.

A linguagem do Falcão valia um estudo. Assim é que, um dia, em 1864, voltando do enterro de um amigo, referiu o esplendor do préstito, exclamando com entusiasmo: — "Pegavam no caixão três mil contos!" E, como um dos ouvintes não o entendesse logo, concluiu do espanto, que duvidava dele, e discriminou a afirmação: — "Fulano quatrocentos, Sicrano seiscentos... Sim, senhor, seiscentos; há dois anos, quando desfez a sociedade com o sogro, ia em mais de quinhentos; mas suponhamos quinhentos..." E foi por diante, demonstrando, somando e concluindo: — "Justamente, três mil contos!" Não era casado. Casar era botar dinheiro fora. Mas os anos passaram, e aos quarenta e cinco entrou a sentir uma certa necessidade moral, que não compreendeu logo, e era a saudade paterna. Não mulher, não parentes, mas um filho ou uma filha, se ele o tivesse, era como receber um patacão de ouro. Infelizmente, esse outro capital devia ter sido acumulado em tempo; não podia começá-lo a ganhar tão tarde. Restava a loteria; a loteria deu-lhe o prêmio grande.

Morreu-lhe o irmão, e três meses depois a cunhada, deixando uma filha de onze anos. Ele gostava muito desta e de outra sobrinha, filha de uma irmã viúva; dava-lhes beijos, quando as visitava; chegava mesmo ao delírio de levar-lhes, uma ou outra vez, biscoitos. Hesitou um pouco, mas, enfim, recolheu a órfã; era a filha cobiçada. Não cabia em si de contente; durante as primeiras semanas, quase não saía de casa, ao pé dela, ouvindo-lhe histórias e tolices.

Chamava-se Jacinta, e não era bonita; mas tinha a voz melodiosa e os modos fagueiros. Sabia ler e escrever; começava a aprender música. Trouxe o piano consigo, o método e alguns exercícios; não pôde trazer o professor, porque o tio entendeu que era melhor ir praticando o que aprendera, e um dia... mais tarde... Onze anos, doze anos, treze anos, cada ano que passava era mais um vínculo que atava o velho solteirão à filha adotiva, e vice-versa. Aos treze, Jacinta mandava na casa; aos dezessete era verdadeira dona. Não abusou do domínio; era naturalmente modesta, frugal, poupada.

— Um anjo! dizia o Falcão ao Chico Borges.

Este Chico Borges tinha quarenta anos, e era dono de um trapiche. Ia jogar com o Falcão à noite. Jacinta assistia às partidas. Tinha então dezoito anos; não era mais bonita, mas diziam todos "que estava enfeitando muito". Era pequenina, e o trapicheiro adorava as mulheres pequeninas. Corresponderam-se, o namoro fez-se paixão.

— Vamos a elas, dizia o Chico Borges ao entrar, pouco depois de ave-marias.

As cartas eram o chapéu de sol dos dois namorados. Não jogavam a dinheiro; mas o Falcão tinha tal sede ao lucro, que contemplava os próprios tentos, sem valor, e contava-os de dez em dez minutos, para ver se ganhava ou perdia. Quando perdia, caía-lhe o rosto num desalento incurável, e ele recolhia-se pouco a pouco ao silêncio. Se a sorte teimava em persegui-lo, acabava o jogo, e levantava-se tão melancólico e cego, que a sobrinha e o parceiro podiam apertar a mão, uma, duas, três vezes, sem que ele visse coisa nenhuma.

Era isto em 1869. No princípio de 1870 Falcão propôs ao outro uma venda de ações.

Não as tinha; mas farejou uma grande baixa, e contava ganhar de um só lance trinta a quarenta contos ao Chico Borges. Este respondeu-lhe finamente que andava pensando em oferecer-lhe a mesma coisa. Uma vez que ambos queriam vender e nenhum comprar, podiam juntar-se e propor a venda a um terceiro. Acharam o terceiro, e fecharam o contrato a sessenta dias. Falcão estava tão contente, ao voltar do negócio, que o sócio abriu-lhe o coração e pediu-lhe a mão de Jacinta. Foi o mesmo que, se de repente, começasse a falar turco. Falcão parou, embasbacado, sem entender. Que lhe desse a sobrinha? Mas então...

— Sim; confesso a você que estimaria muito casar com ela, e ela... penso que também estimaria casar comigo.

— Qual, nada! interrompeu o Falcão. Não, senhor; está muito criança, não consinto.

— Mas reflita...

— Não reflito, não quero.

Chegou a casa irritado e aterrado. A sobrinha afagou-o tanto para saber o que era, que ele acabou contando tudo, e chamando-lhe esquecida e ingrata. Jacinta empalideceu; amava os dois, e via-os tão dados, que não imaginou nunca esse contraste de afeições. No quarto chorou à larga; depois escreveu uma carta ao Chico Borges, pedindo-lhe pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, que não fizesse barulho nem brigasse com o tio; dizia-lhe que esperasse, e jurava-lhe um amor eterno.

Não brigaram os dois parceiros; mas as visitas foram naturalmente mais escassas e frias. Jacinta não vinha à sala, ou retirava-se logo. O terror do Falcão era enorme. Ele amava a sobrinha com um amor de cão, que persegue e morde aos estranhos. Queria-a para si, não como homem, mas como pai. A paternidade natural dá forças para o sacrifício da separação; a paternidade dele era de empréstimo, e, talvez, por isso mesmo, mais egoísta.

Nunca pensara em perdê-la; agora, porém, eram trinta mil cuidados, janelas fechadas, advertências à preta, uma vigilância perpétua, um espiar os gestos e os ditos, uma campanha de D. Bartolo.

Entretanto, o sol, modelo de funcionários, continuou a servir pontualmente os dias, um a um, até chegar dos dois meses do prazo marcado para a entrega das ações. Estas deviam baixar, segundo a previsão dos dois; mas as ações, como as loterias e as batalhas, zombam dos cálculos humanos. Naquele caso, além de zombaria, houve crueldade, porque nem baixaram, nem ficaram ao par; subiram até converter o esperado lucro de quarenta contos numa perda de vinte.

Foi aqui que o Chico Borges teve uma inspiração de gênio. Na véspera, quando o Falcão, abatido e mudo, passeava na sala o seu desapontamento, propôs ele custear todo o deficit, se lhe desse a sobrinha, Falcão teve um deslumbramento.

— Que eu...? — Isso mesmo, interrompeu o outro, rindo.

— Não, não...

Não quis; recusou três e quatro vezes. A primeira impressão fora de alegria, eram os dez contos na algibeira. Mas a idéia de separar-se de Jacinta era insuportável, e recusou.

Dormiu mal. De manhã, encarou a situação, pesou as coisas, considerou que, entregando Jacinta ao outro, não a perdia inteiramente, ao passo que os dez contos iam-se embora. E, depois, se ela gostava dele e ele dela, por que razão separá-los? Todas as filhas casam-se, e os pais contentam-se de as ver felizes. Correu à casa do Chico Borges, e chegaram a acordo.

— Fiz mal, muito mal, bradava ele na noite do casamento. Tão minha amiga que ela era! Tão amorosa! Ia chorando, coitadinha... Fiz mal, muito mal.

Cessara o terror dos dez contos; começara o fastio da solidão. Na manhã seguinte, foi visitar os noivos. Jacinta não se limitou a regalá-lo com um bom almoço, encheu-o de mimos e afagos; mas nem estes, nem o almoço lhe restituíram a alegria. Ao contrário, a felicidade dos noivos entristeceu-o mais. Ao voltar para casa não achou a carinha meiga de Jacinta. Nunca mais lhe ouviria as cantigas de menina e moça; não seria ela quem lhe faria o chá, quem lhe traria, à noite, quando ele quisesse ler, o velho tomo ensebado do Saint- Clair das Ilhas, dádiva de 1850.

— Fiz mal, muito mal...

Para remediar o mal feito, transferiu as cartas para a casa da sobrinha, e ia lá jogar, à noite, com o Chico Borges. Mas a fortuna, quando flagela um homem, corta-lhe todas as vazas. Quatro meses depois, os recém-casados foram para a Europa; a solidão alargou-se de toda a extensão do mar. Falcão contava então cinqüenta e quatro anos. Já estava mais consolado do casamento de Jacinta; tinha mesmo o plano de ir morar com eles, ou de graça, ou mediante uma pequena retribuição, que calculou ser muito mais econômica do que a despesa de viver só. Tudo se esboroou; ei-lo outra vez na situação de oito anos antes, com a diferença que a sorte arrancara-lhe a taça entre dois goles.

Vai senão quando cai-lhe outra sobrinha em casa. Era a filha da irmã viúva, que morreu e lhe pediu a esmola de tomar conta dela. Falcão não prometeu nada, porque um certo instinto o levava a não prometer coisa nenhuma a ninguém, mas a verdade é que recolheu a sobrinha, tão depressa a irmã fechou os olhos. Não teve constrangimento; ao contrário, abriu-lhe as portas de casa, com um alvoroço de namorado, e quase abençoou a morte da irmã. Era outra vez a filha perdida.

— Esta há de fechar-me os olhos, dizia ele consigo.

Não era fácil. Virgínia tinha dezoito anos, feições lindas e originais; era grande e vistosa. Para evitar que lha levassem, Falcão começou por onde acabara da primeira vez: — janelas cerradas, advertências à preta, raros passeios, só com ele e de olhos baixos. Virgínia não se mostrou enfadada. — Nunca fui janeleira, dizia ela, e acho muito feio que uma moça viva com o sentido na rua. Outra cautela do Falcão foi não trazer para casa senão parceiros de cinqüenta anos para cima ou casados. Enfim, não cuidou mais da baixa das ações. E tudo isso era desnecessário, porque a sobrinha não cuidava realmente senão dele e da casa. Às vezes, como a vista do tio começava a diminuir muito, lia-lhe ela mesma alguma página do Saint-Clair das Ilhas. Para suprir os parceiros, quando eles faltavam, aprendeu a jogar cartas, e, entendendo que o tio gostava de ganhar, deixava-se sempre perder. Ia mais longe: quando perdia muito, fingia-se zangada ou triste, com o único fim de dar ao tio um acréscimo de prazer. Ele ria então à larga, mofava dela, achava-lhe o nariz comprido, pedia um lenço para enxugar-lhe as lágrimas; mas não deixava de contar os seus tentos de dez em dez minutos, e se algum caía no chão (eram grãos de milho) descia a vela para apanhá-lo.

No fim de três meses, Falcão adoeceu. A moléstia não foi grave nem longa; mas o terror da morte apoderou-se-lhe do espírito, e foi então que se pôde ver toda a afeição que ele tinha à moça. Cada visita que se lhe chegava, era recebida com rispidez, ou pelo menos com sequidão. Os mais íntimos padeciam mais, porque ele dizia-lhes brutalmente que ainda não era cadáver, que a carniça ainda estava viva, que os urubus enganavam-se de cheiro, etc. Mas nunca Virgínia achou nele um só instante de mau humor. Falcão obedecia-lhe em tudo, com uma passividade de criança, e, quando ria, é porque ela o fazia rir.

— Vamos, tome o remédio, deixe-se disso, vosmecê agora é meu filho...

Falcão sorria e bebia a droga. Ela sentava-se ao pé da cama, contando-lhe histórias; espiava o relógio para dar-lhe os caldos ou a galinha, lia-lhe o sempiterno Saint-Clair. Veio a convalescença. Falcão saiu a alguns passeios, acompanhado de Virgínia. A prudência com que esta, dando-lhe o braço, ia mirando as pedras da rua, com medo de encarar os olhos de algum homem, encantava o Falcão.

— Esta há de fechar-me os olhos, repetia ele consigo mesmo. Um dia, chegou a pensá-lo em voz alta: — Não é verdade que você me há de fechar os olhos? — Não diga tolices! Conquanto estivesse na rua, ele parou, apertou-lhe muito as mãos, agradecido, não achando que dizer. Se tivesse a faculdade de chorar, ficaria provavelmente com os olhos úmidos. Chegando à casa, Virgínia correu ao quarto para reler uma carta que lhe entregara na véspera uma D. Bernarda, amiga de sua mãe. Era datada de New York, e trazia por única assinatura este nome: Reginaldo. Um dos trechos dizia assim: "Vou daqui no paquete de 25. Espera-me sem falta. Não sei ainda se irei ver-te logo ou não. Teu tio deve lembrar-se de mim; viu-me em casa de meu tio Chico Borges, no dia do casamento de tua prima..." Quarenta dias depois, desembarcava este Reginaldo, vindo de New York, com trinta anos feitos e trezentos mil dólares ganhos. Vinte e quatro horas depois visitou o Falcão, que o recebeu apenas com polidez. Mas o Reginaldo era fino e prático; atinou com a principal corda do homem, e vibrou-a. Contou-lhe os prodígios de negócio nos Estados Unidos, as hordas de moedas que corriam de um a outro dos dois oceanos. Falcão ouvia deslumbrado, e pedia mais. Então o outro fez-lhe uma extensa computação das companhias e bancos, ações, saldos de orçamento público, riquezas particulares, receita municipal de New York; descreveu-lhe os grandes palácios do comércio...

— Realmente, é um grande país, dizia o Falcão, de quando em quando. E depois de três minutos de reflexão: — Mas, pelo que o senhor conta, só há ouro? — Ouro só, não; há muita prata e papel; mas ali papel e ouro são a mesma coisa. E moedas de outras nações? Hei de mostrar-lhe uma coleção que trago. Olhe; para ver o que é aquilo basta pôr os olhos em mim. Fui para lá pobre, com vinte e três anos; no fim de sete anos, trago seiscentos contos.

Falcão estremeceu: — Eu, com a sua idade, confessou ele, mal chegaria a cem.

Estava encantado. Reginaldo disse-lhe que precisava de duas ou três semanas, para lhe contar os milagres do dólar.

— Como é que o senhor lhe chama? — Dólar.

— Talvez não acredite que nunca vi essa moeda.

Reginaldo tirou do bolso do colete um dólar e mostrou-lho. Falcão, antes de lhe pôr a mão, agarrou-o com os olhos. Como estava um pouco escuro, levantou-se e foi até à janela, para examiná-lo bem — de ambos os lados; depois restituiu-o, gabando muito o desenho e a cunhagem, e acrescentando que os nossos antigos patacões eram bem bonitos.

As visitas repetiram-se. Reginaldo assentou de pedir a moça. Esta, porém, disse-lhe que era preciso ganhar primeiro as boas graças do tio; não casaria contra a vontade dele.

Reginaldo não desanimou. Tratou de redobrar as finezas; abarrotou o tio de dividendos fabulosos.

— A propósito, o senhor nunca me mostrou a sua coleção de moedas, disse-lhe um dia o Falcão.

— Vá amanhã à minha casa.

Falcão foi. Reginaldo mostrou-lhe a coleção metida num móvel envidraçado por todos os lados. A surpresa de Falcão foi extraordinária; esperava uma caixinha com um exemplar de cada moeda, e achou montes de ouro, de prata, de bronze e de cobre. Falcão mirou-as primeiro de um olhar universal e coletivo; depois, começou a fixá-las especificadamente. Só conheceu as libras, os dólares e os francos; mas o Reginaldo nomeou-as todas: florins, coroas, rublos, dracmas, piastras, pesos, rúpias, toda a numismática do trabalho, concluiu ele poeticamente.

— Mas que paciência a sua para ajuntar tudo isto! disse ele.

— Não fui eu que ajuntei, replicou o Reginaldo; a coleção pertencia ao espólio de um sujeito de Filadélfia. Custou-me uma bagatela:— cinco mil dólares.

Na verdade, valia mais. Falcão saiu dali com a coleção na alma; falou dela à sobrinha, e, imaginariamente, desarrumou e tornou a arrumar as moedas, como um amante desgrenha a amante para toucá-la outra vez. De noite sonhou que era um florim, que um jogador o deitava à mesa do lansquenet, e que ele trazia consigo para a algibeira do jogador mais de duzentos florins. De manhã, para consolar-se, foi contemplar as próprias moedas que tinha na burra; mas não se consolou nada. O melhor dos bens é o que se não possui.

Dali a dias, estando em casa, na sala, pareceu-lhe ver uma moeda no chão. Inclinouse a apanhá-la; não era moeda, era uma simples carta. Abriu a carta distraidamente e leu-a espantado: era de Reginaldo a Virgínia...

— Basta! interrompe-me o leitor; adivinho o resto. Virgínia casou com o Reginaldo, as moedas passaram às mãos do Falcão, e eram falsas...

Não, senhor, eram verdadeiras. Era mais moral que, para castigo do nosso homem, fossem falsas; mas, ai de mim! eu não sou Sêneca, não passo de um Suetônio que contaria dez vezes a morte de César, se ele ressuscitasse dez vezes, pois não tornaria à vida, senão para tornar ao império.

Fonte: 
www.dominiopublico.gov.br

segunda-feira, 24 de março de 2014

Olivaldo Junior (Abandono – as trovas nuas)

Um homem que abandona uma mulher em condição de espera. Uma jovem que abandona o filho à madrugada, à morte. Um filho que abandona os pais à própria sorte. Um amigo que se esquece do outro e some, desaparece, sem deixar vestígios. Abandono, as trovas nuas da existência, persiste, a nos tirar o sono, a soluçar baixinho, quando todos dormem, e os dormentes não. Sós, essas trovas, ou pessoas, vão.

Abandono - as trovas nuas -,
tu acolhes minha sina
de astronauta sem as luas,
de lunático que ensina.

Meu amigo mais querido,
a quem tanto me apeguei,
desapega-se, escondido,
deste humilde que era rei.

A mulher, abandonada,
faz das horas seu tear:
tece a vida inanimada,
noite e dia, sem parar.

Olho o ingrato, pobre ser,
se descuida de onde sai;
mas o tempo vai vencer
e abandona quem se vai.

Ao criarem seus meninos,
pai e mãe envelheceram;
hoje, avós de pequeninos,
num asilo, “anoiteceram”...

Tua culpa, minha culpa,
triste ideia de exclusão;
prevalece a tal desculpa
de que fuga é solução.

Os “notáveis escritores”,
as pessoas mais notáveis,
apontaram minhas dores
como causas insondáveis.

Fonte:
O Autor

Bernardo Guimarães (A Separação)

 A uma légua, pouco mais ou menos, da antiga vila de Tamanduá, na província de Minas Gerais, e a pouca distância da estrada que vai para a vizinha vila da Formiga, via-se, há de haver quarenta anos, uma pequena e pobre casa, mas alva, risonha e nova. Uma porta e duas janelinhas formavam toda a sua frente.

Um estreito caminho, partindo da porta da casa, cortava o vargedo e ia atravessar o capão e o córrego, por uma pontezinha de madeira, fechada do outro lado por uma tronqueira de varas. Junto à ponte, de um lado e outro do caminho, viam-se duas corpulentas paineiras, cujos galhos, entrelaçando-se no ar, formavam uma arcada de verdura, à entrada do campo onde pastava o gado.

Era uma bela tarde de janeiro. Dois meninos brincavam à sombra das paineiras: um rapazinho de doze a treze anos e uma menina, que parecia ser pouco mais nova do que ele.

A menina era morena; de olhos grandes, negros e cheios de vivacidade, de corpo esbelto e flexível como o pendão da imbaúba.

O rapaz era alvo, de cabelos castanhos, de olhar meigo e plácido e em sua fisionomia como em todo o seu ser transluziam indícios de uma índole pacata, doce e branda.

A menina, sentada sobre a relva, despencava um molho de flores silvestres de que estava fabricando um ramalhete, enquanto seu companheiro, atracando-se como um macaco aos galhos das paineiras, balouçava-se no ar, fazia mil passes e piruetas para diverti-la.

Perto deles, espalhados no vargedo, umas três ou quatro vacas e mais algumas reses estavam tosando tranqüilamente o fresco e viçoso capim.

O sol, que já não se via no céu, tocava com uma luz de ouro os topes abaulados dos altos espigões; uma aragem quase imperceptível mal rumorejava pelas abas do capão e esvoaçava por aquelas baixadas cheias de sombra.

- Vamos, Eugênio. São horas... vamos apartar os bezerros e tocar as vacas para a outra banda.

Dizendo isto, a menina levanta-se da relva, e, atirando para trás dos ombros os negros e compridos cabelos, sacudiu do regaço uma nuvem de flores despencadas.

- Pois vamos lá com isso, Margarida, exclamou Eugênio, vindo ao chão de um salto, e ambos foram ajuntar as poucas vacas que ali andavam pastando.

- Arre! com mil diabos!... que bezerrada mofina! - exclamou o rapaz tangendo os bezerros. - Por que é que estes bezerros da tia Umbelina andam sempre assim tão magros?

Ora! pois, que é que você quer? mamãe tira quase todo o leite das vacas, e deixa um pinguinho só para os pobres bezerros. Por isso mesmo quase nenhuma cria pode vingar, e algum que escapa mamãe vende logo.

- E por que é que ela não te dá uma bezerrinha? aquela vermelhinha estava bem bonita para você...

- Qual!... não vê que ela me dá!... e eu que tenho tanta vontade de ter a minha vaquinha. Há que tempo Dindinha prometeu de me dar uma bezerra e até hoje estou esperando...

- Mamãe?... ora!... é porque ela se esqueceu... deixa estar, que eu hei de falar com ela... mas não, eu mesmo é que hei de te dar uma novilha pintada muito bonitinha que eu tenho. Assim como assim, eu tenho de me ir embora mesmo, que quero eu fazer com a criação?

- Como é isso?... - exclamou Margarida com surpresa. - Pois você vai-se embora?...

- Vou, Margarida; pois você ainda não sabia?...

- Eu não; quem me havia de contar? para onde é que você vai, então?

- Vou para o estudo, Margarida; papai mais mamãe querem que eu vá estudar para padre.

- Deveras, Eugênio!... ah! meu Deus!... que ideia!... e é muito longe esse estudo?

- Eu sei lá; eles estão falando que eu vou para Congonhas...

- Congonhas?... ah! já ouvi falar nessa terra; não é onde moram os padres santos?... ah! meu Deus! isso é muito longe!

- Qual longe!... tanta gente já tem ido lá e vem outra vez. Mamãe já mandou fazer batina, sobrepeliz, barrete e tudo. Quando tudo ficar pronto, eu hei de vir cá vestido de padre para você ver que tal fico.

- Tomara eu ver já!... você há de ficar um padrinho bem bonitinho!

- E quando eu for padre, você há de ir por força ouvir a minha primeira missa, não há de, Margarida?...

- Se hei de!... e também mais uma coisa, que hei de fazer... adivinha o que é?...

- O que é?... fala.

- Mamãe costuma dizer, que eu já estou ficando grande, e que daqui a um ano bem posso me confessar, e para isso anda me ensinando doutrina; mas eu não tenho ânimo de me confessar a padre nenhum... Deus me livre! tenho um medo... uma vergonha! Mas com você é outro caso estou pronta, e por isso não quero me confessar enquanto você não for padre...

- Está dito, Margarida; prometo que há de ser você a primeira pessoa que hei de confessar; antes disso, não confesso pessoa nenhuma, nenhuma desta vida; eu te juro, Margarida.

- Muito bem! muito bem! está dito. Agora me conta, Eugênio; quando é que você vai-se embora?

- É para o mês que vem...

- Ah! meu Deus! pois já tão depressa! e você não há de ficar com saudade de mim!...

- Se fico!... muita, muita saudade, Margarida. Quando penso nisso fico tão triste, que me dá vontade de chorar.

- E eu, pobre de mim!... como vou ficar tão sozinha! com quem é que eu hei de brincar daqui em diante?... não sei como há de ser, meu Deus!...

Eram quase ave-marias. A sombra do crepúsculo ia de manso derramando-se pelas devesas silenciosas. A favor daquela funda e solene mudez, ouvia-se o débil marulho das águas do ribeiro, escorregando sob a úmida e sombria abóbada do vergel; um sabiá, pousado na mais alta grimpa da paineira, mandava ao longe os ecos do seu hino preguiçosamente cadenciado, com que parece estar acalentando a natureza prestes a adormecer debaixo das asas próprias da noite.

Os meninos caídos e taciturnos olhavam em derredor de si com tristeza. Pela primeira vez, cismas saudosas, anuviadas de um leve toque de melancolia, pairavam sobre aquelas frontes infantis. Dir-se-ia que, nos vagos rumores do fim do dia, estavam ouvindo o derradeiro adeus do gênio prazenteiro da meninice, e que, no dúbio clarão róseo que afogueava ainda a orla extrema do ocidente, entreviam o último sorriso da aurora da existência.

Foi Margarida quem interrompeu aquele triste silêncio.

- Meu Deus! - exclamou ela - o que estamos aqui fazendo embasbacados? Há que tempo o sol já entrou, Eugênio! Está ficando muito tarde. Vamos! vamos... toca as vacas.

- Eia! Dourada!... eia!... Minerva!... Duquesa!... eia!... eia!...

Eugênio correu a abrir a pequena tronqueira das vacas, que ficava além da ponte. Apartados os bezerros e passadas as vacas, Eugênio tornou a fechá-la. Passando um braço sobre o ombro de Margarida, e esta enlaçando com o seu a cintura do companheiro, foram voltando calados e ainda sob a mesma impressão de tristeza, tangendo diante de si os bezerros até a casa de Umbelina, a uns quinhentos passos de distância.

Margarida recolheu-se a casa, e Eugênio, enfiando o caminho por onde viera, ganhou de novo a ponte e a tronqueira, deitou-se a correr pelo rincão afora dirigindo-se para a fazenda que ficava a meia légua de distância.

Fonte:
Bernardo Guimarães. O Seminarista.

Dáguima Collection - Trova 2

Fonte:
Facebook da autora

Antologia Poética do Jovem Escritor II

Poemas do Ensino Médio

ANTÔNIO DUARTE CABRA
Ensino Médio da Escola Particular Pequeno Príncipe

E se o mundo acabasse amanhã?

Ainda que tentássemos fazer a nossa parte
Ainda que pudéssemos ajudar esse planeta tênue
Mesmo que os insolentes homens se conscientizassem
Será que o planeta permaneceria incólume?

Será que nós poderíamos suscitar uma nova força
Transformar essa humanidade pernóstica
Garantir um futuro melhor para todos?
Ainda assim, seria um grande desafio
É! Desafio! É o que a humanidade realmente precisa
Buscar novos horizontes, dar a volta por cima.
Mostrar que temos o poder para mudar o mundo
E na maior expectativa, poder perscrutar o que é realmente perene.
Podendo assim ser dignos de viver nesse mundo.
Isso mesmo! Tente, faça, e mesmo que não consiga, continue tentando.
Dê o seu melhor
Não deixe que o ambiente em que vive acabe assim tão facilmente.

Afinal, quem ama, preserva!

MARIA LUIZA GUIMARÃES COELHO
Ensino Médio da Escola Particular Pequeno Príncipe

Apenas recordações

Saudades de um tempo que jamais voltará.
Onde os pastos eram verdes,
E ouvíamos pássaros cantantes
As florestas vívidas
E uma natureza exuberante.

O ar puro e limpo
As árvores e a sombra fresca
A água doce e cristalina
A flora bela, a fauna rica,
Retratam sua beleza.

O homem possui desejos
E por estes o ambiente desmata.
Constrói casas e edifícios
E com seu egoísmo,
Não pensa em mais em nada.

O meio ambiente,
Por cuidados hoje implora
Será que o homem não percebe?
Deste, ele só explora.

As paisagens já não são belas
Os pássaros, hoje já não cantam,
As matas já não são mais verdes,
A fauna rica? Hoje não existe mais.
A poluição tomou conta.
A natureza de antes, não voltará jamais.

Agora, o que nos resta,
É o pouco que temos de preservar
Para que este bem tão precioso
De vez não se acabar!

PEDRO QUEIROZ
Ensino Médio da Escola Técnica de Formação Gerencial

Aclamação à natureza

Oh natureza!
Quão triste estás tu
Sem teu verde e o azul
Do teu rio seminu.

Que triste que é ver
Tuas matas à mercê
Do homem na ganância
No dinheiro, sua ânsia.

Sem limites ou compaixão,
Tua vida é exterminada
Com dor e ambição
No princípio da alvorada.

Mas alguns se erguem
Da defesa se servem
Em busca da condenação
Aos que ferem teu coração.

Oh natureza chorosa!
Não lance sobre os inocentes,
A ira de perda dolorosa
Criada pelos homens imprudentes.

Enquanto os homens se esquecem
Que do teu fogo é que se aquecem
Suplica–lhes paciência
E que nossa lição se dê com clemência.

Por fim, eu te faço
A última confissão
Que por Deus eu trago
Teu amor no coração!

BRENDA BATISTA BURMANN
Ensino Médio da Escola Estadual Ione Lewick Cunha Melo

A criação de Deus
 

Deus criou o mundo
Com toda perfeição
O homem com toda sua ignorância
Está destruindo tudo
Sem dar satisfação.

O homem sem perceber
Esta grande perfeição
Não está enxergando o meio ambiente
Acabando com tudo
Para satisfazer a sua ambição.

Criou Deus também os animais
Com infinita inspiração
Cada um para servir o outro
Tornando assim
Uma boa habitação.

Os pássaros voam no céu
Alegrando–nos com sua melodia
As flores com toda sua beleza
Vêm nos trazer harmonia.

Muitos benefícios o meio ambiente nos traz
Por isso não vamos o destruí–lo
Vamos cuidar bem dele
Porque sem ele
Não iremos resistir.

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

Machado de Assis (A Viúva Sobral)

CAPITULO I

— Explico-me.

— Mas explica-te refrescando a goela. Queres um sorvete? Vá, dois sorvetes. Traga dois sorvetes... Refresquemo-nos, que realmente o calor está insuportável. Estiveste em Petrópolis.

— Não.

— Nem eu.

— Estive no Pati do Alferes, imagina por quê? — Não posso.

— Vou...

— Acaba.

— Vou casar.

Cesário deixou cair o queixo de assombro, enquanto o Brandão saboreava, olhando para ele, o gosto de ter dado uma novidade grossa. Vieram os sorvetes, sem que o primeiro saísse da posição em que a notícia o deixou; era evidente que não lhe dava crédito.

— Casar? repetiu ele afinal, e o Brandão respondeu-lhe com a cabeça que sim, que ia casar. Não, não, é impossível.

Estou que o leitor não sente a mesma incredulidade, desde que considera que o casamento é a tela da vida, e que toda a gente casa, assim como toda a gente morre. Se alguma coisa o enche de assombro é o assombro de Cesário. Tratemos de explicá-lo em cinco ou seis linhas.

Viviam juntos esses dois rapazes desde os onze anos, e mais intimamente desde os dezesseis. Contavam agora vinte e oito. Um era empregado no comércio, outro da alfândega. Tinham uma parte da vida comum, e comuns os sentimentos. Assim é que ambos faziam do casamento a mais deplorável idéia, com ostentação, com excesso, e para afirmá-lo, viviam juntos a mesma vida solta. Não só entre eles deixara de haver segredo, mas até começava a ser impossível que o houvesse, desde que ambos davam os mesmos passos, de um modo uníssono. Começa a entender-se o espanto do Cesário.

— Dá-me a tua palavra que não estás brincando? — Conforme.

— Ah! — Quando eu digo que vou casar, não quero dizer que tenho a dama pedida; quero dizer que o namoro está a caminho, e que desta vez é sério. Resta adivinhar quem é.

— Não sei.

— E foste tu mesmo que me levaste lá.

— Eu? — É a Sobral.

— A viúva? — Sim, a Candinha.

— Mas...? Brandão contou tudo ao amigo. Cerca de algumas semanas antes, Cesário levara-o à casa de um amigo do patrão, um Viegas, comerciante também, para jogar o voltarete; e ali acharam, pouco antes chegada do Norte, uma recente viúva, D. Candinha Sobral. A viúva era bonita, afável, dispondo de uns olhos que os dois concordaram em achar singulares. Os olhos, porém, eram o menos. O mais era a reputação de mau gênio que esta moça trazia. Disseram que ela matara o marido com desgostos, caprichos, exigências; que era um espírito absoluto, absorvente, capaz de deitar fogo aos quatro cantos de um império para aquecer uma xícara de chá. E, como sempre acontece, ambos acharam que, a despeito das maneiras, lia-se-lhe isso mesmo no rosto; Cesário não gostara de um certo jeito da boca, e o Brandão notara-lhe nas narinas o indício da teima e da perversidade. Duas semanas depois tornaram a encontrar-se os três, conversaram, e a opinião radicou-se. Eles chegaram mesmo à familiaridade da expressão: — má rês, alma de poucos amigos, etc.

Agora entende-se, creio eu, o espanto do amigo Cesário, não menos que o prazer do Brandão em dar-lhe a notícia. Entende-se, portanto, que só começassem a tomar os sorvetes para não vê-los derretidos, sem nenhum deles saber o que estava fazendo.

— Juro que há quinze dias não era capaz de cuidar nisto, continuava o Brandão; mas os dois últimos encontros, principalmente o de segunda-feira... Não te digo nada... Creio que acabo casando.

— Ah! crês! — É um modo de falar, é certo que acabo.

Cesário acabou o sorvete, engoliu um cálice de cognac, e fitou o amigo, que raspava o copo, amorosamente. Depois fez um cigarro, acendeu-o, puxou duas ou três fumaças, e disse ao Brandão que ainda esperava vê-lo recuar; em todo caso, aconselhava-lhe que não publicasse desde já o plano; esperasse algum tempo. Talvez viesse a recuar...

— Não, interrompeu Brandão com energia.

— Como, não? — Não recuo.

Cesário levantou os ombros.

— Achas que faço mal? pergunta o outro.

— Acho.

— Por quê? — Não me perguntes por quê.

— Ao contrário, pergunto e insisto. Opões-te por causa de ser casamento.

— Em primeiro lugar.

Brandão sorriu.

— E por causa da noiva, concluiu ele. Já esperava por isso; estás então com a opinião que ambos demos logo que ela chegou da província? Enganas-te. Também eu estava; mas mudei...

— E depois, continuou Cesário, falo por um pouco de egoísmo; vou perder-te...

— Não.

— Sim e sim. Ora tu!... Mas como foi isso? Brandão contou os pormenores do negócio; expôs minuciosamente todos os seus sentimentos. Não a pedira ainda, nem havia tempo para tanto; a própria resolução não estava formulada. Mas tinha por certo o casamento. Naturalmente, louvou as qualidades da namorada, sem convencer ao amigo, que, aliás, entendeu não insistir na opinião e guardá-la consigo.

— São simpatias, dizia ele.

Saíram depois de longo tempo de conversação, e separaram-se na esquina. Cesário mal podia crer que o mesmo homem, que antipatizara com a viúva e dissera dela tantas coisas e tão grotescas, quinze dias depois estivesse apaixonado ao ponto de casar. Puro mistério! E resolvia o caso na cabeça, e não achava explicação, não se tratando de um criançola, nem de uma descomunal beleza. Tudo por querer achar, à força, uma explicação; se não a procurasse, dava com ela, que era justamente nenhuma, coisa nenhuma.

CAPITULO II

Emendemos o Brandão. Contou ele que os dois últimos encontros com a viúva, aqui na corte, é que lhe deram a sensação do amor; mas a verdade pura é que a sensação só o tomou inteiramente no Pati do Alferes, de onde ele acaba de chegar. Antes disso, podia ficar um pouco lisonjeado das maneiras dela, e ter mesmo alguns pensamentos; mas o que se chama sensação amorosa não a teve antes. Foi ali que ele mudou de opinião a respeito dela, e se deixou cair nas graças de uma dama, que diziam ter matado o marido com desgostos.

A viúva Sobral não tinha menos de vinte e sete anos nem mais de trinta; ponhamos vinte e oito. Já vimos o que eram os olhos; — podiam ser singulares, como eles diziam, mas eram também bonitos. Vimos ainda um certo jeito da boca, mal aceito ao Cesário, enquanto as narinas o eram ao Brandão, que achou nelas o indício da teima e da perversidade. Resta mostrar a estatura, que era muito elegante, e as mãos, que nunca estavam paradas. No baile não lhe notou o Brandão esta última circunstância; mas no Pati do Alferes, na casa da prima, familiarmente e a gosto, achou que ela movia as mãos sempre, sempre, sempre. Só não atinou com a causa, se era uma necessidade, um sestro, ou uma intenção de mostrá-las, por serem lindas.

No terceiro dia, começou o Brandão a perguntar onde estava a maldade do gênio de D.

Candinha. Não achava nada que pudesse dar indício dela; via-a alegre, dada, conversada, ouvindo as coisas com muita paciência, e contando anedotas do Norte com muita graça. No quarto dia, os olhos de ambos andaram juntos, não se sabendo unicamente se foram os dele que procuraram os dela, ou vice-versa; mas andaram juntos.

De noite, na cama, o Brandão jurava a si mesmo que era tudo calúnia, e que a viúva tinha mais de anjo que de diabo. Dormiu tarde e mal. Sonhou que um anjo vinha ter com ele e lhe pedia para trepar ao céu; trazia a cara da viúva. Ele aceitou o convite; a meio caminho, o anjo pegou das asas e cravou-as na cabeça, à laia de pontas, e carregou-o para o inferno. Brandão acordou transpirando muito. De manhã, perguntou a si mesmo: — Será um aviso? Evitou os olhos dela, durante as primeiras horas do dia; ela, que o percebeu, recolheu-se ao quarto e não apareceu antes do jantar. Brandão estava desesperado, e deu todos os sinais que podiam exprimir o arrependimento e a súplica do perdão. D. Candinha, que era uma perfeição, não fez caso dele até à sobremesa; à sobremesa começou a mostrar que podia perdoar, mas ainda assim o resto do dia não foi como o anterior. Brandão deu-se a todos os diabos. Chamou-se ridículo. Um sonho? Quem diabo acredita em sonhos? No dia seguinte tratou de recuperar o perdido, que não era muito, como vimos, tão somente alguns olhares; alcançou-o para a noite. No outro estavam as coisas restabelecidas. Ele lembrou-se então que, durante as horas de frieza, notara nela o mau jeito da boca, o tal, o que lhe dava indício da perversidade da viúva; mas tão depressa o lembrou, como rejeitou a observação. Antes era um aviso, passara a ser uma oportunidade.

Em suma, voltou no princípio da seguinte semana, inteiramente namorado, posto sem nenhuma declaração de parte a parte. Ela pareceu-lhe ficar saudosa. Brandão chegou a lembrar-se que a mão dela, à despedida, estava um pouco trêmula; mas, como a dele também tremia, não se pode afirmar nada.

Só isto. Não havia mais do que isto, no dia em que ele referiu ao Cesário que ia casar.

Que não pensava senão no casamento, era verdade. D. Candinha voltou para a corte daí a duas semanas, e ele estava ansioso por vê-la, para lhe dizer tudo, tudo, e pedi-la, e levá-la à igreja. Chegou a pensar no padrinho: seria o inspetor da alfândega.

Na alfândega, notaram-lhe os companheiros um certo ar distraído, e às vezes, superior; mas ele não disse nada a ninguém. Cesário era o confidente único, e antes não fosse único; ele procurava-o todos os dias para lhe falar da mesma coisa, com as mesmas palavras, e inflexões. Um dia, dois dias, três dias, vá; mas sete, mas quinze, mas todos! Cesário confessava-lhe, rindo, que era demais.

— Realmente, Brandão, tu estás que pareces um namorado de vinte anos...

— O amor nunca é mais velho, redarguiu o outro; e, depois de fazer um cigarro, puxar duas fumaças, e deixá-lo apagar, continuava a repetição das mesmas coisas e palavras, com as mesmíssimas inflexões.

CAPITULO III


Vamos e venhamos: a viúva gostava um pouco do Brandão; não digo muito, digo um pouco, e talvez muito pouco. Não lhe parecia grande coisa, mas sempre era mais que nada. Ele fazia-lhe amiudadas visitas e olhava muito para ela; mas, como era tímido, não lhe dizia nada, não chegava a planejar uma linha.

— Em que ponto vamos, em suma? Perguntava-lhe o Cesário um dia, fatigado de só ouvir entusiasmos.

— Vamos devagar.

— Devagar? — Mas com segurança.

Um dia recebeu Cesário um convite da viúva para lá ir a uma reunião familiar: era lembrança do Brandão, que foi ter com ele e pediu-lhe instantemente que não faltasse.

Cesário sacrificou o teatro nessa noite, e foi. A reunião esteve melhor do que ele esperava; divertiu-se muito. Na rua disse ele ao amigo: — Agora, se me permites franqueza, vou chamar-te um nome feio.

— Chama.

— Tu és um palerma.

— Viste como ela olhava para mim? — Vi, sim, e por isso mesmo é que acho que estás botando dinheiro à rua. Pois uma pessoa assim disposta... Realmente és um bobo.

Brandão tirou o chapéu e coçou a cabeça.

— Para falar a verdade, eu mesmo já tenho dito essas coisas, mas não sei que acho em mim, acanho-me, não me atrevo...

— Justamente; um palerma.

Andaram ainda alguns minutos calados.

— E não te parece esplêndida? perguntou o Brandão.

— Não, isso não; mais bonita do que a princípio, é verdade; fez-me melhor impressão; esplêndida é demais.

Quinze dias depois, viu-a o Cesário em casa de terceiro, e pareceu-lhe que ainda era melhor. Daí começou a frequentar a casa, a pretexto de acompanhar o outro, e ajudá-lo, mas realmente porque começava a olhá-la com olhos menos desinteressados. Já aturava com paciência as longas confissões do amigo; chegava mesmo a procurá-las.

D. Candinha percebeu, em pouco tempo, que em vez de um, tinha dois adoradores. Não era motivo de pôr luto ou deitar fogo à casa; parece mesmo que era caso de vestir galas; e a rigor, se alguma falha havia, era que eles fossem dois, e não três ou quatro. Para conservar os dois, D. Candinha usou de um velho processo: dividindo com o segundo as esperanças do primeiro, e ambos ficavam entusiasmados. Verdade é que o Cesário, posto não fosse tão valente, como dizia, era muito mais que o Brandão. De maneira que, ao cabo de algumas dúzias de olhares, apertou-lhe a mão com muito calor. Ela não a apertou de igual modo, mas também não se deu por zangada, nem por achada.

Continuou a olhar para ele. Mentalmente, comparava-os: Um dia o Brandão descobriu um olhar trocado entre o amigo e a viúva. Naturalmente ficou desconsolado, mas não disse nada; esperou. Daí a dias notou mais dois olhares, e passou mal a noite, dormiu tarde e mal; sonhou que matara ao amigo. Teve a ingenuidade de contá-lo a este, que riu muito, e disse-lhe que fosse tomar juízo.

— Você tem coisas! Pois bem; somos concordes nisto: — deixo de voltar à casa dela...

— Isso nunca! — Então que queres? — Quero que me digas, francamente, se gostas dela, e se vocês se namoram.

Cesário declarou-lhe que era uma simples fantasia dele, e continuou a namorar a viúva, e o Brandão também, e ela aos dois, todos com a maior unanimidade.

Naturalmente as desconfianças reviveram, e assim as explicações, e começaram os azedumes e as brigas. Uma noite, ceando os dois, de volta da casa dela, estiveram a ponto de brigar formalmente. Mais tarde separaram-se por dias; mas como o Cesário teve de ir a Minas, o outro reconciliou-se com ele à volta, e dessa vez não instou para que tornasse a frequentar a casa da viúva. Esta é que lhe mandou convite para outra reunião; e tal foi o princípio de novas contendas.

As ações de ambos continuavam no mesmo pé. A viúva distribuía as finezas com igualdade prodigiosa, e o Cesário começava a achar que a complacência para com o outro era longa demais.

Nisto apareceu no horizonte uma pequenina mancha branca; era algum navio que se aproximava com as velas abertas. Era navio e de alto bordo; — um viúvo, médico, ainda conservado, que entrou a cortejar a viúva. Chamava-se João Lopes. Já então o Cesário tinha arriscado uma carta, e mesmo duas, sem obter resposta. A viúva foi passar alguns dias fora, depois da segunda; quando voltou, recebeu terceira, em que o Cesário lhe dizia as coisas mais ternas e súplices. Esta carta deu-lha em mão.

— Espero que me não conservará mais tempo na incerteza em que vivo. Peço-lhe que releia as minhas cartas...

— Não as li.

— Nenhuma? — Quatro palavras da primeira apenas. Imaginei o resto e imaginei a segunda.

Cesário refletiu alguns instantes: depois disse com muita discrição: — Bem; não lhe pergunto os motivos, porque sei que me hão de desenganar; mas eu não quero ser desenganado. Peço-lhe uma só coisa.

— Peça.

— Peço-lhe que leia esta terceira carta, disse ele, tirando a carta do bolso; aqui está tudo o que estava nas outras.

— Não... não...

— Perdão; pedi-lhe isto, é um favor último; juro que não tornarei mais.

D. Candinha continuou a recusar; ele deixou a carta no dunquerque, cumprimentou-a e saiu. A viúva não desgostou de ver a obstinação do rapaz, teve curiosidade de ler o papel, e achou que o podia fazer sem perigo. Não transcrevo nada, por que eram as mesmas coisas de todas as cartas de igual gênero. D. Candinha resolveu dar-lhe resposta igual à das primeiras, que era nenhuma.

Cesário teve o desengano verbal, três dias depois, e atribuiu-o ao Brandão. Este aproveitou a circunstância de achar-se só para dar a batalha decisiva. É assim que ele chamava a todas as escaramuças. Escreveu-lhe uma carta a que ela respondeu deste modo: Devolvo o bilhete que me entregou ontem, por engano, e desculpe se li as primeiras palavras; afianço-lhe que não vi o resto.

O pobre-diabo quase teve uma congestão. Meteu-se na cama três dias, e levantou-se resolvido a voltar lá; mas a viúva tornara a sair da cidade Quatro meses depois casava ela com o médico. Quanto ao Brandão e o Cesário, que estavam já brigados, nunca mais se falaram; criaram ódio um ao outro, ódio implacável e mortal. O triste é que ambos começaram por não gostar da mesma mulher, como o leitor sabe, se lembra-se do que leu.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

sábado, 22 de março de 2014

Antonio Brás Constante (E tudo começou no braço...)

Na vida é sempre interessante tentarmos transformar limões em limonada, ou pelo menos em uma boa caipirinha. Neste caso, o limão foi à fisioterapia que iniciei no braço esquerdo (mais uma doença em minha coleção particular), transformada no texto que você está começando a ler agora.

Para se tratar de um braço com tendinite, um bom lugar é em uma clínica de fisioterapia. Um local parecido com uma academia de ginástica, pois conta com apetrechos para prática de exercícios, mas que dividem espaço com estranhos equipamentos eletrônicos. Outra diferença é que ao invés de instrutores vestidos em roupas esportivas, encontramos ali atendentes usando jalecos brancos. Para minha sorte, fui atendido por gente simpática e competente, como a jovem fisioterapeuta Berta e de seu fiel escudeiro e auxiliar Luciano. Eram eles que decidiam em qual máquina os pacientes deveriam padecer primeiro (para mim “padecer” significava ficar preso aos tais equipamentos, com os olhos livres para ler todas as revistas que eu pudesse arrebanhar da sala de espera).

De todas as máquinas utilizadas em meu tratamento, a que tinha mais botões, mais fios ligados ao meu braço (que era antes lambuzado com gel), e que demorava mais tempo presa ao corpo (uns vinte minutos), era uma belezinha chamada TNS. Sendo a única que demonstrava surtir algum efeito positivo, pois causava algo parecido com um formigamento (sem a necessidade de colocar o braço num formigueiro). Tal benefício suscitou à vontade de utilizá-la de uma forma mais prolongada. Um aparelho assim em casa poderia ser melhor do que muita aspirina. Bastaria deixá-lo ligado ao braço lesionado, posicionar uma caixa de isopor cheio de cervejas ao alcance do outro braço, adicionar a este cenário um confortável sofá, uma almofada e uma televisão, e o tratamento ficaria perfeito.

Para por essa ideia em prática, o primeiro passo foi verificar com a turma da fisioterapia se aquilo era viável. Mas, para minha tristeza, a explicação dada foi de que o aparelho não curava nada, atuando somente no combate a dor. Na verdade, eram os outros aparelhos (que eu tanto desprezei), que traziam melhorias ao problema.

Pensei em argumentar, que se talvez utilizássemos algum tipo inovador de catalisador misturado ao gel, como por exemplo, o pó das tais pedras de criptonita descobertas recentemente, o TNS não poderia surtir efeitos mais milagrosos (lembro que no seriado SMALLVILLE, isto sempre dava certo). Caso isso acontecesse, ele poderia ser empregado em várias enfermidades, tais como a diarréia, a caspa, a gripe, o mau-olhado, a urucubaca entre outras moléstias que existem por aí. Quem sabe até atuar na cura de uma das maiores doenças da humanidade, a corrupção.

Mas preferi não arriscar este tipo de ideia. Afinal, pior do que ter uma dor no braço, é acabar sendo forçado a começar um outro tipo de tratamento, algo somente realizado em locais especiais, também conhecidos como clínicas psiquiátricas.

Fonte:
http://www.recantodasletras.com.br/humor/547350

Dáguima Collection [Trova 1]


Paulo Setúbal (O Príncipe de Nassau)

- Às armas!

A guarda do Palácio de Friburgo acudiu prestes ao grito da sentinela. Soou um toque áspero de clarim. Rufaram as caixas com estrépito. Os soldados holandeses, com os chapelões de plumas, bateram forte as alabardas no chão: Maurício de Nassau, o Príncipe magnífico, surgiu no pórtico do palácio. Sua Alteza, como de costume, saía para o passeio da tarde.

Fora, no pátio, os cavalos estavam prontos. Estrembon, pajem e camareiro, precipitou-se a segurar as rédeas do alazão. Era o cavalo mais belo de Pernambuco, o mais árdego dentre os trinta que o Príncipe tinha habitualmente nas cavalariças.

Maurício, desempenado e ágil, galgou a sela. Carlos Tourlon, Capitão da Guarda, também montou. Seguiram-se duas ordenanças. O Governador de Pernambuco trotou galhardamente para a Cidade Maurícia.

Nassau, naquela tarde, estava radioso. Alegria radiosa, dessas que sacodem a gente, embriagava a sua alma de soldado. É que nessa manhã, ribombando, por entre fragorosas surriadas de mosqueteiros, entrou barra a dentro uma nau louçã, muito garrida, com grandes embandeirados no velame. Vinha da Bahia. Vinha comissionada especialmente pelo Vice-Rei do Brasil, o mui alto e poderoso Senhor Marquês de Montalvão, para trazer a Maurício, numa embaixada de gala, esta nova alvoroçante: Portugal, vencendo a Espanha, proclamara enfim a sua independência. E D. João, Duque de Bragança, fora aclamado rei sob o nome de D. João IV.

Tão alta era a notícia, tão faustosa, que o Príncipe ouvindo-a, arrancou do dedo um anel opulento, onde faiscava baga imensa, dando-o de alvíssaras ao piloto João Lopes, o mensageiro afortunado.

Essa brusca reviravolta política significava, de fato, imediato paradeiro às lutas do Brasil. Era a paz entre Holanda e Portugal. Mais do que a paz: era a aliança forçada entre os dois países para combaterem a Espanha, agora inimigo comum.

Nesse dia, além da nova assim emocionante, havia ainda, para afestoar o coração do Príncipe, certo recado de Montalvão, vindo pela segunda vez, recado secreto, muito confidencial, que significava o triunfo mais envaidecedor do guerreiro político.

Montalvão, ao assumir o governo na Bahia, isso há meses já, houvera feito velejar dois emissários para a Cidade Maurícia. Um fora João Martins Ferreira; outro, Pedro de Arenas. Trouxeram ambos a Nassau, com insufladoras cortesanices, um alto bastão de ouro maciço, cravejado de muita pedraria de preço. Com esse regalo, primor de fidalguia, chegara também, entre fechados sigilos, aquele misterioso recado, recado secreto, muito confidencial, que lisonjeara fundo o orgulho do Príncipe...

Naquele dia, com a embaixada que descera no porto, Montalvão repetira o recado. Que recado era aquele? Ninguém sabia. Mas, o certo é que, naquela tarde, com o coração pálpite, Maurício partiu, entre toques e rufes, para o passeio de costume.

Atravessou o vasto parque de Friburgo, onde frondejavam setecentas palmeiras. Meteu-se pela Cidade Maurícia. Cortou a Praça dos Coqueiros. Desembocou na Ponte do Recife.

Os moradores de Maurícia eram holandeses e judeus. Ao ouvirem o pateado dos cavalos, aqueles homens de língua estranha, muito ruivos, vestidos com gibões de saragoça, corriam atarantados às portas das casas,
desbarreteando-se à passagem do séquito.

Ao pé da ponte, junto à correnteza do Capiberibe, ficava a taberna do velho Snider. Um magote de flamengos, com o taberneiro à frente, vermelhos e desordenados, copos na mão, saiu à rua tumultuosamente, a bradar com efusão:

- Viva o nosso Príncipe!

Maurício sorriu. Do alto da sela, com um gesto condescendente, agradeceu
aos berradores. Novos vivas, grande alarido.

Nassau atravessou por entre aquele bando fremente. Ao entrar na ponte, virou-se para o Capitão da Guarda:

- Não parece que estão borrachos, Carlos Tourlon?

- Tontos de vinho devem andar eles, Príncipe! Hoje, foi dia de festa na taberna de Snider...

- Festa? redargüiu Maurício admirado; festa? E por qual razão, Carlos de Tourlon?

- Vossa Alteza não sabe? Por um motivo grave, tornou o capitão: é que os escabinos decidiram a demanda que Snider pôs contra Manuel Felipe, aquele lavrador de canas. Vossa Alteza não se lembra? Aquela demanda por causa do macho gateado que esteve na pastaria de João Fernandes Vieira.

- Ah! Lembro-me muito bem. E então?

- Snider ganhou a querela. Foi Manuel Filipe condenado a pagar o preço do macho e as custas: setecentos e muitos florins!

- Feia coisa, exclamou Maurício, franzindo o sobrolho. Pesada injustiça! Foi uma decisão má dos escabinos...

A comentarem o caso, num trote manso, os cavaleiros atravessaram a ponte. Entraram cm Recife, a cidade velha. Tudo aí eram portugueses e mamelucos. A essa hora, nesse afogueado cair da tarde, os escravos do senhorio rico, uns chatos negrões de Angola, dentro de suas pantalonas de tela de Flandres, passavam aos bandos, carregando água doce, gotejantes, com enormes cacimbas à cabeça. Índios mansos, tapuias e potíguaras, voltavam dos engenhos e das lavouras, as foices roçadeiras ao ombro, o ar suarento de cansaço.

O Príncipe tocou pela cidadezinha. Cortou-a de ponta a ponta. Depois, sem dizer palavra, enveredou rumo da praia. Pôs-se a trotar vagarosamente pela areia branca. Todos seguiam-no, calados. De repente, num cômoro Maurício de Nassau estacou o ginete. Aí, diante dos seus olhos, estendia-se, largo e belo, um panorama surpreendente.

Que maravilha! Ao longe, muito ao longe, no fundo do horizonte, um grande sol, fulvo e sangrento, atufava-se em chamas como um incêndio. E grossas brochadas de luz, brochadas quentes e uivantes, zebravam de listrões assanhados aquele céu candente dos trópicos.

Maurício de Nassau, embevecido, virou-se para a banda do mar. E soltou pela vastidão das águas um olhar feliz e vitorioso.

Ali estava a seus pés, corcovado de vagas, o férvido oceano espumarento, que os Estados a custo subjugaram. Ali estava, arrepiada em morros, a  imensa terra brasileira, seis ásperas capitanias, inchadas de muito gentio emplumado, que ele, Maurício, com a sua espada, acabava de conquistar galhardamente, debaixo da saraivada das flechas e do estrondo dos pelouros.

Fora lá, nessas águas e nessas terras, que se derramara tanta vez, aos gorgolões, o sangue batavo! Fora lá pelas angras do sul, na Bahia de Todos os Santos, que um dia, pela primeira vez, arribaram por estas bandas, com as flâmulas vermelhas panejando nos mastaréus, as grandes naus côncavas de Jacob Willekens. Fora lá, naquelas mesmas abras, que também fundeara um dia, calada e inútil, a frota assustadiça de Hendrickzoon.

E fora aqui, diante dos seus olhos, nas águas crespas do Arrecife, que aportara enfim, garbosamente, por entre os roncos do canhoneio, a armada triunfadora de Loneq: fora aqui que desembarcaram, nas suas pinaças bojudas, os soldados que ganharam para a Holanda a terra nova.

Quanto sangue jorrado! Quanta desesperada luta! Mas hoje - e o olhar do Príncipe corria ufano os longes do horizonte - mas hoje, por esse infinito além, por esse costão selvagem que o mar lambia, espumejando, tremulavam afinal, nos fortins e no velame dos patachos, as cores dos Estados! E era agora daqui, destes brasis longínquos, que partiam para os depósitos de Amsterdam, inundando-os, aqueles brutos galeões prenhes de açúcar macho; aqueles veleiros de garbosa mastreama, largos e sólidos, abarrotados de pau-brasil de tinta; aquelas fundas barcaças que zarpavam túrgidas de tabacos e de papagaios. Era daqui da terra nova, que ele, Maurício, mandara à pátria, todos os anos trezentos mil florins de décimas, setecentos mil de pensões, afora os dois milhões de lucros na venda dos engenhos e quase seiscentos belos caravelões aprisionados.

A política do Príncipe, desde o início do governo, fora a política de conciliação. Era de ver-se os frutos dela! Que prodígio!

Lá em baixo, na ilha de Antônio Vaz, florescia, nova, os telhados ainda vermelhos, aquela famosa Cidade Maurícia, o assombro da época, com o seu belo Palácio de Friburgo, com as pontes de rijo tabuado, as grossas fortalezas, roqueiras, as ruelas pitorescamente ensombradas de árvores e regadas de águas cantantes. Depois, em frente dela, o Recife; aquele Recife antigo, tradicional, onde os velhos homens da terra tinham as suas moradas alterosas de boa taipa, os tratantes judeus as suas escuras lojas de moeda e de mercância.

Lá estava, à sombra dos falcões de bronze dos fortes, a casa de pedra de João Blaar, o sangrento general de Holanda. Rente dela, com as portas de rótula, a casinha de Frei Manuel do Salvador, o cura jeitoso e politicão, reinol de muitas letras e de muitas lábias. Além, toda de madeira pintada, como em Flandres, a chácara de Gilberto Van Dirth, flamengo apelintrado, um dos três do Conselho Político. Depois, entre coqueiros, o casarão de Gaspar Dias Ferreira, tremendo velhaco, rabulejador e patoteiro, o mais querido dos amigos do Príncipe. E não era só. Lá se viam pela cidade, chatas, nuas de enfeites, as moradas de todos os principais do país: a de João Fernandes Vieira, altíssima personagem da terra, mercante afortunado e rico; a de Antônio Bezerra, velho moedor de canas, pessoa de grandes teres e de grande vida; a de Antônio Cavalcanti, sombrio inimigo de João Fernandes, homem emproado, imensamente ensoberbecido do seu sangue e da sua linhagem; a de Sebastião de Carvalho, lavrador de pau-de-tinta, sujeito estranho, de poucas falas, devotado parceiro dos holandeses...

Maurício, da praia, contemplava, orgulhoso, o panorama soberbo. Com um sorriso, o coração inflado, não pôde reprimir-se:

Como isto é belo, Carlos Tourlon! Como é formosa esta terra! É a mais formosa terra do mundo...

A tarde caíra. Tarde abafada, tarde languescedora, tropical. Ao longe, no porto, as naus adormentavam-se tranqüilas, numa doce quietude, como pássaros enormes pousados à flor das águas. Apenas uma pinaça, velas abertas, balouçava-se agitada, com muita escravaria correndo dentro dela. O Príncipe notou aquele açodamento. E apontando para o barco:

- É o patacho de Israel Voss?

- É, Príncipe. Ainda está a carregar. Veleja amanhã cedo para Cabedelo. Vai nele Segismundo Starke, levando os barris de pólvora que Vossa Alteza manda à Paraíba.

- É verdade atalhou Maurício. Elias Erckmann está com munição escassa. E é preciso não descuidar! Henrique Dias e Camarão andam por aí de emboscada em emboscada. É preciso ter cautela...

Nassau esporeou o alazão. Virou as rédeas. Os do séquito acompanharam-no.

Tombara uma serenidade empolgante. Andavam rumores estranhos pelo ar. Branquejavam o azul, de vez em quando, asas de gaivota. Tiniam pios. Prodigioso cair de tarde...

Os cavaleiros marchavam em silencio. Entraram de novo pelas ruas do Recife. Atravessaram a ponte. De súbito, ao penetrar na Cidade Maurícia, a comitiva topou de chofre com Frei Manuel do Salvador (1).

O religioso, metido na sua loba poeirenta, chapéu negro de aba larga, lá se ia pela estrada, cismarento, montado num burrinho filosófico. Nassau, ao vê-lo, gritou logo num alvoroço:

- Olá, Frei Manuel! Viva! Então Vosmecê ai a caminhar tão pachorrento. Num burrico desses! Aonde vai Vosmecê assim, meu padre, nessa cavalgadura tão derreada?

Frei Manuel desbarreteou-se e, sorrindo com jovialidade, retrucou:

- Deus o salve e guarde, Príncipe! Mas não mofe Vossa Alteza assim do meu rocim. Estou que Vossa Alteza, nas suas cavalariças, com os seus trinta cavalos, não tem alimária mais segura. Aquilo é sempre assim, sempre neste passo, sem corcovos. nem bufos, mas sempre a carregar onde me apraz. Ainda agora, como Vossa Alteza vê, sigo eu para o engenho de João Fernandes Vieira. Vou dar dois dedos de prosa com o velho amigo.

- Vosmecê vai ao Engenho de Várzea? tornou Maurício. Pois é favor, Frei Manuel, dizer a João Fernandes que anda muito arredio. Não há quem mais o veja cá por Maurícia! Que é que sucedeu? Será que João Fernandes, depois que apalavrou o casamento das cunhadas com os filhos de Antônio Cavalcanti, se tornou bicho de toca? Ora... valha-nos Deus! Pois diga-lhe, padre, que deixe de casmurrice e que apareça. Quero felicitá-lo por esse gosto.

- Direi, Príncipe. Direi a João Fernandes que venha logo à Cidade Maurícia; e mais ainda, isto sim, que venha sentar-se à mesa do seu amigo, o Príncipe de Nassau, a fim de bebericarem juntos uma botelha daquele vinho encorpado de Holanda, que há nas cubas de Friburgo.

- Isso, Frei Manuel! Diga-lhe isso, tal e qual!

E rindo-se, rindo-se a bom rir, Maurício despediu-se folgazonamente:

- Adeus, frei; boa jornada e boa pressa!

Caíra a noite. Os cavaleiros tocaram apressados. Na casa de pedra de João Blaar, andava rumoroso borborinho. Havia dentro muitas luzes. Largo vozerio de gente. Maurício de Nassau, ao passar, espantou-se com tanta bulha:

- Que é aquilo, Carlos Tourlon? Hoje também há festa em casa de João Blaar?

- Festa, sim, Príncipe; e festa grande! É que estão lá a brindar o ajuste do casamento de Segismundo Starke com Carlota Haringue. Segismundo parte amanhã, no patacho de Israel Voss, a levar os barris de pólvora para Cabedelo. Por isso a festa dos esponsais é hoje; o casamento fica para a volta.

Maurício olhou o Capitão, com surpresa. Os seus olhos fuzilaram, interrogativos. E depois de uma pausa:

- Carlota vai casar-se com Segismundo?

- Vai, Príncipe.

- E Rodrigo, inquiriu Maurício; e Rodrigo, o afilhado de André Vidal de Negreiros?

- Esse, naturalmente, ficará a espera de outra, tornou Carlos Tourlon; desta vez foi Segismundo quem pescou a truta.

- Bela rapariga, em verdade, exclamou Nassau; é a mais bela de todas as que eu tenho visto no Brasil! Nem sei de outra que se lhe compare...

Tinham chegado a Friburgo. Soaram de novo os clarins. Rufaram os tambores. Os soldados bateram forte as alabardas no chão. Maurício saltou da sela. E virando-se para o Capitão:

- Vosmecê deseja ir à festa de João Blaar, Carlos Tourlon?

- Se Vossa Alteza consentir, Príncipe.

- Pois vá. Hoje não careço mais de Vosmecê.

Arremessando as rédeas ao pajem, João Maurício de Nassau, o mui poderoso Príncipe, galgou as escadarias do Palácio de Friburgo.

 Fonte:
http://biblio.com.br/conteudo/paulosetubal/principedenassau.htm

Machado de Assis (A Segunda Vida)

Monsenhor Caldas interrompeu a narração do desconhecido: — Dá licença? é só um instante. Levantou-se, foi ao interior da casa, chamou o preto velho que o servia, e disse-lhe em voz baixa: — João, vai ali à estação de urbanos, fala da minha parte ao comandante, e pede-lhe que venha cá com um ou dois homens, para livrar-me de um sujeito doido. Anda, vai depressa.

E, voltando à sala: — Pronto, disse ele; podemos continuar.

— Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo espaço, até perder a terra de vista, deixando muito abaixo a lua, as estrelas e o sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia mais nada, e era clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei a subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto cresceu, fez-se sol. Fui por ali dentro, sem arder, porque as almas são incombustíveis. A sua pegou fogo alguma vez? — Não, senhor.

— São incombustíveis. Fui subindo, subindo; na distância de quarenta mil léguas, ouvi uma deliciosa música, e logo que cheguei a cinco mil léguas, desceu um enxame de almas, que me levaram num palanquim feito de éter e plumas. Entrei daí a pouco no novo sol, que é o planeta dos virtuosos da terra. Não sou poeta, monsenhor; não ouso descrever-lhe as magnificências daquela estância divina. Poeta que fosse, não poderia, usando a linguagem humana, transmitir-lhe a emoção da grandeza, do deslumbramento, da felicidade, os êxtases, as melodias, os arrojos de luz e cores, uma coisa indefinível e incompreensível. Só vendo. Lá dentro é que soube que completava mais um milheiro de almas; tal era o motivo das festas extraordinárias que me fizeram, e que duraram dois séculos, ou, pelas nossas contas, quarenta e oito horas. Afinal, concluídas as festas, convidaram-me a tornar à terra para cumprir uma vida nova; era o privilégio de cada alma que completava um milheiro. Respondi agradecendo e recusando, mas não havia recusar.

Era uma lei eterna. A única liberdade que me deram foi a escolha do veículo; podia nascer príncipe ou condutor de ônibus. Que fazer? Que faria Vossa Reverendíssima no meu lugar? — Não posso saber; depende...

— Tem razão; depende das circunstâncias. Mas imagine que as minhas eram tais que não me davam gosto a tornar cá. Fui vítima da inexperiência, monsenhor, tive uma velhice ruim, por essa razão. Então lembrou-me que sempre ouvira dizer a meu pai e outras pessoas mais velhas, quando viam algum rapaz: — "Quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje!" Lembrou-me isto, e declarei que me era indiferente nascer mendigo ou potentado, com a condição de nascer experiente. Não imagina o riso universal com que me ouviram. Jó, que ali preside a província dos pacientes, disse-me que um tal desejo era disparate; mas eu teimei e venci. Daí a pouco escorreguei no espaço: gastei nove meses a atravessá-lo até cair nos braços de uma ama de leite, e chamei-me José Maria. Vossa Reverendíssima é Romualdo, não? — Sim, senhor; Romualdo de Sousa Caldas.

— Será parente do padre Sousa Caldas? — Não, senhor.

— Bom poeta o padre Caldas. Poesia é um dom; eu nunca pude compor uma décima. Mas, vamos ao que importa. Conto-lhe primeiro o que me sucedeu; depois lhe direi o que desejo de Vossa Reverendíssima. Entretanto, se me permitisse ir fumando...

Monsenhor Caldas fez um gesto de assentimento, sem perder de vista a bengala que José Maria conservava atravessada sobre as pernas. Este preparou vagarosamente um cigarro. Era um homem de trinta e poucos anos, pálido, com um olhar ora mole e apagado, ora inquieto e centelhante. Apareceu ali, tinha o padre acabado de almoçar, e pediu-lhe uma entrevista para negócio grave e urgente. Monsenhor fê-lo entrar e sentar-se; no fim de dez minutos, viu que estava com um lunático. Perdoava-lhe a incoerência das ideias ou o assombroso das invenções; pode ser até que lhe servissem de estudo. Mas o desconhecido teve um assomo de raiva, que meteu medo ao pacato clérigo. Que podiam fazer ele e o preto, ambos velhos, contra qualquer agressão de um homem forte e louco? Enquanto esperava o auxilio policial, monsenhor Caldas desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele, alegrava-se com ele, política útil com os loucos, as mulheres e os potentados. José Maria acendeu finalmente o cigarro, e continuou: — Renasci em cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da nova meninice, porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Mamava pouco; chorava o menos que podia para não apanhar pancada. Comecei a andar tarde, por medo de cair, e daí me ficou uma tal ou qual fraqueza nas pernas. Correr e rolar, trepar nas árvores, saltar paredões, trocar murros, coisas tão úteis, nada disso fiz, por medo de contusão e sangue. Para falar com franqueza, tive uma infância aborrecida, e a escola não o foi menos. Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creia que durante esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Palavra, foi um tempo de aborrecimento; e, comparando as cabeças quebradas de outro tempo com o tédio de hoje, antes as cabeças quebradas. Cresci; fiz-me rapaz, entrei no período dos amores... Não se assuste; serei casto, como a primeira ceia. Vossa Reverendíssima sabe o que é uma ceia de rapazes e mulheres? — Como quer que saiba?...

— Tinha dezenove anos, continuou José Maria, e não imagina o espanto dos meus amigos, quando me declarei pronto a ir a uma tal ceia... Ninguém esperava tal coisa de um rapaz tão cauteloso, que fugia de tudo, dos sonos atrasados, dos sonos excessivos, de andar sozinho a horas mortas, que vivia, por assim dizer, às apalpadelas. Fui à ceia; era no Jardim Botânico, obra esplêndida. Comidas, vinhos, luzes, flores, alegria dos rapazes, os olhos das damas, e, por cima de tudo, um apetite de vinte anos. Há de crer que não comi nada? A lembrança de três indigestões apanhadas quarenta anos antes, na primeira vida, fez-me recuar. Menti dizendo que estava indisposto. Uma das damas veio sentar-se à minha direita, para curar-me; outra levantou-se também, e veio para a minha esquerda, com o mesmo fim.

Você cura de um lado, eu curo do outro, disseram elas. Eram lépidas, frescas, astuciosas, e tinham fama de devorar o coração e a vida dos rapazes. Confesso-lhe que fiquei com medo e retraí-me. Elas fizeram tudo, tudo; mas em vão. Vim de lá de manhã, apaixonado por ambas, sem nenhuma delas, e caindo de fome. Que lhe parece? concluiu José Maria pondo as mãos nos joelhos, e arqueando os braços para fora.

— Com efeito...

— Não lhe digo mais nada; Vossa Reverendíssima adivinhará o resto. A minha segunda vida é assim uma mocidade expansiva e impetuosa, enfreada por uma experiência virtual e tradicional. Vivo como Eurico, atado ao próprio cadáver... Não, a comparação não é boa. Como lhe parece que vivo? — Sou pouco imaginoso. Suponho que vive assim como um pássaro, batendo as asas e amarrado pelos pés...

— Justamente. Pouco imaginoso? Achou a fórmula; é isso mesmo. Um pássaro, um grande pássaro, batendo as asas, assim...

José Maria ergueu-se, agitando os braços, à maneira de asas. Ao erguer-se, caiu-lhe a bengala no chão; mas ele não deu por ela. Continuou a agitar os braços, em pé, defronte do padre, e a dizer que era isso mesmo, um pássaro, um grande pássaro... De cada vez que batia os braços nas coxas, levantava os calcanhares, dando ao corpo uma cadência de movimentos, e conservava os pés unidos, para mostrar que os tinha amarrados. Monsenhor aprovava de cabeça; ao mesmo tempo afiava as orelhas para ver se ouvia passos na escada.

Tudo silêncio. Só lhe chegavam os rumores de fora: — carros e carroças que desciam, quitandeiras apregoando legumes, e um piano da vizinhança. José Maria sentou-se finalmente, depois de apanhar a bengala, e continuou nestes termos: — Um pássaro, um grande pássaro. Para ver quanto é feliz a comparação, basta a aventura que me traz aqui, um caso de consciência, uma paixão, uma mulher, uma viúva, D. Clemência. Tem vinte e seis anos, uns olhos que não acabam mais, não digo no tamanho, mas na expressão, e duas pinceladas de buço, que lhe completam a fisionomia. É filha de um professor jubilado. Os vestidos pretos ficam-lhe tão bem que eu às vezes digo-lhe rindo que ela não enviuvou senão para andar de luto. Caçoadas! Conhecemo-nos há um ano, em casa de um fazendeiro de Cantagalo. Saímos namorados um do outro. Já sei o que me vai perguntar: por que é que não nos casamos, sendo ambos livres...

— Sim, senhor.

— Mas, homem de Deus! é essa justamente a matéria da minha aventura. Somos livres, gostamos um do outro, e não nos casamos: tal é a situação tenebrosa que venho expor a Vossa Reverendíssima, e que a sua teologia ou o que quer que seja, explicará, se puder. Voltamos para a Corte namorados. Clemência morava com o velho pai, e um irmão empregado no comércio; relacionei-me com ambos, e comecei a frequentar a casa, em Matacavalos. Olhos, apertos de mão, palavras soltas, outras ligadas, uma frase, duas frases, e estávamos amados e confessados. Uma noite, no patamar da escada, trocamos o primeiro beijo... Perdoe estas coisas, monsenhor; faça de conta que me está ouvindo de confissão.

Nem eu lhe digo isto senão para acrescentar que saí dali tonto, desvairado, com a imagem de Clemência na cabeça e o sabor do beijo na boca. Errei cerca de duas horas, planejando uma vida única; determinei pedir-lhe a mão no fim da semana, e casar daí a um mês.

Cheguei às derradeiras minúcias, cheguei a redigir e ornar de cabeça as cartas de participação. Entrei em casa depois de meia-noite, e toda essa fantasmagoria voou, como as mutações à vista nas antigas peças de teatro. Veja se adivinha como.

— Não alcanço...

— Considerei, no momento de despir o colete, que o amor podia acabar depressa; tem-se visto algumas vezes. Ao descalçar as botas, lembrou-me coisa pior: — podia ficar o fastio. Concluí a toalete de dormir, acendi um cigarro, e, reclinado no canapé, pensei que o costume, a convivência, podia salvar tudo; mas, logo depois adverti que as duas índoles podiam ser incompatíveis; e que fazer com duas índoles incompatíveis e inseparáveis? Mas, enfim, dei de barato tudo isso, porque a paixão era grande, violenta; considerei-me casado, com uma linda criancinha... Uma? duas, seis, oito; podiam vir oito, podiam vir dez; algumas aleijadas. Também podia vir uma crise, duas crises, falta de dinheiro, penúria, doenças; podia vir alguma dessas afeições espúrias que perturbam a paz doméstica...

Considerei tudo e concluí que o melhor era não casar. O que não lhe posso contar é o meu desespero; faltam-me expressões para lhe pintar o que padeci nessa noite... Deixa-me fumar outro cigarro? Não esperou resposta, fez o cigarro, e acendeu-o. Monsenhor não podia deixar de admirar-lhe a bela cabeça, no meio do desalinho próprio do estado; ao mesmo tempo notou que ele falava em termos polidos, e, que apesar dos rompantes mórbidos, tinha maneiras.

Quem diabo podia ser esse homem? José Maria continuou a história, dizendo que deixou de ir à casa de Clemência, durante seis dias, mas não resistiu às cartas e às lágrimas. No fim de uma semana correu para lá, e confessou-lhe tudo, tudo. Ela ouviu-o com muito interesse, e quis saber o que era preciso para acabar com tantas cismas, que prova de amor queria que ela lhe desse. — A resposta de José Maria foi uma pergunta.

— Está disposta a fazer-me um grande sacrifício? disse-lhe eu. Clemência jurou que sim. "Pois bem, rompa com tudo, família e sociedade; venha morar comigo; casamo-nos depois desse noviciado." Compreendo que Vossa Reverendíssima arregale os olhos. Os dela encheram-se de lágrimas; mas, apesar de humilhada, aceitou tudo. Vamos; confesse que sou um monstro.

— Não, senhor...

— Como não? Sou um monstro. Clemência veio para minha casa, e não imagina as festas com que a recebi. "Deixo tudo, disse-me ela; você é para mim o universo." Eu beijei-lhe os pés, beijei-lhe os tacões dos sapatos. Não imagina o meu contentamento. No dia seguinte, recebi uma carta tarjada de preto; era a notícia da morte de um tio meu, em Santana do Livramento, deixando-me vinte mil contos. Fiquei fulminado. "Entendo, disse a Clemência, você sacrificou tudo, porque tinha notícia da herança." Desta vez, Clemência não chorou, pegou em si e saiu. Fui atrás dela, envergonhado, pedi-lhe perdão; ela resistiu.

Um dia, dois dias, três dias, foi tudo vão; Clemência não cedia nada, não falava sequer.

Então declarei-lhe que me mataria; comprei um revólver, fui ter com ela, e apresentei-lho: é este.

Monsenhor Caldas empalideceu. José Maria mostrou-lhe o revólver, durante alguns segundos, tornou a metê-lo na algibeira, e continuou: — Cheguei a dar um tiro. Ela, assustada, desarmou-me e perdoou-me. Ajustamos precipitar o casamento, e, pela minha parte, impus uma condição: doar os vinte mil contos à Biblioteca Nacional. Clemência atirou-se-me aos braços, e aprovou-me com um beijo. Dei os vinte mil contos. Há de ter lido nos jornais... Três semanas depois casamo-nos. Vossa Reverendíssima respira como quem chegou ao fim. Qual! Agora é que chegamos ao trágico. O que posso fazer é abreviar umas particularidades e suprimir outras; restrinjo-me a Clemência. Não lhe falo de outras emoções truncadas, que são todas as minhas, abortos de prazer, planos que se esgarçam no ar, nem das ilusões de saia rota, nem do tal pássaro...

plás... plás... plás...

E, de um salto, José Maria ficou outra vez de pé, agitando os braços, e dando ao corpo uma cadência. Monsenhor Caldas começou a suar frio. No fim de alguns segundos, José Maria parou, sentou-se, e reatou a narração, agora mais difusa, mais derramada, evidentemente mais delirante. Contava os sustos em que vivia, desgostos e desconfianças.

Não podia comer um figo às dentadas, como outrora; o receio do bicho diminuía-lhe o sabor. Não cria nas caras alegres da gente que ia pela rua: preocupações, desejos, ódios, tristezas, outras coisas, iam dissimuladas por umas três quartas partes delas. Vivia a temer um filho cego ou surdo-mudo, ou tuberculoso, ou assassino, etc. Não conseguia dar um jantar que não ficasse triste logo depois da sopa, pela ideia de que uma palavra sua, um gesto da mulher, qualquer falta de serviço podia sugerir o epigrama digestivo, na rua, debaixo de um lampião. A experiência dera-lhe o terror de ser empulhado. Confessava ao padre que, realmente, não tinha até agora lucrado nada; ao contrário, perdera até, porque fora levado ao sangue... Ia contar-lhe o caso do sangue. Na véspera, deitara-se cedo, e sonhou... Com quem pensava o padre que ele sonhou? — Não atino...

— Sonhei que o Diabo lia-me o Evangelho. Chegando ao ponto em que Jesus fala dos lírios do campo, o Diabo colheu alguns e deu-mos. "Toma, disse-me ele; são os lírios da Escritura; segundo ouviste, nem Salomão em toda a pompa, pode ombrear com eles.

Salomão é a sapiência. E sabes o que são estes lírios, José? São os teus vinte anos." Fitei-os encantado; eram lindos como não imagina. O Diabo pegou deles, cheirou-os e disse-me que os cheirasse também. Não lhe digo nada; no momento de os chegar ao nariz, vi sair de dentro um réptil fedorento e torpe, dei um grito, e arrojei para longe as flores. Então, o Diabo, escancarando uma formidável gargalhada: "José Maria, são os teus vinte anos." Era uma gargalhada assim: — cá, cá, cá, cá, cá...

José Maria ria à solta, ria de um modo estridente e diabólico. De repente, parou; levantou-se, e contou que, tão depressa abriu os olhos, como viu a mulher diante dele aflita e desgrenhada. Os olhos de Clemência eram doces, mas ele disse-lhe que os olhos doces também fazem mal. Ela arrojou-se-lhe aos pés... Neste ponto a fisionomia de José Maria estava tão transtornada que o padre, também de pé, começou a recuar, trêmulo e pálido.

"Não, miserável! não! tu não me fugirás!" bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o padre ia recuando... recuando... Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés.

Fonte:
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