segunda-feira, 5 de maio de 2014

Felipe Daiello (Dublin de Oscar Wilde)

Monumento Oscar Wilde, Parque Merrion/Dublin
Nascido em Dublin, Oscar Fingal O’ Fhahertie Wills Wilde, escritor irlandês, autor de “O Retrato de Dorian Gray, torna-se um dos maiores dramaturgos em Londres ao final do século XIX.

“A vida é muito importante para ser levada a sério.”

Circular pela atual Dublin é recordar as frases do grande pensador. Tarefa agradável, mas exige tempo e paciência.

“A ambição é o último recurso do fracassado.”

A Irlanda sempre foi berço para grandes literatos e produziu quatro prêmios Nobel de Literatura. Apesar do prestígio mundial, Oscar Wilde e James Joyce não receberam o galardão em Estocolmo. Circular à noite pelos pubs, seguindo a velha tradição, degustando a Guiness escura, contagiado pela alegria da música e da dança irlandesa, possibilita recriar e imaginar a atmosfera de velha Dublin que tanto inspirou Oscar Wilde.

“A melhor maneira de começar uma amizade é com uma boa gargalhada. De terminar com ela, também.”

Os goles da amiga, Guiness, ouvindo a alegre música irlandesa, intercalando os pratos onde a batata é a resistência, recordam o poeta:

“Devem-se escolher os amigos pela beleza, os conhecidos pelo caráter e os inimigos pela inteligência.”

Educado no “Trinity College”, local onde o famoso manuscrito de Kell está exposto, o dramaturgo teve pai médico e mãe poeta, e desde cedo, apaixonou-se pelos escritos gregos e romanos.

Em Londres, vive com amigo e retratista popular da época, Frank Miles, convivência que lhe trará problemas no futuro. O relacionamento homossexual não era aceito pela rígida sociedade vitoriana.

Em 1881, ao realizar palestras pelos Estados Unidos, conhece Henry Longfellow, Oliver Holmes e Walt Whitmann. Começa a desenvolver a teoria da beleza que deve ser o foco absoluto na arte e na literatura.

Casado, precisando sustentar dois filhos trabalha em Revistas e Magazines; publica histórias infantis. “Quando eu era jovem, pensava que o dinheiro era a coisa mais importante do mundo. Hoje tenho certeza.”

A importância de ser Ernesto será outra obra para recordar o gênio irlandês. Mas, o retrato de Dorian Gray é o seu clássico.

Única novela, “O Retrato de Dorian Gray”, de 1890 provoca uma torrente de protestos. Necessário adaptações. Surge um best seller.

“As mulheres existem para que as amemos, e não para que as compreendamos”.

Oscar Wilde, que já tivera relações homoafetivas, com o pintor Frank Miles, quando estava em Oxford, ao se relacionar com Lord Inglês provoca escândalo que o leva à prisão.

Sua esposa troca o nome de família e Oscar Wilde, após sair da prisão, nunca mais recupera o seu brilho e prestígio. Durante os seus últimos três anos de vida, pobre, miserável, circula pela Europa, vivendo em hotéis baratos e do apoio dos amigos.

“Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria da pessoa apenas existe.”

Não podemos esquecer que após a ruptura do Império Romano, a cultura ocidental foi preservada em locais ermos e escondidos dessa Terra Verde. Em mosteiros, centro de formação cultural, monges e pessoas de todo o mundo encontravam local para estudar, para ler, para traduzir e para produzir livros. Diversas línguas e culturas tinha aqui local de abrigo e de desenvolvimento. As raízes das futuras universidades estavam lançadas. Será essa a razão da Irlanda produzir nomes como: Bernard Shaw, W.B. Yeats, Swift, James Joyce, Samuel Becket, Oscar Wilde e tantos outros. Títulos de livros clássicos aparecem na memória. ‘Viagens de Gulliver’, ‘ Esperando Godot’, “Ulisses”, “O Retrato de Dorian Gray”.

“Ser grande significa ser Incompreendido.”

As frases de Oscar Wilde surgem no improviso:

“O pessimista é uma pessoa que, podendo escolher entre dois males prefere ambos.”

A arquitetura Georgiana dos prédios as pontes cercando o rio Liffey, os parques e jardins, a alegria contagiante da noite, tudo nos leva a parte antiga de Dublin. Entre ruelas estreitas e bares centenários, o Temple Bar nos aguarda. Oportunidade de esquecer por momentos a literatura e entrar direto e na gastronomia irlandesa e na magnífica escura Guiness. As canções em irlandês, difíceis de entender, serão companheiras de outras lembranças. Oscar Wilde ainda presente.

“Hoje em dia, conhecemos o preço de tudo e o valor de nada”.

“Ah! Não me diga que concorda comigo! Quando as pessoas concordam comigo, tenho sempre a impressão que estou errado”.

“Aqueles que não fazem nada estão sempre dispostos a criticar os que fazem algo”.

Dorian Gray, o seu retrato espelha a visão de Dublin e de Londres na época em que Oscar Wilde viveu e escreveu. Duas versões para o Retrato de Dorian Gray refletem a censura imposta, o preconceito, as críticas, a necessidade de escapar das alfinetadas. De tornar a obra mais aceitável, mesmo em desfavor de critérios literários.

Visitar a casa onde o poeta viveu, relembrar frases bem articuladas, cheias de vida, circular pelos locais onde ele andou, absorvendo detalhes, guardando minúcias é tentar entender o gênio. Difícil!

No parque ao lado, estátua em mármore apresenta o escritor em pose característica. Parece rir de quem chega. Algumas das suas frases estão bem a mão:

“Falar é ter demasiada consideração pelos outros. Pela boca morreu os peixes e Oscar Wilde”.

 “Crer é muito monótono, a dúvida é apaixonante”

“Se soubéssemos quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas, haveria mais silêncio neste mundo”.

“Escolho os meus amigos pela cara lavada e alma exposta”:

Junto ao mármore de sua estátua, em Dublin, além do sorriso irônico o que nos encanta são as suas expressões gravadas na negra pedra, para a eternidade:
Nos assuntos muito sérios, o essencial é o estilo, não a sinceridade.
Uma ideia que não é perigosa, não merece nem mesmo ser chamada de ideia.
A verdade pura e simples é raramente pura e nunca simples.
Não há outro jeito de livrar-se de uma tentação à não ser sucumbindo a ela.
Se você resistir, a sua alma adoecerá desejando aquelas coisas que lhe foram recusadas.
As mulheres estragam qualquer romance, com essa mania de querer que eles durem para sempre.


Fonte:
O Autor

Ana Rosenrot (O Relógio de Parede)

As batidas compassadas do relógio a marcar as horas, tão vigorosas e constantes, contrastam com as de meu coração que a cada minuto se torna mais fraco, alertando que meu fim será breve.

Nesta triste cama de hospital, o melancólico relógio que se destaca negro e acusador na cama a minha frente, infelizmente e minha única companhia nestes tristes instantes de agonia e dor.

Abandonado por todos que falsamente diziam me amar, deixei-me abater pelos problemas, ficando a mercê de conflitos e desafios que pouco a pouco flagelaram meu corpo e minha alma. Logo já não conseguia me alimentar e em menos de um mês meu coração demonstrava indícios de parada prematura; nao me importei devido ao enfraquecido estado de espírito em que me encontrava e também não fui capaz de admitir que houvesse me tornado um viciado, não conseguia enxergar meu estado mental confuso nem meu corpo cadavérico. Hoje, largado nesta cama de hospital, sinto falta do nada que deixei para trás, anos e anos de vida inútil, pessimamente aproveitada; estou agora prestes a terminar na solidão total de um leito; somente as batidas do relógio acompanham meu sofrimento e vigiam meu sono perturbado.

As horas vão passando, a morte esta cada vez mais perto, posso senti-la em meu sangue; sei que tudo estará terminado antes das doze badaladas e já está aqui, como um ser palpável, o sopro frio e as garras afiadas da dama das trevas a tocar minhas carnes, o fim vazio que tanto temi durante a vida se concretiza e eu estou sozinho, lamentando o triste destino que busquei para mim mesmo, tantos anos perdidos na desesperada busca por dinheiro, fama e poder. Obtive tudo o que ambicionei passando por cima de todos que cruzaram meu caminho, roubando, enganando e sempre mentindo.

Mas de tudo o que consegui, só me restou o suficiente para pagar um tratamento digno de um mendigo; queria tanto me curar para ter outra chance, para poder fazer tudo diferente...

As badaladas parecem aumentar seu ritmo a cada segundo, ou será meu coração galopando em direção ao fim? Desesperado grito por socorro, mas parece não existir no mundo alguém que possa me ouvir, meus sentidos estão se tornando lentos, meu cérebro lateja, não consigo respirar, sei que meu corpo miserável está partindo.

No medo sufocante que sinto nesses minutos finais e sem perspectiva de salvação, sinto um aperto no peito e uma dor dilacerante, minhas ilusões se acabam neste instante de completo desespero, um turbilhão de visões bizarras habitam minha mente e lentamente somente a imagem do relógio de parede permanece, enquanto minha alma esta prestes a abandonar sua sofrida morada, ele soa em funestas badaladas.

Banhado de suor, com a sensação de morte ainda presente, acordo assustado, o coração aos pulos, minha cabeça esta doendo horrivelmente, meu estômago se revira em náuseas, chego a esquecer que tudo foi somente um sonho e fico um bom tempo imóvel, com medo de sair da cama, um estranho pavor de estar realmente morto neste quarto tão escuro, onde só posso ouvir o badalar do relógio. Respiro fundo e procuro abrir bem os olhos, percebendo que o dia amanhecera já há algum tempo, levantei-me rápido, cambaleando, resolvido a dedicar este e todos os dias que restam de minha vida a efetuar mudanças radicais e evitar a qualquer custo que este terrível sonho – ou premonição, ou pesadelo – possa tornar-se realidade, para minha total desgraça.

Sonhos podem ser tão reveladores, que mudam nossas vidas completamente.

Fonte:
Jacqueline Aisenman (org.). Revista Varal do Brasil n. 27 b – fev 2014 ano 5 – Ed. Especial – Sonhar ainda pode
(Conto publicado na Antologia “O Sonho” da Casa do Novo Auto Editora em 1999.)

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) I

O Canto do Guerreiro

I

Aqui na floresta
Dos ventos batida,
Façanhas de bravos
Não geram escravos,
Que estimem a vida
Sem guerra e lidar.
- Ouvi-me, Guerreiros.
- Ouvi meu cantar.

II

Valente na guerra
Quem há, como eu sou?
Quem vibra o tacape
Com mais valentia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
- Guerreiros, ouvi-me;
- Quem há, como eu sou?

III

Quem guia nos ares
A frecha imprumada,
Ferindo uma presa,
Com tanta certeza,
Na altura arrojada
Onde eu a mandar?
- Guerreiros, ouvi-me,
- Ouvi meu cantar.

IV

Quem tantos imigos
Em guerras preou?
Quem canta seus feitos
Com mais energia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
- Guerreiros, ouvi-me:
- Quem há, como eu sou?

V

Na caça ou na lide,
Quem há que me afronte?!
A onça raivosa
Meus passos conhece,
O imigo estremece,
E a ave medrosa
Se esconde no céu.
- Quem há mais valente,
- Mais destro do que eu?

VI

Se as matas estrujo
Co os sons do Boré,
Mil arcos se encurvam,
Mil setas lá voam,
Mil gritos reboam,
Mil homens de pé
Eis surgem, respondem
Aos sons do Boré!
- Quem é mais valente,
- Mais forte quem é?

VII

Lá vão pelas matas;
Não fazem ruído:
O vento gemendo
E as malas tremendo
E o triste carpido
Duma ave a cantar,
São eles - guerreiros,
Que faço avançar.

VIII

E o Piaga se ruge
No seu Maracá,
A morte lá paira
Nos ares frechados,
Os campos juncados
De mortos são já:
Mil homens viveram,
Mil homens são lá.

IX

E então se de novo
Eu toco o Boré;
Qual fonte que salta
De rocha empinada,
Que vai marulhosa,
Fremente e queixosa,
Que a raiva apagada
De todo não é,
Tal eles se escoam
Aos sons do Boré.
- Guerreiros, dizei-me,
- Tão forte quem é?

O Canto do Piaga

I

Ó GUERREIROS da Taba sagrada,
Ó Guerreiros da Tribu Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.

Esta noite - era a lua já morta -
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitus! que prodígios que vil
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!

Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d’imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.

O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro - ossos, carnes - tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,
Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!

II

Por que dormes, Ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Por que dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.

Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?

Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem - vergar-se e gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?

E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitus já fugiram da Taba!
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!

III

Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente
- Brenha espessa de vário cipó -
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; é só!

Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando - lá vão.

Oh! quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Esse monstro... - o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade -
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribu Tupi vai gemer;
Hão-de os velhos servirem de escravos
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser?

Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitus já fugiram da Taba,
Ó desgraça! ó ruína!! ó Tupá!

O Canto do Índio

Quando o sol vai dentro d’água
Seus ardores sepultar,
Quando os pássaros nos bosques
Principiam a trinar;
Eu a vi, que se banhava...
Era bela, ó Deuses, bela,
Como a fonte cristalina,
Como luz de meiga estrela.

Ó Virgem, Virgem dos Cristãos formosa,
Porque eu te visse assim, como te via,
Calcara agros espinhos sem queixar-me,
Que antes me dera por feliz de ver-te.

O tacape fatal em terra estranha
Sobre mim sem temor veria erguido;
Dessem-me a mim somente ver teu rosto
Nas águas, como a lua, retratado.

Eis que os seus loiros cabelos
Pelas águas se espalhavam,
Pelas águas, que de vê-los
Tão loiros se enamoravam.

Ela erguia o colo ebúrneo,
Por que melhor os colhesse;
Níveo colo, quem te visse,
Que de amores não morresse!

Passara a vida inteira a contemplar-te,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa,
Sem que dos meus irmãos ouvisse o canto,
Sem que o som do Boré que incita à guerra
Me infiltrasse o valor que m’hás roubado,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa.
As vezes, quando um sorriso
Os lábios seus entreabria,
Era bela, oh! mais que a aurora
Quando a raiar principia.
Outra vez - dentre os seus lábios
Uma voz se desprendia;
Terna voz, cheia de encantos,
Que eu entender não podia.
Que importa? Esse falar deixou-me n’alma
Sentir d’amores tão sereno e fundo,
Que a vida me prendeu, vontade e força
Ah! que não queiras tu viver comigo,
Ó Virgem dos Cristãos, Virgem formosa!

Sobre a areia, já mais tarde,
Ela surgiu toda nua;
Onde há, ó Virgem, na terra
Formosura como a tua!?

Bem como gotas de orvalho
Nas folhas de flor mimosa,
Do seu corpo a onda em fios
Se deslizava amorosa.

Ah! que não queiras tu vir ser rainha
Aqui dos meus irmãos, qual sou rei deles!
Escuta, ó Virgem dos Cristãos formosa.
Odeio tanto aos teus, como te adoro;
Mas queiras tu ser minha, que eu prometo
Vencer por teu amor meu ódio antigo,
Trocar a maça do poder por ferros
E ser, por te gozar, escravo deles.

Ary Franco (Insensatez Materna)

         
http://gregoriojr.com
   Nem sempre somos bem sucedidos na tentativa de prestarmos uma ajuda. Não pensem que seja fácil auxiliar aqueles que não querem ser ajudados.

            Todas as quartas-feiras, cumpro minha prazerosa penitência de esperar na pracinha que minha esposa e filha terminem suas compras no supermercado em frente. Dizem que eu atrapalharia mais do que ajudaria se fosse com elas, assim, aguardo pelo celular uma ligação avisando que já estão no caixa tal (são numerados de 1 a 10) pagando as compras efetuadas.

            Normalmente, levo alpiste e miolos de pão para dar aos pombos e, sentado em um dos bancos, aprecio a frenética comilança daqueles columbídeos livres e alados, com todo o espaço do Universo ao seu dispor. Alguns deles parece que já me conhecem, pois logo que chego, de mim se acercam com seus arrulhos e rodopios, como que a cobrar-me o alimento por eles esperado. Alguns são por mim reconhecidos, destacando-se o “guloso”  que enquanto come, tenta não deixar os outros comerem distribuindo bicadas nos mais próximos. Os fones em meus ouvidos dão o arremate musical à minha aprazível espera.

            Em torno, sempre observo as pessoas passantes, aqueles também sentados à sombra em outros bancos ou até mesmo os deitados no gramado, todos vencidos pelo calor. Despertou-me curiosidade um menino sozinho orbitando uns seis aninhos, que acabara de sentar-se ao meu lado, atraído pela coreografia que os pássaros faziam durante seu ávido repasto. Parecia-me ter acabado de chorar; seus olhinhos estavam marejados e havia marcas do caminho ressecado de lágrimas em seu rostinho não muito limpo. Retirei os fones dos ouvidos e dirigi-me a ele.

–  Olá! Bonitos esses pombinhos, né?! (não houve resposta, mas mantive meu monólogo).

– Você tá triste? Fica não! Quando você chora, papai do céu também chora, sabia?

– Não tenho pai! (respondeu-me, sem tirar os olhos dos pombos).

– Você é que pensa! Todo mundo tem um pai e Ele mora lá no céu e vê tudo que acontece com a gente. Se a gente merecer, ele ajuda a gente, sabia? Cadê sua mamãe?

– Ela tá pedindo esmola e eu não quis ficar com ela. Preferi vir pra cá sentar na praça pra ver os pombos. Aí ela me deu um beliscão e eu corri pra cá. Ela diz que ganha mais se eu ficar do lado dela.

– E agora? Como é que ela vai te achar?

– Tomara que ela não ache eu!

– Olha... Papai do céu tá vendo tua má-criação e vai ficar muito triste!

– Ih! Aquele pombo tá batendo nos outros! Vou chutar ele! (e fez menção de se levantar do banco).

– Não faz isso, não! Ele é o chefe do bando e tá botando ordem nos  bagunceiros. Vamos jogar mais comida pra eles e vai acabar a briga. Quer ver?!
– Quero!

Acabei de virar o vidro de maionese que tinha trazido com o petisco das aves e a calma voltou a reinar. Nisso lembrei-me de umas moedas que trazia espalhadas na minha capanga e resolvi fazer uma brincadeira com o menino. Sem que ele percebesse, fechei em meu punho uma meia dúzia aleatória de níqueis de valores variados. O menino permanecia embevecido com o espetáculo proporcionado pelos pombos.

– Meu nome é Ary e o seu?

– É “Duardo”.  Me chamam de Duda, mas eu não gosto!

– Então vou te chamar de Eduardo, combinado?

– Combinado!

– Pera aí! O que é que você tem na sua orelha?

– Nada! (ele passou a mão na orelha e nada encontrou).

– Tem sim! Eu tô vendo! Posso tirar?

– Pode!

            Como que num passe de mágica, retirei detrás do lóbulo de sua orelha uma moeda de cinquenta centavos e entreguei pra ele. O tamanho dos olhos que ele abriu quase foi o mesmo que o de sua boca aberta.

– Pôxa, você falou que não tinha nada! Olha aí! (disse-lhe eu)

            Ele ficou apalpando a moeda uns segundos e começou a querer ver se tinha outras. Quase arrancou o lóbulo da orelha. Aí eu ri e ele também. Existe coisa mais divinamente bela que o sorriso de uma criança, mormente quando esse sorriso substitui lágrimas antes choradas?! Hein?

Responda-me você que está pacientemente me lendo até aqui!!! Sucessivamente continuei a tirar outras moedas. Duas de um real, vinte centavos, cinquenta centavos... Ele sopesava os níqueis, maravilhado e apertando-os em sua mãozinha. Foi a forma que encontrei de ajudá-lo, sem que ele sofresse mais tarde dizendo que na infância tinha sido um esmoleiro. Afinal, aquelas moedas eram dele. Ninguém as deu!

– Você quer escutar música?

– Quero!

            Encostei um dos fones no ouvido dele (na mesma orelha milagrosa que fabricava moedas) e ele ficou extasiado. Minha alegria, de repente foi bruscamente interrompida. Eduardo viu a mãe no início da praça, parada, com as mãos nas cadeiras e olhando-o. Ele imediatamente saiu correndo ao seu encontro. Gritei um tchau que não foi retribuído.

            A mãe sacudiu-o pelo braço e deu um cascudo na cabeça dele. Aí, chorei quando o menino mostrava pra mãe as moedas e apontava para sua orelhinha. Não dava pra escutar nada por causa da distância e pelo barulho das águas dançantes do chafariz ao meu lado. Ela pegou os níqueis, colocou-os em um saco encardido e empurrou o Eduardo, obrigando-o a seguir na frente dela.

            Num ímpeto, levantei-me do banco disposto a admoestar aquela megera que estava transformando um anjo em demônio. Com esse meu gesto brusco, os pombos debandaram em revoada e o vidro de maionese que estava esquecido no meu colo caiu ao chão espatifando-se. Procurei catar rapidamente os cacos e coloquei-os na lixeirinha. Ainda dava tempo de alcançá-los!

            Nisso, toca meu celular.

– Pai, pode vir, estamos no caixa 5.

            Olhei para o céu e disse: Está bem, meu Divino Pai! Já entendi Tua mensagem. Não queres que eu interfira na vida daquela mulher desnaturada. Que guarde para mim as palavras desagradáveis que iria dizer-lhe... E caminhei resignado para o supermercado, onde eu era aguardado.

– Mãe, aconteceu alguma coisa com o papai. Ele andou chorando. (disse minha filha)

– Claro que chorei! Na pressa de vir ajudar vocês, dei uma topada no meio-fio e machuquei o dedão...

– Quando chegarmos em casa, vou esfregar um pouco de arnica. (disse minha esposa)

– Não precisa não, a dor já está passando!

Fonte:
O Autor

Nádia Battella Gotlib (A Literatura Feita por Mulheres no Brasil) Parte 2

O PERIODISMO FEMININO

Um dos veículos dessa emancipação, que possibilitou a divulgação dos textos das mulheres, tanto literários quanto mais propriamente políticos, foi a imprensa. E, dentro da imprensa, o periodismo feminino. O primeiro deles foi provavelmente, segundo Dulcília S. Buitoni, o jornal carioca O Espelho Diamantino, lançado em 1827.[34] Desde então, outros jornais feitos por mulheres foram fundados com a intenção de tratar de questões ligadas às mulheres e, por vezes, problematizando questões importantes de caráter político, incluindo aí o direito ao voto.

Mas a matéria era, em geral, variada. Um dos pioneiros, intitulado Correio das Modas (1839-1841), trazia “bastante literatura, crônica de bailes e teatros e figurinos pintados à mão, vindos da Europa”.[35] E o Jornal das Senhoras, editado no Rio de Janeiro, numa primeira fase, por Joana Paula Manso de Noronha, em 1852 anunciava como objetivo colaborar para a educação da mulher, livrando-a do peso de ser considerada, pelo homem, “como sua propriedade”.[36]

Na década de 70, em 1873, é fundado o primeiro jornal feminista, O Sexo Feminino[37], com o objetivo de defender a educação da mulher. Durante a campanha abolicionista, participaram de sociedades ora simplesmente angariando fundos, ora escrevendo panfletos, ora proferindo palestras, como é o caso da pernambucana Maria Amélia de Queiroz, que em 1887 faz conferência e mais tarde colaborará no jornal A Família, editado e publicado por Josefina Álvares de Azevedo, este, mais firme nas reivindicações, chegando a defender o divórcio. Ligada ao movimento de campanha pelo sufrágio feminino, Josefina Álvares de Azevedo escreveu peça de teatro intitulada O voto feminino, em 1893, que foi representada no Teatro Dramático do Rio de Janeiro.

E tem regularidade também, uma “revista literária” publicada na virada do século, em São Paulo, intitulada A Mensageira, dirigida por Presciliana Duarte de Almeida, de 1897 a 1900.[38] A revista, centrada em questões referentes à mulher, tem como eixo das considerações a necessidade da educação feminina, no sentido de se proclamar, nas palavras da diretora, “a igualdade na diferença”. Traduz posições mais conservadoras, na defesa de uma educação da mulher que não interfira no papel de mãe e esposa, não aceitando, conforme afirmação de um colaborador da revista, “nem a mulher que vota, nem a mulher que mata!”.[39] E insere também artigos mais avançados, que defendem o voto feminino e o trabalho como instrumento de independência econômica. Um deles chega a defender um feminismo político engajado a uma prática socialista, como é o caso do artigo da escritora portuguesa Maria Amália Vaz de Carvalho, escrito e publicado na revista por ocasião do encerramento do Congresso Internacional das Mulheres, em Londres, em agosto de 1899.[40]

A importância dessa revista deve-se, sobretudo, à preocupação com a formação de um grupo ativo de intelectuais e artistas preocupado com a construção de um contexto de cultura literária. E os textos aí publicados tendem, na maioria, para a feição artística, na linha de um sentimentalismo romântico, por vezes eloquente, em sonetos e demais poemas das escritoras;  e na linha de estilo leve de crônicas alertas ao cotidiano da vida brasileira e, ao mesmo tempo, à literatura e ao feminismo internacional. Essa visão dupla causa, por vezes, contrastes curiosos. Em seção intitulada “Carta do Rio”, uma colaboradora lamenta, em tom solene, a morte do grande escritor francês Alphonse Daudet e, em seguida, comenta o aparecimento de uma “onça pintada lá para os lados do Irajá”…[41]

A publicação revela a existência de um público feminino não radical, que incorpora na revista colaboradores do sexo masculino que publicam aí textos literários e artigos de opinião. E revela também a existência de um grupo de intelectuais e artistas colaboradores que trazem dados de informação sobre a literatura feminina que se fazia nas várias regiões do Brasil da época, funcionando pois como um centro irradiador de informação a respeito da situação da literatura feminina da época.[42]

O tom da revista é o da literatura da belle-époque brasileira: leve, aparentemente descontraído, por vezes mais crítico e até polêmico, com certa ironia sutil. Os textos literários traduzem esse mesmo tom de época, situando-se entre um sentimentalismo de tradição romântica, um rigor formal de índole parnasiana e uma etereidade diáfana, típica da arte simbolista. No campo político das reivindicações, mostra a mulher entre os ‘novos’ rumos trazidos pelos movimentos emancipatórios liberais, com o abolicionismo e o republicanismo, mas atrelada ainda aos laços fortes de uma tradição burguesa calcada no exclusivismo dos seus papéis sociais domésticos.

Colaboram na revista tanto escritoras da segunda metade do século XIX, provenientes da era romântica, como Narcisa Amália, quanto escritoras que continuarão a escrever pelo início do século XX, até a segunda década, na fase do pré-modernismo brasileiro, como Júlia Lopes de Almeida.

Nesta segunda metade do século XIX, portanto, as mulheres ganham progressivamente espaço cultural, ainda que de modo um tanto acanhado e quase que sem repercussão nacional, sobretudo se se encontram em regiões afastadas da região sudeste (do Rio de Janeiro e de São Paulo, por exemplo). Além disso, a maioria das mulheres escritoras da época acumula à atividade da escrita, um trabalho didático, mais ou menos profissionalizado, e um trabalho jornalístico, na divulgação das propostas de teor feminista, mais ou menos politicamente engajado.

É o caso de, por exemplo, Maria Firmina dos Reis, professora de família humilde, que escandalizou cidade do interior do Estado quando fundou, em 1880, uma sala de aula mista, formada por meninos e meninas. Além de poesia e de romances que tratam da relação entre brancos e índios, publicou também um romance intitulado Úrsula, em 1859, em São Luís (do Maranhão). Se o enredo segue o padrão romântico, de amor, incesto e morte, o romance anuncia uma nova postura da mulher diante de problemas sociais, denunciando, de uma perspectiva abolicionista, os horrores do escravismo. Sob esse aspecto, a escritora avança ao defender certos valores, como por exemplo, a legitimidade da rebelião do filho bacharel em relação ao pai tirano; o seu projeto de se casar com uma jovem sem qualquer dote e a sua amizade por um escravo. E avança também quando atribui ao escravo uma forte personalidade.[43]

Persiste, no entanto, ao longo do século, a ideia preconceituosa de que à mulher não compete interferir nos assuntos de política. Narcisa Amália (de Oliveira Campos), por exemplo, que também foi professora, no Rio de Janeiro, e que publicou seus poemas em 1872, em volume intitulado Nebulosas, defendia ideias liberais democráticas, abolicionistas e republicanas, e por isso recebeu críticas severas. Guimarães Júnior, em carta a amigo, de 1873, referindo-se à escritora, afirma: “em suas composições políticas parece que deixa de lado a alma, para tomar a baioneta, cousa bem pouco feminina”. [44] Também C. Ferreira, no Correio do Brasil, do Rio de Janeiro, em 1872, já se pronunciara: “Mas perante a política, cantando as revoluções (…), endeusando as turbas, acho-a simplesmente fora de lugar (…) o melhor é deixar [o talento da ilustre dama] na sua esfera perfumada de sentimento e singeleza”.[45]

Mas as mulheres consideradas como fora de lugar já haviam, a essa altura, definido uma linha de ocupação do seu espaço próprio. Sob tal perspectiva, Délia, pseudônimo da gaúcha Maria Benedita Bormann, defende as propostas da ‘nova mulher’, naquele momento em voga na Europa e Estados Unidos: sexualmente independente, sem aceitar o casamento como única solução de vida e felicidade, com oportunidades de estudo e de profissionalização, com projetos de satisfação dos próprios desejos. A reação é imediata, por parte de médicos e sanitaristas, por exemplo. Mas a escritora, também abolicionista, tem participação incisiva. E a sua personagem também. No romance Lésbia, a mulher, depois de se separar de marido tirano, escreve sua própria história: emerge a mulher escritora no repertório dos enredos dos romances feitos por mulheres .[46]

A BELLE-ÉPOQUE

No final do século XIX e no início do século XX, em pleno período da belle-époque, tendências de antes (romantismo, realismo, parnasianismo, naturalismo) e tendências mais recentes (simbolismo) misturam-se, num período caracterizado, sobretudo, pela ocorrência simultânea de vários ‘ismos’, sob novas configurações: neo-romantismo, neo-parnasianismo, neo-realismo, neo-simbolismo, pré-modernismo, como num ensaio de concomitância de tendências a serem mais tarde praticadas no corpo mesmo de um só discurso, no período do pós-modernismo.[47]

Encontram-se, pois, nesse período, romances de tradição romântica, na linha folhetinesca da “profusão episódica”, como é o caso de A Divorciada, da cearense Francisca Clotilde, professora, poeta e periodista.[48] Neste, a personagem principal se dilacera em sucessivos sofrimentos, vítima de marido crápula, cujos defeitos justificam a opção da mulher pelo divórcio, com o objetivo de se casar com o homem que ela realmente ama.

No entanto, mais do que a filiação a uma linhagem de folhetins, o que interessa neste romance é justamente a construção da personagem que, premida pela infelicidade, chega a admitir a ideia do divórcio, viabilizando a ruptura de uma linha de relação conjugal formal até então considerada indissolúvel. Mas a liberação do laço matrimonial ainda não é tão simples assim. Como resolver o conflito entre a tradição dos costumes – a união oficial,  e o desejo de nova união – a satisfação do desejo da mulher, casando-se com o homem digno do seu amor e que, por feliz coincidência, ela ama? A escritora encontra uma solução: o marido morre e ela, viúva, pode então casar-se com o homem amado.

Nessa linha de enredo traçado nos meandros das miudezas da vida familiar burguesa - na cidade grande ou no meio rural pitoresco - , desenvolve-se a prosa de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), em mais de 40 anos de atividade literária dedicados tanto à ficção quanto ao jornalismo.

Nas dezenas de livros publicados (entre romances, contos, crônicas, literatura infantil e pouco teatro) a escritora nos fala de um lugar cultural já conquistado pela mulher. O tema aparece já nos seus primeiros versos e no primeiro artigo publicado, em 1881, graças ao auxílio do pai, num jornal de Campinas, sobre uma artista de teatro. Mais acentuadamente, desenvolve-o a partir de 1886, quando publica seu primeiro livro, e ao longo de sua colaboração na imprensa, na revista A Semana, no Rio de Janeiro. Engaja-se, a certa altura, na luta pela emancipação da mulher integrando o grupo da Legião da Mulher Brasileira, liderado por Bertha Lutz. Sua atividade intelectual manifesta-se também no território da vida pessoal: casa-se com um escritor português, Filinto de Almeida; participa, com o marido, das reuniões para fundação da Academia Brasileira de Letras, embora o marido para lá entre e ela, não; escreve texto com o marido, usando o pseudônimo de “Filinto”; e terá filhos escritores: Afonso, Albano, poetas; e Margarida Lopes de Almeida, célebre declamadora.

Os romances, narrados com simplicidade e de modo agradável, seguem esquemas de enredo calcados no amor, por vezes trágico: é o caso de A viúva Simões, de 1897, em que duas mulheres, mãe e filha, amam o mesmo homem e enlouquecem. Noutros, aborda pontos que atestam sensibilidade diante da realidade brasileira: “histórias de nossa terra” e da vida rural na roça, por exemplo, ou a expulsão dos pobres das zonas mais centrais da cidade, no Rio de Janeiro.

A sua posição em relação aos papéis sociais da mulher é ambígua: de um lado, defende-a enquanto mãe e esposa[49]; de outro, investe no apoio a sua capacidade de trabalho e a sua força para gerir recursos que lhe garantam uma sobrevivência e autonomia financeira. Embora ciente da encruzilhada de opções da mulher – entre formas mais tradicionais e outras mais inovadoras de atuar profissionalmente - a escritora mais levanta que problematiza tais questões. Mostra, por exemplo, sensibilidade diante das diferenças e discriminações sociais, defendendo o abolicionismo. E realça o contraste cruel entre a riqueza da oligarquia endinheirada do café e a miséria dos escravos e colonos imigrantes, como no romance A família Medeiros, de 1892.

É o caso, também, do volume de crônicas intitulado Eles e Elas, publicado em 1910, significativo enquanto tradução de clima de época, na leveza de tom típico da segunda década do século. Neste, a narradora expõe a relação homem/mulher no território da ordem social brasileira, a partir de um recurso que usa com rara habilidade: o de monólogos e diálogos - recurso que permite a fala, direta, das mulheres e homens a respeito dos seus próprios problemas, na maioria, conjugais.

Partindo sempre de situações banalíssimas do cotidiano, surgem os detalhes de comportamento, em tom bem humorado, usados teatralmente, a garantirem a eficácia do texto como uma espécie de comédia de costumes. Neste contexto é que surge uma de suas personagens, a mulher consciente mas inoperante, que se reconhece como “boneca de carne e osso” e “mais nada”, mas sem força para se livrar dessa dependência. E mais: sem nem mesmo ter palavras para se fazer entender pelo marido…[50] Daí o tom duplo que estes contos/crônicas têm: aparentemente, ligeiros, quase levianos, mas, ao mesmo tempo, um tanto trágicos, já que, por detrás da fala conformada da mulher, que apenas se distrai, entre compras e chás, entre as curvas e ornamentos do cenário belle-époque, pesa uma certa amargura de situação mal resolvida.

O interesse dessa ‘visão de dois’ reside, ainda, no modo como o livro se desenvolve, como se fossem sketches que se sucedem, em diferentes situações, com alternância de pontos de vista: ora é a mulher, ora é o homem que fala. Mas paira a voz da autora-narradora, que usa o ridículo para se manifestar contra certos papéis sociais na relação homem/mulher. Um dos seus personagens, por exemplo, um homem, quando chega em casa e não acha a mulher... clama contra o feminismo. Mas, ao mesmo tempo, ele aparece em cena sendo ridicularizado pelo narrador, que bem poderia ser a mulher escritora Júlia, aí implícita.

A narradora parece seguir o preceito que anuncia logo no início do livro e como epígrafe: no livro o leitor encontrará mínimos detalhes insignificantes, mas a vida compõe-se de detalhes, como a hora se compõe de minutos. E parece praticar o “defeito” de um dos seus personagens: o de “esquadrinhar intenções e ideias através dos ditos mais simples ou das expressões mais banais...”.[51]

Através da simplicidade da narradora, reconhecida pela crítica, e do seu aparente “tom  menor”, desenha-se, pois, um diagnóstico de comportamento que se pauta por alegrias leves e também por crueldades e perversões, já que, segundo um dos personagens (e poderia afirmar uma vez mais, segundo a autora implícita) “a educação da mulher só tem servido para a criação de mártires ou de hipócritas”.[52]

Num sistema de constante liberdade vigiada, o homem tenta manter a mulher em zona de segurança. Como articulador da ordem, tenta controlar possíveis desvios. E, por sua vez, resguarda o seu próprio espaço de intimidade e privacidade. Como a experiência clandestina, tanto do homem quanto da mulher, não pode ser ventilada, nas diversas situações da relação, vence a moral da dissimulação necessária. Explicitamente, só resta a máscara. E para a mulher, ela paira, sob o invólucro de chapéus com véus e plumas, que sinalizam uma aparente e boa consciência e o dever também aparente do bem-estar social.

Já na poesia do início do século, pelo menos duas tendências se sobressaem. Na linha da tradição herdada do final do século XIX e que persistem, em alguns casos, até os anos 20 do século seguinte, persiste a poesia que prima pelo acabamento nos moldes parnasianos, na trilha de um dos líderes desse movimento: o poeta Olavo Bilac. É o caso da escritora Francisca Júlia, por exemplo, que mantém repertório temático de gosto greco-latino e cultiva sonetos imitados dos poetas-homens que considerava mestres. Até nos próprios títulos nota-se o aplacamento de ânsias e emoções, que são praticamente domesticadas em favor da objetividade e dos rigorosos compromissos formais. Um dos seus livros de poemas intitula-se Mármore, publicado em 1895; e outro, já de 1920, intitula-se Esfinges. Neste, um dos poemas intitula-se “Musa impassível”...

Mário de Andrade, na célebre série de artigos intitulados “Mestres do Passado” e publicados em São Paulo, no Jornal do Commercio, em 1921, ao criticar os parnasianos Olavo Bilac, Raimundo Correa, Alberto de Oliveira, Vicente de Carvalho, inclui aí sua crítica a Francisca Júlia que, segundo o crítico, era didática e também “gelada”…e sacrificava a poesia à arte de “fazer belos versos”.[53]

Paralelamente, um outro tipo de poesia se instaura: a poesia erótica de Gilka Machado, que foi muito divulgada no seu tempo. Contrariamente a colegas suas que tentavam aplacar sensações e sentimentos e procuravam, ao fazer poesia, não se manifestar enquanto mulheres, Gilka Machado elege o desejo feminino como principal motivo de construção poética.

Aos 22 anos, inicia uma carreira poética marcada por dados de uma sensibilidade íntima da mulher, patente nos títulos de livros de poemas: Cristais partidos, de 1915; Estados de alma, de 1917; Mulher nua, de 1922; Meu glorioso pecado, de 1928. Nesses poemas, embora haja cuidados de teor parnasiano, a poeta adota soluções de teor simbolista, que funcionam como válvulas de escape de suas pulsões sensoriais. Os sentidos são cultivados até com certo requinte, regados a perfumes de sândalo, manacás, rosas, violetas e sempre-vivas. E a sensualidade ganha espaço, em poemas sobre temas até então proibidos: o “cio”, “a volúpia”, por exemplo.[54] Mas as sensações, de caráter liberador, são mobilizadas em poemas de ansiedade e de denúncia social do papel da mulher reprimida.

Além de reivindicar o direito de tomar decisões a respeito do próprio corpo e o direito de sua representação sob a forma poética, a poesia de Gilka Machado vai mais além: acusa os agentes opressores – os homens; e proclama a rejeição dessa forma reprimida de ser mulher.

A crítica, diante dessa escritora forte e decidida, adotou solução curiosa: defendeu a mulher- esposa e mãe. Aliás, Gilka Machado batizou a filha com o nome de Eros Volúsia, menina que haveria de se tornar bailarina famosa, com experimentações na linha da dança de motivos nacionais brasileiros. Assim como a crítica defendeu a mulher-esposa e mãe, separou-a da mulher-artista e  poeta.[55] Portanto, incapaz de admitir as duas em uma, dividiu a Gilka Machado em duas. Uma delas é a “poetisa de imaginação ardente, transpirando paixão carnal nos seus nervos”; e a outra é “a mais virtuosa das mulheres e a mais abnegada das mães”.[56] A artista ainda não podia ser socialmente aceita como uma mulher que tem – e que manifesta – seus desejos.
 
 A ECLOSÃO DO MODERNISMO E O ROMANCE SOCIAL


Curiosamente, na década de 20, enquanto as mulheres se notabilizavam pela produção plástica, as escritoras continuavam a escrever como os homens de antes – adotando posturas de um romantismo, um parnasianismo ou um simbolismo tardio. Ou escreviam como mulheres, misturando tendências, mas desbravando um novo repertório temático, marcado pelo sensualismo vigoroso, quando, então, eram vistas com reservas por esse mesmo público.

Embora a literatura feita por mulheres nos anos 20 não tenha ainda sido suficientemente examinada, pode-se, até o presente momento, afirmar, com base nos dados de que dispomos, que a literatura feminina dos anos 20 não teve o mesmo vigor e divulgação que as artes plásticas produzidas pelas mulheres neste mesmo período. Anita Malfatti, em 1917, com suas desenhos e óleos de cunho expressionista/cubista, inaugurava o modernismo, chocando a opinião pública de concepção mais conservadora, de que nos ficou documento primoroso do ponto de vista do registro da recepção: o depoimento de Monteiro Lobato que, surpreso e desorientado, preferia devolver para um outro o que dessa arte recebera, perguntando, desconcertado, se tal pintura seria uma paranóia (loucura que levava o artista a perseguir o espectador) ou seria uma mistificação (fingimento do artista que dava como sendo bom o que era ruim).[57]

Se sua arte não agradou a Lobato, nem mesmo a alguns modernistas, como Tarsila do Amaral, já estava feita a primeira revolução nas artes plásticas brasileiras. A abdicação do figurativismo acadêmico cedia terreno às cores fortes, pinceladas largas, em expressões conturbadas de sofrimentos e anomalias mentais, num tipo de pintura e desenho que valorizava a energia, tanto  da musculatura da figura humana, quanto dos elementos que integravam paisagens.

E Tarsila do Amaral inaugurava, a partir de 1925, com seu parceiro e marido Oswald de Andrade, a arte pau-brasil, após célebre viagem passando Semana Santa em Minas Gerais e Carnaval no Rio de Janeiro. Mais tarde, por volta de 1928, o chamado “casal Tarsiwald” (Tarsila e Oswald de Andrade casaram-se em 1926), pratica a arte da antropofagia, inaugurada com quadro de Tarsila do Amaral, intitulado “Abaporu” (o homem que come carne humana), arte que teve manifesto, revista, muitos quadros, poemas, críticas e, nesse mesmo ano, Macunaíma, de Mário de Andrade.

Tanto na fase do pau-brasil quanto na fase da antropofagia, a arte de Tarsila do Amaral inventa um novo modo de olhar a realidade brasileira, pela volta às raízes da sua cultura, relendo toda uma história, retraduzindo-a mediante o desrecalque do que até então era considerado secundário e  indigno de entrar no rol dos repertórios plásticos: as cores rosa e azul, por exemplo. Cria um Brasil geometrizado, com cores e formas variadas, de teor infantil e alegre, na fase pau-brasil. Cria um Brasil onírico, com cores fortes e intensas, remetendo a lendas, mistérios e mitos populares, na fase da antropofagia.

Mas na literatura não houve uma manifestação das mulheres correspondente à participação das mulheres nas artes plásticas nesse momento de eclosão modernista. Nenhuma mulher participou, como escritora, da Semana de 22. E as que na época escreviam, na sua maioria filiavam-se a movimentos que provinham do século XIX. No entanto, o modo de participação de tais escritoras na vida cultural brasileira dos anos 20 ainda está para ser devidamente avaliado.

No final da década de 20 surge uma escritora que funcionará como uma espécie de símbolo da ponte entre o grupo modernista dos anos 20, esteticamente inovador, e o grupo dos escritores engajados politicamente que atuarão após a Revolução de 30, a qual põe fim à chamada República Velha dominada pela oligarquia cafeeira.

Patrícia Galvão, chamada Pagu, nos seus dezoito anos, foi recebida pelo casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Pagu seria a próxima mulher de Oswald de Andrade e iria escrever, em 1931, com pseudônimo de Mara Lobo, um romance intitulado Parque Industrial, publicado dois anos mais tarde: em 1933.[58]

Talvez a figura de Pagu, marcada pela militância política, tenha sido o seu traço mais importante, sobretudo com suas crônicas jornalísticas. Estas foram escritas logo depois do seu livro de poemas com arranjo gráfico inovador, o “Album de Pagu - Vida, Paixão e Morte”, de 1919. E ocuparam a coluna “A Mulher do Povo”, em jornal que publicou com Oswald de Andrade em 1931 e que depois de 8 números foi fechado pela polícia, após brigas entre pessoas da redação, em especial, Oswald de Andrade, e estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo. Mais tarde a militante Pagu será presa na França. E, de volta ao Brasil, passará cinco anos na cadeia, dos seus 25 aos 30 anos: de 1935 a 1940.

Pagu, neste seu romance dos anos 30 - portanto, dentro do clima literário do momento, que foi o do romance social - toma por fio do enredo a questão trabalhista e a causa revolucionária comunista. Os personagens classificam-se segundo adesão ou não à causa. E, consequentemente, segundo a classe social. Dessa forma, um deles representa a adesão firme: é morto pela polícia em pleno movimento grevista. Outro, da classe alta, abandona seu lugar social em favor do proletariado, mas é expulso do partido, acusado de trotskysta. Dentro dessa perspectiva é que surgem as classes de mulheres. E, sob esse aspecto, a narradora é implacável.

As da classe alta são “éguas do mesmo pedigree”. São elas “meia dúzia de casadas, divorciadas, semi-divorciadas, virgens, semi-virgens, sifilíticas, semi-sifilíticas. Mas de grande utilidade política. Boemiazinhas conhecendo Paris. Histéricas. Feitas mesmo para endoidecer militares desacostumados”.[59] Dentre estas, há mocinhas da Escola Normal, à espera dos futuros maridos. E há madames preocupadas apenas em experimentar vestidos nas modistas de renome, atitude tão inócua quanto a fala dita politizada de uma delas, que pergunta: “ - Como não hei de ser ‘comunista’, se sou ‘moderna’?[60] A crítica ao feminismo burguês incipiente e retrógrado é a marca por excelência da caracterização das personagens femininas no romance.[61]

Defende, pois, um feminismo dependente de reformas mais globais e ligadas a mudanças sociais baseadas em princípios do materialismo histórico, bandeira que carregou também nas colunas críticas “A Mulher do Povo”. Aí faz acusação veemente às mulheres fúteis, que ela chama de “baixa da alta”.[62]

A atitude de consciência política manifesta-se, inclusive, no comportamento afetivo de certa personagem, que, no entanto, deve ceder diante dos compromissos partidários e abdicar da relação amorosa, pondo à prova, assim, suas convicções políticas.

A romancista prima por praticar recursos que favorecem o dinamismo da narrativa, como frases brevíssimas em linguagem telegráfica, imagens-flashes fotográficas e reunidas por colagem, segundo os moldes do modernismo dos anos 20. Mas o romance se sobressai mais pelo seu tom de firme inconformismo, buscando novos caminhos de ação prática e evitando o perigo da simples e passiva constatação da vitimização da mulher e do homem, agora, unidos ou enquanto operários, ou enquanto militantes, diante das circunstâncias nefastas de desigualdade social.

Este também é o eixo central do romance escrito por Rachel de Queiroz em 1937, intitulado Caminho de pedras. Depois de se dedicar ao romance nordestino, abordando o tema da famosa seca de 1915, no romance por isso intitulado O quinze, de 1930, a escritora conta a história de mulher que escolhe o seu companheiro: abandona o marido que ela não ama e se une a um outro homem, enfrentando os preconceitos que tal decisão provoca.

Fica, do romance, uma especial sensibilidade da narradora em relação à personagem feminina, que aparece representada na sua integridade de caráter, marcada pela firmeza e pertinácia nos caminhos políticos e afetivos. O equilíbrio manifesta-se no percurso da ação, entre o comportamento individual e coletivo. Os fatos da intimidade, que afloram e se expandem, revertem em ações práticas de satisfação, equilibrando-se com os da vida social, que se justificam na prática da militância política. De um lado, a paixão. De outro, a revolução. E os dois, unidos nesta dupla e harmoniosa causa. Concluindo: diria que houve, nesse romance, por parte da sua autora, Raquel, a construção de uma feliz coincidência: o homem amado ser também o colega político...até que um final infeliz os separe.

Nesta história, parece haver muito da história da própria autora, que, com seus 27 anos de idade, já havia passado por boa literatura com seu célebre O Quinze, e já havia passado pelo Partido Comunista, de 1931 a 1933; e é presa como trotskysta neste mesmo ano de 1937, justamente no ano da publicação deste romance, o Caminho de pedras.

Mas se existe uma contenção estrutural que assegura permanente equilíbrio entre forças individuais e sociais, tônica dos romances da época, existe também uma argúcia e respeito da autora na construção de estados da intimidade. O engajamento político não reduziu os limites do horizonte das personagens; antes parece haver contribuído para a melhor apreensão da natureza dos sentimentos, como o da paixão, representado na sua complexidade, e acarretando, por vezes, reações insuspeitadas. É o caso do momento em que a personagem feminina, fugindo da estreiteza da vida cotidiana infeliz e mesquinha, se expande pelo imaginário de histórias de mulheres “heróicas, livres e valentes”, embriagada por tais “possibilidades de libertação”.[63]. É o caso também de momentos de sutileza, em que se espera tudo e, aparentemente, nada acontece a não ser o fluxo irremediável do sentimento, simplesmente acontecendo, como se fosse um crime: “essa força invencível arrastando, fazendo agir, e essa lucidez melancólica e impotente constatando”.[64]

Foi justamente esta capacidade de perceber nuances de um comportamento feminino apaixonado que se vê abandonar às suas forças - o que considero, tal como aqui foi construído, uma qualidade - , foi justamente este fato que a crítica não reconheceu, ao elogiar seus valores de escritora. Olívio Montenegro, por exemplo, e justamente no “Prefácio” deste livro, atribui o valor da escritora ao fato de, em nenhum de seus romances, deixar “trair (manifestar) o sentimentalismo do seu sexo”, pois o que a distingue, afirma ele, é ser “uma personalidade viril”...[65]

Uma das boas razões que encontra para elogiar os livros - e talvez tivesse razões para isso - é que a escritora, além de ser homem na escrita, não “se detém tampouco em nenhuma fantasia.” Parece não haver ele lido o trecho em que existe a entrega da personagem feminina principal a um sonho de libertação. E não haveria como executar, na prática, o projeto de libertação do caminho de pedras - individual e coletivo - sem se deixar levar por estes caminhos de areia do imaginário, sacudindo, de vez em quando, os sapatos, na feliz companhia do amante camarada.

Os romances de Lúcia Miguel Pereira, ainda nos anos 30, não têm a tônica da mudança social, com traços de invenção modernista, mas radical nas colocações - como o de Pagu-Mara Lobo. Nem se trata de narrativa mais tradicional, sensível às pulsões da fantasia, como o de Rachel de Queiroz. Centra-se, de acordo com a linhagem dos romances do século passado, no fio das questões da sociedade burguesa, nas suas relações dentro do núcleo familiar. Mantém-se estritamente dentro destas células da família, abrindo apenas este circuito, tenuamente, em função de um ou outro acontecimento, desde que não comprometa as fronteiras internas deste território tão bem delimitado.

Nenhum dos seus três romances publicados nesta década foge a essa regra: Maria Luiza[66], de 1933, conta a história da mulher casada, que comete adultério, sente-se culpada e se refugia na religião. No romance Em Surdina[67], também de 1933, a personagem feminina principal não se casa porque não enfrenta a libertação da autoridade do pai nem reconhece, como válidos, os valores do casamento - como também não se contenta com os valores de solteira com os quais tem de se defrontar. No romance Amanhecer[68], de 1938, a personagem feminina nem se casa, como no primeiro romance; nem fica solteira, como no segundo. Junta-se a um amigo, mas também não é feliz. Assim sendo, nem o casamento, ainda que com adultério, nem o celibato, nem o concubinato, trazem a felicidade para a mulher. Apenas no último romance, de 1954, Cabra-Cega[69], a  personagem experimenta um momento de felicidade, quando tem caso com um sujeito que mal conhece e constrói, assim, o seu “segredo”. (Clarice Lispector diria: a sua “felicidade clandestina”.) Que dura, aliás, muito pouco.

A estrutura romanesca traduz, nesse universo fechado e severo, os resultados de uma experiência de vida da autora que se desenvolveu em ambiente de formação católica acentuada, ligada ao grupo Dom Vital, no Rio de Janeiro, a que se somariam outras experiências: a de mulher casada com historiador de renome, Otávio Tarquínio de Sousa; a de mulher de grande atividade intelectual, também funcionária da Secretaria de Educação e Cultura e da Biblioteca de Educação, integrante da comissão Machado de Assis, encarregada da publicação das obras desse autor; a de biógrafa - de Machado de Assis e de Gonçalves Dias; a de tradutora, ensaísta, jornalista, e, sobretudo, crítica.

Os romances trazem as marcas dessa formação. A estrutura do primeiro deles, Maria Luiza, inclui digressões de ordem religiosa, filosófica, moral, voltadas, na maioria, para as fases da experiência da personagem que caminha do dever ao prazer, e do prazer, novamente ao dever, passando, ao final, por toda sorte de mortificações, até a confissão e absolvição. E se a linguagem é bem organizada, sem grandes lances imagísticos, restringe-se ao andamento episódico, com amarração um tanto frouxa entre alguns capítulos. E é no segundo, Em Surdina, que a narradora desenvolve uma verdadeira inquisição a respeito do que é a vida de mulher carioca, com papéis sociais bem demarcados.

Anuncia, pois, e critica, as várias opções de vida da mulher: se casada, escrava, dependente financeiramente e mentirosa; ou casada e mãe, verdadeira criadeira, decadente fisicamente; ou ainda casada e separada tragicamente;  ou casada sem afinidade com o marido e infiel a ele. Deste emaranhado de funções, só a solteira se salva, conservando certa dignidade - ainda que sem muita alegria. Este retrato de família brasileira carrega um substrato moralista de crítica à avareza, ao hedonismo, ao adultério, aos prazeres exagerados, ao egoísmo, ao casamento sob variadas formas, ao comportamento estereotipado. E defende a liberdade ainda que relativa e a criação literária.

A autora denuncia, pois, a pressão das convenções de família, a submissão da mulher diante de tal peso e os vícios de uma família aparentemente bem comportada. Não há satisfação pessoal nessas relações convencionais. Simplesmente porque tais relações são convencionais, ou seja, a experiência aparece filtrada pela barreira das regras movidas a hipocrisia de uma sociedade que perdeu o sentido da experiência de sua própria autenticidade. Perdeu-se a própria identidade primitiva, única garantia possível de sobrevivência - diria - criativa e, assim, original.

A constatação dessa perda de identidade e a sua problematização, pela prática de uma linguagem literária, é o que a poesia de Cecília Meireles e a prosa de Clarice Lispector efetivamente executam, nas décadas subsequentes, a partir da década de 40.
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NOTAS

[34] Dulcília Schroeder Buitoni, Imprensa Feminina. São Paulo, Ática, 1986. Cf. Dulcília Schroeder Buitoni, Mulher de papel. A representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. São Paulo, Loyola, 1981.

[35] Dulcília Schroeder Buitoni, ob. cit., p. 38.

[36] June E. Hahmer, A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas (1850-1937). São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 35.

[37] O Sexo Feminino foi fundado pela professora Francisca Senhorinha da Motta Diniz, em Campanha da Princesa, em Minas Gerais. Cf. June E. Hahmer, ob. cit., p. 52.

[38] A Mensageira. Revista literária dedicada à mulher brazileira, Diretora: Presciliana Duarte de Almeida. Edição fac-similar. 2 v. Comentários: Zuleika Alambert. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado,  Secretaria de Estado da Cultura, 1987.

[39] J. Vieira de Almeida, “Chronica omnimoda”. A Mensageira, ano I, n. 3, 15 nov. 1897, v. 1, p. 33.

[40] Maria Amália Vaz de Carvalho, “A mulher do futuro”. A Mensageira, ano II, n. 31, 31 ago. 1899, v. II, p. 139.

[41] Maria Clara da Cunha Santos, “Carta do Rio”. A Mensageira, ano I, n. 6, 30 dez. 1897, v. I, p. 82-83.
Irajá é bairro da cidade do Rio de Janeiro.

[42] Interessante observar a menção à então contemporânea produção literária feminina, pela referência a escritoras brasileiras sob a forma de notícias, num relato ‘vivo’, em tom de crônica, da vida cotidiana literária brasileira. É o caso, por exemplo, do artigo de Pelayo Serrano (Nelson Senna), “Intelectualidade feminina brasileira”, publicado em: A Mensageira, ano I, n. 7, 15 jan. 1898, v. I, p. 103-106. As resenhas de livros escritos por mulheres e as referências a obras recebidas pela redação ajudam a compor um perfil de contexto de literatura feita por mulheres na época.

[43] Cf. Norma Telles, “Escritoras, escritas, escrituras”. Em: Mary Del Priore (Org.), História das mulheres no Brasil. 2. ed. São Paulo, Contexto/Editora UNESP, 1997, p. 414. Ver também: Norma Telles, Encantações: Escritoras e imaginação literária no Brasil do Século XIX. São Paulo, NAT Editora, 1998.

[44] Cf. Norma Telles, “Escritoras, escritas, escrituras”, em Mary Del Priore (Org.), ob. cit., p. 423.

[45] Cf. Norma Telles, ob. cit., p. 422.

[46] Cf. Norma Telles, ob. cit., p. 431-435.

[47] Para o estudo da cultura literária da belle-époque, sobretudo no que se refere à participação das mulheres nos salões literários, ver: Jeffrey D. Needell, Belle Époque Tropical: Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. Trad. Celso Nogueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.

[48] Francisca Clotilde, A Divorciada. Fortaleza, 1902. Dele há edição recente: Francisca Clotilde, A Divorciada. Romance. 2. ed. atualizada, acrescida de estudos críticos de Otacílio Colares, Angela Barros Leal, Nádia Battella Gotlib. Ceará, Terra Bárbara, 1996.

[49] É o caso do manual em que dá conselhos às noivas, publicado com o título de O livro das noivas em 1896.

[50] Julia Lopes de Almeida, “Cada vez que…”. Em: Eles e Elas. 2. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1922, p. 21-28.

[51] Julia Lopes de Almeida, ob. cit., p.185.

[52] Julia Lopes de Almeida, ob. cit., p. 169.

[53] Mário de Andrade, “Mestres do Passado”, em: Mário da Silva Brito, História do Modernismo brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte Moderna. 4. ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974, p. 259-266.

[54] Gilka Machado, “Nocturno VIII”. Em: Poesias (1915-1917). Rio de Janeiro, Jacintho Ribeiro dos Santos, 1918, p. 13. (Esta edição reúne Cristais Partidos e Estados de alma).

[55] Uma leitura da fortuna crítica de Gilka Machado desenvolvo em: Nádia Battella Gotlib, “Com dona Gilka Machado, Eros pede a palavra. (Poesia erótica feminina brasileira nos inícios do século XX).” Polímica: Revista de crítica e criação. São Paulo, n. 4, 1982, p. 23-47. Ver: Sylvia Paixão, A fala-a-menos: A repressão do desejo na poesia feminina. Rio de Janeiro, Númen, 1991.

[56] Humberto de Campos, Crítica. 2. ed. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre, W. M. Jackson, 1945, p. 400.

[57] Monteiro Lobado, “A propósito da Exposição Malfatti”. O Estado de S. Paulo, 20 dez. 1917. O artigo, que ficaria conhecido através de um outro título, “Paranóia ou Mistificação?”, encontra-se transcrito em: Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro. I – Antecedentes da Semana de arte Moderna. 4. ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974, p. 52-56.

[58] Mara Lobo (Patrícia Galvão), Parque Industrial. São Paulo, 1933.

[59] Idem, ibidem, p. 86.

[60] Idem, ibidem, p. 38.

[61] Cf. Nádia Battella Gotlib, “A mulher artista, a mulher arteira: Pagu, ou uma certa poética política dos anos 30”. Belo Horizonte, Cadernos do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher/ UFMG, n. 6, nov. 1988, p. 63-74.

[62] Pagu, “A Baixa da Alta”. “O Homem do Povo” n. 2, 28 mar. 1931. In Augusto de Campos (Org.), ob. cit., p.82.

[63] Rachel de Queiroz, Caminho de Pedras. 7. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1979, p.45.

[64] Rachel de Queiroz, ob. cit., p. 69.

[65] Olívio Monenegro, Prefácio. In: Rachel de Queiroz, ob.cit., p.VIII.

[66] Lúcia Miguel Pereira, Maria Luiza. Rio de Janeiro, Schmidt, 1933.

[67] Lúcia Miguel Pereira, Em Surdina. 3. ed. Rio de Janeiro, José Olympio ed., 1979.

[68] Lúcia Miguel Pereira, Amanhecer. Rio de Janeiro, José Olympio ed., 1938.

[69] Lúcia Miguel Pereira, Cabra-Cega. Rio de Janeiro, José Olympio ed., 1954.

 
Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm  em 19/02/2012

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Nilto Maciel (30 janeiro 1945 - 30 abril 2014)

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Nilto Maciel (1945 – 2014)

Nasceu em Baturité, Ceará, em 30 de janeiro de 1945.

Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará em 70.

Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco.

Mudou-se para Brasília em 77, tendo trabalhado na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF.

Regressou a Fortaleza em 2002.

Editor da revista Literatura desde 91.

Faleceu em Fortaleza, a 30 de abril de 2014.

Obteve primeiro lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais:
Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 1981, com o livro de contos Tempos de Mula Preta;

Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 1986, com o livro de contos Punhalzinho Cravado de Ódio;

“Brasília de Literatura”, 90, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Distrito Federal, com A Última Noite de Helena;

“Graciliano Ramos”, 92/93, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Alagoas, com Os Luzeiros do Mundo;

“Cruz e Sousa”, 96, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Santa Catarina, com A Rosa Gótica;

VI Prêmio Literário Cidade de Fortaleza, 1996, Fundação Cultural de Fortaleza, CE, com o conto “Apontamentos Para Um Ensaio”;

“Bolsa Brasília de Produção Literária”, 98, categoria conto, com o livro Pescoço de Girafa na Poeira;

“Eça de Queiroz”, 99, categoria novela, União Brasileira de Escritores, Rio de Janeiro, com o livro Vasto Abismo.

Organizou, com Glauco Mattoso,
Queda de Braço – Uma Antologia do Conto Marginal (Rio de Janeiro/Fortaleza, 1977).

Participa de diversas coletâneas, entre elas Quartas Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, org. por Rinaldo de Fernandes (Ed. Garamond, Rio de Janeiro, 2006).

Tem contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. O Cabra que Virou Bode foi transposto para a tela (vídeo), pelo cineasta Clébio Ribeiro, em 1993.

LIVROS PUBLICADOS:

- Itinerário, contos, 1.ª ed. 1974, ed. do Autor, Fortaleza, CE; 2.ª ed. 1990, João Scortecci Editora, São Paulo, SP.

- Tempos de Mula Preta, contos, 1.ª ed. 1981, Secretaria da Cultura do Ceará; 2.ª ed. 2000, Papel Virtual Editora, Rio de Janeiro, RJ.

- A Guerra da Donzela, novela, l.ª ed. 1982, 2.ª ed. 1984, 3.ªed. 1985, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, RS.

- Punhalzinho Cravado de Ódio, contos, 1986, Secretaria da Cultura do Ceará.

- Estaca Zero, romance, 1987, Edicon, São Paulo, SP.

- Os Guerreiros de Monte-Mor, romance, 1988, Editora Contexto, São Paulo, SP.

- O Cabra que Virou Bode, romance, 1.ª ed. 1991, 2.ª ed. 1992, 3.ª ed. 1995, 4.ª ed. 1996, Editora Atual, São Paulo, SP.

- As Insolentes Patas do Cão, contos, 1991, João Scortecci Editora, São Paulo, SP.

- Os Varões de Palma, romance, 1994, Editora Códice, Brasília.

- Navegador, poemas, 1996, Editora Códice, Brasília.

- Babel, contos, 1997, Editora Códice, Brasília.

- A Rosa Gótica, romance, 1.ª ed. 1997, Fundação Catarinense de Cultura, Florianópolis, SC (Prêmio Cruz e Sousa, 1996), 2.ª ed. 2002, Thesaurus Editora, Brasília, DF.

- Vasto Abismo, novelas, 1998, Ed. Códice, Brasília.

- Pescoço de Girafa na Poeira, contos, 1999, Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, Brasília.

- A Última Noite de Helena, romance, 2003. Editora Komedi, Campinas, SP.

- Os Luzeiros do Mundo, romance, 2005. Editora Códice, Fortaleza, CE.

- Panorama do Conto Cearense, ensaio, 2005. Editora Códice, Fortaleza, CE.

- A Leste da Morte, contos, 2006. Editora Bestiário, Porto Alegre, RS.

- Carnavalha, romance, 2007. Bestiário, Porto Alegre, RS.

– Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil, ensaio. 2008. Imprece, Fortaleza, CE.

– Contos Reunidos (volume I). – reunindo Itinerário, Tempos de Mula Preta e Punhalzinho cravado de ódio –  2009. Ed. Bestiário, Porto Alegre, RS.

– Contos Reunidos (volume I). – reunindo As insolentes patas do cão, Babel e Pescoço de girafa na poeira – 2010. Ed. Bestiário, Porto Alegre, RS.

– Luz vermelha que se azula, contos, 2011. Expressão Gráfica, Fortaleza, CE.

– Como me tornei imortal: crônicas da vida literária. 2013. Armazém da Cultura. Fortaleza/CE

– Quintal dos dias, crônicas. 2013. Editoria Bestiário. Porto Alegre, RS.

– Sôbolas manhãs. crônicas. 2014. Editora Bestiário. Porto Alegre, RS.


ORGANIZADOR:


Pele e Abismo na Escritura de Batista de Lima, ensaios, artigos e resenhas, 2006. Ed. UNIFOR, Fortaleza, CE.

PARTICIPAÇÃO EM ANTOLOGIAS:

- Queda de Braço: Uma Antologia do Conto Marginal, seleção de Glauco Mattoso e Nilto Maciel. Clube dos Amigos do Marsaninho, Rio de Janeiro e Fortaleza, 1977. Contos: “As Fantásticas Narrações das Meninas do São Francisco” e “Sururus no Lupanar”.

- Conto Candango, coordenação de Salomão Sousa. Coordenada Editora de Brasília, 1980. Conto: “As Pequenas Testemunhas”.

- Horas Vagas (Coletânea 2), organizada por Joanyr de Oliveira. Coleção Machado de Assis, volume 42, Contos, Senado Federal, Brasília, 1981. Conto: “Detalhes Interessantes da Vida de Umzim”.

- O Prazer da Leitura, organizada por Jacinto Guerra, Ronaldo Cagiano, Nilce Coutinho e Cláudia Barbosa. Editora Thesaurus, Brasília, 1997. Conto: “Ícaro”.

- Almanaque de Contos Cearenses, organizado por Elisangela Matos, Pedro Rodrigues Salgueiro e Tércia Montenegro. Edições Bagaço, Recife, PE, 1997. Conto: “Apontamentos para um Ensaio”.

- Poesia de Brasília, organizada por Joanyr de Oliveira. Livraria Sette Letras, Rio de Janeiro, 1998. Poemas: “Odisséia Interior”, “Oferenda” e “Nem todo amor…”

- Poesía de Brasil – volumen 1, organizada por Aricy Curvello e traduzida para o espanhol por Gabriel Solis. Edição Proyecto Cultural Sur/Brasil, Bento Gonçalves, RS, 2000. Poemas: “Calvario”, “De Desapariciones y de Ruinas”, “Francisca” e “Arco Iris”.

- Reflexos da Poesia Contemporânea do Brasil, França, Itália e Portugal, organizada por Jean Paul Mestas. Universitária Editora, Lisboa, Portugal, 2000. Edição em francês e português. Poemas: “Lutin”/ “Duende”, “Avec les pieds par terre” / “Com os pés no chão”, “Auroral” / “Amanhança”, “Pro-phétique” / “Prof-ética”.

- Antologia de Haicais Brasileiros, organizada por Napoleão Valadares. André Quicé Editor, Brasília, 2003.

- Antologia de Contos Cearenses, organizada por Túlio Monteiro. Coleção Terra da Luz, tomo I, Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza, 2004. Conto: “Casa Mal-assombrada”.

- Antologia do Conto Brasiliense, seleção e organização por Ronaldo Cagiano. Projecto Editorial, Brasília, 2004. Conto: “Aníbal e os Livros”.

- Os Rumos do Vento/ Los Rumbos del Viento (Antologia de Poesia), coordenação de Alfredo Pérez Alencart e Pedro Salvado. Câmara Municipal de Fundão, Porotugal e Trilce Ediciones, Salamanca, Espanha, 2005. Poema: “Arco-íris”.

- Quartas Histórias – contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa, org. Rinaldo de Fernandes. Rio de Janeiro, Ed. Garamond, 2006. Conto: “Águas de Badu”.

- Todas as Gerações – O Conto Brasiliense Contemporâneo, org. por Ronaldo Cagiano. Brasília, LGE Editora, 2006. Conto “Avisserger Megatnoc”.

- 15 Cuentos Brasileros/15 Contos Brasileiros, edición bilingüe español-portugués, org. por Nelson de Oliveira e tradução de Federico Lavezzo. Córdoba, Argentina, Editorial Comunicarte, 2007. Conto “Ave-Marias”.

Fonte:
Colaboração de Nilto Maciel, até 2013.

Nilto Maciel (Como me Tornei Imortal)

A grande maioria dos seres humanos acredita na imortalidade. Cada um deles se diz constituído de corpo e alma. Aquele morre, se desfaz, vira pó. Esta permanece intacta – a pensar e sentir – e, após a morte de sua metade, voa para o céu, o paraíso, onde está Deus, ou para o inferno ou sabe-se lá para onde. Essa grande maioria é resignada, vive rindo, brincando, feito eternas crianças, por se crer regida por Deus ou o Destino. Mesmo quando choram – diante do corpo sem vida de filhos, pais, irmãos, amigos, ídolos – parecem rir: Deus quis assim, Deus quis agora.

A pequena minoria dos seres humanos ou desacredita na imortalidade ou desconfia dessa possibilidade. Cada um deles assim sofisma: Se não sou imortal, se meu corpo é minha única morada, só me resta inventar outra eternidade. E assim surgiram as agremiações de letras e artes.

Para alguns escritores há duas maneiras de se alcançar a duração perpétua: pelo ingresso numa dessas corporações ou com a publicação de suas obras por uma grande editora. Se as duas portas se abrirem, melhor ainda: A vida eterna estará garantida. Para os mais presumidos só serve a Academia Brasileira de Letras. Os institutos menores (estaduais) ficariam para os escritores impúberes ou mais pequenos. Os minúsculos (municipais) se reservariam aos escritores insignificantes. Há, porém, ainda outras distinções: A entidade paulista seria quase equivalente à federal; a acreana, a amapaense, a sergipana, por exemplo, se equivaleriam a sociedades municipais; a paulistana valeria por uma filial da ABL; a baturiteense não poderia se comparar à santista. Empossados nesta ou naquela academia, todos alcançariam a imortalidade, no final, embora alguns, logo após a morte do corpo, teriam a alma conduzida imediatamente ao céu, enquanto outros dilatariam a interminável fila que conduz ao ponto derradeiro do destino literário.

Publicar livros por grandes editoras é mais fácil do que ingressar numa casa de acadêmicos. Basta o sujeito ser famoso ou amigo (bajulador, dizem) de autoridades federais, de outros entes famosos, ter muito dinheiro, etc. Por editora se entenda empresa que edita livros, vende-os a livrarias, divulga-os para os meios de comunicação de massa e paga direitos autorais.

Lá pelo início de minha adolescência, compreendi que não tenho alma e, portanto, sou mortal. Consciente disso, mais me pus a ler e escrever. E mais cônscio fiquei de que não tenho alma e sou mortal. Apesar disso, passei a acreditar em mim mesmo, em poder ser lembrado por mais um tempinho após minha morte, se escrevesse bem. Minhas filhas, meus netos e seus contemporâneos poderiam se lembrar de mim e ler minhas histórias. Passei mais muitos dias a ler e escrever. Fui morar em Brasília, cidade de muitos imortais, a capital do futuro. Publiquei uns livrinhos por pequenas editoras, ganhei alguns prêmios literários, de pouca monta (nada comparado aos prêmios das loterias) e tinha sido um dos criadores da revista O Saco (que me dava certo prestígio no mundo das letras). Tudo isso junto deve ter atiçado a luxúria de alguns imortais da capital. Que certamente cochichavam, enquanto cochilavam, frases obscenas, quando me viam: A esse só falta ingressar na nossa hoste. Pois eis que no meio do caminho desta vida (eu deveria ter uns quarenta anos, supondo que viverei até os oitenta), me apareceu um desses seres eternos. Chamava-se Almeida Fischer, que queria ser mais imortal do que era, pois pertencia à Academia Brasiliense de Letras. Não se apresentou em corpo e alma, para não se fazer tão objetivo; mandou um seu colega me fazer comunicado quase letal: Eu fora escolhido para constituir a nova casa federal de letras, a Academia de Letras do Brasil. Tomei susto, mas não morri. Ora, eu não queria vestir fardão. Muito menos farda, que abominava e abomino militares. Bastavam-me calça e camisa. Recuperado do susto, ouvi o complemento da fala do emissário do futuro presidente do sodalício (assim eles, os imortais, gostam de chamar suas agremiações): Iria me visitar noutro dia, para melhores esclarecimentos. E foi. Era um sábado de muita preguiça (minha), depois de ter passado a noite em bebedeira, a ouvir chorinhos. Alcançou-me de chinelos e calção. Renovou os elogios a mim, explicou os motivos da nova arcádia, como se me fizesse grande louvor e favor. Mal o deixei concluir o discurso. Agradeci os gabos e disse duas ou três frases indecorosas: Não me sentia acadêmico, sabia-me em fase de crescimento (embora tardio, a arcádia dentária ainda em formação), despreparado para a vida (literária) adulta e não via nenhuma necessidade de novos institutos de letras. Ele parecia não acreditar no que ouvia. Talvez eu estivesse brincando. Ou delirando: Você bebeu muito ontem? Certamente me ocorria um surto de loucura. Ora, quem não quer ser imortal, quem não se sente excepcionalmente envaidecido (e comovido) de ser convidado a ingressar no círculo restrito dos imortais? Prometi escrever carta a Fischer. Explicaria as razões de minha recusa ao convite. O mensageiro saiu de minha casa como quem sai de um cinema de horror. Escrevi a carta-bomba e a enviei ao morubixaba. Dias depois eu soube da tragédia: O homem se tinha morrido. Ou tinha deixado de ser vivo. Eu continuei mortal.

Fortaleza, abril de 2010.

Fonte:
Nilto Maciel. Como me tornei imortal: crônicas da vida literária. Fortaleza/CE: Armazém da Cultura, 2013. p.9-12.

Nilto Maciel (Um Doutor em Poesia)

Conheci Sérgio Campos em 1987 e com ele me correspondi desde aquele ano até poucos dias antes de seu falecimento. Escreveu-me 52 cartas ao longo de oito anos. Escrevi-lhe, talvez, o mesmo número de vezes. A apresentação de um ao outro se deu pela mão (melhor dizer pela palavra) de Floriano Martins.

Quando nos conhecemos, Sérgio havia publicado quatro livros, que aos poucos me foi ofertando. A primeira dádiva me veio junto à primeira epístola, de 8/5/87. Não se trata­va de seu livro inaugural, porém do quarto – Montanhecer. E dizia, já no segundo parágrafo: “É que circulam por aí tan­tos livros, mormente de poesia, alguns tão sem raiz, alma, que a gente percebe estar-se deteriorando essa antes tão eficiente forma de mútuo conhecimento. Se recebo, desconfio; se envio, receio."

Nascia bem nossa amizade, o “mútuo conhecimento” dele por mim e de mim por ele. Nascia exigente, crítico, objeti­vo. Como ele mesmo.

As cartas de Sérgio são, quase sempre, analíticas, críticas. Mergulha ao fundo das questões suscitadas, sobretudo em decorrência da leitura de um livro. Sua segunda carta é um belo ensaio, embora anuncie: “Reitero que não sou crítico, nem tenho a veleidade de o ser.”

Mais tarde escreveu alguns artigos de crítica literária e um ensaio. Se quisesse (ou tivesse tido tempo), poderia ter alcançado bom nome nessa área.

Cartas tratam, geralmente, do cotidiano, de circunstâncias. Ainda assim, ele não se deixava ir na conversa. Ia mais além. Divagava, posso dizer. Captava um princípio de pensamento do outro e o desenvolvia. Assim, analisando o meu Punhalzinho cravado de ódio, disse desconhecer algumas palavras por mim utilizadas. E citava “tiborna”, “barbatão” e outras. Na missiva seguinte voltou ao assunto: “Quanto às palavras, seus significados são deliciosos. Como são boni­tas e ricas as palavras, como a linguagem é fascinante. É duro constatar que a língua portuguesa aqui no Brasil en­contra-se em fase de extinção. O vocabulário em uso está se estreitando tanto que mais breve que possamos supor es­taremos falando uma das línguas mais ralas e pobres do planeta.”

Aos poucos fomos nos fazendo íntimos. E logo fiquei sabendo de seus problemas de saúde: a fratura do fêmur esquerdo, em 1983, segunda cirurgia no ano seguinte, tercei­ra em 85, quarta, quinta. Uma das melhores virtudes de Sérgio talvez tenha sido a humildade. Nada de arrogância, de presunção. Pois chegou a me enviar poemas esparsos e livros seus antes de publicados, para que eu,  simples prosador,  o ajudasse a “melhorá-los”. Ou para que os aprovasse ou reprovasse.

Humilde, não quer dizer fosse condescendente com os em­busteiros da literatura. Batia-se, sim, pela recuperação do soneto, por exemplo. E causticava os que o escreviam a esmo e proclamavam ter descoberto um filão, publicando li­vros e livros horrorosos. E lamentava-se: “Desanima, pare­ce que nos volta o peso de recomeçar do zero, pois a história do soneto na literatura brasileira é a própria história da infâmia.”

Sérgio foi um dos criadores da revista Literatura. Participou do projeto desde os primeiros momentos. Assim, em 3/7/90, me dizia: “Não podemos mais estar por aí de pires a mão, a depender dos Pascoais da vida, em busca de espaço para divulgação de nossos trabalhos.”

Se mais não participou da elaboração da Revista, se não esteve presente a todos os momentos dela, há uma explicação: estava dedicado a outros dois grandes projetos. O primeiro nascido de sua preocupação com o isolamento de nossa literatura em relação ao resto do mundo e, especialmente, a América Latina. O segundo projeto chamava-se Mundo Manual, uma editora para publicar seus livros e de ou­tros bons poetas.

Uniu-se a Floriano Martins no projeto de rompimento de barreiras. Criaram o jornal Resto do Mundo e passaram a divulgar no Brasil um segmento da literatura hispano-a­mericana. E vieram à tona nomes como os de José Kozer, Eugenio Montejo e Javier Sologurren. Pretendiam editar pequenas antologias desses e de outros poetas desconhecidos em nosso país.

Em 1990 criou uma editora, “uma paixão antiga”, como me disse. No ensaio Ponto e Contraponto, publicado em 1992, analisa também o livro enquanto livro e, didaticamente, ensina: “Pensamos na edição de um livro como o trabalho no­bre de textos de torná-lo de fácil leitura, pelos tipos adequados, pela diagramação mais consoante à natureza dos poemas, pe­lo formato que se harmoniza com o dos poemas, e, sobretudo, pelos cuidados com a boa apresentação, blocagem, lavor gráfico, beleza, posto que nela veja Barthes um rosto vazio (mas a respeito de cujos traços temos muito boas referências), e limpeza, pois nada mais lamentável que um livro produzido com desleixo. É como se o poeta tivesse por seu li­vro o mesmo conceito que tem por seus poemas.”

Outro sonho de Sérgio Campos: doutorar-se em Poética. Em fins de 1992 prestou exame de mestrado na Universidade do Rio de Janeiro. A seguir viria a fase de dissertação e, daí a 36 meses, a tese de doutorado.

Se não conseguiu o título, o diploma de doutor em Poética, nós, seus leitores – que, espero, sejam muitos e muitos daqui por diante – lhe damos e daremos outro título: o de artífice, de mestre, de doutor em Poesia. Pois Sér­gio Campos é, sem dúvida, um dos melhores poetas brasileiros deste final de milênio.

Meu último contato epistolar com ele se deu no dia 12/12/94. No pós-escrito anunciava: “Viajo amanhã e só retorno em 10/1/95.” Não sei dizer para onde viajou. Nem se retornou à sua Ilha do Governador. Dias depois Jorge Pieiro me telefonou de Fortaleza para comunicar a viagem eterna de nosso amigo e companheiro.

Fonte:

Nilto Maciel. Sôbolas manhãs. Porto Alegre/RS: Bestiário, 2014. p.138-141.

Nilto Maciel (Ícaro)

Rotineiramente nos meus sonhos sou levado de roldão no turbilhão das chafurdices mais absurdas. E acordo brigado comigo mesmo, por ser frágil, pequeno, indefeso — criaturinha atômica perdida na grandeza das coisas.

Há pouco eu ia ladeira abaixo, desembestado, numa car­reira de doido. E se não conseguisse nunca mais parar, fosse bater no fim do mundo? Bem feito, quem me havia mandado sair daquele jeito! Não, eu podia me esborrachar nas pedras, terminar todo arranhado, quebrar perna, braço, rachar a cabeça. Ah meu Deus! E que vontade de voltar atrás, ao tempo da partida! De pelo menos estacar, tomar fôlego, andar ape­nas, passo aqui, passo ali, feito cachorro vadio. Porém já ne­nhuma vontade eu carregava, nada eu conseguia fazer para di­minuir a velocidade, desgovernado seixo na correnteza. E des­cia, rolava, perdido, danado. Grão de areia arrastado pelo ar, eu sentia sumir-me o chão dos pés, levitar, alçar voo. As per­nas, soltas no espaço, balançavam agarradas ao resto do corpo, feito as de um enforcado. E me guiavam os quatro ventos do desespero para as alturas e as perdições. Na boca, o gosto do nada; nos olhos, o medo de precipitar-me; no peito, a ân­sia da desgraça. Sim, a queda. Não podia durar muito minha aventura de pássaro sem asas. Como voar para sempre? A me­nos que eu buscasse o mar, seguro porto de todos os voadores. Nunca, ele não existia, e, se existisse, vivia longe, longe demais. Mas quanta burrice, eu quase alcançava tocar com os pés as cabeleiras das árvores. Não carecia preocupar-me tanto. Bastava soltar-me das argolas do céu e saltar.

Com alguma perícia, agarrava-me aos galhos e, macaco velho, evitava o tombo. E ainda dava cambalhotas no ar, pula­va de galho em galho, imitava Tarzan. E se me estrepasse? Não, não me restava salvação, condenado a perambular entre as estrelas, até perder todas as forças e... ploft. Era uma vez um menino que desceu a ladeira da vida, tomou carreira, subiu feito balão e espatifou-se todo.

Não deixei de voar, não avistei o mar, não me agarrei aos galhos das árvores e o sonho terminou em gritaria.

Há muitos anos, eu vivia constantemente machucado, ferido, coberto de conchas. E, ainda por cima, minha mãe me cobria de peia. Deixasse de ser tão molenga! Eu não me emen­dava, no entanto. Caía, apanhava, caía de novo, apanhava mais. Por que não largava essa mania de viver trepado, feito macaco? Porém as mangueiras me encantavam. Difícil só alcançar o pri­meiro galho. Daí em diante eu me perdia, metido entre as fo­lhagens, escondido do mundo. E a sensação de poder cair! Aquele vento doido, o desequilíbrio, o chão coberto de fo­lhas secas, pintinhos entretidos a caçar insetos, aos pios, frágeis, indefesos entre os pés sujos e desatentos dos porcos aos roncos! Então aconteceu qualquer coisa comigo e eu pulei? Ou caí? Tudo isso depois de me fartar de chupar as mangas amassadas e podres do chão. Caíam de maduras ou por arte dos meninos. Eu não participava dessas brincadeiras. E sempre pegava a sobra. Até o sobejo dos bichos.

Aprendi cedo a levar quedas, ou dar pulos; ou voar. Esses três tipos de ginástica se confundiam em mim. Eu caía, pula­va ou voava da mangueira? Da janela de minha casa, porém, eu conseguia pular mesmo. E voava até o meio da rua. Chama­va os colegas e fazíamos apostas.

Eu devia ter nascido pássaro. Essa vontade de pular, de jogar-me ao chão, de lançar-me do alto. Apenas o espaço vazio, chão, a terra. E o vento que bate, açoita, puxa, empurra.

Quando me senti bem treinado, resolvi pular do muro alto do quintal. Embaixo só pedras, espinhos, formigas. Caí e quase desmaiei. Levantei-me, cambaleante, machucado, arra­nhado. Ainda bem que não havia ninguém por perto. Só mi­nha decepção. Quando entrei para casa, mamãe ficou muito nervosa e agitada. Eu disse ter pulado uma cerca, com me­do de um touro. Eu não podia dizer a verdade. Ou touro, ou tourada. “Esse calção encarnado”.

Antes da seguinte experiência tive a ideia de fazer tes­tes com formigas. Primeira etapa: arranjar uma caixa de fós­foros, qualquer latinha. Segunda: encontrar uma porção de formigas. Terceira: ter paciência e coragem de pegar com o maior cuidado as bichinhas. Ninguém consegue fazer isso, por­que formiga é bicho danado de esperto. Mas eu era esperto e meio. E conseguia juntar dez, doze, dezenas delas. Subia ao muro, abria a caixinha, as formigas saíam apressadinhas e eu dava um sopro. As coitadas voavam, caíam e não acontecia nada de mais. Ao chegarem ao chão, corriam, apavoradas. Talvez fossem leves demais.

Experimentei também as bonecas de minhas irmãs. Do lugar mais alto do mundo — a torre da igreja. E de lá soltei uma a uma, encantado com suas quedas lentas. Corri as esca­das para ver o estado delas. No patamar, porém, não encon­trei mais nenhuma. Teriam voado? Para a serra, lá onde mora­vam os passarinhos? Ou haviam voltado para o alto da torre, à minha procura? Espiei para cima, para todos os lados e cadê boneca? Só passarinho voando. E não podiam ser bonecas de pano. Ou podia boneca se transformar em passarinho?

Noutro dia o sacristão não me deixou subir à torre. Pre­cisava enfeitar a igreja para a procissão. Voltei para casa, doi­do para ver de novo boneca transformar-se em passarinho.

Na hora da procissão, o povo em fila, as casas fechadas. Nos parapeitos das janelas nenens de colo e suas avós, e nas portas velhinhos sentados em cadeiras de balanço. Tomei a dianteira, impaciente. Ao nos aproximarmos, deixei a fila e subi à torre. Debruçado sobre a janelinha, tive vontade de cus­pir na boiada. A igreja se entupiu de gente. No patamar ficou quem não pôde entrar. Tantas cabeças juntas nunca tinha visto assim de cima. Admirado, ia me esquecendo das bonecas. Deu-me vontade de novo de cuspir. Desisti: o sacristão podia me mandar descer. Devia era jogar logo as bonecas. E joguei. Voo bonito. Pareciam anjos descendo do céu. Tive medo de olhar, vontade de me retirar da janela e me esconder dentro do sino ou detrás do sacristão.

O povo, ao avistar a chuva de anjos, gritava e corria. As bonecas caíam. O padre pedia calma aos fiéis. Eu me espremia de medo. As bonecas assustavam o povo de Deus. E se o povo subisse as paredes para me castigar? Aranhas vingativas que me jogassem ao solo. Eu me espatifaria feito uma boneca. Não, voaria e viraria anjo ou passarinho e sobrevoaria a cidade e fugiria para a serra. O padre me amaldiçoaria, me chamaria de Maligno. Mostraria a cruz e eu voltaria a ser gente, menino maligno. Cairia, me despedaçaria todo. Não precisava nem cair. Bastava pular da torre. Todas aquelas ovelhas correriam, fugiriam de mim e me deixariam morrer. Nenhuma abriria os bra­ços para me aparar. Eu me quebraria de encontro ao duro chão do patamar. A menos que o povo se juntasse de novo. Então eu cairia em cima dele e me salvaria. Não, aquelas cabe­ças eram duras. Serviam então as mãos. E se seus dedos me furassem, me espetassem? Nem isso. Aquele povo imenso abria caminho para minha morte. Furava um buraco para eu me enterrar. Eu e as bonecas.

Todos olhavam para cima, embasbacados, como se eu fosse a papa-ceia. O vento soprava. O espaço vazio, cinzento. Minhas irmãs choravam a morte de suas bonecas que voavam para a serra e às vezes caíam como frutas maduras. Por onde andava o sacristão que não vinha bater o sino? A procissão continuava, mas no patamar não cabia sequer mais um cristão. Os fiéis esperavam Deus. Se eu caísse? Se eu voasse? Se eu virasse anjo, passarinho, aquele homem de asas?

Fonte:
Nilto Maciel. Contos Reunidos. volume II. Porto Alegre/RS: Bestiário,2010. p.11-15.