sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Trovadora Homenageada: Clenir Neves Ribeiro

A patroa: “O que me pasma
é, no seu quarto, um gemido!”
- Não se assuste, é que o fantasma
tem a voz do seu marido!
A velha pensão da Inês
serve estranha refeição...
- Nunca vi tanto freguês
depois que fecha a pensão!…
A vizinha, sem alarde,
recebe uma visitinha
que chega domingo à tarde
e sai segunda à tardinha!…
Brigamos... e mesmo tensa
renovei minha proposta...
Como dói, se a indiferença
traz em silêncio a resposta!
Chega a tarde... e há nostalgia
nesta angústia desmedida...
Que importa o nascer do dia?
- Tudo é tarde em minha vida!...
Coincidência que me arrasa,
que me assusta e me espezinha...
- Meu marido chega em casa
quando chega o da vizinha!
Dei um basta à indiferença!...
- Nem tentes mais meu perdão,
pois foi na tua presença
que eu conheci solidão!…
De remédio tem mania,
mas vício... não tem nenhum!...
- Toma mil gotas por dia...
da erva "Cinquenta e um"!…
Ela grita, aliviada,
certa noite na mansão...
- O fantasma da empregada
tem a cara do patrão!…
Ele jura ter carinho...
caindo a sogra, sem pressa,
prepara, devagarinho,
a pimenta na compressa!…
Errei muito no passado,
e hoje digo, de antemão,
que para tanto pecado
talvez não haja perdão!…
Errei por não estar perto
desse amor, sereno e doce,
mas, juro, daria certo,
por mais errado que fosse!…
Está no hospício o Zequinha
e, por mais que a noiva torça
em vez de usar camisinha,
é só camisa de força!…
Este amor já está em mim,
mais que eterno, reconheço...
- Se um dia foi quase fim,
foi num outro o recomeço!…
É um detalhe, terno e doce,
que a saudade vem lembrando
- E eu sinto como se fosse
o meu passado voltando!…
Eu só o conheci agora!...
- E a fofoqueira: - Há um engano!
Ele visita a senhora,
já contei, há mais de um ano!…
Fim do amor ... eu, já cansado,
sinto a angústia de estar vendo
todo o segredo guardado
no sonho que está morrendo.
Foi minha sogra internada
no Hospício municipal...
- Pior é que, ante a danada,
qualquer maluco é normal!…
Foste embora sem razão...
- Sozinha em meu universo,
eu transformei solidão
em rima para o meu verso!…
Gastei meus sonhos sozinho...
Voltaste tarde demais...
- Tenho, agora, o teu carinho,
mas... meus sonhos... nunca mais!…
Há muita briga e baderna
no bar do casal Gusmão,
se alguém, nele, passa a perna
e alguém, nela, passa a mão!
Houve briga e zum-zum-zum
antes mesmo do casório...
- O Zé não quis ser mais um
a ter culpa no cartório!…
Malandro e da pá virada,
em casa faz o que quer...
- Quando briga com a empregada,
faz as pazes com a mulher!…
Melhora a sogra, e o Clemente
que em carinhos se desdobra,
diz que salvou a doente...
com remédio para cobra!…
Mesmo se triste e magoado,
meu sonho não acabou...
- Nosso amor, que hoje é passado,
para mim nunca passou!…
Na carta, volto a rever
lembranças, tuas e minhas...
- hoje eu só consigo ler
saudade... em todas as linhas!…
Não sei se a casa é assombrada,
mas a vizinha me pasma...
- Quando chega a madrugada,
é um entra e sai de fantasma!…
Nosso amor nasceu sagrado,
mas, com o tempo errou tanto,
que hoje chamam de pecado
o que outrora, já foi santo!…
O amor que teve importância,
passou tão perto, e eu, calada,
só pude ver a distância
de dois na mesma calçada!…
O Manoel do Bar, no beco,
pagou um mico danado...
Gritou: “Sai um vinho seco,
que o pau d’água está molhado!...”
Os sonhos, como contê-los,
se o amor, cansado, sem voz,
nem quer ouvir os apelos
que nós fizemos a nós?!
Ouço passos da sacada,
ansiosa, chego ao portão...
- E vejo, em minha calçada,
o final da solidão!…
“Pagou um mico” perfeito
a Clara, em busca de fama!
Disse à esposa do prefeito:
“eu sou a segunda dama!...”
Partiste... e em meio à lembrança
a saudade continua
pondo luzes de esperança
nos postes de minha rua!
Por mais que eu tente esconder
nosso amor, que é todo medo,
o meu olhar, sem querer,
revela o nosso segredo.
Por timidez, dei as costas
ao amor que eu sempre quis...
E a vida deu-me as respostas
às perguntas que eu não fiz!…
Que adianta fazer propostas?...
- Nem tenho mais teu abraço -,
se eu mesmo dou as respostas
às perguntas que eu te faço!…
Sei quanto errei no passado...
Paguei caro à solidão!...
E o pior preço cobrado,
foi não ter o teu perdão!…
Sem pressa, vai percebendo,
na firma, quando ele atrasa,
que o seu patrão vai fazendo
um "serão" em sua casa!…
Sou poeta do Universo,
feito de sonho e magia,
pois faço de cada verso
meu sonho de cada dia!…
Tão metida a ser Dondoca,
tinha um castigo, a Maria:
- Quando fazia fofoca,
a dentadura caia!...
Vendo a espera angustiante,
o meu relógio, sem graça,
vai mostrando o teu semblante
em cada instante que passa!…
Vendo as tristezas tão minhas
na tua ausência, a lembrança
fez da saudade, entre linhas
os meus versos de esperança!…
Voltas com outra proposta,
mas, eu, fingindo altivez,
uso o poder na resposta
e digo não, outra vez! ...

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Aparício Fernandes (Trovas Circunstanciais) Parte 1




Existe um tipo de trovas de duração relativamente efêmera, às quais não se pode atribuir grande valor literário ou artístico, mas que nem por isso deixam de ser interessantes e dignas de menção. São as trovas de circunstância, que assim denominamos por se basearem em ocorrências ou costumes ocasionais. Neste aspecto estão incluídas as trovas de propaganda, as que utilizam gírias, as de brincadeira, visando determinado fato ou pessoa, as de exaltação a personalidades famosas (excetuamos desta categoria as trovas sobre Jesus Cristo), as que abordam temas como o petróleo, nomes de cidades, realizações governamentais, nomes de livros, etc. De um modo geral, não gostamos de trovas laudatórias, mas isso é apenas um ponto de vista pessoal, proveniente talvez do grande respeito que temos por todos os gêneros de Poesia, mormente pela Trova. Com o advento dos Jogos Florais e dos frequentes concursos de trovas, cujas festividades de encerramento reúnem um grande número de trovadores, esses encontros passaram a ser um campo fértil para as trovas de circunstância. Vejamos alguns exemplos.
     O poeta João Rangel Coelho (pai de Colbert Rangel Coelho, muito embora o velho Rangel faça questão de dizer que Colbert é que é filho dele) é um dos grandes campeões da trova no Brasil. Além disso, quando lhe dá na veneta, torna-se tão mordaz que, junto dele, a famosa "boca de inferno" de Gregório de Matos seria uma mísera boca de fogareiro. Não menos ágil de pensamento é o poeta e trovador Aristheu Bulhões, residente em Santos. Sendo excelente repentista, o Aristheu, mal acaba de declamar uma trova que vem de improvisar, e já está mentalmente compondo outra quadrinha para dizer em seguida.
     Certa vez, no ônibus que nos levava para um dos Jogos Florais de Nova Friburgo, João Rangel Coelho estava conversando com a queridíssima (de nós todos) trovadora Magdalena Léa, que, segundo o A. A. de Assis, é o único broto com mais de cinquenta aninhos. Na ocasião, Magdalena mostrava ao Rangel uma fotografia de suas filhas (dela). De repente, o Aristheu interrompe a conversa para dizer ao Rangel a centésima trova que havia improvisado. Este, que escutara pacientemente as outras     noventa e nove, não aguentou mais. Virando-se para Magdalena e apontando a fotografia, saiu-se com esta:
As tuas filhas são belas,
são uns primores de Deus.
Eu adoro os ares delas,
mas detesto os aris...teus!
     Ainda em Friburgo, nos I Jogos Florais daquela cidade, em 1960, calhou de ficarem no mesmo hotel as trovadoras Helena Ferraz, Cléa Marina e Augusta Campos. A expansividade era natural, contrastando com o silêncio reticencioso de uma velha reprodução da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, ali pendurada à guisa de ornamentação. Augusta Campos, poetisa cearense residente no Rio, verdadeiro azougue em matéria de trovas de circunstância, lançou ao quadro um olhar desconfiado e no dia seguinte comentava:
Na parede, a Mona Lisa,
vendo a nossa animação,
fica assim meio indecisa,
sem saber se ri ou não.
     Anos depois, a mesma poetisa estava assistindo a uma reunião
da antiga seção da Guanabara do Grêmio Brasileiro de Trovadores, quando entra na sala, triunfalmente, uma trovadora cujo vestido causaria complexo de Inferioridade ao mais rutilante dos arco-íris. Na mesma hora, Augusta Campos sapecou esta quadrinha:
Margarida vai passando
no seu traje original.
Pensa que está abafando,
parece um pavão real...
Naturalmente, mudamos o nome da poetisa "homenageada", para evitar embaraçosas acareações.
     Vamos a mais um exemplo de trova de circunstância. Nosso querido amigo e confrade Adalberto Dutra de Rezende, mineiro de Cataguases, radicado no Paraná, trovador de alto nível e advogado ilustre, é, sem sombra de dúvida, um homem decidido. Imaginem que, alguns dias antes da semana santa do ano de 1962, deixou a paisagem plácida de Bandeirantes (onde reside)e veio ao Rio apenas para comunicar-me e também ao Colbert Rangel Coelho, Zálkind Piatigorsky e José Maria Machado de Araújo, que havia organizado em Bandeirantes, sob os auspícios do Lions e do Rotary Club, uma Noite de Autógrafos, na qual deveríamos autografar nossos livros, para o público local. A festa seria... no sábado de aleluia! Chantageados pela amizade, não houve como alegar a exiguidade do tempo. Fomos. Em lá chegando — como diriam os puristas — notamos que o Zé Maria estava meio preocupado e até mesmo arredio. É que sua esposa estava nos preparativos finais para a chegada do primeiro herdeiro da casal. Sabendo disto e aproveitando a deixa proporcionada por uma das melancólicas e solitárias caminhadas do trovador lusitano, compusemos esta quadrinha, de parceria com o nosso anfitrião e também com Zálkind Piatigorsky;
Lá se vai o Zé Maria,
cabisbaixo, andando a pé,
pensando: será Maria?
cismando: será José?
     Pouco tempo depois nascia Maria Lúcia, primogênita do casal Machado de Araújo.
     Censurando os três jotas (Juscelino, Jânio e João Goulart) e fazendo alusão às letras iniciais de seus respectivos sobrenomes surgiu certa vez, entre o povo, uma trova muito bem feita, embora bastante ferina. Além de ser de circunstância, é também anônima, pois não se sabe quem a compôs. Ei-la:
Em três anos — quase nada! —
os três jotas: K — Q — G,
fizeram da pátria amada
esta coisa que se vê.
     Em vez de coisa, a palavra era outra, que preferimos não publicar. Aliás, nosso interesse pela quadrinha é simplesmente trovadoresco, sem qualquer inclinação política.
     Certa vez, minha esposa (ainda éramos namorados), quando lecionava num Grupo Escolar, em Minas, viu-se às voltas com um singelo problema: devia  conseguir uma     trova que falasse em alimentação, para ser recitada por um dos seus alunos. Não conseguindo encontrar logo a tal trova, ela mesma fez esta oportuna quadrinha, que salvou a situação, e cuja autoria modestamente atribuiu a um "poeta desconhecido". Eis a trova, perfeitamente caracterizada como "de circunstância", que um de seus pequenos alunos recitou com a ênfase e os gestos de praxe:
Gosto muito de legumes,
verdura e frutas também.
Como tudo sem queixumes,
sou forte como ninguém!
     No dia 21 de novembro de 1965, como parte das festividades dos Primeiros Jogos Florais da Guanabara, foi oferecido aos trovadores um almoço no "Vale do Paraíso Campestre Clube", localizado em Jacarepaguá. Surgiu então a ideia de se fazer entre os presentes um concurso-relâmpago, tendo como tema o nome do clube. Cada um improvisou a sua trova e a poetisa Lourdes Povoa Bley alcançou o 1.° lugar com esta trova de circunstância:
Esta soberba mansão
tem tudo de que preciso.
Deixo, pois, meu coração
no "Vale do Paraíso".
     Quando, no Ceará, desmoronou a barragem do açude de Orós, fazendo inúmeras vítimas,  as circunstâncias me inspiraram esta quadrinha, que dediquei ao bravo povo cearense;
Se a Desgraça conhecesse
a fibra que existe lá,
já teria desistido
de vencer o Ceará!
     Certa vez, conversavam alguns trovadores quando notaram que um pouco adiante, dois padres trocavam ideias sobre o controvertido assunto do celibato sacerdotal. Imediatamente, o trovador A. A. de Assis aproveitou a circunstância para ironizar;
Parece incrível, de fato:
– os padres, neste momento,
lutam contra o celibato,
e nós — contra o casamento!
     Não há poeta ou trovador que alguma vez não tenha sido perseguido por um pai ou mãe, pedindo versos para os seus rebentos. Certa vez tive que improvisar, para um cartão de aniversário, esta quadrinha de circunstância, horrivelzinha como ela só, mas que o orgulhoso papai achou uma beleza:
Hoje eu completo um aninho
e estou contente, porque
vou repartir meu bolinho,
dando um pedaço a você.
     Em outra ocasião, Colbert Rangel Coelho, integrando um grupo de trovadores que viajavam para participar de uns Jogos Florais, teve a sorte de, no ônibus, sentar-se ao lado de uma moça muito bonita, mas calada e compenetrada. Colbert ficou quietinho mas, na primeira parada, ao descer para um cafezinho, piscou o olho e nos segredou:
Eu sentado na beirada,
ela junto da janela.
— Graças às curvas da estrada,
vou sentindo as curvas dela...
     Em Pouso Alegre,MG, fiz uma trova de circunstância que passou a figurar no cardápio da Cantina Uirapuru, e que me valeu uma refeição de graça:
Se você está com fome,
não faça como um zulu!
— Civilizado só come
na Cantina Uirapuru!...
     Em 1969, na cidade mineira de Juiz de Fora, quando do encerramento de um concurso de trovas promovido pelo Lions Clube local, estiveram presentes duas     grandes   poetisas  portuguesas; Maria Helena e Maria Amélia Novais. No banquete oferecido aos trovadores, Elton Carvalho, que é um excepcional "fazedor" de trovas de circunstância, sentou-se entre as duas referidas poetisas. Lá pelas tantas, dirigindo-se aos demais trovadores, que se haviam localizado na outra extremidade da mesa, saiu-se com esta belíssima trova, onde há uma oportuna alusão ao rio Tejo, que banha a capital portuguesa:
Amigos, não os invejo,
tão distantes, isolados:
– estou feliz como o Tejo,
com Portugal dos dois lados.
     O    Desembargador   Dr.  Luís Antônio    de Andrade,     uma  das maiores culturas jurídicas de nosso país, certa vez ofertou ao poeta Manuel José Lamas um exemplar de nossa coletânea 'Trovadores do Brasil", dedicando-o com esta trova de circunstância, cujo último verso é o seu próprio nome, um setissílabo perfeito:
Ai vão, meu caro Lamas,
como prova de amizade,
as trovas que tanto amas!
Luis Antônio de Andrade,
     Eis uma trova de circunstância laudatória, feita por Inês Gaspar Palácio, homenageando a cidade de Maringá {PR):
Maringá! Quanta esperança
se contempla em teu caminho,
pois teu lema é segurança,
trabalho, fé e carinho!
     O poeta Ary de Andrade refere-se a um esperto motorista de caminhão que, ao longo das estradas, "aplicava" sempre esta trova, a qual servia tanto para comover os credores como para as suas conquistas amorosas de Romeu perambulante:
Você não tem coração!
Se tivesse, não faria
que um chofer sem um tostão
vivesse nesta agonia!
continua…
Fonte: Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história & antologia. Rio de Janeiro/GB: Artenova, 1972

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

História da Trova em Imagens 1


Sylvio Ricciardi (Trovador Homenageado)

Achou o carro roubado
e na "Loto" fez a quina!
Nasceu pra lua virado...
"Vá ter sorte assim na China!”
À deriva, neste mundo,
meu coração sofredor
não se esquece, um só segundo,
do teu beijo abrasador.
A máscara de alegria
em meu rosto com frequência,
é apenas a fantasia
no carnaval da existência
A Pafúncia, dorminhoca,
cozinha, vendo a novela...
e, suspirando, a coroca
deixou queimar a panela!
A preguiça era tamanha
que, ao te esperar na porteira,
sentei numa pedra estranha;
me estrepei! Pedra não cheira…
Atirado em fria estiva,
sem bússola, em pleno mar,
meu coração, à deriva,
morre de tanto te amar…

Deixe de orgulho e me abrace
que vai ser melhor assim!...
Tire a máscara da face,
que eu sei que és louca por mim.
Dentre as flores do jardim
e escondido nas ramadas,
é o espinho o espadachim
das rosas despreocupadas.
Ela me chamou de bobo,
porque eu olhei, da janela,
quando o vento, com afobo,
levantou a saia dela.
Em minha lira tão pobre,
não achei a sutileza
de uma rima ou verso nobre
para cantar-te a beleza!
Em tua lira, a paixão
canta meiguice e magia!
Até os anjos, na amplidão,
batem palmas de alegria!
Entre espinhos e entre flores,
em seus dias tão cruentos,
é nas mãos dos professores
que desabrocham talentos.

Falo sempre, em meu delírio,
que a natura é caprichosa!
Do lodo é que vem o lírio,
e entre espinhos surge a rosa.
Meu salário é tão pequeno,
não dá pra nada comprar;
não dá nem para o veneno,
se eu quiser me suicidar!
Meu salário,eu nem te conto!
Ele ficou tão em baixa,
que se tiram o "desconto",
fico devendo pro Caixa!
Nesta ansiedade aflitiva
procurei-te sem cessar...
Meu coração à deriva,
nem sabe onde procurar.
No cristal da fonte brilha
espelho espetacular!
E a lua cheia, andarilha,
vaidosa... vem-se espelhar…
O talento é dom latente,
ou melhor, ouro em jazida;
que sobressai, de repente,
entre os cascalhos da vida!

Partiste... e a angústia em surdina,
gerando a cumplicidade,
veio morar, clandestina,
no meu plantão de saudade.
Que grande dádiva encerra
a mão de Deus, onisciente,
quando acende aqui na terra
a chama do sol nascente.
Quero que poupem dinheiro,
comprando apenas um pão!
E passem o pão no cheiro
da panela do Chefão!
Triste sorte a do seu Lessa:
casou com loura "branquinha"
e hoje tem chifres à beça!
... E uma filha mulatinha…
Tua constante evasiva
fez de mim, ano após ano,
um barco triste, à deriva,
no mar do meu desengano…
Tuas mãos, tão delicadas,
sobre a lira, de mansinho,
são pombinhas namoradas
construindo um lindo ninho!

Thalma Tavares (O Trovador e a Trova)



O objetivo neste pequeno ensaio, que dedico aos novos irmãos Trovadores, não é tanto dizer trovas, quanto falar da Trova e daquele que a faz.
Se fôssemos buscar nos tratados a definição da palavra TROVADOR, certamente eles nos levariam de volta à Idade Média onde a figura daquele cavalheiro medieval pouco tem a haver com este cidadão de hoje, tão comum quanto qualquer de nós, mas que possui o dom poético de fazer Trovas. Daquele medieval cavalheiro, o Trovador de hoje herdou mais o nome do que o status e a condição. Ao nome acrescentou o seu talento pessoal, a sua capacidade criadora. Mas o seu relacionamento com a Trova, diferentemente daquele, não se resume apenas ao ato de compô-las e dizê-las publicamente. Os Trovadores de agora pensam, sentem e amam ao compasso da Trova. E quem nos confirma isto é LUIZ OTÁVIO quando nos diz:
“Tirem-me tudo o que tenho,
neguem-me todo o valor!...
Numa glória só me empenho:
- a de humilde Trovador!”
Mas CAROLINA RAMOS também confirma nossa opinião com esta linda Trova:
“Trovador, quando padece
ao enfrentar duras provas,
guarda a angústia numa prece
e reza... fazendo Trovas.”
No limite dos quatro versos de uma Trova, os Trovadores empreendem viagens maravilhosas ao nosso desconhecido mundo interior e a todos os imagináveis mundos da fantasia humana. Faz da Trova uma profissão de fé, um eloqüente atestado de suas crenças, de suas convicções, assim como faz SARA MARIANY KANTER nesta Trova:
“Por ser poeta acredito
em dias menos sombrios.
Meu sonho, quase infinito,
cabe em meus bolsos vazios.”
Enquanto lá fora os poderosos se digladiam semeando a descrença, a violência, o ódio e o ceticismo no coração das criaturas, os Trovadores seguem destilando amor, acreditando no semelhante, sonhando e colocando o coração bem acima das torpezas humanas. E neste contexto insere-se perfeitamente esta Trova de nosso irmão da UBT-Belém do Pará, ANTÔNIO JURACY SIQUEIRA:
“Canta Trovador! Teu canto
alvissareiro e fecundo
é uma canção de acalanto
ninando as mágoas do mundo!”
De fato, “ninar as mágoas do mundo” é atributo sublime e só poderia ser dado aos poetas. E assim dizendo, o autor os elege consoladores das queixas universais. Mas, para reforçar a ideia de Antônio Juracy, temos esta outra Trova de LUIZ OTÁVIO:
“Bendigo a Deus ter me dado
a sorte de Trovador.
Pois o mal quando é cantado,
diminui o seu rigor...”
Para o bom Trovador, em termos de criatividade, a Trova é sempre uma expectativa do inusitado e ele, Trovador, o intérprete das esperanças da humanidade, o paladino do amor, da paz, da justiça e da fraternidade. É também, quando necessário, o crítico, o cronista do cotidiano, o  humorista  alegre  e  refinado,  o  observador  arguto. E  trovas  existem  aos  milhares que nos mostram toda essa gama de virtudes. São incontáveis e passaríamos aqui um tempo enorme dizendo apenas diminuta parcela de um todo difícil de registrar. Nos limitaremos, pois, a dar apenas uma ligeira mostra do gênio dessa estirpe iluminada chamada TROVADORES.
Iniciaremos a mostra com uma observação triste de ABGAIL RIZZINI, nesta sua Trova do tema Esperança:
“Olhar triste é o da criança
que olha a vitrina, e em segredo,
chora a morte da esperança
ante o preço de um brinquedo!”
Uma Trova de infância na saudade de NEY DAMASCENO:
“Num velocípede antigo
que tem quase a minha idade,
passeia a infância comigo
pelas ruas da saudade”
Um alerta de CÉLIO GRUNEVALD nesta Trova do tema Justiça:
“Quando a Justiça nos choca
e a verdade é inconsistente,
há sempre um sino que toca
na consciência da gente...”
Uma exaltação à Liberdade nesta vibrante Trova de WALDIR NEVES:
“A glória dos homens brilha
com fulgor de eternidade,
toda vez que uma Bastilha
tomba aos pés da Liberdade!”
Uma dissertação sobre o amor e a morte nesta Trova de CLEÓMENES CAMPOS:
“O amor e a morte, a rigor,
são faces da mesma sorte:
– no fim da palavra amor
começa a palavra morte!”
Eis aqui uma Trova onde a ambiguidade de sentidos, inteligentemente arquitetada por CLÓVIS MAIA, enriquece o gênero humorístico:
“Quando a Dinha está acamada
eu agradeço à vizinha
que passa a noite acordada
e faz tudo pela Dinha...”
Uma Trova em que o saudoso JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAUJO evoca, lírica e tristemente, a lembrança materna e se confessa publicamente:
“Minha mãe chorou mais pranto
que a mãe de Nosso Senhor.
A Virgem chorou um Santo;
Minha mãe – um pecador!”
Uma constatação do mais puro lirismo nesta Trova de despedida de JOUBERT DE ARAUJO SILVA:
“De  todas as despedidas,
esta é a mais triste, suponho:
- duas almas comovidas
chorando a morte de um sonho!”
Outra Trova de despedida na inteligente e fatalista conclusão do saudoso CARLOS GUIMARÃES:
“De despedidas, apenas,
compõe-se, afinal, a vida:
- mil despedidas pequenas
e uma Grande despedida!”
O Trovador DIAS MONTEIRO, extasiado ante a beleza noturna do firmamento, nos faz uma ousada afirmação poética nesta Trova repleta de lirismo:
“Duvidar ninguém se atreve,
de que as estrelas que eu fito
são Trovas que Deus escreve
no livro azul do Infinito!...”
E, por fim, do tema Tempestade, uma Trova em que CIPRIANO FERREIRA GOMES nos mostra o seu poder de criatividade na beleza desta comparação inusitada a qual se dá o nome de “ACHADO”:
“Tempestade!... E o mar erguido
é um cavalo em movimento
que tendo o dorso ferido,
desfere coices no vento!...”
Habituado a trovar sobre qualquer tema, o bom Trovador desconhece assuntos que a Trova não consiga abordar de modo sutil e convincente, para não dizer inteligente e original. É o caso de palavras  e temas considerados esdrúxulos e antipoéticos. CAROLINA RAMOS nos dá o exemplo, utilizando numa Trova a palavra CEBOLA que muitos consideram poeticamente inaceitável. Provando o contrário, ela fez de improviso, durante uma reunião da UBT-São Paulo, a seguinte Trova lírica:
“Na feirinha da amizade,
de produtos desiguais,
a CEBOLA da saudade
já me fez chorar demais.”
E eis aqui, também, como o Trovador IZO GOLDMAN, vencendo um desafio, encontrou saída para rimar numa Trova a palavra CINZA com a sua única rima natural:
“Papai do Céu tá RANZINZA!
- diz meu netinho assustado:
Pintou todinho de CINZA
o lindo céu azulado!” 
E vejam o que fez o príncipe LUIZ OTÁVIO com as palavras RADAR e BISTURI nestas duas Trovas:
“O coração de mãe tem
um RADAR de tal pujança,
que vê melhor, vê além
do que a própria vista alcança.”
“O trem, cansado e sedento,
subindo a nublada serra,
é um BISTURI barulhento
rasgando o seio da terra...”
Mais do que um simples exercício intelectual ou um passatempo, como querem alguns, a Trova é um sentimento, é um estado de amor e muitas vezes uma bênção, porque acaba sempre por preencher lacunas existenciais na vida daqueles que a cultivam no seu cotidiano.
E vale a pena a gente citar outras Trovas inteligentes que eu chamaria de produto do senso de oportunidade e que fazem parte também das chamadas Trovas Circunstanciais:
Vejamos, por exemplo, como o Trovador ARLINDO TADEU HAGEN soube aproveitar com oportunismo e bom senso, a perfeita identidade de seus ideais com os ideais de um amigo, construindo uma Trova singela, significativa e convincente:
“Existe tanta união,
entre os meus sonhos e os teus,
que só não és meu irmão
 por um descuido de Deus.”
CONCHITA MOUTINHO DE ALMEIDA, saudosa Trovadora da UBT-São Paulo, referindo-se à sua alma de sonhadora e por extensão à alma de seus irmãos Trovadores, soube explorar com inteligência a dualidade quixotesca da natureza humana, enfocando as antíteses: sonho e realidade, corpo e espírito;  nesta Trova que nos enviou numa carta:
“De sonhar jamais se cansa
- este é o seu supremo dote –
meu corpo de Sancho Pança
tem alma de D. Quixote!”
E de novo citamos WALDIR NEVES, para uma outra mostra de senso de oportunidade. Ele obteve menção honrosa no Concurso Paralelo aos XXXV Florais de Nova Friburgo, em homenagem à saudosíssima NYDIA IAGGI MARTINS, com esta Trova:
“De esposa e mãe, nos misteres,
de alma e corpo ela se deu
e foi “todas as mulheres”
na mulher que prometeu.”
WALDIR soube aproveitar com oportunidade o “achado” primoroso desta conhecidíssima Trova de NYDIA:
“No dia em que tu quiseres
ser meu senhor e meu rei,
serei todas as mulheres
na mulher que te darei!”
Vejam como DURVAL MENDONÇA, soube fugir do lugar comum nesta trova do tema “Farol”:
“Noite escura!... De repente,
dois faróis surgem na estrada...
E a escuridão sai da frente
como quem foge, assustada.”
O Trovador fluminense VILMAR LASSENCE, foi vencedor de um concurso com uma das mais belas trovas do tema “Luz”. Ei-la:
“Da mais funda escuridão,
pergunta um cego: - O que é Luz?
E alguém, por definição,
lhe põe nas mãos uma cruz.”
A origem da Trova perde-se na Idade Média. Serviu aos troveiros e trovadores provençais para comporem e cantarem, na língua d’oc e língua d’oil, as suas cantigas d’amigo, cantigas d’escarneo ou de maldizer. A Trova nem sempre teve a mesma forma. Ao longo do tempo, desde a França até a Península Ibérica, ela sofreu várias modificações até transformar-se na deliciosa “Quadrinha Popular Portuguesa” que, por sua vez, deu origem à Trova como hoje a conhecemos e como é praticada nos concursos da UBT e, atualmente, através da Internet. Tudo graças ao idealismo do fundador da UBT, LUIZ OTÁVIO, o Príncipe dos Trovadores Brasileiros.
 Para que a Trova continuasse como arte aprimorada, como veículo dos mais elevados sentimentos do homem, foi necessário o apoio e o patrocínio de entidades associativas, beneficentes e governamentais que, ao lado da UBT, têm contribuído para a sua divulgação em todo o país e no exterior, através de concursos e jogos florais que hoje somam mais de quarenta eventos anuais, considerando-se os realizados através da Internet. Não obstante esse apoio, a UBT e a Trova são ainda órfãs do interesse das entidades culturais do país e sobrevivem como fontes de cultura, graças à boa vontade, ao amor que alguns Trovadores, abnegados idealistas, têm pelo movimento trovadoresco.
 Assim, meus irmãos, o TROVADOR E A TROVA, apesar de todos os percalços que têm encontrado no curso dos acontecimentos, neste país que ainda não firmou idealmente suas raízes culturais e não aprendeu a valorizar a cultura, a Trova vem cumprindo o seu papel; vem alimentando os nossos sonhos, alavancando as nossas esperanças, reavivando a nossa fé e a nossa crença num mundo melhor. E enquanto houver no coração das pessoas sensíveis um espaço para a poesia, aí a Trova terá encontrado sua morada e jamais perderá o seu encanto. E, com esta certeza, eu posso lhes confiar um segredo:
Se o destino desaprova
minha ilusão desmedida,
eu ponho ilusões na Trova
e sigo iludindo a vida...
Fonte:
Thalma Tavares, palestra aos novos trovadores, 1994.