domingo, 22 de junho de 2014

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 10

(mantida a grafia original)
Hinos

O Mar


Frappé de la grandeur farouche
Je tremble... est-ce bien toi, vieux lion que je touche.
Océan, terrible océan!
- Turquety

 
Oceano terrível, mar imenso
De vagas procelosas que se enrolam
Floridas rebentando em branca espuma
Num pólo e noutro pólo,
Enfim... enfim te vejo; enfim meus olhos
Na indômita cerviz trêmulos cravo,
E esse rugido teu sanhudo e forte
Enfim medroso escuto!
Donde houveste, ó pélago revolto,
Esse rugido teu? Em vão dos ventos
Corre o insano pegão lascando os troncos,
E do profundo abismo
Chamando à superfície infindas vagas,
Que avaro encerras no teu seio undoso;
Ao insano rugir dos ventos bravos
Sobressai teu rugido.
Em vão troveja horríssona tormenta;
Essa voz do trovão, que os céus abala,
Não cobre a tua voz. - Ah! donde a houveste,
Majestoso oceano?
Ó mar, o teu rugido é um eco incerto
Da criadora voz, de que surgiste:
Seja, disse; e tu foste, e contra as rochas
As vagas competiste.
E à noite, quando o céu é puro e limpo,
Teu chão tinges de azul, - tuas ondas correm
Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos
Entre dois céus brilhantes.
Da voz de Jeová um eco incerto
Julgo ser teu rugir; mas só, perene,
Imagem do infinito, retratando
As feituras de Deus.
Por isto, a sós contigo, a mente livre
Se eleva, aos céus remonta ardente, altiva,
E deste lodo terreal se apura,
Bem como o bronze ao fogo.
Férvida a Musa, co’os teus sons casada,
Glorifica o Senhor de sobre os astros
Co’a fronte além dos céus, além das nuvens,
E co’os pés sobre ti.
O que há mais forte do que tu? Se eriças
A coma perigosa, a nau possante,
Extremo de artifício, em breve tempo
Se afunda e se aniquila.
És poderoso sem rival na terra;
Mas lá te vais quebrar num grão d’areia,
Tão forte contra os homens, tão sem força
Contra coisa tão fraca!
Mas nesse instante que me está marcado,
Em que hei de esta prisão fugir p’ra sempre
Irei tão alto, ó mar, que lá não chegue
Teu sonoro rugido.
Então mais forte do que tu, minha alma,
Desconhecendo o temor, o espaço, o tempo,
Quebrará num relance o circ’lo estreito
Do finito e dos céus!
Então, entre miríades de estrelas,
Cantando hinos d’amor nas harpas d’anjos,
Mais forte soará que as tuas vagas,
Mordendo a fulva areia;
Inda mais doce que o singelo canto
De merencória virgem, quando a noite
Ocupa a terra, - e do que a mansa brisa,
Que entre flores suspira.

Idéia de Deus

Gross ist der Herr! Die Himmel ohne Zahl
Sind seine Wohnungen!
Seine Wagen die donnernden Gewölke,
Und Blitze sein Gespann.
- KLeist

 
I

À voz de Jeová infindos mundos
Se formaram do nada;
Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,
E a noite foi criada,
Luziu no espaço a lua! sobre a terra
Rouqueja o mar raivoso,
E as esferas nos céus ergueram hinos
Ao Deus prodigioso.
Hino de amar a criação, que soa
Eternal, incessante,
Da noite no remanso, no ruído
Do dia cintilante!
A morte, as aflições, o espaço, o tempo,
O que é para o Senhor?
Eterno, imenso, que lh’importa a sanha
Do tempo roedor?
Como um raio de luz, percorre o espaço,
E tudo nota e vê -
O argueiro, os mundos, o universo, o justo;
E o homem que não crê.
E ele que pode aniquilar os mundos,
Tão forte como ele é,
E vê e passa, e não castiga o crime,
Nem o ímpio sem fé!
Porém quando corrupto um povo inteiro
O Nome seu maldiz,
Quando só vive de vingança e roubos,
Julgando-se feliz;
Quando o ímpio comanda, quando o justo
Sofre as penas do mal,
E as virgens sem pudor, e as mães sem honra.
E a justiça venal;
Ai da perversa, da nação maldita,
Cheia de ingratidão,
Que há de ela mesma sujeitar seu colo
A justa punição.
Ou já terrível peste expande as asas,
Bem lenta a esvoaçar;
Vai de uns a outros, dos festins conviva,
Hóspede em todo o lar!
Ou já torvo rugir da guerra acesa
Espalha a confusão;
E a esposa, e a filha, de tenor opresso,
Não sente o coração.
E o pai, e o esposo, no morrer cruento,
Vomita o fel raivoso;
- Milhões de insetos vis que um pé gigante
Enterra em chão lodoso.
E do povo corrupto um povo nasce
Esperançoso e crente.
Como do podre e carunchoso tronco
Hástea forte e virente.

II

Oh! como é grande o Senhor Deus, que os mundos
Equilibra nos ares;
Que vai do abismo aos céus, que susta as iras
Do pélago fremente,
A cujo sopro a máquina estrelada
Vacila nos seus eixos,
A cujo aceno os querubins se movem
Humildes, respeitosos,
Cujo poder, que é sem igual, excede
A hipérbole arrojada!
Oh! como é grande o Senhor Deus dos mundos,
O Senhor dos prodígios.

III

Ele mandou que o sol fosse princípio,
E razão de existência,
Que fosse a luz dos homens - olho eterno
Da sua providência.
Mandou que a chuva refrescasse os membros,
Refizesse o vigor
Da terra hiante, do animal cansado
Em praino abrasador.
Mandou que a brisa sussurrasse amiga,
Roubando aroma à flor;
Que os rochedos tivessem longa vida,
E os homens grato amor!
Oh! como é grande e bom o Deus que manda
Um sonho ao desgraçado,
Que vive agro viver entre misérias,
De ferros rodeado;
O Deus que manda ao infeliz que espere
Na sua providência;
Que o justo durma, descansado e forte
Na sua consciência!
Que o assassino de contínuo vele,
Que trema de morrer;
Enquanto lá nos céus, o que foi morto,
Desfruta outro viver!
Oh! como é grande o Senhor Deus, que rege
A máquina estrelada,
Que ao triste dá prazer; descanso e vida
À mente atribulada!

O Romper d’Alva
 
Quand ta carde n’aurait qu’un son,
Harpe fidèle, chante encore
Le Dieu que ma jeunesse adore.
Car c’est un hymne que son nom.
- Lamartine

 
Do vento o rijo sopro as mansas ondas
Varreu do imenso pego, - e o mar rugindo
As nuvens se elevou com fúria insana;
Enoveladas vagas se arrojaram
Ao céu co’a branca espuma!
Raivando em vão se encontram soluçando
Na base d’erma rocha descalvada;
Em vão de fúrias crescem, que se quebra
A força enorme do impotente orgulho
Na rocha altiva ou na arenosa praia. _
Da tormenta o furor lhe acende os brios,
Da tormenta o furor lh’enfreia as iras,
Que em teimosos gemidos se descerram,
Da quieta noite despertando os ecos
Além, no vale humilde, onde não chega
Seu sanhudo gemer, que o dia abafa.
Mas a brisa sussurrando
A face do céu varreu,
Tristes nuvens espalhando,
Que a noite em ondas verteu.
Além, atrás da montanha,
Branda luz se patenteia,
Que d’alma a dor afugenta,
Se dentro sentida anseia.
Branda luz, que afaga a vista,
De que se ama o céu tingir,
Quando entre o azul transparente
Parece alegre sorrir;
Como és linda! - Como dobras
Da vida a força e do amor!
- Que tão bem luz dentro d’alma
Teu luzir encantador!
No teu ameno silêncio
A tormenta se perdeu,
E do mar a forte vida
Nos abismos se escondeu!
Porque assim de novo agora
Que o vento o não vem toldar,
Parece que vai queixoso
Mansamente a soluçar?
Porque as ramas do arvoredo,
Bem como as ondas do mar,
Sem correr sopro de vento,
Começam de murmurar?
Sobre o tapiz d’alva relva,
- Rocio da madrugada -
Destila gotas de orvalho
A verde folha inclinada.
Renascida a natureza
Parece sentir amor;
Mais brilhante, mais viçosa
O cálix levanta a flor.
Por entre as ramas ocultas,
Docemente a gorjear,
Acordam trinando as aves,
Alegres, no seu trinar.
O arvoredo nessa língua
Que diz, por que assim sussurra?
Que diz o cantar das aves?
Que diz o mar que murmura?
- Dizem um nome sublime,
O nome do que é Senhor,
Um nome que os anjos dizem,
O nome do Criador.
Tão bem eu, Senhor, direi
Teu nome - do coração,
E ajuntarei o meu hino
Ao hino da criação.
Quando a dor meu peito acanha,
Quando me rala a aflição.
Quando nem tenho na terra
Mesquinha consolação;
Tu, Senhor, do peso insano
Livras meu peito arquejante,
Secas-me o pranto que os olhos
Vertendo estão abundante.
Tu pacificas minha alma,
Quando se rasga com pena,
Como a noite que se esconde
Na luz da manhã serena.
Tu és a luz do universo,
Tu és o ser criador,
Tu és o amor, és a vida,
Tu és meu Deus, meu Senhor.
Direi nas sombras da noite,
Direi ao romper da aurora:
- Tu és o Deus do universo,
O Deus que minha alma adora.
Tão bem eu, Senhor, direi
Teu nome - do coração,
E ajuntarei o meu hino
Ao hino da criação.

Machado de Assis (Almas Agradecidas) Capítulo VII ,final

Quando entrou a semana seguinte, já na véspera do dia em que Oliveira se dispunha a sair e visitar o comendador, recebeu uma carta de Magalhães.

Leu-a com pasmo: Meu querido amigo, dizia Magalhães; desde ontem tenho a cabeça fora de mim.

Aconteceu-me a maior desgraça que podia cair sobre nós. Com mágoa e vergonha to anuncio, meu prezadíssimo amigo, a quem tanto devo.

Prepara o teu coração para receber o golpe que já me feriu, e por muito que ele te faça sofrer, não sofrerás mais do que eu já sofri...

Saltaram duas lágrimas dos olhos de Oliveira.

Adivinhava mais ou menos o que seria. Cobrou forças e continuou a leitura: Descobri, meu querido amigo, que Cecília (como direi?), que Cecília me ama! Não imaginas como me fulminou esta notícia. Que ela não te amasse, como ambos desejávamos, era já doloroso; mas que se lembrasse de consagrar os seus afetos ao último homem que ousaria opor-se ao seu coração, é uma ironia da fatalidade. Não te contarei meu procedimento; facilmente o adivinharás. Prometi não voltar lá mais.

Queria ir eu mesmo comunicar-te isto; mas não ouso contemplar a tua dor, nem te quero dar o espetáculo da minha.

Adeus, Oliveira. Se a fatalidade ainda consentir que nos vejamos (impossível!), até um dia; se não... Adeus! Adivinha o leitor o golpe que esta carta descarregou no coração de Oliveira. Mas é nas grandes crises que o espírito do homem se mostra grande. A dor do apaixonado superada pela dor do amigo. O final da carta de Magalhães aludia vagamente a um suicídio; Oliveira deu-se pressa em ir impedir esse ato de nobre abnegação. Demais, que coração tinha ele, a quem confiasse todos os seus desesperos? Vestiu-se apressadamente e correu à casa de Magalhães.

Disseram-lhe que não estava em casa.

Oliveira ia subindo: — Perdão, disse o criado; eu tenho ordem de não deixar subir ninguém.

— Razão demais para eu subir, respondeu Oliveira, afastando o criado.

— Mas...

— Trata-se de uma grande desgraça! E subiu apressadamente a escada.

Na sala, não havia ninguém. Oliveira entrou afoitamente no gabinete. Achou Magalhães sentado à secretária inutilizando alguns papéis.

Perto dele, havia um copo com um líquido vermelho.

— Oliveira! exclamou ele, quando o viu entrar.

— Sim, Oliveira, que vem salvar a tua vida, e dizer-te quanto és grande! — Salvar-me a vida? murmurou Magalhães; quem te disse que eu?...

— Tu, na tua carta, respondeu Oliveira. Veneno! continuou ele, vendo o copo. Oh! nunca! E despejou o copo na escarradeira.

Magalhães parecia atônito.

— Eia! disse Oliveira; dá cá um abraço! Este amor infeliz foi ainda um lance de felicidade, porque conheci bem que coração de ouro é esse que te bate no peito.

Magalhães estava de pé; caíram nos braços um do outro. O abraço comoveu Oliveira, que só então deu largas à sua dor. O amigo consolou-o como pôde.

— Bem, disse Oliveira, tu que foste causa indireta da minha desgraça, deves ser agora o remédio que me há de curar. Sê eternamente meu amigo.

Magalhães suspirou.

— Eternamente! disse ele.

— Sim.

— Minha vida é curta, Oliveira; eu devo morrer; se não for hoje, sê-lo-á amanhã.

— Mas isso é uma loucura.

— Não é: eu não te disse tudo na carta. Falei-te do amor que Cecília me tem; não te falei do amor que lhe tenho eu, amor que me nasceu sem eu pensar. Brinquei com fogo; queimei-me.

Oliveira curvou a cabeça.

Houve um longo silêncio entre os dois amigos.

Ao cabo de um longo quarto de hora, Oliveira ergueu os olhos vermelhos de lágrimas e disse a Magalhães, estendendo-lhe a mão: — Sê feliz, que o mereces; não tens culpa disto. Procedeste honradamente; compreendo que era difícil estar ao pé dela sem sentir o fogo da paixão. Casa com Cecília, pois que se amam, e fica certo de que serei sempre o mesmo amigo.

— Oh! tu és imenso! Magalhães não ajuntou nenhum substantivo a este adjetivo. Não nos é dado perscrutar o seu pensamento interior. Caíram os dois amigos nos braços um do outro com grandes exclamações e protestos.

Uma hora depois de ali haver entrado, saía Oliveira triste mas consolado.

— Perdi um amor, dizia ele consigo, mas ganhei um verdadeiro amigo, que já o era antes.

Magalhães veio logo atrás dele.

— Oliveira, disse ele, passaremos o dia juntos; receio que faças alguma loucura.

— Não! o que me ampara nesta queda és tu.

— Não importa; passaremos o dia juntos.

Assim aconteceu.

Neste dia, não foi Magalhães à casa do comendador.

No dia seguinte, apenas lá apareceu, disse-lhe Cecília: — Estou zangada contigo; por que não vieste ontem? — Tive de sair da cidade em serviço público e por lá fiquei a noite.

— Como passaste? — Bem.

Seis semanas depois uniam eles os seus destinos. Oliveira não compareceu à festa com grande admiração de Vasconcelos e de D. Mariana, que não compreendiam essa indiferença da parte de um amigo.

Nunca houve a menor sombra de dúvida entre Magalhães e Oliveira.

Foram amigos até à morte, posto que Oliveira não frequentasse a casa de Magalhães.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

sábado, 14 de junho de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 17


Caldeirão Poético 4

BEATRIZ TAVARES

Andanças

Se me perguntasses por onde tenho andado
teria que te falar dos corredores negros e úmidos
pelos quais caminho quando a noite cai.
Teria que te falar dos medos que tenho galgado
na busca desesperada daquilo que sou
(e também do que fui...).
Sim, querido, o caminho tem sido árido.
E se me perguntasses o que tenho feito
só te diria que tenho caminhado.
Talvez, quando chegares,
eu já possa te trazer à minha casa
e te mostrar as violetas que florescem
feito um sinal
nesse jardim cuidadosamente regado.
E então, coração, verás
que tuas palavras foram dádivas, e não consolo,
para as tristes histórias que em tuas mãos depositei.
E terás, feito fruto,
a partilha do caminho,
o gozo dos prazeres,
e o lar do meu abraço
desprovido de segredos e de provas de amor.

BELVEDERE BRUNO
Rodopios


Meu universo
rodopiou...
Por um segundo
pensei estar
“de pileque”,
tamanha
a sensação
vertiginosa.
Porém,
à medida
que abria
os olhos
via que nada
estava fora
de seu lugar.

Só eu.
Minha alma,
calada,
se perguntava:
– choro ou emudeço
de vez?

BANDEIRA TRIBUZI

A mesa


A mesa tem somente o que precisa
para estar, circundada de cadeiras,
fazendo parte da vida familiar
entre alimentos, flores e conversa.
Escura mesa gravemente muda
que, parecendo alheia a quanto a cerca,
encerra no silêncio toda a ciência
da idade desdobrando gerações.
olho de cerne, comovido e frio!
indiferente coração parado
entre o grito infantil e o olhar cansado.
Mistério de madeira rodeado
por cadeiras, lembranças, utensílios,
e um leve odor de tempo alimentício.

BENI SOARES

Ternura


Lembrando a sua voz,
ou mesmo o seu jeito
Já surge insistente
irrequieta euforia
Tamanha ternura
emerge do peito
E dele transborda
febril energia
Se abre no rosto
um sorriso perfeito
Murmuro o seu nome,
e se faz
a Poesia !

BERILO WANDERLEY

Homem Só


Além da janela, os ramos verdes
e um resto de tarde se apagando.
Mulheres de branco, os rostos parados e frios,
passam.
Algumas colhem flores friamente,
como se não colhessem flores,
Homens tristes e abandonados descem do alto da rua.
Vem do trabalho que ficou lá no fim da cidade,
e trazem para suas mulheres suor, pão quente e amor.
Sempre há amor nos homens quando as tardes findam.
E sempre haverá mulheres de branco apanhando flores,
quando as tardes findam.
Há amor também no homem só
que está por trás da janela
e se embala numa rede azul.
Um azul que vai e vem e que arranca do homem
uma canção que se apaga com a tarde
e que vai enchendo de noite
o entardecer do quarto.

BEATRIZ HELENA RAMOS
A Dor Salta

A dor salta pelos seus olhos.
Dentro do brilho negro,
No fundo profundo de sua escuridão,
A sombra do seu passado
Rasga o véu da alegria.
Há infinitas metades restantes
No caminho de te encontrar.
A tristeza deixa seu perfume
Nos cantos sombrios da alma:
Você acalenta o aroma...
Feito um camponês,
Amante apaixonado pelas flores,
Respira no ar a abstração mágica
De quem tece jardins.
E eu que amo todas as suas faces,
Perco-me tentando adivinhar
A profundidade da sua solidão
Que nenhuma presença alcança...
O que lhe falta é tanto e tão pouco,
Que nada preenche.
Cheio de vazios é o seu interior,
Transbordante de nada.
Suas máscaras não camuflam suas perdas
Nem apagam sua lenda:
A história que a ferro
Foi fundida em sua pele,
Escapa no silêncio da sua voz.
Nenhuma dimensão dos seus desastres
Pode ser cantada:
A quietude do seu grito
Amarga a ausência de sons.
Do seu amor,
Só restou o medo.
Ele é o fauno que se banha
Na fonte cristalina da sua íris esquerda.
Apenas ele,
Rei soberano sobre o Mito
Que mora em você,
Conhece os seus segredos.
No seu peito partido,
Ele acalenta os mistérios.
Mas não os revelará jamais…

BEATRIZ CAMELO

Apenas por que há


Existe um vazio
Entre a tinta e o papel
Entre o dito e o silêncio
Entre a passividade e o ato
Entre o feito e o esquecido
Entre o amar e o depender
Entre a filosofia e a prática
Entre a crença e a realidade
Entre tudo que sinto
E o nada que encontro

BEATRIZ KAPPKE
Estrela do amor


Lá fora o vento ululante,
Deste dia que está para chegar
Deixa nossa estrela mais brilhante
Banhada por um lindo luar.

No firmamento a brilhar
Num sorriso parece dizer,
Que por ter alguém para amar
É preciso a Deus bendizer!
Amar... apenas para se amar
E não para se complementar
Amar para o outro preservar
É verdadeiro...é suplementar...

Imaturo é o outro amar
Por dele necessitar
Maturidade é poder falar:
Necessito de ti por muito te amar!
–––––––––––––––
Os outros caldeirões
I
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2011/05/caldeirao-poetico-i.html

2
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2013/03/caldeirao-poetico-2.html

3
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2013/03/caldeirao-poetico-3.html


Fonte:
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/b.htm

Nilza Helena (A cada dia mais magra)

Mais uma vez na balança – um quilo a menos. Tia Augusta estava até feliz, pois quem não gosta de emagrecer? Só uma coisinha a preocupava: como emagrecia sem fazer regime? Pensou que podia estar doente e foi ao médico. Afinal, com 65 anos, estava na hora. Fez exames e enfrentou filas, usando todos os serviços a que tinha direito como aposentada.

- Saúde de menina – disse o médico. Pode ficar despreocupada.

Foi durante a novela das oito que tia Augusta deu um grito que assustou tia Celina, a companheira com quem divide o apartamento.

Já sei. É a aposentadoria.

- O quê???

- Nós não somos aposentadas? Não ganhamos menos do que os outros? Então é isso. Você reparou, Celina, como nossa alimentação piorou de uns tempos para cá?

Menos verduras, menos legumes, menos frutas, menos vitaminas, menos cálcio, menos gordura. Menos cinema, menos teatro, menos viagens, menos compras, menos livros, menos doce, menos biscoito.

 - Será que o sorriso diminuiu também, Celina? – arrisca tia Augusta, desconfiada. Perder gordura não importa, mas perder alegria...

Descoberto o problema, o jeito foi tocar a vida. Fila no dia do pagamento da aposentadoria, fila para o pagamento da pensão do marido. Pouco dinheiro. Sempre. Tia Augusta aprendeu até a fazer piada. Quando alguém reclama que está gordo, que precisa de um regime, ela aconselha:

- Aposenta.

A irmã Celina, professora, igualmente aposentada, outro dia foi surpreendida, pois ela primeira vez sua aposentadoria não acompanhou o aumento do pessoal da ativa.

- Se os funcionários públicos federais são assim, por que os estaduais não seriam? – pergunta tia Augusta com aquele ar de “eu não disse?”. Não falei que mau exemplo todo mundo segue? Aumentos diferenciados! Só faltava essa...

Foi quando as duas descobriram que aposentado é tudo, menos inativo.

- Vai o aposentado ficar parado que ele dança. Nunca estive tão ativa. Tenho que acompanhar o noticiário diário das redes de televisão, das emissoras de rádio e jornal para saber novidades sobre os aposentados, pegar informações nos guichês das repartições, esperar horas para ser  atendida, ver a impressa nos chamar de velhinhos... Se eu não ficar de antena ligada, fico prejudicada – é o que tia Augusta tem explicado aos preocupados filhos.

E lá vai ela andar de ônibus, aproveitando que é de graça, para atravessar a cidade. Vai ao serviço pegar informações com as colegas, logo depois está na casa de uma amiga aposentada tomando café com bolo enquanto criticar o governo e, no mesmo dia, ainda dá uma passadinha na Associação para perguntar o de sempre ao advogado:

- E então, vamos ou não entrar na justiça?

Tia Augusta entende de leis e decretos, guarda todos os números na cabeça e dá mostras de tanta vitalidade que o antigo chefe a convidou:

- Quer voltar a trabalhar conosco?

Não fosse a dor insuportável no joelho até que ela aceitava. Mas só de pensar que depois ia passar por outra aposentadoria, desistiu. Medo de trabalho ela não tem, pois foi o que fez a vida inteira, ajudando a mãe, dando duro na escola, cuidando da casa, do marido e dos três filhos, enfrentando a repartição, carregando sacolas pesadas, lavando, passando, cozinhando, tomando conta dos netos...

Foi-se o tempo em que ela sonhava ter uma aposentadoria banhada de sol pelas manhãs, ela  lendo o jornal na varanda, fazendo blusas de tricô, conversando com a Celina.

- Inativo! Velhinhos! Pois sim! – ela explode, enquanto quer saber de uma amiga quem inventou essas palavras.

Entre uma atividade e outra, tia Augusta aprende a desconfiar e a se defender. Todos os dias. Não, ela não quer traficar influências, ganhar em dólar, superfaturar pagamentos, fraudar a previdência. Ela quer apenas – e tão somente – parar de emagrecer.

Fonte:
http://www.descubraminas.com.br/Home/Default.aspx

Manuel Maria Barbosa Du Bocage (Sonetos)

I

Apenas vi do dia a luz brilhante
Lá de Setubal no empório celebrado,
Em sangüíneo caráter foi marcado
Pelos destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros a morte devorante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
Segui Marte depois, e enfim meu fado
Dos irmãos, e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da pátria, longe da ventura
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.

II

Das faixas infantis despido apenas,
Sentia o sacro fogo arder na mente;
Meu tenro coração inda inocente,
Iam ganhando as plácidas Camenas.

Faces gentis, angélicas, serenas,
De olhos suaves o volver fulgente,
Da idéia me extraíam de repente
Mil simples, maviosas cantilenas.

O tempo me soprou fervor divino,
E as Musas me fizeram desgraçado,
Desgraçado me fez o deus-menino.

A Amor quis esquivar-me, e ao dom sagrado:
Mas vendo no meu gênio o mau destino,
Que havia de fazer? Cedi ao fado.

III

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores.

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores.

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

IV

Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza, e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça tristeza envenenados;

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania.

Desculpa tendes, se valeis tão pouco;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco.

V

De suspirar em vão já fatigado,
Dando tréguas a meus males, eu dormia.
Eis que junto de mim sonhei que via
Da morte o gesto lívido e mirrado.

Curva fouce no punho descarnado
Sustentava a cruel, e me dizia:
¨Eu venho terminar tua agonia;
Morre, não penes mais, ó desgraçado...

¨Quis ferir-me, e de Amor foi atalhada.
Que armada de cruentos passadores
Aparece, e lhe diz com voz irada:

¨Emprega noutro objeto os teus rigores;
Que esta vida infeliz está guardada
Para vítima só de meus furores¨.

VI

Em que estado meu bem, por ti me vejo,
Em que estado infeliz, penoso, e duro!
Delido o coração de um fogo impuro
Meus pesados grilhões adoro e beijo.

Quando te logro mais, mais te desejo,
Quando te encontro mais, mais te procuro,
Quando mo juras mais, menos seguro
Julgo esse doce amor, que adorna o pejo.

Assim passo, assim vivo, assim meus fados
Me desarreigam da alma a paz, e o riso,
Sendo só meu sustento os meus cuidados.

E, de todo apagada a luz do siso,
Esquecem-me (ai de mim!) por teus agrados
Morte, juízo, inferno e paraíso.

VII

Senhor que estás no céu, que vês na terra
Meu frágil coração desfeito em pranto,
Pelas ânsias mortais, o ardor, o encanto
Com que lhe move Amor terrível guerra.

Já que poder imenso em ti se encerra,
Já que aos ingênuos ais atendes tanto,
Socorre-me, entre os Santos Sacrossanto,
Criminosas paixões de mim desterra.

Fugir aos laços de um gentil semblante
Não posso eu só: da tua mão preciso
Com que prostrou Davi o atroz gigante:

Fira-me a contrição, torne-me o siso,
Acode-me, Senhor, põe-me diante
Morte, juízo, inferno e paraíso.

Morres de fraco? Morres de atrevido

VIII

Aflito coração, que o teu tormento,
Que os teus desejos tácito devoras,
E ao doce objeto, ás perfeições adoras,
Só te vás explicar co(m) pensamento.

Infeliz coração, recobra alento,
Seca as inúteis lágrimas, que choras;
Tu cevas o teu mal, porque demoras
Os vôos ao ditoso atrevimento.

Inflama surdos ais, que o medo esfria;
Um bem tão suspirado, e tão subido,
Como se há de ganhar sem ousadia?

Ao vencedor afoite-se o vencido;
Longe o respeito, longe a cobardia;
Morres de fraco? Morres de atrevido

IX

Marília, nos teus olhos buliçosos
Os amores gentis seu facho acendem;
A teus lábios voando os ares fendem
Terníssimos desejos sequiosos:

Teus cabelos sutis e luminosos
Mil vistas cegam, mil vontades prendem;
E em arte aos de Minerva se não rendem
Teus alvos curtos dedos melindrosos:

Reside em teus costumes a candura.
Mora a firmeza no teu peito amante,
A razão com teu riso se mistura:

És dos céus o composto mais brilhante;
Deram-se as mãos Virtude e Formosura
Para criar tua alma e teu semblante.

X

Por esta solidão que não consente
Nem do sol, nem da lua a claridade;
Ralando o peito já pela saudade
Dou mil gemidos a Marília ausente.

De seus crimes a mancha inda recente
Lava Amor, e triunfa da verdade;
A beleza, apesar da falsidade,
Me ocupa o coração, me ocupa a mente.

Lembram-me aqueles olhos tentadores,
Aquelas mãos, aquele riso, aquela
Boca suave, que respira amores...

Ah! Trazei-me, ilusões, a ingrata, a bela!
Pintai-me vós, ó sonhos, entre flores
Suspirando outra vez nos braços dela.

Lendas de Minas Gerais (Lenda de Nova Lima) A alma que pediu missa

Antigamente, onde hoje é a igreja matriz de Santo Antônio, havia uma pequena capela e, ao lado, um cruzeiro grande. Neste local morreram alguns homens que levavam uma boiada.

Certo dia, um morador passava próximo ao cruzeiro, quando ouviu então gemidos e lamentos que não paravam e resolveu perguntar:

 Em nome de Jesus, por que geme e lamenta tanto?

 - Então um homem sentado aos pés do cruzeiro lhe respondeu:

 - Peça à minha filha para mandar celebrar uma missa para mim. Há muito tempo não recebo uma.

Em seguida dá o nome e o endereço da tal filha ao morador que lhe garantiu que no dia seguinte falaria com ela.

O morador encontrou a filha no endereço dado e constatou que aquele homem morrera no local do cruzeiro há muitos anos e também há tempos não era rezada uma missa em sua memória.

Contam outros moradores próximos à igreja matriz de Santo Antônio que de vez em quando são ouvidos lamentos e gemidos sem que ninguém saiba de onde vêm.

Fonte:
http://www.descubraminas.com.br/Home/Default.aspx

Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Mundo novo - O paraiso terrestre

A Nação Indígena dos Caiapós habitava uma região onde não havia o sol nem a lua, tampouco rios ou florestas, ou mesmo o azul do céu. Alimentavam-se apenas de alguns animais e mandioca, pois não conheciam peixes, pássaros ou frutas.

Certo dia, estando um índio a perseguir um tatu canastra, acabou por distanciar-se de sua aldeia. Inacreditavelmente, à medida que este se afastava, sua caça crescia cada vez mais.

Já próximo de alcançá-la, o tatu rapidamente cavou a terra, desaparecendo dentro dela. Sendo uma imensa cova, o indígena decidiu seguir o animal, ficando surpreso ao perceber que, ao final da escuridão, brilhava uma faixa de luz.

Chegando até ela, maravilhado, viu que lá existia um outro mundo, com um céu muito azul e o sol a iluminar e a aquecer as criaturas; na água muitos peixes coloridos e tartarugas. Nos lindos campos floridos destacavam-se as frágeis borboletas; florestas exuberantes abrigavam belíssimos animais e insetos exóticos, contendo ainda diversas árvores carregadas de frutos. Os pássaros embelezavam o espaço com suas lindas plumagens.

Deslumbrado, o índio ficou a admirar aquele paraíso, até o cair da noite. Entristecido ao acompanhar o pôr do sol, pensou em retomar, mas já estava escuro...

Novamente surge à sua frente outro cenário maravilhoso: uma enorme lua nasce detrás das montanhas, clareando com sua luz de prata toda a natureza. Acima dela multidões de estrelas faziam o céu brilhar. Quanta beleza! E assim permaneceu, até que a lua se foi, surgindo novamente o sol.

Muito emocionado, o índio voltou à tribo e relatou as maravilhas que viera a conhecer.

O grande pajé,  Caiapó, diante do entusiasmo de seu povo, consentiu que todos seguissem um outro tatu, descendo um a um pela sua cova através de uma imensa corda, até o paraíso terrestre.

Lá seria o magnífico Mundo Novo, onde todos viveriam felizes.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 9

(mantida a grafia original)

Quadras da Minha Vida
Recordação e Desejo


Ao meu bom amigo o Dr. A. Rego
Sol chi non lascia eredità d’affeti
Poca gioia ha dell’urna.
- Foscolo

 
I

Houve tempo em que os meus olhos
Gostavam do sol brilhante,
E do negro véu da noite,
E da aurora cintilante.
Gostavam da branca nuvem
Em céu de azul espraiada,
Do terno gemer da fonte
Sobre pedras despenhada.
Gostavam das vivas cores
De bela flor vicejante,
E da voz imensa e forte
Do verde bosque ondeante.
Inteira a natureza me sorria!
A luz brilhante, o sussurrar da brisa,
O verde bosque, o rosicler d’aurora,
Estrelas, céus, e mar, e sol, e terra,
D’esperança e d’amor minha alma ardente,
De luz e de calor meu peito enchiam.
Inteira a natureza parecia
Meus mais fundos, mais íntimos desejos
Perscrutar e cumprir; - almo sorriso
Parecia enfeitar co’os seus encantos,
Com todo o seu amor compor, doirá-lo,
Porque os meus olhos deslumbrados vissem-no,
Porque minha alma de o sentir folgasse.
Oh! quadra tão feliz! - Se ouvia a brisa
Nas folhas sussurrando, o som das águas,
Dos bosques o rugir; - se os desejava,
- O bosque, a brisa, a folha, o trepidante
Das águas murmurar prestes ouvia.
Se o sol doirava os céus, se a lua casta.
Se as tímidas estrelas cintilavam,
Se a flor desabrochava envolta em musgo,
- Era a flor que eu amava, - eram estrelas
Meus amores somente, o sol brilhante,
A lua merencória - os meus amores!
Oh! quadra tão feliz! - doce harmonia,
Acordo estreme de vontade e força,
Que atava minha vida à natureza!
Ela era para mim bem como a esposa
Recém-casada, pudica sorrindo;
Alma de noiva - coração de virgem,
Que a minha vida inteira abrilhantava!
Quando um desejo me brotava n’alma,
Ela o desejo meu satisfazia;
E o quer que ela fizesse ou me dissesse,
Esse era o meu desejo, essa a voz minha,
Esse era o meu sentir do fundo d’alma,
Expresso pela voz que eu mais amava.

II

Agora a flor que m’importa,
Ou a brisa perfumada,
Ou o som d’amiga fonte
Sobre pedras despenhada?
Que me importa a voz confusa
Do bosque verde-frondoso,
Que m’importa a branca lua,
Que m’importa o sol formoso?
Que m’importa a nova aurora,
Quando se pinta no céu;
Que m’importa a feia noite,
Quando desdobra o seu véu?
Estas cenas, que amei, já me não causam
Nem dor e nem prazer! - Indiferente,
Minha alma um só desejo não concebe,
Nem vontade já tem!... Oh! Deus! quem pôde
Do meu imaginar as puras asas
Cercear, desprender-lhe as níveas plumas,
Rojá-las sobre ó pó, calcá-las tristes?
Perante a criação tão vasta e bela
Minha alma é como a flor que pende murcha;
É qual profundo abismo: - embalde estrelas
Brilham no azul dos céus, embalde a noite
Estende sobre a terra o negro manto:
Não pode a luz chegar ao fundo abismo,
Nem pode a noite enegrecer-lhe a face;
Não pode a luz à flor prestar mais brilho
Nem viço e nem frescor prestar-lhe a noite!

III

Houve tempo em que os meus olhos
Se extasiavam de ver
Ágil donzela formosa
Por entre flores correr.
Gostavam de um gesto brando,
Que revelasse pudor;
Gostavam de uns olhos negros,
Que rutilassem de amor.
E gostavam meus ouvidos
De uma voz - toda harmonia, -
Quer pesares exprimisse,
Quer exprimisse alegria.
Era um prazer, que eu tinha, ver a virgem
Indolente ou fugaz - alegre ou triste,
Da vida a estreita senda desflorando
Com pé ligeiro e ânimo tranqüilo;
lmpróvida e brilhante parecendo
Seus dias desfolhar, uns após outros,
Como folhas de rosa; - e no futuro -
Ver luzir-lhe somente a luz d’aurora.
Era deleite e dor vê-la tão leda
Do mundo as aflições, angústias, prantos
Afrontar co’um sorriso; era um descanso
Interno e fundo, que sentia a mente,
Um quadro em que os meus olhos repousavam,
Ver tanta formosura e tal pureza
Em rosto de mulher com alma d’anjo!

IV

Houve tempo em que os meus olhos
Gostavam de lindo infante,
Com a candura e sorriso
Que adorna infantil semblante.
Gostavam do grave aspecto
De majestoso ancião,
Tendo nos lábios conselhos,
Tendo amor no coração.
Um representa a inocência,
Outro a verdade sem véu;
Ambos tão puros, tão graves,
Ambos tão perto do céu!
Infante e velho! - princípio e fim da vida! -
Um entra neste mundo, outro sai dele,
Gozando ambos da aurora; - um sobre a terra,
E o outro lá nos céus. - O Deus, que é grande,
Do pobre velho compensando as dores,
O chama para si; o Deus clemente
Sobre a inocência de continuo vela.
Amei do velho o majestoso aspecto,
Amei o infante que não tem segredos,
Nem cobre o coração co’os folhos d’alma.
Armei as doces vozes da inocência,
A ríspida franqueza amei do velho,
E as rígidas verdades mal sabidas,
Só por lábios senis pronunciadas.

V

Houve tempo, em que possível
Eu julguei no mundo achar
Dois amigos extremosos,
Dois irmãos do meu pensar:
Amigos que compr’endessem
Meu prazer e minha dor,
Dos meus lábios o sorriso,
Da minha alma o dissabor;
Amigos, cuja existência
Vivesse eu co’o meu viver:
Unidos sempre na vida,
Unidos - té no morrer.
Amizade! - união, virtude, encanto -
Consórcio do querer, de força e d’alma -
Dos grandes sentimentos cá da terra
Talvez o mais recíproco, o mais fundo!
Quem há que diga: Eu sou feliz! - se acaso
Um amigo lhe falta? - um doce amigo,
Que sinta o seu prazer como ele o sente,
Que sofra a sua dor como ele a sofre?
Quando a ventura lhe sorri na vida,
Um a par doutro - ei-los lá vão felizes;
Quando um sente aflição, nos braços do outro
A aflição, que é só dum, carpindo juntos,
Encontra doce alívio o desditoso
No tesouro que encerra um peito amigo.
Cândido par de cisnes, vão roçando
A face azul do mar co’as níveas asas
Em deleite amoroso; - acalentados
Pelo sereno espreguiçar das ondas,
Aspirando perfumes mal sentidos,
Por vesperina aragem bafejados,
É jogo o seu viver; - porém se o vento
No frondoso arvoredo ruge ao longe,
Se o mar, batendo irado as ermas praias,
Cruzadas vagas em novelo enrola,
Com grito de terror o par candente
Sacode as níveas asas, bate-as, - fogem.

VI

Houve tempo em que eu pedia
Uma mulher ao meu Deus,
Uma mulher que eu amasse,
Um dos belos anjos seus.
Em que eu a Deus só pedia
Com fervorosa oração
Um amor sincero e fundo,
Um amor do coração.
Qu’eu sentisse um peito amante
Contra o meu peito bater,
Somente um dia... somente!
E depois dele morrer.
Amei! e o meu amor foi vida insana!
Um ardente anelar, cautério vivo,
Posto no coração, a remordê-lo.
Não tinha uma harmonia a natureza
Comparada a sua voz; não tinha cores
Formosas como as dela, - nem perfumes
Como esse puro odor qu’ela esparzia
D’angélica pureza. - Meus ouvidos
O feiticeiro som dos meigos lábios
Ouviam com prazer; meus olhos vagos
De a ver não se cansavam; lábios d’homens
Não puderam dizer como eu a amava!
E achei que o amor mentia, e que o meu anjo
Era apenas mulher! chorei! deixei-a!
E aqueles, que eu amei co’o amor d’amigo,
A sorte, boa ou má, levou-mos longe,
Bem longe quando eu perto os carecia.
Concluí que a amizade era um fantasma,
Na velhice prudente - hábito apenas,
No jovem - doudejar; em mim lembrança;
Lembrança! - porém tal que a não trocara
Pelos gozos da terra, - meus prazeres
Foram só meus amigos, - meus amores
Hão de ser neste mundo eles somente.

VII
Houve tempo em que eu sentia
Grave e solene aflição,
Quando ouvia junto ao morto
Cantar-se a triste oração.
Quando ouvia o sino escuro
Em sons pesados dobrar,
E os cantos do sacerdote
Erguidos junto do altar.
Quando via sobre um corpo
A fria lousa cair;
Silêncio debaixo dela,
Sonhos talvez - e dormir.
Feliz quem dorme sob a lousa amiga,
Tépida talvez com o pranto amargo
Dos olhos da aflição; - se os mortos sentem,
Ou se almas tem amor aos seus despojos,
Certo dos pés dó Eterno, entre a aleluia,
E o gozo lá dos céus, e os coros d’anjos,
Hão de lembrar-se com prazer dos vivos,
Que choram sobre a campa, onde já brota
O denso musgo, e já desponta a relva.
Laje fria dos mortos! quem me dera
Gozar do teu descanso, ir asilar-me
Sob o teu santo horror, e nessas trevas
Do bulício do mundo ir esconder-me!
Oh! laje dos sepulcros! quem me desse
No teu silêncio fundo asilo eterno!
Ai não pulsa o coração, nem sente
Martírios de viver quem já não vive.

Marcelo Spalding (A técnica da pirâmide invertida para além do jornalismo)


    O que mais chama a atenção na técnica da pirâmide invertida, comum no jornalismo, é que não se trabalha com a linearidade temporal, não se prioriza aquilo que veio antes, e sim aquilo que é mais importante.

    Reza a lenda que essa técnica surgiu no tempo da comunicação por telégrafo. Como o sinal era muito ruim e poderia cair a qualquer momento, os repórteres passavam as informações mais importantes primeiro, pois se perdessem o contato não deixariam o editor sem sua matéria, ainda que incompleta.

    Hoje, com o acúmulo de informações e a dificuldade de concentração dos leitores, a pirâmide invertida tornou-se uma técnica produtiva para diversas áreas, pois a partir dela assegura-se que o leitor captou o principal da informação logo no começo do texto, e seguirá lendo apenas se for do seu interesse aprofundar-se no assunto.

    Dessa forma, posts no Facebook e nos blogs, textos publicitários, discursos políticos e até textos de ficção têm concentrado todos os seus esforços no começo, na primeira frase, no impacto inicial que fará o leitor prosseguir.

    Fora dos textos, a lógica de priorizar o mais importante e não o que veio primeiro chegou aos hospitais com o famoso sistema de Manchester de Classificação de Risco, em que pacientes com necessidades mais imediatas são atendidos primeiro, ainda que tenham chegado depois.


    Nas salas de aula, em que a quantidade de conteúdo para vencer é cada vez maior e o tempo de permanência e atenção dos alunos é cada vez menor, também já tem se deixado para trás a ideia de apresentar os conteúdos em uma ordem linear (do começo da apostila para o fim, do mais fácil para o mais complexo, do que surgiu antes para o que surgiu depois).

    Ao invés disso, lista-se o que é fundamental que o aluno compreenda e faz-se um planejamento para que se consiga trabalhar plenamente com esse conteúdo (por exemplo, um conteúdo por mês). É possível que sobre tempo dentro do mês, aí será o momento de aprofundar aquele conteúdo de acordo com o que seria importante que ele soubesse mas não havia sido abordado anteriormente.

    No texto acadêmico, o resumo tem um pouco esse papel da pirâmide invertida, ao antecipar o que o leitor encontrará nas diversas páginas seguintes. Com isso, o leitor não apenas pode decidir se deve ou não ler o texto como saberá se guiar ao longo da leitura, podendo inclusive saltar capítulos que não sejam de seu interesse específico.
    Em suma, a técnica da pirâmide invertida reconhece a primazia do leitor, seu direito de não ler, de pular páginas, de escolher o que ler, etc, tornando a escrita ainda mais desafiadora.
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Machado de Assis (Almas Agradecidas) Capítulo VI

Era a primeira declaração que Cecília ouvia da boca de um homem. Não estava preparada para ela. Tudo o que ouvira lhe causara um inexplicável alvoroço.

Posto que não amasse nenhum dos dois, apreciava ambos os rapazes, e não seria difícil que cedesse ao pedido de um deles e viesse a amá-lo apaixonadamente.

Dos dois rapazes, o que mais depressa conseguiria vencer, dado o caso que se declarassem ao mesmo tempo, era sem dúvida Magalhães, cujo espírito galhofeiro e presença insinuante deviam influir mais no espírito da moça.

Minutos depois da cena narrada no capítulo anterior, já os olhos de Cecília procuravam os de Magalhães, mas rapidamente, sem se demorar neles; todos os sintomas de um coração que não se demorará em ceder.

Magalhães tinha a vantagem de conservar todo o sangue frio no meio da situação que se lhe apresentava, e isso era excelente para não descobrir aos olhos estranhos o segredo que ele tinha interesse em conservar.

Pouco depois, entrou Oliveira. Magalhães deu-se pressa em o chamar de parte.

— Que há? perguntou Oliveira.

— Boas notícias.

— Falaste-lhe? — Positivamente não; mas encaminhei o negócio de maneira que talvez em poucos dias tenha a tua situação mudado completamente.

— Mas que houve? — Falei-lhe de amores; ela pareceu indiferente a essas ideias; disse-lhe então gracejando que a amava...

— Tu? — Sim. De que te admiras? — E que disse ela? — Riu-se. Então perguntei-lhe velhacamente se amava alguém. E ela a isto respondeu que não, mas por modo que me parecia uma afirmativa. Deixa o caso por minha conta.

Amanhã, desfaço a meada; digo-lhe que eu estava brincando... Mas paremos aqui, que aí vem o comendador.

Efetivamente, Vasconcelos chegara à janela onde os dois estavam. Uma das manias de Vasconcelos era comentar durante o dia todas as notícias que os jornais publicavam de manhã. Os jornais daquele dia falavam de um casal encontrado morto num quarto da casa em que residia. Vasconcelos desejava saber se os dois amigos optavam pelo suicídio, circunstância esta que o levaria a adotar a hipótese do assassínio.

Foi esta conversa uma completa diversão ao assunto amoroso, e Magalhães aproveitou o debate entre Oliveira e Vasconcelos para ir conversar com Cecília.

Falaram de coisas indiferentes, mas Cecília estava menos expansiva; Magalhães supôs a princípio que fosse um sintoma de esquivança; não era. Bem o notou ele quando, ao sair, Cecília correspondeu energicamente ao seu apertado aperto de mão.

— Pensas que serei feliz, Magalhães? perguntou Oliveira apenas se acharam na rua.

— Penso.

— Não imaginas que dia passei hoje.

— Não hei de imaginar! — Olha, nunca pensei que esta paixão pudesse dominar tanto a minha vida.

Magalhães animou o rapaz, que o convidou a cear, não porque o amor lhe deixasse largo campo às exigências do estômago, senão porque havia jantado pouco.

Eu peço perdão aos meus leitores, se entro nestas explicações a respeito da comida.

Quer-se um herói romântico, acima das necessidades vulgares da vida humana; mas não posso deixar de as mencionar, não por sistema, mas por ser fiel à história que estou contando.

A ceia foi alegre, porque Magalhães e a tristeza eram incompatíveis. Oliveira, apesar de tudo, comeu pouco, Magalhães largamente. Entendia que lhe cumpria pagar a ceia; mas o amigo não consentiu nisso.

— Olha, Magalhães, disse Oliveira ao despedir-se dele. A minha felicidade está nas tuas mãos; és capaz de dar conta dela? — Não se devem prometer coisas tais; o que eu te afirmo é que não pouparei esforços.

— E pensas que serei feliz? — Quantas vezes queres que to diga? — Adeus.

— Adeus.

No dia seguinte, Oliveira mandou dizer a Magalhães que estava um pouco incomodado.

Magalhães foi visitá-lo.

Achou-o de cama.

— Estou com alguma febre, disse o advogado; dize isto mesmo ao comendador, a quem eu prometi de ir lá hoje.

Magalhães cumpriu o pedido.

Era a ocasião de se manifestar a dedicação de Magalhães. Não faltou este moço a tão sagrado dever. Passava com Oliveira a tarde e as noites e só se separava dele para ir, às vezes, à casa de Vasconcelos, que era isso mesmo o que Oliveira lhe pedia.

— Fala-lhe sempre de mim, dizia Oliveira.

— Não faço outra coisa.

E assim era. Magalhães não cessava de dizer que vinha ou ia para casa de Oliveira, cuja doença ia tomando um aspecto grave.

— Que amigo! murmurava consigo D. Mariana.

— O senhor é um bom coração, dizia Vasconcelos apertando as mãos de Magalhães.

— O sr. Oliveira deve querer-lhe muito, dizia Cecília.

— Como a um irmão.

A doença de Oliveira era grave; durante todo o tempo que durou, não se desmentiu nunca a dedicação de Magalhães.

Oliveira admirava-o. Via que o benefício que lhe fizera não caíra em má terra. Grande foi a sua alegria quando, ao começar a convalescença, Magalhães lhe pediu duzentos mil réis, com promessa de os pagar no fim do mês.

— Quanto quiseres, meu amigo. Tira-os ali da secretária.

— Acredita que isto me vexa imensamente, disse Magalhães, metendo na algibeira duas notas de cem mil-réis. Nunca te pedi dinheiro; agora, menos que nunca, devia pedir-te.

Oliveira compreendeu o pensamento do amigo.

— Não sejas tolo; a nossa bolsa é comum.

— Oxalá que esse belo princípio possa ser realizado literalmente, disse Magalhães rindo.

Oliveira não lhe falou nesse dia a respeito de Cecília. Foi o próprio Magalhães que encetou a respeito dela uma conversa.

— Queres ouvir uma coisa? disse ele. Apenas saíres, manda-lhe uma carta.

— Por quê? Crês que...

— Creio que é a hora do golpe.

— Só para a semana poderei sair.

— Não importa, virá a tempo.

Para compreender bem a situação singular em que se achavam estes personagens todos, é mister transcrever aqui as palavras com que nessa mesma noite se despediram Magalhães e Cecília à janela da casa desta: — Até amanhã, disse Magalhães.

— Virás cedo? — Venho às 8 horas.

— Não faltes.

— Queres que te jure? — Não precisa; adeus.
––––––––––––
continua…

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

sábado, 7 de junho de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 16


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Iamuricumas

Em meio a uma grande festa, os índios haviam concluído a cerimônia de furar as orelhas de seus meninos, após a qual as crianças permanecem de resguardo. Segundo o costume, os homens da tribo foram à pesca para bem alimentá-las, enquanto as mulheres prosseguiram com o corte dos cabelos. Percebendo que os pais demoravam a chegar, o filho do pajé decidiu ir ao rio, onde pôde observá-los batendo o timbó e pegando muitos peixes.

Repentinamente, como por encanto, os índios transformaram-se em animais selvagens. Assustado, o menino correu à tribo, relatando à sua mãe o que sucedera. Esta avisou as outras mulheres e, reunidas, preparavam-se para fugir dentro de poucos dias, pois os homens da pescaria agora representavam perigo!

Pintaram-se e ornamentaram o corpo como se fossem homens. Em seguida a esposa do pajé, à frente do grupo, entoou um canto, conduzindo-o ate a floresta. Lá, untaram-se de veneno, transformando-se no espírito Mamaé.

Após cantarem e dançarem dois dias sem cessar, pediram a um velho que pousando sobre as costas a casca de um tatu, seguisse à sua frente, abrindo-lhes passagem. O homem passou a agir como se fosse o próprio animal.

As mulheres, indiferentes aos homens da pescaria, seguiram o seu caminho, a cantar e a dançar, levando consigo mulheres de mais duas aldeias.

Suas crianças foram lançadas ao rio, tornando-se peixes. Ainda hoje, as Iamuricumás viajam dia e noite, armadas de arco e flecha. Não possuem o seio direito, para melhor manejá-los. E assim, cantando e dançando, continuam a abrir caminhos pela floresta, seguindo eternamente o homem tatu.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Marcelo Spalding (O Nome das Personagens)

Eu já batizei personagens e filhos e posso dizer: batizar uma personagem é bem mais difícil. Ocorre que a personagem você batiza depois que ela existe como forma de representar suas características ou pelo menos ajudar nessa composição. Já um filho você batiza sem saber sua cor, sua personalidade, seus sonhos.

Numa ficção, não veremos o nome de Clara numa personagem de pele escura, a não ser que esse seja o conflito ou parte do conflito da trama. Não teremos um Pedro dócil, já virou até clichê o nome de Pedro para personagens durões como uma pedra. Não veremos um apelido diminutivo para um bandido ou um personagem grande, a não ser com objetivo cômico. E não teremos um sobrenome de origem alemã numa personagem ou trama que não tenha nenhuma relação com a colonização alemã.

Dar nome aos personagens, portanto, requer cuidado e planejamento. Você deve considerar, em ordem:

1) A personalidade da personagem;
2) A sonoridade do nome;
3) Se o nome não é semelhante a outros nomes da trama;
4) A possibilidade que o nome dá de apelidos ou contrações, a fim de evitar sua repetição excessiva.

Num de meus livros, Vencer em Ilhas Tortas mudei o nome de duas personagens. Uma delas se chamava Jane, era uma homenagem a uma escritora amiga. Só que o livro é juvenil, e nessa faixa etária quase ninguém se chama Jane. Sem contar a velha referência a Tarzan. Mudei para Marília, mais fácil.

Outro personagem se chamava Charles. Só que a história se passa num país africano de língua portuguesa em que chegou um imigrante inglês, Michel, que disputava espaço com os moradores do local. O Charles era nativo daquele país de língua portuguesa, então troquei o nome para Júlio, evitando a confusão.

No mesmo livro, o nome do protagonista foi escolhido de forma consciente, para evitar a repetição: Carlos Eduardo. Alguns, na história, o chamam assim, inclusive o narrador, algumas vezes. Mas seu apelido Cauê é o mais usado. E a avó, quando conversa com o neto, o chama de Carlinhos. Foi uma técnica interessante porque nem precisava dizer que era a avó quem falava, pois só ela chamava o protagonista de Carlinhos.

Nunca use nomes próprios completos de pessoas conhecidas. E eu diria que você deve evitar até de usar nomes de conhecidos em personagens que possam lembrá-los. Isso, além de evitar processos judiciais, evita constrangimentos.

Eu mesmo, em outro livro, As cinco pontas de uma estrela, em que há cinco protagonistas, atribuí inicialmente uma letra para cada um: A, B, C, D e E. Depois é que fui escolhendo os nomes. O quinto se chamaria Eduardo, nome do meu irmão e um nome comum com a letra E. O problema é que o personagem se envolve com drogas na história e meu irmão tinha 14 anos na época: imagina a reação da minha mãe ao ler o livro! Mudei o nome para Eloi. Ninguém se chama Eloi por aqui.

É muito comum, principalmente em contos, o autor não dar nome a seus personagens. A vantagem é que esse personagem pode ser qualquer um, aumentando a chance de nos identificarmos com ele. Só que a grande desvantagem é o texto ficar confuso, em especial se há mais de um personagem. Aí seremos obrigados a usar muitos "ele / ela" e isso dificultará nosso texto mais do que ajudará.

Na dúvida, portanto, opte por nomes simples como João, Pedro, Ricardo, Carolina, Isabel. Só use nomes compostos se fizer sentido para a história, se for uma informação relevante para o enredo ou se isso ajudar a compor a personalidade da personagem. Alguns autores procuram o significado dos nomes, a simbologia ou até a a numerologia para compor suas personagens. É uma possibilidade, mas não precisa revelar ao leitor, são informações de bastidor.
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Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4197/o-nome-das-personagens

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 8

(mantida a grafia original)

O Oiro

Oiro, - poder, encanto ou maravilha
Da nossa idade, - regedor da terra,
Que dás honra e valor, virtude e força,
Que tens ofertas, oblações e altares, -
Embora teu louvor cante na lira
Vendido Menestrel que pôde insano
Do grande à porta renegar seu gênio!
Outro, sim, que não eu. - Bardo sem nome,
Com pouco vivo; - sobre a terra, à noite,
Meu corpo lanço, descansando a fronte
Num tronco ou pedra ou mal nascido arbusto.
Sou mais que um rei co’o meu dossel de nuvens
Que tem gravados cintilantes mundos!
Com a vista no céu percorro os astros.
Vagueia a minha mente além das nuvens,
Vagueia o meu pensar - alto, arrojado
Além de quanto o olhar nos céus alcança.
Então do meu Senhor me calam n’alma
D’amor ardente enlevos indizíveis;
Se tento às gentes redizer seu nome,
Queimadoras palavras se atropelam
Nos meus lábios; - profética harmonia
Meu peito anseia, e em borbotões se expande.
Grandes, Senhor, são tuas obras, grandes
Teus prodígios, teu poder imenso:
O pai ao filho o diz, um sec’lo a outro,
A terra ao céu, o tempo à eternidade!
Do mundo as ilusões, vaidade, engano.
Da vida a mesquinhez - prazer ou pranto -
Tudo esse nome arrasta, prostra e some;
Como aos raios do sol desfeito o gelo,
Que em ondas corre no pendor do monte,
Precípite e ruidoso, - arbustos, troncos
Consigo no passar rompidos leva.

A um Menino
Oferecida à exma. Sra. D. M. L. L. V.

I

Gentil, engraçado infante
Nos teus jogos inconstante,
Que tens tão belo semblante,
Que vives sempre a brincar,
- Dos teus brinquedos te esqueces
À noitinha, - e te entristeces
Como a bonina, - e adormeces,
Adormeces a sonhar!

II

Infante, serão as cores
De várias, viçosas flores,
Ou são da aurora os fulgores
Que vem teus sonhos doirar?
Foi de algum ente celeste,
Que de luzeiros se veste,
Ou da brisa é que aprendeste,
Que aprendeste a suspirar?

III

Tens no rosto afogueado
Um qual retrato acabado
De um sentir aventurado,
Que te ri no coração;
É talvez a voz mimosa
De uma fada caprichosa,
Que te promete amorosa,
Algum brilhante condão!

IV

Ou por ventura és contente,
Porque no sonho, que mente,
Fantasiaste inocente
Algum dos brinquedos teus!. . .
Senhor, tens bondade infinda!
Fizeste a aurora bem linda,
Criaste na vida ainda
Um’outra aurora dos céus.

V

O som da corrente pura,
A folhagem que sussurra,
Um acento de ternura,
De ternura divinal;
A indizível harmonia
Dos astros no fim do dia,
A voz que Mêmnon dizia,
Que dizia matinal;

VI

Nada disto tem o encanto,
Nada disto pode tanto
Como o risonho quebranto,
Divino - do seu dormir:
Que nada há como a Donzela
Pensativa, doce e bela,
E a comparar-se com ela...
Só de um infante o sorrir.

VII

Mas de repente chorando
Despertas do sono brando
Assustado e soluçando...
Foi uma revelação!
Esta vida acerba e dura
Por um dia de ventura
Dá-nos anos de amargura
E fráguas do coração.

VIII

Só aquele que da morte
Sofreu o terrível corte,
Não tem dores que suporte,
Nem sonhos o acordarão:
Gentil infante, engraçado,
Que vives tão sem cuidado,
Serás homem - mal pecado!
Findará teu sonho então.

Miserrimus

Quando o inverno chegou, - por sobre a terra
O robe secular espalha a coma,
Que o rábido tufão cortou de morte.
Despida e nua jaz a flor mimosa,
Agora hástea somente; e o sol brilhante
Despede a custo a luz que mal penetra
As nuvens trovejadas que o circundam.
Mas o inverno passou! - De novo assume
Virente rama o robe gigantesco,
A flor formosa e bela vem brotando,
E o sol, rei do horizonte, já rutila
Em céu de puro azul-brilhante.
Mas quando o desengano, qual tormenta
Que por desertos só valente reina,
Do quente coração arranca, esmaga
Esp’ranças, que o amor enfeitiçava,
Em vão a natureza ufana brilha,
Em vão de puro orvalho a flor se arreia,
Em vão dardeja o sol seus quentes raios,
Em vão!... que o coração jaz frio e murcho.
E não mais viverá! - que a alma sentida
Conhece que o amor é só mentira,
Que é mentira o prazer, mentira tudo!
Um dia apareceu um recém-nado,
Como a concha que o mar à praia arroja,
Cresceu; - qual cresce a planta em terra inculta
Que ninguém educou; - a chuva apenas.
Infante - viu de roda sepulturas,
Em que não atentou; - sonhos mimosos,
Acordado ou dormindo, lhe doiravam
A infância leve, d’inocência rica.
Viu belo o ar, e terra, e céus, e mares,
Viu bela a natureza, como a noiva
Sorrindo em breve dia de noivado!
Então sentiu brotarem na sua alma
Sonhos de puro amor, sonhos de glória;
Sentiu no peito um mundo de esperanças,
Sentiu a força em si - patente o mundo.
Forte se levantou! correu fogoso,
E qual águia que nas asas se equilibra,
Começou a trilhar da vida a senda.
Um monte além topou; mais vagaroso
Subiu, - vingou mais lento! - Inda mais outro
Colossal - descalvado - íngreme e liso,
Costeou, mas cansou, que era sozinho!
Sentou-se, e mudo, e fraco, é pensativo,
À borda do caminho; e sobre o peito
A cabeça inclinou, cruzando os braços.
Minha mãe! - soluçou; e um eco ao longe
Minha mãe! - respondeu. - Sentiu que a fome
Dolorosa as entranhas lhe apertava,
E sede intensa a ressequir-lhe as fauces;
Fome e sede curtiu como num sonho.
Do rosto nas maçãs descoloridas
- Filtro do coração - sentiu que o pranto
Ardente escorregava a tez queimando.
Muda era a sua dor, - d’homem que sofre,
Que chora isento de vergonha ou crime.
Encontrou mais além no seu caminho,
Bela na sua dor, sozinha e fraca,
Figura virginal que ali jazia.
Esqueceu-se de si pensando nela;
Nova força criou, - novo incentivo,
Coragem nova o seu amor criou-lhe.
Lavou-lhe os curtos pés, contra o seu peito
Do frio a protegeu, - tomou nos braços
A carga tão mimosa! - E ela co’os olhos,
Que o amor vendava um pouco, agradecia.
E ela pôde viver; - disse que o amava,
Que era o seu coração dele - e só dele: -
Disse, e mais que uma vez, com peito e lábios
No peito e lábios dele; - era mentira!
E ele o conheceu! por precipícios
Descrido se arrojou, sentindo a morte,
Seu berço entre sepulcros procurando.
Aqui - ali - além - eram sepulcros;
E o nome de sua mãe, sequer não pode
Dos nomes conhecer de tantos mortos.
E só no seu morrer, qual só na vida,
Na terra se estendeu; nem dor, nem pranto
Tinha no coração que era já morto!
E alguém, que ali passou, vendo um cadáver
De sânie e podridão comido e sujo,
Co’o pé num fosso o revolveu; - e terra
Caída acaso o sepultou p’ra sempre.
Amizade! - ilusão que os anos somem;
Amor! - um nome só, bem como o nada,
A dor no coração, delícias n’alma,
Nos lábios o prazer, nos olhos pranto
- Tudo é vão, tudo é vão, exceto a morte.

O Pirata
(Episódio)

Nas asas breves do tempo
Um ano e outro passou,
E Lia sempre formosa
Novos amores tomou.
Novo amante mão de esposo,
De mimos cheia, lh’of’rece;
E bela, apesar de ingrata,
Do que a amou Lia se esquece.
Do que a amou que longe pára,
Do que a amou, que pensa nela,
Pensando encontrar firmeza
Em Lia, que era tão bela!
Nesse palácio deserto
Já luzes se vêm luzir,
Que vem nas sedas, nos vidros
Cambiantes refletir.
Os ecos alegres soam,
Soa ruidosa harmonia,
Soam vozes de ternura,
Sons de festa e d’alegria.
E qual ave que em silêncio
A face do mar desflora,
À noite bela fragata
Chega ao porto, amaina, ancora.
Cai da popa e fere as ondas
Inquieta, esguia falua,
Que resvala sobre as águas
Na esteira que traça a lua.
Já na vácua praia toca;
Um vulto em terra saltou,
Que na longa escadaria
Presago e torvo enfiou..
Malfadado! por que aportas
A este sítio fatal!
Queres o brilho aumentar
Das bodas do teu rival?
Não, que a vingança lhe range
Nos duros dentes cerrados,
Não, que a cabeça referve
Em maus projetos danados!
Não, que os seus olhos bem dizem
O que diz seu coração;
Terríveis, como um espelho,
Que retratasse um vulcão.
Não, que os lábios descorados
Vociferam seu rival;
Não, que a mão no peito aperta
Seu pontiagudo punhal.
Não, por Deus, que tais afrontas
Não as sói deixar impunes,
Quem tem ao lado um punhal,
Quem tem no peito ciúmes!
Subiu! - e viu com seus olhos
Ela a rir-se que dançava,
Folgando, infame! nos braços
Porque assim o assassinava.
E ele avançou mais avante,
E viu. . . o leito fatal!
E viu. . . e cheio de raiva
Cravou no meio o punhal.
E avançou... e à janela
Sozinha a viu suspirar,
- Saudosa e bela encarando
A imensidade do mar.
Como se vira um espectro,
De repente ela fugiu!
Tal foge a corça nos bosques
Se leve rumor sentiu.
Que foi? - Quem sabe dizê-lo?
Foram vislumbres de dor:
Coração, que tem remorsos,
Sente contínuo terror!
Ele à janela chegou-se,
Horrível nada encontrou. . .
Somente, ao longe, nas sombras,
Sua fragata avistou.
Então pensou que no mundo
Nada mais de seu contava!
Nada mais que essa fragata!
Nada mais de quanto amava!
Nada mais!... - que lh’importava
De no mundo só se achar?
Inda muito lhe ficava -
Água e céus e vento e mar.
Assim pensava, mas nisto
Descortina o seu rival,
Não visto; - a mão na cintura
Cingiu raivoso o punhal!
Mas pensou. . . - não, seja dela,
E tenha zelos como eu? -
Larga o punhal, e um retrato
Na destra mão estendeu.
Porém sentiu que inda tinha
Mais que branda compaixão;
Miserando! inda guardava
Seu amor no coração.
Infeliz! não foi culpada;
Foi culpa do fado meu!
Nada mais de pensar nela;
Finjamos que ela morreu.
Por entre a turba que alegre
No baile - a sorrir-se estava,
Mudo, triste, e pensativo
Surdamente se afastava.
De manhã - quando o sarau
Apagava o seu rumor,
Chegava Lia a janela,
Mais formosa de palor.
Chegou-se; - e além -.- no horizonte
Uma vela inda avistou;
E co’a mão trêmula e fria
O telescópio buscou!
Um pavilhão viu na popa,
Que tinha um globo pintado;
E no mastro da mezena
Um negro vulto encostado.
Eram chorosos seus olhos,
Os olhos seus enxugou;
E o telescópio de novo
Para essa vela apontou.
Quem era o vulto tão triste
Parece reconheceu;
Mas a vela no horizonte
Para sempre se perdeu.

Machado de Assis (Almas Agradecidas) Capítulo V

O comendador Vasconcelos era um velho folgazão. Estouvado na mocidade, não o era menos na velhice. O estouvamento na velhice é, por via de regra, um senão; todavia, o estouvamento de Vasconcelos tinha um toque peculiar, um caráter todo seu, por modo que era impossível compreender aquele velho sem aquele estouvamento.

Contava já seus cinquenta e oito anos, e andaria lépido como um rapaz de vinte anos, se não fosse uma volumosa barriga que, desde os quarenta anos, lhe começara a crescer com grave desdouro das suas graças físicas, que as tinha, e sem as quais era duvidoso que a sra. D. Mariana houvesse casado com ele.

D. Mariana, antes de casar, professava um princípio seu: o casamento é um estado vitalício; cumpre não precipitar a escolha do noivo. Pelo que, rejeitou três pretendentes que, apesar de suas boas qualidades, tinham um defeito físico importante: não eram bonitos. Vasconcelos alcançou o seu Austerlitz onde os outros haviam achado Waterloo.

Salvante a barriga, Vasconcelos era ainda um belo velho, uma ruína magnífica. Não tinha paixões políticas: votara alternadamente com os conservadores e os liberais para contentar os amigos que tinha em ambos os partidos. Conciliava as opiniões sem arriscar as amizades.

Quando a acusavam deste ceticismo político, respondia com uma frase que, se não discriminava as suas opiniões, abonava o seu patriotismo: — Somos todos brasileiros.

Enquadrava o gênio de Magalhães com o de Vasconcelos. A intimidade não tardou muito.

Já sabemos que o amigo de Oliveira tinha a grande qualidade de se fazer querido com pouco trabalho. Vasconcelos morria por ele; achava-lhe imensa graça e sólido juízo. D.

Mariana chamava-lhe a alegria da casa; Cecília não tinha mais condescendente conversador.

Para os fins de Oliveira era excelente.

Não se descuidou Magalhães de sondar o terreno, a ver se podia animar o amigo. Achou o terreno excelente. Falou uma vez à moça a respeito do amigo e ouviu-lhe palavras de animadora esperança. Parece-me ser, disse ela, um excelente coração.

— Afirmo que o é, disse Magalhães; conheço-o há muito tempo.

Quando Oliveira soube destas palavras, que não eram muita coisa, ficou muito animado.

— Creio que posso ter esperanças, disse ele.

— Nunca te disse outra coisa, respondeu Magalhães.

Magalhães nem sempre podia servir aos interesses do amigo, porque Vasconcelos, a quem caíra em graça, confiscava-o horas inteiras, ou palestrando, ou jogando o gamão.

Um dia, Oliveira perguntou ao amigo se era conveniente arriscar uma carta.

— Ainda não, deixa-me preparar a coisa.

Oliveira acedeu.

A quem ler estas páginas muito por alto, parecerá inverossímil da parte de Oliveira semelhante necessidade de um cicerone.

Não é.

Oliveira nenhuma demonstração dera até ali à moça, que se conservava ignorante do que se passava dentro dele; e se assim praticava, era por um excesso de timidez, fruto de suas proezas com mulheres de outra classe.

Nada intimida mais a um conquistador de mulheres fáceis do que a ignorância e a inocência de uma donzela de dezessete anos.

Acresce que, se Magalhães era de opinião que ele não se demorasse em expor os seus sentimentos, já agora pensava que era melhor não arriscar golpe sem certeza do resultado.

A dedicação de Magalhães também parecerá condescendente aos espíritos severos. Mas a que se não expõe a verdadeira amizade? Na primeira ocasião que se lhe deparou, tratou Magalhães de perscrutar o coração da moça.

Era de noite; havia gente em casa. 0liveira estava ausente. Magalhães conversava com Cecília a respeito de um chapéu com que uma senhora idosa entrara na sala.

Magalhães fazia a respeito do chapéu mil conjecturas burlescas.

— Aquele chapéu, dizia ele, parece-me um ressuscitado. Houve naturalmente alguma epidemia de chapéus em que morreu aquele, acompanhado de outros seus irmãos.

Aquele ressuscitou, para vir dizer a este mundo o que é o paraíso dos chapéus.

Cecília reprimia uma risada.

Magalhães continuava: — Eu, se fosse aquele chapéu, pedia uma pensão como inválido e como raridade.

Isto era mais burlesco que picante, mais estúrdio que engraçado; todavia, fazia rir Cecília.

Repentinamente, Magalhães ficou sério e consultou o relógio.

— Já se vai embora? perguntou a moça.

— Não, senhora, disse Magalhães.

— Guarde então o relógio.

— Admira-me que Oliveira ainda não viesse.

— Virá mais tarde. Os senhores são muito amigos? — Muito. Conhecemo-nos desde crianças. É uma bela alma.

Houve um silêncio.

Magalhães cravou os olhos na moça, que olhava para o chão, e disse: — Feliz aquela que o possuir.

A moça não revelou a menor impressão ao ouvir estas palavras de Magalhães. Ele repetiu a frase, e ela perguntou se não seriam horas de tomar chá.

— Já amou, D. Cecília? perguntou Magalhães.

— Que pergunta é essa? — É uma curiosidade.

— Nunca amei.

— Por quê? — Sou muito criança.

— Criança! Outro silêncio.

— Conheço alguém que a ama muito.

Cecília estremeceu e ficou muito corada; não respondeu nem se levantou. Para sair, porém, da situação em que as palavras de Magalhães a deixara, disse rindo: — Essa pessoa... quem é? — Quer saber o nome? — Quero. É seu amigo? — É.

— Diga o nome.

Outro silêncio.

— Promete não ficar zangada comigo? — Prometo.

— Sou eu.

Cecília esperava ouvir outra coisa; esperava ouvir o nome de Oliveira. Qualquer que fosse a sua inocência, havia percebido naqueles últimos dias que o rapaz tinha queda por ela.

Da parte de Magalhães, não esperava semelhante declaração; todavia, o seu espanto não foi de cólera, apenas surpresa.

A verdade é que ela não amava nenhum deles.

Não tendo a moça respondido logo, Magalhães disse com um sorriso benévolo: — Já sei que ama outro.

— Que outro? — Oliveira.

— Não.

Era a primeira vez que Magalhães apresentava um aspecto grave; penalizada com a ideia de que lhe houvesse com o silêncio causado alguma tristeza, que ela adivinhava, posto que não sentisse, Cecília disse ao fim de alguns minutos: — O senhor está brincando comigo? — Brincando! disse Magalhães. Tudo quanto quiser, menos isso; não se brinca com o amor ou o sofrimento. Já lhe disse que a amo; responda-me francamente se posso nutrir alguma esperança.

A moça não respondia.

— Não poderei viver ao pé da senhora sem uma esperança, embora remota.

O papá é quem decide de mim, disse ela desviando a conversa.

— Pensa que eu sou desses corações que se contentam com o consentimento paterno? O que eu desejo possuir primeiro é o seu coração. Diga-me: posso esperar essa fortuna? — Talvez, murmurou a menina, levantando-se envergonhada dessa singela palavra.
-----------
continua...

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

terça-feira, 3 de junho de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 15


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Iamulumulu - A formação dos rios

Savuru era um espírito que possuía duas esposas. A pedido dos irmãos Kuát ( Sol) e Iaê ( Lua ), que as cobiçavam, as ariranhas o mataram, ficando sua esposa mais velha com o Sol e a outra com a Lua.

Seguiram então os casais em direção à aldeia de Kanutsipei. Durante o caminho, os irmãos encontraram dificuldades e necessitaram da ajuda de outros espíritos: Iamulumulu lhes curou a impotência, Ierêp fez com que neles nascesse o ciúme das esposas e, uma vez cansados, pediram a Uiaó algo que os fizessem adormecer.

No dia seguinte, dispostos, retomaram a caminhada. Chegando ao local pretendido, estavam sedentos e pediram água a Kanutsipei. A água, porém, estava suja. O irmão Lua, tomando a forma de um beija-flor, voou rapidamente à procura de boa água. Ao voltar contou-lhes que o espírito os enganara, mantendo escondidos muitos potes com a mais pura água. Contrariados, os casais retornaram a sua aldeia, contando a todos o que ocorrera.

O Sol e a Lua uniram-se a vários espíritos, Vanivani, lananá, Kanaratê, os zunidores Hori-hori, invocando também os espíritos das águas que habitavam a copa do Jatobá. Chamaram ainda as máscaras Jakuikutu, Mearatsim, Ivat, Jakuiaép e Tauari. Reunidos, dançaram e resolveram voltar à aldeia de Kanutsipei para tomarem posse de sua água, quebrando todos os seus potes, conduzindo-a a outras regiões.

Mearatsim, o primeiro a chegar, cantou para espantar o dono do local. Chegaram então os outros espíritos e, à medida que os potes foram quebrados, formou-se ali uma grande lagoa, de onde cada um dos espíritos criou um rio.

Assim, o Sol criou o Rio Ronouro; Vani-vani formou o Rio Maritsauá; Kanaratê, o Paranajuva; Tracajá, o Kuluene e Iananá, um afluente do Ronouro.

A formação dos rios não agradou ao Sol, pois todos corriam para Morená, a região sagrada dos espíritos. Iniciou-se ali uma grande confusão, em meio à qual a Lua foi engolida por um grande peixe. O Sol, desesperado, saiu à procura do irmão, no ventre dos peixes que encontrava. Chegou a capturar o Tucunaré, o Matrinxã, o Pirarara e a Piranha. Mas havia sido o Jacunaum que o engolira, informou o Acará. E ambos, unidos, partiram à caça dos peixe.

Pediram a Taperá (andorinha do campo) que lhes conseguisse um grande anzol, ocultando-o num charuto. O Acará nadou à procura de Jacunaum, oferecendo-lhe fumo. Desta maneira, o Sol conseguiu fisgá-lo. Entretanto, dentro do peixe, restavam apenas os ossos de seu irmão.

Desejando ardentemente que a Lua revivesse, o Sol arrumou no chão seu esqueleto, cobrindo-o com as folhas perfumadas do Enemeóp. Aos poucos, como por encanto, a carne foi surgindo, revestindo os ossos até formar um novo corpo. Faltava-lhe ainda a vida. O Sol então introduziu um mosquitinho em sua narina, provocando-lhe um espirro, que o fez finalmente despertar.

Assim foram criados os rios e, a partir daí, iniciou-se a prática da pajelança, tendo sido o Sol o primeiro pajé.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Marcelo Spalding (Começando um texto informativo)

    Lage, em Teoria e Técnica do Texto Jornalístico, procura fazer uma tipologia dos tipos de lead, reconhecendo que para além do lead clássico há outras possibilidades de se começar um texto jornalístico. Façamos um paralelo entre essa tipologia e as possibilidade de se começar um texto informativo:

    O lead clássico

    "O lead clássico ordena os elementos da proposição - quem/o que, fez o que, quando, onde, como, por que/para que - a partir da notação mais importante. Isto é, se o mais importante é o sujeito da oração principal, começa-se pelo sujeito; se o mais importante for o objeto, constrói-se o período na voz passiva; se o mais importante for alguma das circunstâncias, começa-se pela circunstância"

    Como vimos na técnica da pirâmide invertida, esse é o lead que expõe os fatos mais importante primeiros e o aprofundamento, as explicações ou as razões depois. Considerando que os leitores muitas vezes não vão além o primeiro parágrafo de um texto, tem se tornado uma técnica cada vez mais utilizada nos textos informativos.

    O lead narrativo

    "Ao contrário do lead clássico, que começa pela notação mais importante, aqui se alinham os fatos sucessivos que conduzem ao clímax. É como um pequeno conto, de poucas linhas."
   
 O começo de um texto a partir de uma narrativa pode ser útil quando é necessário apresentar ao leitor as personagens envolvidas. É uma técnica muito comum nas petições iniciais dos advogados, em que primeiramente é preciso expor os fatos, para posteriormente fazer a argumentação e apresentar as demandas. No telejornalismo, esse tipo de início também é muito comum, funcionando como uma espécie de metonímia para a matéria abordada.

    O lead resumo

    "Utiliza-se eventualmente na cobertura (continuações) de eventos em que há várias informações de destaque, mais ou menos equivalentes, e que devem ser condensadas em uma única matéria."

    O lead resumo não é uma contextualização anterior à matéria, e sim a apresentação de diversos fatos importantes de forma sucinta. O exemplo trazido por Lage é bastante claro: "Dois dias depois do terremoto que atingiu 20 cidades turcas, o número de mortos elevou-se a sete mil, o de feridos a 30 mil, uma grande refinaria estava ainda em chamas e crescia o temor de que o caos dos transportes e serviços públicos cause fome e epidemias. Há mais de mil desaparecidos e cem mil desabrigados."

    Nesse caso, a sequência do texto é que abordará com um pouco mais de detalhamento cada um dos fatos ali mencionados.

    O lead flash

 
    "Uma frase curta - e de impacto - inicia o texto. Utiliza-se, às vezes, como recurso para estabelecer uma relação retórica - geralmente uma antítese - entre eventos distintos."

    O que Lage chama de lead flash é na verdade uma frase anterior ao lead que funciona para chamar a atenção para o texto. Por exemplo: "Um homem foi crucificado na Arábia Saudita" ou "Bill Gates ficou dez bilhões de dólares mais rico desde a crise cambial russa, que tornou o Brasil mais pobre". Seu uso deve ser extremamente moderado e limitado a situações em que o jogo de palavras justifica essa frase anterior.

    Nariz de cera

    Embora Lage não o aborde em seus tipos de lead, até por não ser mesmo um tipo de lead, o conceito de nariz de cera é muito importante e, quando bem utilizado, pode ser benéfico para o texto informativo. Por definição, é o parágrafo introdutório em um texto que retarda a abordagem do assunto enfocado.

    No jornalismo, o nariz de cera é geralmente condenado por tender à prolixidade e ser o oposto do lead; mas em crônicas, por exemplo, ele tem um papel muito importante, pois com ele o autor quebra o gelo e introduz aos poucos o assunto que abordará (por vezes, polêmico).
 
    Fazendo uma analogia com a fala, o nariz de cera é aquele momento inicial de uma reunião de negócios em que as duas partes falam sobre o clima, o time de futebol e a família, antes de partir para os temas árduos que provocaram a reunião.

Fonte:
Marcelo Spalding in http://www.cursosdeescrita.com.br/4107/comecando-um-texto-informativo