terça-feira, 15 de abril de 2014

Nilto Maciel (Arte e Inutilidade)

Pintura de Eustache Le Sueur
Impaciente, corri três vezes até o portão. Na quarta, quando ia encostar a venta no alumínio e vasculhar a rua, avistei aquela carinha linda do lado de fora. Para não demonstrar ansiedade, deixei-a acionar a campainha duas vezes. E, então, como se acabasse de me aproximar do portão, gritei: Já vai. Quem é? Sou eu. Eu quem? Janete. Meti a chave na fechadura, puxei a folha com chave e tudo e abri os braços. Desculpasse o suor: acabara de chegar do shopping. Ela me deu abraço muito sutil e entramos na casa, a mentir pelos poros.

Depois de cinco minutos nessa lengalenga, iniciamos a aula. Peguei Ar de arestas (São Paulo: Escrituras, 2013), de Iacyr Anderson Freitas, e me pus a tagarelar: Tenho acompanhado a trajetória literária (ou editorial) de Iacyr, desde os vagidos iniciais. Não me lembro do primeiro contato. Terá sido em 1982, ano de publicação de Verso e palavra? Recentemente (dezembro de 2010) referi-me a ele no artigo “A obra poética de Iacyr Anderson Freitas”.

A mocinha examinava minha euforia: O senhor tem demonstrado admiração por ele. Concordo com suas palavras.

Pedi silêncio e me entreguei à parolagem: Em Ar de arestas verifiquei umas singularidades (não fosse o impresso agradável aos olhos e ao tato, pela capa dura, pelas fotografias de Ozias Filho, pelo tipo do papel e pelo formato menos comum): o poema (ou são vários?) é constituído apenas de quartetos, em rimas alternadas, quase todas dos tipos “ricas”, “agudas” e “graves”. O metro é sempre o de sete sílabas, a chamada redondilha maior. Janete Clair me fez calar: Será mesmo importante referir-se a isso? Possivelmente não. Entretanto, sempre é tempo de lembrar certas normas aos jovens. O senhor vê em Iacyr pura imitação de Drummond? Não, talvez nem se aproximem um do outro. Vejo mais semelhanças com João Cabral.

Reli alguns cantos em voz alta. Impus breve pausa e ela se aproveitou disso: Ele se refere às arestas da poesia? Pediu o objeto e se pôs a ler: ‘Surpreende-se a serpente / em cada naco de frase. / Ora, vagando, urgente, / ora fixa em sua base’. Li estas linhas e fiquei com a pulga atrás da orelha. A serpente seria o quê? Até me lembrei de Jorge de Lima.

Pego de surpresa pela astúcia (pode-se falar em inteligência?) da menina, tentei parecer mestre: Tudo é possível captar nos livros. Solicitei o volume e lecionei: Como na pintura abstrata. Na verdade, pressenti antes de tudo a dor humana cantada e chorada: ‘um vazio de nascença’, ‘ter por dentro essa falta’, ‘em si mesmo soterrado’.

Senti necessidade de passear ao redor de mim mesmo. Ao voltar ao sofá, ela disparou: É de alto nível? Não titubeei: Sim, de alto nível, embora o leitor menos experiente também possa alcançar o seu significado. Janete queria me irritar mesmo: Então o analfabeto não pode ler boa poesia? Ou a frase informal não tem qualidade? Deixe de preconceito, professor. Quase tive ataque apoplético: Acalme-se, jovem. Nunca me senti próximo do entendimento segundo o qual poesia de alto nível seja aquela entendida apenas pelos homens letrados ou intelectuais. Na verdade, nem pintura nem música carecem de entendimento. Basta senti-las. Porém, não restam dúvidas: há uma arte cerebral e outra dos sentidos. Às vezes, se confundem, são a mesma coisa. Música clássica é assim.

Minha secretária apareceu. Entendi ter chegado a hora de dar trabalho à garganta. Vamos tomar suco, Janete? À mesa, dedicamo-nos apenas a trivialidades: doce de mamão, chuva por vir, calor de trinta graus. E comemos e bebemos feito dois irmãos.

De novo acomodado no sofá, agarrei Bazar do Braz: Poemas & Anzóis (Goiânia: Kelps, 2012). Dediquei-me a manifestar admiração pela figura humana e pelo escritor Valdivino Braz. Conheço este poeta há quase meio século. Antes mesmo de me ir pra Brasília, já me correspondia com ele. Entretanto, só estivemos frente a frente em 1978, não sei se na capital do país, se na de Goiás. Foram abraços, cervejas, risadas, publicações. Janete me interrompeu algumas vezes: E continua essa amizade? Sim. Vez por outra, trocamos cartas, como antigamente. Os livros ainda circulam pelos ares.

Iniciei breve apresentação do Bazar. A moça quis saber minha opinião: Parece brincadeira? Sim, é galhofa pura. Valdivino é sujeito alegre, expansivo, como se dizia. Fala alto e grosso, irradia luz, embora seja pequenino e magro. Ultrapassei cinco minutos em elogio ardente ao poeta goiano, até ouvir reclamação: Não vai comentar o conteúdo? Sorri: O subtítulo dá início aos gracejos: ‘poemas & anzóis’. Pensei em pesca de pessoas. A sapeca opinou de novo: Quiçá não dê um passo além do humor. Não, ele nos leva a pensar e conversar. Não tem aquela seriedade ou sisudez de Iacyr. Também não se torna carnavalesco. Como em “Casa do Mané”, homenagem a Manoel Coutinho Carneiro, natural de Piripiri, Piauí, dono de casa de pasto (misto de bar e restaurante), no qual se oferecem, aos clientes, “típicos petiscos e pratos / de estilo caseiro, / tempero com esmero”. A menina é sabida: Lembra os repentistas. Corrigi-a: Não na medida do verso e na rima soante. A danada não se deixou abalar: Há nele textos em prosa muito debochados, na esteira do modernismo de 22, especialmente Oswald. Aproveitei a deixa: Tudo misturado, como convém ao modernista exemplar. A garota completou: Valdivino zomba dos tipos urbanos, em descrições minuciosas, caricaturas dignas de Gregório de Matos.

Deixei-a a resmungar e iniciei passeio pelos corredores. Sempre ajo assim, quando me sinto incomodado por visitas. De regresso à sala, vinha com a ideia de ler duas ou mais composições de meu amigo. Agora permaneça caladinha e ouça: “Um poliglota, o Hipólito. O hipopótamo. Cheio de línguas. Latim. Grego. Um esnobe. Uma íngua. Um chato de galocha. Etílicos, inchados, os olhos-bulbos. Um sábio com a boca cheia de vocábulos. Por mares nunca dantes navegados. Hipólito Sanchez, a pança. Ordenança de Quixote, citando Oscar Wilde: ‘Toda arte é absolutamente inútil’. Dose pra elefante”.

A estudante não me deixou ir adiante: Isso é poesia? E se for apenas inutilidade? Assustei-me. Tivesse cuidado com a língua. O senhor agora tem cara e modos de pastor evangélico.

Fortaleza, 17/18 de fevereiro de 2014.

Fonte:
Nilto Maciel in Literatura Sem Fronteiras

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 4


Machado de Assis (O Caso da Vara)

DAMIÃO fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano, foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava, finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não, lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria coisa útil.

Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor: Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.

— Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom.

A verdadeira grandeza é chã. Moço...

Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou: — Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...

Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas ideias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim.

— Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde estava reclinada.

Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho.

Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.

— Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui! Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.

— Descanse; e explique-se.

— Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro, mas espere.

Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas ern volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado.

Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.

— Como assim? Não posso nada.

— Pode, querendo.

— Não, replicou ela abanando a cabeça, não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado! Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.

— Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.

Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia... Não nada, nunca! redarguia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos, e repetia que era a sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.

— Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...

— Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou não...

Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.

— Anda, moleque.

Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo: — Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.

Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a: — Lucrécia, olha a vara! A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste.

Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria.

— Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.

— Não afianço nada, não creio que seja possível...

— Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...

— Mas, minha senhora...

—Vá, vá.

João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças opostas. Não lhe importava, em suma que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou médico, ou outra qualquer cousa, vadio que fosse, mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: "digo-lhe que ele não volta". Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra coisa? Por que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução — cruel, é certo, mas definitiva.

— Então? insistiu Sinhá Rita.

Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os três setes.

Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava cosido à parede, olhos baixos esperando, sem solução apoplética.

— Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.

Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinha Rita puxou-lhe desta vez o queixo.

— Ande jantar, deixe-se de melancolias.

— A senhora crê que ele alcance alguma coisa? — Há de alcançar tudo, redarguiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando.

Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho.

Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. A sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.

— Hão de ser as moças.

Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.

As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento, mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.

— Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito.

Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.

Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite . Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dois negros, foi à polícia pedir um pedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos, correu ao quintal e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Shlhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro.

— Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.

Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita.

O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na prisão. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha, mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o moço fosse para a casa dele.

Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra tábua de salvação, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta: "Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos".

Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternação.

Disse-lhe que sossegasse, que aquele negócio era agora dela.

— Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras! Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os, todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.

— Ah! malandra! — Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.

— Malandra! Nossa Senhora não protege vadias! Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a.

— Anda cá! — Minha senhora, me perdoe! — Não perdoo, não.

E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.

— Onde está a vara? A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista.

— Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor? Damião ficou frio. . . Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha Jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...

— Dê-me a vara, Sr. Damião! Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor.. .

— Me acuda, meu sinhô moço! Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Augusto dos Anjos (Santuário de Poesias) 3

ASA DE CORVO

Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!

É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...

É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte — a costureira funerária —
Cose para o homem a última camisa!

UMA NOITE NO CAIRO

Noite no Egito. O céu claro e profundo
Fulgura. A rua é triste. A Lua Cheia
Está sinistra, e sobre a paz do mundo
A alma dos Faraós anda e vagueia.

Os mastins negros vão ladrando à lua...
O Cairo é de uma formosura arcaica.
No ângulo mais recôndito da rua
Passa cantando uma mulher hebraica.

O Egito é sempre assim quando anoitece!
Às vezes, das pirâmides o quedo
E atro perfil, exposto ao luar, parece
Uma sombria interjeição de medo!

Como um contraste àqueles misereres,
Num quiosque em festa alegre turba grita
E dentro dançam homens e mulheres
Numa aglomeração cosmopolita.

Tonto de vinho, um saltimbanco da Ásia,
Convulso e roto, no apogeu da fúria,
Executando evoluções de razzia
Solta um brado epilético de injúria!

Em derredor duma ampla mesa preta
Última nota do conúbio infando —
Vêem-se dez jogadores de roleta
Fumando, discutindo, conversando.

Resplandece a celeste superfície.
Dorme soturna a natureza sábia...
Embaixo, na mais próxima planície,
Pasta um cavalo esplêndido da Arábia.

Vaga no espaço um silfo solitário.
Troam kinnors! Depois tudo é tranqüilo...
Apenas como um velho estradivário,
Soluça toda a noite a água do Nilo!

O MARTÍRIO DO ARTISTA

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a Idéia! A Inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!

DUAS ESTROFES

            (À memória de João de Deus)

Ah! ciechi! il tanto affaticar che giova?
Tutti torniano alla gran madre antica
E il nostro nome appena si ritrova.
            Petrarca


A queda do teu lírico arrabil
De um sentimento português ignoto
Lembra Lisboa, bela como um brinco,
Que um dia no ano trágico de mil
E setecentos e cinqüenta e cinco,
Foi abalada por um terremoto!

A água quieta do Tejo te abençoa.
Tu representas toda essa Lisboa
De glórias quase sobrenaturais,
Apenas com uma diferença triste,
Com a diferença que Lisboa existe
E tu, amigo, não existes mais!

RECORDAÇÃO DA MINHA JUVENTUDE

A minha ama-de-leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!

Minha ama, então, hipócrita, afetava
Susceptibilidades de menina:
“— Não, não fora ela!”  — E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.

Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha...

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!

VOZES DE UM TÚMULO

Morri! E a Terra — a mãe comum — o brilho
Destes meus olhos apagou!... Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!

Por que para este cemitério vim?!
Por quê?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!

No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta...
Hoje, porém, que se desmoronou

A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!

VERSOS DE AMOR

            A um poeta erótico

Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a... ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!

Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.

Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.

Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!

Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Marsias — o inventor da flauta —
Vou inventar também outro instrumento!

Mas de tal arte e espécie tal fazê-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!

Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d’alma!
   
    SONETOS

            A meu Pai doente
I
Para onde fores, Pai, para onde fores,
Irei também, trilhando as mesmas ruas...
Tu, para amenizar as dores tuas,
Eu, para amenizar as minhas dores!

Que coisa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!

Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!

— Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!

            II

            A meu Pai morto

Madrugada de Treze de Janeiro.
Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!

E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia,
E disse à minha Mãe que me dizia:
“Acorda-o”! deixa-o, Mãe, dormir primeiro!

E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Nem uma névoa no estrelado véu...

Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!

        III

Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Microrganismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.

Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!...

Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!...

Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!

Fonte:
Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias.

Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Contos) III

YASMINE CUNHA FARIAS
Ensino Médio da Escola Particular Pequeno Príncipe

A faceta da natureza


Na formação do Reino Azul existia apenas água, como o reino estava sem graça, o criador enviou algumas espécies para abrilhantar a sua obra, cujo nome foi natureza.

O cenário era esplêndido e harmonioso. Até que uma das espécies “descobriu o seu poder” de racionalizar, e ganhou a natureza para si.

Ao tê-la como sua, o ser humano agiu de forma incoerente, explorou o natural para compor o “artificial”, o que impulsionou a sua evolução.

Desta forma, nosso habitar natural é alvo dos “seres pensantes”, o que conseguintemente gera o desequilíbrio do ecossistema.

A cada instante, esses seres evoluem, escorando no “Cajado Natura”, e assim deixam como sobra a poluição, o desmatamento, a extinção e o mais imprescindível, uma mãe natureza que chora sem escoar nenhuma lágrima, já que a seca transparece em seu semblante.

Essencial seria se a humanidade usasse a sabedoria; pra plantar uma árvore quando desmatada, aprender a reciclar ao invés de jogar fora, e evitar o desperdício. Cuidar hoje é sinônimo de bons frutos amanhã!

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

domingo, 13 de abril de 2014

Trova 269 - Olympio Coutinho (MG)


Machado de Assis (Cantiga Velha)

CAPÍTULO I

Conversávamos de cantigas populares. Entre o jantar e o chá, quatro pessoas tão somente, longe do voltarete e da polca, confessem que era uma boa e rara fortuna. Polca e voltarete são dois organismos vivos que estão destruindo a nossa alma; é indispensável que nos vacinem com a espadilha e duas ou três oitavas do Caia no beco ou qualquer outro título da mesma farinha. Éramos quatro e tínhamos a mesma idade. Eu e mais dois pouco sabíamos da matéria; tão-somente algumas reminiscências da infância ou da adolescência. O quarto era grande ledor de tais estudos, e não só possuía alguma coisa do nosso cancioneiro, como do de outras partes. Confessem que era um regalo de príncipes.

Esquecia-me dizer que o jantar fora copioso; notícia indispensável à narração, porque um homem antes de jantar não é o mesmo que depois do jantar, e pode-se dizer que a discrição é muitas vezes um momento gastronômico. Homem haverá reservado durante a sopa, que à sobremesa põe o coração no prato, e dá-o em fatias aos convivas. Toda a questão é que o jantar seja abundante, esquisito e fino, os vinhos frios e quentes, de mistura, e uma boa xícara de café por cima, e para os que fumam um havana de cruzado.

Reconhecido que isto é uma lei universal, admiremos os diplomatas que, na vida contínua de jantares, sabem guardar consigo os segredos dos governos. Evidentemente são organizações superiores.

O dono da casa dera-nos um bom jantar. Fomos os quatro, no fim para junto de uma janela, que abria para um dos lados da chácara. Posto estivéssemos no verão, corria um ventozinho fresco, e a temperatura parecia impregnada das últimas águas. Na sala de frente, dançava-se a polca; noutra sala jogava-se o voltarete. Nós, como digo, falávamos de cantigas populares.

— Vou dar-lhes uma das mais galantes estrofes que tenho ouvido, disse um de nós.

Morava na Rua da Carioca, e um dia de manhã ouvi do lado dos fundos esta quadrinha: Coitadinho, como é tolo Em cuidar que eu o adoro Por me ver andar chorando...

Sabe Deus por quem eu choro! O ledor de cancioneiros pegou da quadra para esmerilhá-la com certa pontinha de pedantismo, mas outro ouvinte, o dr. Veríssimo, pareceu inquieto; perguntou ao primeiro o número da casa em que morara; ele respondeu rindo que uma tal pergunta só se podia explicar da parte de um governo tirânico; os números das casas deixam-se nas casas.

Como recordá-los alguns anos depois? Podia dizer-lhe em que ponto da rua ficava a casa; era perto do Largo da Carioca, à esquerda de quem desce, e foi nos anos de 1864 e 1865.

— Isso mesmo, disse ele.

— Isso mesmo, quê? — Nunca viu a pessoa que cantava? — Nunca. Ouvi dizer que era uma costureira, mas não indaguei mais nada. Depois, ainda ouvi cantar pela mesma voz a mesma quadrinha. Creio que não sabia outra. A repetição fê-la monótona, e...

— Se soubessem que essa quadrinha era comigo! disse ele sacudindo a cinza do charuto.

E como lhe perguntássemos se ele era o aludido do último verso — Sabe Deus por quem eu choro, respondeu-nos que não. Eu sou o tolo do princípio da quadra. A diferença é que não cuidava, como na trova, que ela me adorasse; sabia bem que não. Menos essa circunstância, a quadra é comigo. Pode ser que fosse outra pessoa que cantasse; mas o tempo, o lugar da rua, a qualidade de costureira, tudo combina.

— Vamos ver se combina, disse o ex-morador da Rua da Carioca piscando-me o olho.

Chamava-se Luísa? — Não; chamava-se Henriqueta.

— Alta? — Alta. Conheceu-a? — Não; mas então essa Henriqueta era alguma princesa incógnita, que...

— Era uma costureira, retorquiu o Veríssimo. Nesse tempo era eu estudante. Tinha chegado do Sul poucos meses antes. Pouco depois de chegado... Olhem, vou contar-lhes uma cousa muito particular. Minha mulher sabe do caso, contei-lhe tudo, menos que a tal Henriqueta foi a maior paixão da minha vida... Mas foi; digo-lhe que foi uma grande paixão. A cousa passou-se assim...

CAPÍTULO II

A coisa passou-se assim. Vim do Sul, e fui alojar-me em casa de uma viúva Beltrão. O marido desta senhora perecera na guerra contra o Rosas; ela vivia do meio soldo e de algumas costuras. Estando no Sul, em 1850, deu-se muito com a minha família; foi por isso, que minha mãe não quis que eu viesse para outra casa. Tinha medo do Rio de Janeiro; entendia que a viúva Beltrão desempenharia o seu papel de mãe, e recomendou-me a ela.

D. Cora recebeu-me um pouco acanhada. Creio que era por causa das duas filhas que tinha, moças de dezesseis e dezoito anos, e pela margem que isto podia dar à maledicência. Talvez fosse também a pobreza da casa. Eu supus que a razão era tão somente a segunda, e tratei de lhe tirar escrúpulos mostrando-me alegre e satisfeito.

Ajustamos a mesada. Deu-me um quarto, separado, no quintal. A casa era em Mataporcos.

Eu palmilhava, desde casa até à Escola de Medicina, sem fadiga, voltando à tarde, tão fresco como de manhã.

As duas filhas eram bonitinhas; mas a mais velha, Henriqueta, era ainda mais bonita que a outra. Nos primeiros tempos mostraram-se muito reservadas comigo. Eu, que só fui alegre, no primeiro dia, por cálculo, tornei ao que costumava ser; e, depois do almoço ou do jantar, metia-me comigo mesmo e os livros, deixando à viúva e às filhas toda a liberdade. A mãe, que queria o meu respeito, mas não exigia a total abstenção, chamou-me um dia bicho-do-mato.

— Olhe que estudar é bom, e sua mãe quer isso mesmo, disse-me ela; mas parece que o senhor estuda demais. Venha conversar com a gente.

Fui conversar com elas algumas vezes. D. Cora era alegre, as filhas não tanto, mas em todo caso muito sociáveis. Duas ou três pessoas da vizinhança iam ali passar algumas horas, de quando em quando. As reuniões e palestras repetiram-se naturalmente, sem nenhum sucesso extraordinário, ou mesmo curioso, e assim se foram dous meses.

No fim de dois meses, Henriqueta adoeceu, e eu prestei à família muito bons serviços, que a mãe agradeceu-me de todos os modos, até ao enfado. D. Cora estimava-me, realmente, e desde então foi como uma segunda mãe. Quanto a Henriqueta, não me agradeceu menos; tinha, porém, as reservas da idade, e naturalmente não foi tão expansiva. Eu confesso que, ao vê-la depois, convalescente, muito pálida, senti crescer a simpatia que me ligava a ela, sem perguntar a mim mesmo se uma tal simpatia não começava a ser outra coisa. Henriqueta tinha uma figura e um rosto que se prestavam às atitudes moles da convalescença, e a palidez desta não fazia mais do que acentuar a nota de distinção da sua fisionomia. Ninguém diria ao vê-la, fora, que era uma mulher de trabalho.

Apareceu por esse tempo um candidato à mão de Henriqueta. Era um oficial de secretaria, rapaz de vinte e oito anos, sossegado e avaro. Esta era a fama que ele tinha no bairro; diziam que não gastava mais de uma quarta parte dos vencimentos, emprestava a juros outra quarta parte, e aferrolhava o resto. A mãe possuía uma casa: era um bom casamento para Henriqueta. Ela, porém, recusou; deu como razão que não simpatizava com o pretendente, e era isso mesmo. A mãe disse-lhe que a simpatia viria depois; e, uma vez que ele não lhe repugnava, podia casar. Conselhos vãos; Henriqueta declarou que só casaria com quem lhe merecesse. O candidato ficou triste, e foi verter a melancolia no seio da irmã de Henriqueta, que não só acolheu a melancolia, como principalmente o melancólico, e os dois casaram-se no fim de três meses.

— Então? dizia Henriqueta rindo. O casamento e a mortalha... Eu, pela minha parte, fiquei contente com a recusa da moça; mas, ainda assim, não atinei se era isto uma sensação de amor. Vieram as férias, e fui para o Sul.

No ano seguinte, tornei à casa de D. Cora. Já então a outra filha estava casada, e ela morava só com Henriqueta. A ausência tinha feito adormecer em mim o sentimento mal expresso do ano anterior, mas a vista da moça acendeu-o outra vez, e então não tive dúvida, conheci o meu estado, e deixei-me ir.

Henriqueta, porém, estava mudada. Ela era alegre, muito alegre, tão alegre como a mãe.

Vivia cantando; quando não cantava, espalhava tanta vida em volta de si, que era como se a casa estivesse cheia de gente. Achei-a outra; não triste, não silenciosa, mas com intervalos de preocupação e cisma. Achei-a, digo mal; no momento da chegada apenas tive uma impressão leve e rápida de mudança; o meu próprio sentimento encheu o ar ambiente, e não me permitiu fazer logo a comparação e a análise.

Continuamos a vida de outro tempo. Eu ia conversar com elas, à noite, às vezes os três sós, outras vezes com alguma pessoa conhecida da vizinhança. No quarto ou quinto dia, vi ali um personagem novo. Era um homem de trinta anos, mais ou menos, bem-parecido.

Era dono de uma farmácia do Engenho Velho, e chamava-se Fausto. Éramos os únicos homens, e não só não nos vimos com prazer, mas até estou que nos repugnamos intimamente um ao outro.

Henriqueta não me pareceu que o tratasse de um modo especial. Ouvia-o com prazer, acho eu; mas não me ouvia com desgosto ou aborrecimento, e a igualdade das maneiras tranquilizou-me nos primeiros dias. No fim de uma semana, notei alguma coisa mais. Os olhos de ambos procuravam-se, demoravam-se ou fugiam, tudo de um modo suspeito.

Era claro que, ou já se queriam, ou caminhavam para lá.

Fiquei desesperado. Chamei-me todos os nomes feios: tolo, parvo, maricas, tudo.

Gostava de Henriqueta, desde o ano anterior, vivia perto dela, não lhe disse nada; éramos como estranhos. Vem um homem estranho, que nunca a vira provavelmente, e fez-se ousado. Compreendi que a resolução era tudo, ou quase tudo. Entretanto, refleti que ainda podia ser tempo de resgatar o perdido, e tratei, como se diz vulgarmente, de deitar barro à parede. Fiz-me assíduo, busquei-a, cortejei-a. Henriqueta pareceu não entender, e não me tratou mal; quando, porém, a insistência da minha parte foi mais forte, retraiu-se um pouco, outro pouco, até chegar ao estritamente necessário nas nossas relações.

Um dia, pude alcançá-la no quintal da casa, e perguntei-lhe se queria que me fosse embora.

— Embora? repetiu ela.

— Sim, diga se quer que eu vá embora.

— Mas como é que hei de querer que o senhor se vá embora? — Sabe como, disse-lhe eu dando à voz um tom particular. Henriqueta quis retirar-se; eu peguei-lhe na mão; ela olhou espantada para as casas vizinhas.

— Vamos, decida? — Deixe-me, deixe-me, respondeu ela. Puxou a mão e foi para dentro. Eu fiquei sozinho.

Compreendi que ela pertencia ao outro, ou pelo menos, não me pertencia absolutamente nada. Resolvi mudar-me; à noite fui dizê-lo à mãe, que olhou espantada para mim e perguntou-me se me tinham feito algum mal.

— Nenhum mal.

— Mas então...

— Preciso mudar-me, disse eu.

D. Cora ficou abatida e triste. Não podia atinar com a causa; e pediu-me que esperasse até o fim do mês; disse-lhe que sim. Henriqueta não estava presente, e eu pouco depois saí. Não as vi durante três dias. No quarto dia, achei Henriqueta sozinha na sala; ela veio para mim, e perguntou-me por que motivo ia sair da casa. Calei-me.

— Sei que é por mim, disse ela.

Não lhe disse nada.

— Mas que culpa tenho eu se...

— Não diga o resto! Que culpa tem de não gostar de mim? Na verdade, nenhuma culpa; mas, se eu gosto da senhora, também não tenho culpa, e, nesse caso, para que castigar-me com a sua presença forçada? Henriqueta ficou alguns minutos calada, olhando para o chão. Tive a ingenuidade de supor que ela ia aceitar-me, só para não ver-me ir; acreditei ter vencido o outro, e iludia-me.

Henriqueta pensava no melhor modo de me dizer uma coisa difícil; e afinal, achou-o, e foi o modo natural, sem reticências nem alegorias. Pediu-me que ficasse, porque era um modo de ajudar as despesas da mãe; prometia-me, entretanto, que apareceria o menos que pudesse. Confesso-lhes que fiquei profundamente comovido. Não achei nada que responder; não podia teimar, não queria aceitar, e, sem olhar para ela, sentia que faltava pouco para que as lágrimas lhe saltassem dos olhos. A mãe entrou; e foi uma fortuna.

CAPÍTULO III

Veríssimo interrompeu a narração, porque algumas moças entraram a buscá-la. Faltavam pares; não admitiam demora.

— Dez minutos, ao menos? — Nem dez.

— Cinco? — Cinco apenas.

Elas saíram; ele concluiu a história.

— Retirado ao meu quarto, meditei cerca de uma hora no que me cumpria fazer. Era duro ficar, e eu chegava a achar até humilhante; mas custava-me desamparar a mãe, desprezando o pedido da filha. Achei um meio-termo; ficava pensionista como era; mas passaria fora a maior parte do tempo. Evitaria a combustão.

D. Cora sentiu naturalmente a mudança, ao cabo de quinze dias; imaginou que eu tinha algumas queixas, rodeou-me de grandes cuidados, até que me interrogou diretamente.

Respondi-lhe o que me veio à cabeça, dando à palavra um tom livre e alegre, mas calculadamente alegre, quero dizer com a intenção visível de fingir. Era um modo de pô-la no caminho da verdade, e ver se ela intercedia em meu favor.

D. Cora, porém, não entendeu nada.

Quanto ao Fausto, continuou a frequentar a casa, e o namoro de Henriqueta acentuou-se mais. Candinha, a irmã dela, é que me contava tudo — o que sabia, ao menos, — porque eu na minha raiva de preterido, indagava muito, tanto a respeito de Henriqueta como a respeito do boticário. Assim é que soube que Henriqueta gostava cada vez mais dele, e ele parece que dela, mas não se comunicavam claramente. Candinha ignorava os meus sentimentos, ou fingia ignorá-los; pode ser mesmo que tivesse o plano de substituir a irmã. Não afianço nada, porque não me sobrava muita penetração e frieza de espírito.

Sabia o principal, e o principal era bastante para eliminar o resto.

O que soube dele é que era viúvo, mas tinha uma amante e dois filhos desta, um de peito, outro três anos. Contaram-me mesmo alguns pormenores acerca dessa família improvisada, que não repito por não serem precisos, e porque as moças estão esperando na sala. O importante é que a tal família existia.

Assim se passaram dois longos meses. No fim desse tempo, ou mais, quase três meses — D. Cora veio ter comigo muito alegre; tinha uma notícia para dar-me, muito importante, e queria que eu adivinhasse o que era — um casamento.

Creio que empalideci. D. Cora, em todo caso, olhou para mim admirada, e, durante alguns segundos, fez-se entre nós o mais profundo silêncio. Perguntei-lhe afinal o nome dos noivos; ela disse-me a custo que a filha Candinha ia casar com um amanuense de secretaria. Creio que respirei; ela olhou para mim ainda mais espantada.

A boa viúva desconfiou a verdade. Nunca pude saber se ela interrogou a filha; mas é provável que sim, que a sondasse, antes de fazer o que fez daí a três semanas. Um dia, vem ter comigo, quando eu: estudava no meu quarto; e, depois de algumas perguntas indiferentes, variadas e remotas, pediu-me que lhe dissesse o que tinha. Respondi-lhe naturalmente que não tinha nada.

— Deixe-se de histórias, atalhou ela. Diga-me o que tem.

— Mas o que é que tenho? — Você é meu filho; sua mãe autorizou-me a tratá-lo como tal. Diga-me tudo; você tem alguma paixão, algum...

Fiz um gesto de ignorância.

— Tem, tem, continuou ela, e há de me dizer o que tem. Talvez tudo se esclareça se alguém falar, mas não falando, ninguém...

Houve e não houve cálculo nestas palavras de D. Cora; ou, para ser mais claro, ela estava mais convencida do que dizia. Eu supunha-lhe, porém, a convicção inteira, e caí no laço. A esperança de poder arranjar tudo, mediante uma confissão à mãe, que me não custava muito, porque a idade era própria das revelações, deu asas às minhas palavras, e dentro de poucos minutos, contava eu a natureza dos meus sentimentos, sua data, suas tristezas e desânimos. Cheguei mesmo a contar a conversação que tivera com Henriqueta, e o pedido desta. D. Cora não pôde reter as lágrimas. Ela ria e chorava com igual facilidade; mas naquele caso a ideia de que a filha pensara nela, e pedira um sacrifício por ela, comoveu-a naturalmente. Henriqueta era a sua principal querida.

— Não se precipite, disse-me ela no fim: eu não creio no casamento com o Fausto; tenho ouvido umas coisas... bom moço, muito respeitado, trabalhador e honesto. Digo-lhe que me honraria com um genro assim; e a não ser você, preferia a ele. Mas parece que o homem tem umas prisões...

Calou-se, à espera que eu confirmasse a notícia; mas não respondi nada. Cheguei mesmo a dizer-lhe que não achava prudente indagar mais nada, nem exigir. Eu no fim do ano tinha de retirar-me; e lá passaria o tempo. Provavelmente disse ainda outras coisas, mas não me lembro.

A paixão dos dous continuou, creio que mais forte, mas singular da parte dele. Não lhe dizia nada, não lhe pedia nada; parece mesmo que não lhe escrevia nada. Gostava dela; ia lá com frequência, quase todos os dias.

D. Cora interveio um dia francamente, em meu favor. A filha não lhe disse coisa diferente do que me dissera, nem com outra hesitação. Respondeu que não se pertencia, e, quando a mãe exigiu mais, disse que amava ao Fausto, e casaria com ele, se ele a pedisse, e nenhum outro, ao menos por enquanto. Ele não a pedia, não a soltava; toda a gente supunha que a razão verdadeira do silêncio e da reserva era a família de empréstimo. Vieram as férias; fui para o Rio Grande, voltei no ano seguinte, e não tornei a morar com D. Cora.

Esta adoeceu gravemente e morreu. Cândida, já casada, foi quem a enterrou; Henriqueta foi morar com ela. A paixão era a mesma, o silêncio o mesmo, e a razão provavelmente não era outra, senão a mesma. D. Cora pediu a Henriqueta, na véspera de expirar, que casasse comigo. Foi Henriqueta mesma quem me contou o pedido, acrescentando que lhe respondeu negativamente.

— Mas que espera a senhora? disse-lhe eu.

— Espero em Deus.

O tempo foi passando, e os dois amavam-se do mesmo modo. Candinha brigou com a irmã. Esta fez-se costureira na tal casa da Rua da Carioca, honesta, séria, laboriosa, amando sempre, sem adiantar nada, desprezando o amor e a abastança que eu lhe dava, por uma ventura fugitiva que não tinha... Tal qual como na trova popular...

— Qual trova! nem meia trova! interromperam as moças invadindo o gabinete. Vamos dançar.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 3


Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Contos) II

MALU GODOY TORRES ALVES PEREIRA
Ensino Médio da Escola Particular Pequeno Príncipe

Além de um sonho


Pedro tentou olhar a sua volta mas nada via, além de tudo queimado...

Será? – choramingava – será que o mundo foi todo mesmo por água abaixo?

Num instante Pedro começou a olhar a sua volta, árvores queimadas, bichos mortos com seus corpos jogados ao chão, o lago próximo a sua casa coberto por cinzas, o chão estava preto pela quantidade de material queimado. As plantas da cidade todas mortas carbonizadas...

Pedro chorava cada vez mais forte... Sua casa estava queimada, seu quarto com toda sua coleção de figurinhas. Tudo queimado. Incendiaram a floresta, incendiaram a cidade... Por um instante ele pensou em gritar e gritar e clamar por socorro, mas não seria possível, pois se ele estivesse mesmo sozinho ninguém o escutaria!

– E se eu nunca encontrar a mamãe e o papai? E os meus primos? Meus amigos? Quero o meu mundo de volta!

Num segundo ele pensou em vir correndo a sua escola e assim fez, correu e correu mas ao chegar lá viu tudo queimado, os livros, cadernos e não havia ninguém...

– Como pode todos terem me abandonado?

– Mamãe, papai, meus primos – o garoto saiu gritando pela vila!

Ao passar pela floresta viu o maior desastre da sua vida, a floresta simplesmente não era mais aquela linda floresta, a mata estava toda queimada.

Pedro chorou e gritou desesperadamente...

– Pedro, acorda – gritou sua mãe – você disse que descansaria depois do almoço, dormiu a tarde toda e agora está tendo um pesadelo, meu filho, o que está acontecendo? Eu e seu pai estamos ouvindo você chorar lá da sala...

– Mãe, eu sonhei que a nossa vila estava toda queimada, nossa casa, minha coleção de figurinhas, a escola e a floresta, mamãe.

– Calma meu filho, foi apenas um pesadelo, já passou!

– Não mamãe, preciso reunir os meus amigos e correr até lá, vamos percorrer toda a floresta e ver se encontramos alguma coisa.

Pedro correu na casa do seu vizinho Lucas, do seu primo Gabriel, do seu outro colega João e em meia hora juntou todos os seus amigos e contou–lhes o sonho!

Decididos, partiram para a floresta em busca de algo que talvez pudesse tornar o drástico sonho de Pedrinho em realidade!

Eles andaram e quando estavam quase desistindo de procurar, Gabriel gritou:

– Vejam... quem são eles? E o que eles estão tentando fazer com aquela tocha de fogo?

– Vamos ligar para os bombeiros, se eles começarem a queimar, o sonho do Pedro pode se tornar realidade – disse Lucas.

Ligaram correndo e denunciaram os homens aos bombeiros. Em menos de 10 minutos chegaram, pouco tempo depois a polícia chegou e capturou os dois criminosos. Junto a eles havia araras e micos presos em gaiolas. Eles roubariam os bichos e incendiariam a floresta para que assim não restasse nenhum vestígio de que eles estiveram por lá!

– Obrigado meninos – agradeceu um dos policiais.

– Devemos tudo isso ao pesadelo do Pedro – disse João.

Depois de tudo os meninos foram para casa de Pedro e resolveram escrever a história e divulgar pela vila para que assim as pessoas pudessem ajudar a vigiar e preservar cada vez mais o meio ambiente!

Pedro ficou conhecido como o guardião da floresta, o menino que se não fosse por ele não existiria mais a floresta que é a essência da vila.

Depois disso, todos juntos começaram a dar apoio e cuidar da floresta como nunca. Ela ganhou vários vigias e os animais o amor dos moradores que sempre estavam a brincar e cuidar deles.

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Contos) I

SARA MENDES ROCHA
Ensino Médio da Escola  Particular Pequeno Príncipe

Troca natural

Hoje acordei sem pauta, sem mundo, sem cor, sem nada! Estava fincada na terra, sujando meu tênis de marca preferida, não conseguia sair, estava preso. Tentei aclamar para os meus pais, mas ninguém apareceu para me socorrer. Não sentia fome nem frio e muito menos minhas pernas. Quando parei para olhar ao meu redor, percebi estar no meio de uma floresta humana, uma floresta má, reclamona e barulhenta. Uma floresta que se recusava a produzir oxigênio para as árvores respirarem.

As árvores humanas não se importavam com ninguém, só queriam saber delas, quem era mais bela, vistosa e exuberante. Aos pés dessas maldosas, estavam árvores afetuosas, bondosas e inocentes, que com toda a bondade do mundo, cuidavam dos maldosos sem reclamar. Esse não era o objetivo delas, mas mesmo assim elas o faziam com amor. A que encontrei aos meus pés a me regar, tomei minha petulância e ousei perguntar:

– Com licença boa senhora! Mas, que fazes aqui a me regar e a adubar minhas raízes?

– Formosa princesa! Encontro–me aqui à disposição daqueles que prezam pela minha sobrevivência! Trato com carinho e amor aqueles que, seu trabalho apenas por nós realiza. É infelizmente a única maneira que tenho de agradecer, pois se houvesse outra, a faria, nem que custasse minha vida, pois sei que aqueles da nova geração seriam gratos! Deixaríamos para eles um mundo melhor do que aqueles que encontramos! – Disse senhora árvore indignada com a minha pergunta, mas com a mais doce voz por mim antes já ouvida.

– Mas senhora – Disse ainda indignada com a atitude da boa árvore – Se já é de teu conhecimento a falta de piedade dos humanos, ainda persistes em fazer o bem, para quem não te faz nem o necessário?

– Mas, linda! – disse ela com voz meio sarcástica – e como é que sobreviverei sem saber o que teria acontecido se tivesse ao menos tentado lutar pela sobrevivência de meus ancestrais? Quem serei se não ousar ser quem eu quero ser? Ou seja, a diferença, que parte do coração de cada um de nós a atos que se tornam grandes e transformam o planeta? – Ela concluiu com uma pena lastimável a minha juventude à flor da pele e à falta de iniciativa presa em mim.

Ela me olhava agora, pronta para responder mais uma de minhas perguntas indesejáveis, mas intrigantes para ela, para que assim possa quem sabe convencer–me a produzir sua fonte de vida. Olhando para o chão e tentando refletir a respeito de sua resposta, ousei–me a indagar mais uma vez:

– Dona árvore, mas como é que se pode produzir tão bem assim sem aproveitar os recursos que o mundo lhe oferece? Se são eles os mais produtivos?

– E quem disse que não aproveito? – Disse ela sorridente – eu os respiro, os como, bebo e ainda me divirto com eles, que mais posso eu apenas uma árvore satisfeita querer? Eu desenvolvo como que o meu mundo bondoso me oferece, destruição nunca foi e nunca será sinônimo de desenvolvimento. Desenvolvimento é conciliar o que podemos consumir com nossa grandiosa inteligência que nos é dada. Somos todos bons e sustentáveis, pois somos produtos desse meio que possui essas mesmas características, se não, quem nós há de ser? – Terminou gargalhando.

– Mas senhor... Retruquei confusa.

– Meu trabalho não é fácil,mas não desisto. Tenha um bom dia, e não se esqueça que terei apenas um bom amanhã se com sua ajuda puder contar! – e já cansada de minha voz inconveniente, saiu ela contarolando.

Eu olhava ao redor com a mente mais confusa do mundo. Refletia nas palavras da boa árvore. E imaginava inúmeras soluções para o caos que o mundo em que vivemos se encontrava. Projetos e iniciativas sustentáveis invadiram e persuadiram todo o meu minúsculo ser.Eu estava pronta para seguir os conselhos daquela senhora, tinha agora uma sede insaciável de imitá–la, ser a diferença que o mundo quer ver.

Eu estava pensando em como seria se de repente todas as plantas se recusassem a produzir oxigênio, o que seria de nós: eu não as culparia por essa atitude, elas teriam razão, quem somos nós para destruir aquilo que foi concedido a todos nós seres vivos? Isso não estava certo, eu tinha uma necessidade gigante de reverter essa situação.

Quando de repente parei e olhei ao meu redor, estava num mar de sangue e mortandades, consegui apenas ver destruição e ao avistar uma placa perto de mim, pude ler 21/09/2500. Não sabia como o cenário tinha mudado tão drasticamente. Meus olhos se sujaram com situações que não desejaria ver!

Estava no ponto máximo do inferno, e contava os segundos para ser libertada daquele lugar, desejando com todas as minhas forças poder estar em casa com minha família. Quando em um pulo acordei suada e ofegante em minha cama, eu tinha sonhado com uma lição de vida que jamais esqueceria.

Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 2


Machado de Assis (Ayres e Vergueiro)


Era muito alva, cheia de corpo, assaz bonita e elegante, a esposa de Luís Vergueiro.

Chamava-se Carlota. Contava 22 anos e parecia destinada a envelhecer muito tarde. Não sendo franzina, não tinha nenhuma ambição de parecer vaporosa, pelo que era dada à boa mesa, e detestava o princípio de que uma moça para parecer bonita deve comer pouco. Carlota comia sofrivelmente, mas em compensação só bebia água, uso que, na opinião do marido, era causa de se lhe não afoguearem as faces como convinha a uma beleza robusta.

Reqüestada por muitos rapazes no ano da Maioridade, deu ela a preferência ao sr. Luís Vergueiro que, posto não fosse mais bonito que os outros, tinha qualidades que o punham muito acima de todos os rivais. Destes se podia dizer que os movia a ambição; tinham geralmente pouco mais que nada; Vergueiro não era assim. Iniciava um negociozinho de fazendas que lhe ia dando esperanças de enriquecer, ao passo que a amável Carlota apenas tinha aí uns dez contos, dote feito pelo padrinho.

Caiu a escolha em Vergueiro, e o casamento foi celebrado com alguma pompa, sendo padrinhos um deputado maiorista e um coronel do tempo da revolução de Campos.

Nunca houve casamento mais falado que aquele; a beleza da noiva, a multiplicidade dos rivais, a pompa da cerimônia, tudo deu que falar durante uns oito dias antes e depois, até que a vadiação do espírito público achou novo alimento.

Vergueiro alugou a casa que ficava por cima da sua loja, e para lá levou a mulher, satisfazendo assim as obrigações públicas e privadas, consorciando facilmente a bolsa e o coração. A casa era na Rua de S. José. Daí a pouco tempo comprou a casa, e isto fez dizer que o casamento, longe de lhe pôr um cravo na roda da fortuna, veio antes ajudá-lo.

Tinha Vergueiro uma irmã casada no interior. Morre-lhe o marido, e a irmã veio para o Rio de Janeiro onde foi recebida pelo irmão com todas as demonstrações de afeto. As duas cunhadas simpatizaram logo uma a outra, e esta presença de uma estranha (para recém casados todos são estranhos) não alterou a felicidade doméstica do casal Vergueiro.

Luísa Vergueiro não era bonita, mas tinha uma graça especial, uns modos todos seus, uma coisa que se não explica, e esse misterioso dom, essa qualidade indefinível encadeou para sempre o coração de Pedro Ayres, rapaz de trinta anos perfeitos, morador na vizinhança.

Digam-lhe lá o que pode fazer uma pobre viúva ainda moça, que apenas esteve casada dois anos. Luísa não era da massa das Artemisas. Tinha chorado o esposo, e se tivesse talento, podia escrever uma excelente biografia dele, honrosa para ambos. Mas isso era tudo que se podia exigir dela; não possuía um túmulo no coração, possuía um ninho; e um ninho deserto é a coisa mais triste deste mundo.

Não foi Luísa insensível aos olhares requebrados de Pedro Ayres, e serei justo dizendo que ocultou quanto pôde a impressão que o moço fazia nela. Ayres pertencia àquela raça de namoradores que não abatem armas logo à primeira resistência. Insistiu nos olhares entremeados com alguns sorrisos; chegou a interrogar miudamente um moleque da casa, cuja discrição não pôde resistir a uma moeda de prata. O moleque foi além; aceitou uma carta para a viuvinha.

A viuvinha respondeu.

Daqui em diante correram as coisas com aquela celeridade natural entre dois corações que se querem, que são livres, que não podem viver um sem o outro.

Carlota percebeu o namoro, mas respeitou a discrição da cunhada, que nenhuma confissão lhe fez. Vergueiro estava no extremo oposto da perspicácia humana; e além disso as suas ocupações não lhe davam tempo para perceber os namoros da irmã.

Não obstante, sorriu complacentemente quando Carlota lhe disse o que sabia.

— Pensas que eu ignoro isso? perguntou o marido brincando com a corrente do relógio.

— Alguém to contou? perguntou a mulher.

— Ninguém me contou nada, mas para que tenho eu olhos senão para ver o que se passa à roda de mim? Sei que esse rapaz anda cá a namorar a Luísa, estou a ver em que param as coisas.

— É fácil de ver.

— Casamento, não? — Que dúvida! Vergueiro coçou a cabeça.

— Nesse caso, disse ele, acho bom indagar alguma coisa da vida do pretendente; pode ser algum tratante...

— Eu já indaguei tudo.

— Tu? Carlota passou-lhe os braços à roda do pescoço.

— Eu, sim! As mulheres são curiosas; vi o Tobias entregar uma cartinha à Luísa; interroguei o Tobias, e ele disse-me que o rapaz é um moço sério e tem alguma coisa de seu.

— Tem, tem, disse Vergueiro. Que achas? — Que os devemos casar.

— Entende-te tu com ela, e conta-me o que souberes.

— Bem.

Carlota cumpriu fielmente a ordem do marido, e Luísa nada lhe ocultou do que se passava em seu coração.

— Queres então casar com ele? — Ele deseja isso mesmo.

— E estão calados! Parecem-me aprendizes.

Carlota era sincera no prazer que tinha em ver casada a irmã do marido, sem se preocupar com o resultado disso, que era tirar-lhe a companhia a que já se acostumara.

Vergueiro refletiu na inconveniência de confiar nas informações de um moleque ignorante, que devia ter a respeito da probidade e da distinção idéias sumamente vagas. Para suprir esta inconveniência, lembrou-se de ir em pessoa falar com Pedro Ayres, e assentou que o faria no domingo próximo. A mulher aprovou a resolução, mas o pretendente cortou-lhe as vazas, indo ele mesmo no sábado à casa de Vergueiro, expor os seus desejos e títulos.

Pedro Ayres era homem bem apessoado; tinha grandes suíças e um pequeno bigode.

Vestia com certa elegância, e tinha os gestos desembaraçados. Algum severo juiz podia achar-lhe um inexplicável horror à gramática; mas nem Vergueiro, nem Carlota, nem Luísa, estavam em melhores relações com a mesma senhora, de maneira que este pequeno senão passou completamente despercebido.

Ayres deixou a melhor impressão em toda a família. Desde logo ficou assentado que se esperasse algum tempo, a fim de completar o prazo do luto. Isso, porém, não embaraçou as vindas de Ayres à casa da noiva; começou indo lá três vezes por semana, e acabou indo todos os dias.

Ao cabo de poucas semanas, já Vergueiro dizia: — Ó Ayres, queres mais açúcar? E Ayres respondia: — Dá cá mais um pouco, Vergueiro.

Estreitou-se a amizade entre ambos. Eram necessários um para o outro.

Quando Ayres não ia à casa de Vergueiro, este passava a noite mal. Ayres detestava o jogo; mas a amizade que tinha a Vergueiro bastou para que depressa aprendesse e jogasse o gamão, a ponto que chegou a vencer o mestre. Nos domingos, Ayres jantava com Vergueiro; e dividia a tarde e a noite entre o gamão e Luísa.

As duas moças, longe de se zangarem com este namoro dos dois, pareciam contentes e felizes. Viam nisso uma fiança de futura concórdia.

Um dia entrou Ayres na loja de Vergueiro e pediu-lhe uma conferência particular.

— Que temos? disse Vergueiro.

— Daqui a dois meses, respondeu Ayres, é o meu casamento; vou ficar indissoluvelmente ligado à tua família. Tive uma idéia...

— Uma idéia tua deve ser excelente, observou Vergueiro abaixando o colete que havia fugido insolentemente do seu lugar.

— Tenho uns contos de réis. Queres-me para sócio? Ligaremos deste modo o sangue e a bolsa.

A resposta de Vergueiro foi menos circunspecta do que convinha em casos tais.

Levantou-se e caiu nos braços do amigo, exatamente como faria um sujeito falido a quem lhe oferecessem uma tábua de salvação. Mas nem Ayres teve semelhante suspeita, nem acertaria se a tivesse. Vergueiro nutria pelo futuro cunhado um sentimento de entusiástica amizade, e achou naquela idéia um documento da afeição do outro.

No dia seguinte deram os passos necessários para organizar a sociedade, e dentro de pouco tempo foi chamado um pintor para traçar nos portais da loja estes dois nomes, já agora indissoluvelmente ligados: Ayres & Vergueiro.

Vergueiro insistiu em que o nome do amigo estivesse antes do seu.

No dia desta pintura, houve jantar em casa, e a ele assistiram algumas pessoas íntimas, todas as quais ficaram morrendo de amores pelo sócio de Vergueiro.

Estou a ver o meu leitor aborrecido com esta singela narração de ocorrências prosaicas e vulgares, sem nenhum interesse romanesco, sem que apareça nem de longe a orelha de uma peripécia dramática.

Tenha paciência.

É verdade que, feita a sociedade, e casado o novo sócio, a vida de toda esta gente não poderá oferecer interesse nenhum que valha dois caracóis. Mas aqui intervém uma personagem nova, a qual vem destruir tudo o que o leitor pode imaginar. Não é só uma personagem; são duas, irmãs ambas poderosas: a Doença e a Morte.

A doença entrou por casa de nosso amigo Vergueiro e prostrou na cama durante dois longos meses a viúva-noiva. Não se descreve o desespero de Ayres vendo o estado grave daquela a quem ele amava mais que tudo. Esta circunstância de ver o amigo desesperado, aumentou a dor de Vergueiro, que já devia sentir bastante com os padecimentos da irmã.

Do que era a moléstia, divergiram os médicos; e todos eles com sólidas razões. O que não provocou nenhuma divergência da parte dos médicos, nem das pessoas da casa, foi o passamento da moça que se verificou às 4 horas da madrugada de um dia de setembro.

A dor de Ayres foi tremenda; atirou-se ao caixão quando os convidados o vieram buscar para o coche, e não comeu um pedaço de pão durante três dias.

Vergueiro e Carlota recearam pela saúde e até pela vida do malfadado noivo, pelo que foi assentado que ele se mudaria para a casa de Vergueiro, onde seria vigiado de mais perto.

Seguiu-se à expansão daquele imenso infortúnio um abatimento prolongado; mas a alma readquiriu as forças perdidas, e o corpo com ela se foi restabelecendo. No fim de um mês já o sócio de Vergueiro assistia ao negócio e dirigia a escrituração.

Com verdade se diz que é nos grandes infortúnios que se conhecem as verdadeiras amizades. Ayres encontrou da parte do sócio e da mulher a mais sublime dedicação.

Carlota foi para ele uma verdadeira irmã; ninguém levou mais longe e mais alto a solicitude. Ayres comia pouco; arranjou-lhe ela comidas próprias para lhe vencer o fastio.

Conversava com ele longas horas, ensinava-lhe alguns jogos, lia-lhe o Saint Clair das Ilhas, aquela velha história de uns desterrados da ilha da Barra. Pode-se afiançar que a dedicação de Carlota foi o principal medicamento que restituiu à vida o nosso Pedro Ayres.

Vergueiro aplaudia in petto o procedimento de sua mulher. Quem meu filho beija, minha boca adoça, diz um adágio; Vergueiro tinha para com o sócio extremos de pai; tudo o que se fizesse ao Ayres, era agradecido por ele do fundo da sua grande alma.

Nascida da simpatia, criada no infortúnio comum, a amizade de Ayres e Vergueiro assumiu as proporções do ideal. Na vizinhança, já ninguém recorria às expressões proverbiais para significar uma amizade íntima; não se dizia de dois amigos: são unha e carne; dizia-se: Ayres com Vergueiro. Diógenes teria achado ali um homem, e realmente ambos formavam uma só criatura.

Nunca mais sucedeu andarem com roupa de cor, fazenda ou feitio diferentes; vestiam-se igualmente, como se até nisso quisessem mostrar a perpétua aliança de suas nobres almas. Faziam mais: compravam chapéus e sapatos no mesmo dia, ainda que um deles os houvesse estragado menos que o outro.

Jantar, baile ou passeio a que um fosse havia de ir o outro por força, e ninguém se animava a convidá-los separadamente.

Não eram, pois, dois sócios simples que procuravam dos seus esforços juntos obter cada qual a sua riqueza.

Não.

Eram dois amigos íntimos, dois corações iguais, dois irmãos siameses, eternamente vinculados na terra, labutando para alcançar os bens da sorte, mas sem nenhuma idéia de os separarem jamais.

E a fortuna os ajudou, por maneira que dentro de dois anos já havia idéia de liquidar o negócio, e irem os dois e mais Carlota viver tranquilamente em uma fazenda, comendo o ganhado na graça de Deus e pleno esquecimento dos homens.

Que mau demônio, que ruim espírito veio meter-se entre eles para lhes impedir esta excelente idéia? A fortuna varia como a mulher; depois de os haver favorecido, começou a desandar.

Meteram-se eles em negócios arriscados e perderam alguma coisa. Todavia ainda tinham um bom pecúlio.

— Vamos liquidar? perguntou um dia Ayres a Vergueiro.

— Vamos.

Inventariaram as fazendas, cotejaram o seu valor com a soma das dívidas, e repararam que, se pagassem integralmente aos credores, ficariam com uma soma mesquinha para ambos.

— Continuemos o negócio, disse Ayres; trabalharemos até resgatarmos a antiga posição.

— Justo... mas eu tenho uma idéia, disse Vergueiro.

— E eu tenho outra, respondeu o sócio. Qual é a tua? — Dir-ta-ei domingo.

— E eu comunicarei nesse mesmo dia a minha idéia, e veremos qual delas serve, ou se se combinam ambas.

Seria coisa extremamente nova, e até certo ponto digna de pasmo, que aqueles modelos da verdadeira amizade tivessem idéias divergentes. A idéia anunciada para o domingo seguinte era a mesmíssima idéia, tanto no cérebro de Ayres, como no de Vergueiro.

Consistia em liquidar à sorrelfa: iriam vendendo pouco a pouco as fazendas, e sairiam da corte sem dizer adeus aos credores.

A idéia não era original; bonita parece que também não; mas era útil e praticável.

Ficou assentado que esta resolução não seria comunicada à mulher de Vergueiro.

— Reconheço, dizia Ayres, que é uma senhora de alta prudência e rara discrição...

— Não tem dúvida.

— Mas o espírito das senhoras é cheio de alguns escrúpulos, e se ela nos fosse à mão, tudo ficaria perdido.

— Estava pensando a mesma coisa, observou Vergueiro.

Concordes na promessa, não menos o foram na infidelidade. No dia seguinte, Ayres ia comunicar confidencialmente o plano à esposa de Vergueiro, e começou a dizer: — Nós vamos liquidar aos poucos...

— Já sei, respondeu Carlota, ele já me disse tudo.

Façamos justiça a esta distinta moça; depois de tentar dissuadir o marido do projeto, tentou dissuadir o sócio, mas tanto um como o outro ostentaram uma tenacidade de ferro em suas opiniões. Divergiam no modo de encarar a questão. Vergueiro não contestava a imoralidade do ato, mas achava que o benefício compensava a imoralidade; reduziu a dissertação a esta expressão popular: ande eu quente e ria-se a gente.

Ayres não admitia que o projeto ofendesse as leis da moral. Ele começava separando a moral e o dinheiro. O dinheiro é coisa de si tão mesquinha, que não podia penetrar na região sublime da moral.

— Deus, observava ele, não quer saber quanto pesam as algibeiras, quer saber quanto pesam as almas. Que importa que as nossas algibeiras estejam pejadas de dinheiro, contanto que as nossas almas estejam leves de pecados? Deus olha para as almas, não olha para as algibeiras.

Carlota alegou triunfalmente um dos dez mandamentos da lei de Deus; mas o sócio de Vergueiro fez uma tão complicada interpretação do texto bíblico, e falou com tanta convicção, que o espírito de Carlota não achou resposta suficiente, e aqui parou a discussão.

A que se não acostuma o coração humano? Lançada a má semente no coração da moça, depressa germinou, e o plano secreto passou a ser assunto de conversa entre os três conjurados.

A execução do plano começou e prosseguiu com espantosa felicidade. A firma Ayres & Vergueiro era tão honrada, que os portadores de letras e outros títulos, e até os que não tinham títulos, foram aceitando todas as delongas que os dois sócios lhes pediam.

As fazendas começaram a ser vendidas a resto de barato, não por anúncio, o que seria dar na vista, mas por informação particular que passava de boca em boca.

Nestas e noutras ocupações se abismava o saudoso espírito de Pedro Ayres, já agora deslembrado da desditosa Luísa. Que querem? Nada é eterno neste mundo.

Nada liga mais fortemente os homens que o interesse; a cumplicidade dos dois sócios apertou os vínculos da sua proverbial amizade. Era ver como eles delineavam entre si o plano da vida que os esperava quando estivessem fora do Império. Protestavam gozar do dinheiro sem recorrer às alternativas do comércio. Além dos prazeres comuns, Vergueiro possuía os do coração.

— Tenho Carlota, dizia ele, que é um anjo. E tu, meu Ayres? Por que te não casarás também? Ayres desatou do peito um suspiro e disse com voz trêmula: — Casar? Que mulher há mais neste mundo que possa fazer a minha felicidade? Ditas estas palavras com outra sintaxe que eu não reproduzo por vergonha, o desditoso Ayres sufocou dois ou três soluços e fitou os olhos no ar; depois coçou o nariz e olhou para Vergueiro: — Olha, eu não me considero solteiro; não importa que tua irmã morresse; estou casado com ela; separa-nos apenas o túmulo.

Vergueiro apertou com entusiasmo as mãos do sócio e aprovou a nobreza daqueles sentimentos.

Quinze dias depois desta conversa, Vergueiro chamou Ayres e disse que era necessário pôr termo ao plano.

— É verdade, disse Ayres, as fazendas estão quase todas vendidas.

— Subamos.

Subiram e foram ter com Carlota.

— Vou para Buenos Aires, começou Vergueiro.

Carlota empalideceu.

— Para Buenos Aires? perguntou Ayres.

— Crianças! exclamou Vergueiro, deixem-me acabar. Vou para Buenos Aires com o pretexto de negócios comerciais; vocês demoram-se aqui um a dois meses; vendem o resto, põem o dinheiro a bom recado, e partem para lá. Que lhes parece? — A idéia não é má, observou Ayres, mas está incompleta.

— Como? — A nossa ida deve ser pública, explicou Ayres; eu declararei a todos que tu estás doente em Buenos Aires e que mandas buscar tua mulher. Como alguém há de acompanhá-la, irei eu, prometendo voltar daí a um mês; a casa fica aí com o caixeiro, e... o resto... creio que não preciso dizer o resto.

— Sublime! exclamou Vergueiro; isto é que se chama estar adiante do século.

Assentado isto, anunciou aos amigos e credores que uma operação comercial o levava ao Rio da Prata; e tomando passagem no brigue Condor deixou para sempre as plagas da Guanabara.

Não direi aqui as saudades que sentiram aqueles dois íntimos amigos, quando se separaram, nem as lágrimas que verteram, lágrimas dignas de inspirar mais adestradas penas do que a minha. A amizade não é um nome vão.

Carlota não menos sentiu aquela separação, posto fosse de pequeno prazo. Os amigos da firma Ayres & Vergueiro viram bem o que era um quadro de verdadeira afeição.

Ayres não era pêco, apressou a venda das fazendas, realizou em boa prata o dinheiro da caixa, e antes de seis semanas recebeu de Buenos Aires uma carta em que Vergueiro dizia que estava de cama, e pedia a presença de sua querida mulher.

A carta terminava assim: “ O plano era excelente, e Vergueiro, lá em Buenos Aires, esfregava as mãos de prazer saboreando os aplausos que receberia do amigo e sócio pela idéia de disfarçar a letra.

Ayres aplaudiu efetivamente a idéia, e não menos a aplaudiu a amável Carlota.

Determinaram, entretanto, não sair com a publicidade assentada no primeiro plano, em vista da qual o sagaz Vergueiro escrevera a referida carta. Talvez mesmo já esse projeto fosse anterior.

O certo é que daí a dez dias, Ayres, Carlota e o dinheiro saíram furtivamente... para a Europa.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Augusto dos Anjos (Santuário de Poesias) 2

   
O MORCEGO

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede...”
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

    PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

VERSOS A UM CÃO

Que força pôde, adstrita a embriões informes,
Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?!

Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vermiformes.

Cão! — Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais...

E irá assim, pelos séculos, adiante,
Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária dos teus pais!

BUDISMO MODERNO

Tome, Doutor, esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

SONHO DE UM MONISTA

Eu e o esqueleto esquálido de Esquilo
Viajávamos, com uma ânsia sibarita,
Por toda a pró-dinâmica infinita,
Na inconsciência de um zoófito tranqüilo.

A verdade espantosa do Protilo
Me aterrava, mas dentro da alma aflita
Via Deus — essa mônada esquisita —
Coordenando e animando tudo aquilo!

E eu bendizia, com o esqueleto ao lado,
Na guturalidade do meu brado,
Alheio ao velho cálculo dos dias,

Como um pagão no altar de Proserpina,
A energia intracósmica divina
Que é o pai e a mãe das outras energias!

    SOLITÁRIO

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
— Velho caixão a carregar destroços —

Levando apenas na tumbal carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

    MATER ORIGINALIS

Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrômicos da vida;

O hierofante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.

Nenhuma ignota união ou nenhum nexo
À contingência orgânica do sexo
A tua estacionária alma prendeu...

Ah! de ti foi que, autônoma e sem normas,
Oh! Mãe original das outras formas,
A minha forma lúgubre nasceu!

O LUPANAR

Ah! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!

Este lugar, moços do mundo, vede:
É o grande bebedouro coletivo,
Onde os bandalhos, como um gado vivo,
Todas as noites vêm matar a sede!

É o afrodístico leito do hetaírismo,*
A antecâmara lúbrica do abismo,
Em que é mister que o gênero humano entre,

Quando a promiscuidade aterradora
Matar a última força geradora
E comer o último óvulo do ventre!

ÚLTIMO CREDO

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro — este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!

É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!

Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui...

Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!

SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO

Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!

Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!

A UM CARNEIRO MORTO

Misericordiosíssimo carneiro
Esquartejado, a maldição de Pio
Décimo caia em teu algoz sombrio
E em todo aquele que for seu herdeiro!

Maldito seja o mercador vadio
Que te vender as carnes por dinheiro,
Pois, tua lã aquece o mundo inteiro
E guarda as carnes dos que estão com frio!

Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos — fontes de perdão — perdoaram!

Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia do Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!

VOZES DA MORTE

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!

Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,

Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte, inda teremos filhos!

Fonte:
Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias.