sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Aparício Fernandes (Trovas Cirunstanciais) Parte 2, final



 Uma das mais conhecidas trovas deste que escreve estas linhas é a seguinte:
Parti do Norte chorando!
Que coisa triste, meu Deus!...
Eu vi o mar soluçando
e o coqueiral dando adeus!
   Em 1968, após uma ausência de vários anos, voltamos ao Rio Grande do Norte, em gozo de férias. O poeta José Amaral, parodiando a nossa quadrinha, na homenagem que nos foi prestada pela Academia de Trovas do Rio Grande do Norte, recebeu-nos com esta linda trova de circunstância:
Voltaste ao Norte sorrindo,
nós te abraçamos cantando;
— o coqueiral te aplaudindo,
o verde mar te beijando.
 Exemplo da vivacidade dos trovadores sucedeu quando Hebe Camargo entrevistou Anis Murad e Zálkind Piatigorsky, em seu programa na televisão, cujo nome era "O Mundo é das Mulheres". Anis foi cavalheiresco, saudando Hebe desta forma:
Terás, mulher, se quiseres,
o mundo inteiro a teus pés,
porque o mundo é das mulheres
que forem como tu és,
  Lisonjeada, Hebe voltou-se para Zálkind, indagando: "Você também concorda que o mundo é das mulheres?", ao que Piatigorsky rebateu na hora:
Seja, pois, como quiseres,
que dá certo, felizmente:
- este mundo é das mulheres
.. .e as mulheres são da gente!
   No ano seguinte, houve o 1.° Encontro Nacional de Trovadores, realizado ainda na cidade de Natal, O general Umberto Peregrino, então diretor do Instituto Nacional do Livro, convidou alguns dos trovadores visitantes para almoçarem na famosa "Carne Assada do Marinho". Tão gostosa se prenunciava a carne e tão grande era o apetite, que o silêncio reinou na faminta expectativa. Considerando que a poetisa Magdalena Léa não é muito dada a estes silêncios, improvisei esta quadrinha:
Inacreditável cena!
Diante da carne assada,
até mesmo a Magdalena
resolveu ficar calada!...
   Certa vez deparamo-nos aqui no Rio com um mendigo que pedia esmola declamando esta quadrinha:
Ajude este aleijadinho,
mais tem Deus para lhe dar.
Mesmo que seja pouquinho,
eu não posso recusar.
   Perguntamos-lhe se o expediente dava resultado e ele respondeu que sim, mesmo porque tinha "bolado" vários outros versinhos para substituição, quando a trova declamada não estivesse rendendo o esperado. Por solidariedade de classe, demos uma esmola melhorada ao "confrade" mendigo, prometendo que o seu nome — Lourival de Jesus Gonçalves — figuraria em nosso livro.
   Por ocasião de um dos Jogos Florais de Pouso Alegre, homenageando o magistrado e poeta Jorge Beltrão, Adalberto Dutra de Rezende "aplicou" este improviso:
Tua palavra correta
te põe da glória na crista,
como brilhante poeta,
como eminente jurista!
 Há também os casos em que as trovas de circunstância são também trovas de propaganda. Várias delas aconteceram, por exemplo, em dezembro de 1962, quando, a convite da escritora Mariazinha Congílio, vários trovadores estiveram na cidade de Jundiaí e foram convidados a visitar a famosa fábrica de doces Cica. Essa fábrica é de fato algo de notável, pela limpeza e pelo requinte de perfeição que se traduz na qualidade de seus produtos. Diante disto, vários trovadores improvisaram suas quadrinhas. Eis algumas delas:
 De Zálkind Piatigorsky
Um bom paladar se indica
às vezes num simples nome:
- quando ouço falar de Cica,
na verdade sinto fome!
De Admerval Silva de Souza:
Que doces apetitosos
neste lugar se fabrica!
Que seria dos gulosos,
se não existisse a Cica?
De Colbert Rangel Coelho:
Suporta melhor a carga,
que bem mais leve lhe fica,
quem na vida tão amarga
saboreia doces Cica!
De Luiz Otávio:
É a mais pura realidade:
- a pessoa — pobre ou rica —
se tem gosto de verdade,
só prefere o doce Cica!
De Ivo dos Santos Castro:
Verias, meu bem, se fosses
comigo até Jundiaí:
- Cica é a fábrica de doces
mais completa que já vi!
De Raul Serrano:
A vida seria pura
e de alegrias mais rica,
se nela houvesse a doçura
dos doces de marca Cica!
De Aparício Fernandes:
Com tanto carinho é feito,
que logo se verifica:
– é sempre mais que perfeito
qualquer produto da Cica!
  Quando já nos despedíamos, fui brindado com o sorriso amável de uma linda operária, o que deu motivo a mais esta trova:
Que dúvida extraordinária
seu sorriso comunica!
Quem é mais doce: – a operária,
ou o doce que ela fabrica?
  Guimarães Barreto cita uma trova-propaganda de Olavo Bilac, promovendo os fósforos "Brilhante". Bilac cobrou cem mil réis pela trova — o que, na época, era um bom dinheiro. Eis a quadrinha:
Aviso a quem é fumante:
- tanto o Príncipe de Gales
como o Dr. Campos Sales
usam fósforos Brilhante.
   E outra, curiosíssima, de um bicheiro fazendo propaganda do seu jogo:
Jogadores avisados,
o meu palpite, hoje, é
cercar por todos os lados
o macaco e o jacaré.
   Aliás, esta tese foi apresentada no Congresso de Trovadores realizado em Nova Friburgo em 1969 — a Trova, pela sua comunicabilidade e sendo fácil de se decorar, é um elemento de extraordinário valor publicitário, que surpreendentemente     ainda não despertou nos  especialistas   do assunto (sempre à cata de "idéias geniais") a atenção de que é merecedora. Naturalmente, para que     uma trova alcance êxito como fator de promoção publicitária, é necessário que seja feita por um verdadeiro trovador. Versinhos forçados e de "pé-quebrado" jamais adiantariam...
   Muito úteis me foram também as trovas de circunstância quando, no mês de abril de 1970, a convite do Dr. Domingos Vieira Filho, diretor da Secretaria de Cultura do Estado do Maranhão, e do meu caro amigo, o dinâmico poeta e trovador Carlos Cunha, Presidente da Academia Maranhense de Trovas, fiz uma palestra na capital maranhense. Os maranhenses são um povo cuja tradição de cultura é algo de muito sério. Sua hospitalidade não fica atrás. Por isso, até banda de música havia na Academia Maranhense de Letras, para a minha palestra. Minhas primeiras palavras foram estas trovas de circunstância:
Minhas senhoras, senhores
presentes à reunião,
meus irmãos, os trovadores
do Estado do Maranhão,
Não espereis um tribuno
de palavras colossais,
pois sou um simples aluno
que aqui veio aprender mais.
Na terra em que Assis Garrido
deu lições de inteligência,
não quero ser presumido,
para fazer conferência.
Por isso, em linguagem destra,
mas sem nada de genial,
vou fazer uma palestra
muito simples e informal.
 A trova são quatro versos,
que nos dão muito prazer.
Os assuntos mais diversos
pode uma trova conter.
Mas antes quero dizer,
com toda sinceridade,
do meu imenso prazer
por estar nesta cidade.
São Luís, em toda parte,
como um sol que se irradia,
será sempre um baluarte
da cultura e da poesia.
Seu próprio nome comprova
esta grandiosa missão:
– pois é um verso de trova
São Luís do Maranhão.
No Rio Grande do Norte,
no Encontro dos Trovadores,
tornou-se muito mais forte
minha amizade aos senhores.
Pois em Natal viu-se o brilho
do Maranhão que se impunha:
- Virgílio Domingues Filho
ao lado de Carlos Cunha!
Quando o Nordeste deixei,
para tentar vida nova,
minha saudade cantei
dizendo em forma de trova:
– Parti do Norte chorando,
que coisa triste meu Deus!
Eu vi o mar soluçando
e o coqueiral dando adeus!...
Hoje eu digo aos maranhenses,
já saudoso e emocionado:
- não partirei totalmente
desse Estado abençoado.
À sombra de uma palmeira,
deixarei meu coração.
E, na hora derradeira,
ao tomar a condução,
Minha esposa e eu diremos,
com imensa gratidão:
– nós jamais esqueceremos
São Luís do Maranhão!
Após vos haver falado
estes versos incolores,
vamos ao mundo encantado
da Trova e dos Trovadores.
  E fiz então a minha palestra, que, aliás, continha vários aspectos da Trova abordados neste livro.
  Como se vê, a trova de circunstância desempenha um importante papel na animação dos encontros trovadorescos. Pena que a quase totalidade delas se perca ao sabor do improviso ocasional.
Fonte: Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história & antologia. Rio de Janeiro/GB: Artenova, 1972

Trovadora Homenageada: Clenir Neves Ribeiro

A patroa: “O que me pasma
é, no seu quarto, um gemido!”
- Não se assuste, é que o fantasma
tem a voz do seu marido!
A velha pensão da Inês
serve estranha refeição...
- Nunca vi tanto freguês
depois que fecha a pensão!…
A vizinha, sem alarde,
recebe uma visitinha
que chega domingo à tarde
e sai segunda à tardinha!…
Brigamos... e mesmo tensa
renovei minha proposta...
Como dói, se a indiferença
traz em silêncio a resposta!
Chega a tarde... e há nostalgia
nesta angústia desmedida...
Que importa o nascer do dia?
- Tudo é tarde em minha vida!...
Coincidência que me arrasa,
que me assusta e me espezinha...
- Meu marido chega em casa
quando chega o da vizinha!
Dei um basta à indiferença!...
- Nem tentes mais meu perdão,
pois foi na tua presença
que eu conheci solidão!…
De remédio tem mania,
mas vício... não tem nenhum!...
- Toma mil gotas por dia...
da erva "Cinquenta e um"!…
Ela grita, aliviada,
certa noite na mansão...
- O fantasma da empregada
tem a cara do patrão!…
Ele jura ter carinho...
caindo a sogra, sem pressa,
prepara, devagarinho,
a pimenta na compressa!…
Errei muito no passado,
e hoje digo, de antemão,
que para tanto pecado
talvez não haja perdão!…
Errei por não estar perto
desse amor, sereno e doce,
mas, juro, daria certo,
por mais errado que fosse!…
Está no hospício o Zequinha
e, por mais que a noiva torça
em vez de usar camisinha,
é só camisa de força!…
Este amor já está em mim,
mais que eterno, reconheço...
- Se um dia foi quase fim,
foi num outro o recomeço!…
É um detalhe, terno e doce,
que a saudade vem lembrando
- E eu sinto como se fosse
o meu passado voltando!…
Eu só o conheci agora!...
- E a fofoqueira: - Há um engano!
Ele visita a senhora,
já contei, há mais de um ano!…
Fim do amor ... eu, já cansado,
sinto a angústia de estar vendo
todo o segredo guardado
no sonho que está morrendo.
Foi minha sogra internada
no Hospício municipal...
- Pior é que, ante a danada,
qualquer maluco é normal!…
Foste embora sem razão...
- Sozinha em meu universo,
eu transformei solidão
em rima para o meu verso!…
Gastei meus sonhos sozinho...
Voltaste tarde demais...
- Tenho, agora, o teu carinho,
mas... meus sonhos... nunca mais!…
Há muita briga e baderna
no bar do casal Gusmão,
se alguém, nele, passa a perna
e alguém, nela, passa a mão!
Houve briga e zum-zum-zum
antes mesmo do casório...
- O Zé não quis ser mais um
a ter culpa no cartório!…
Malandro e da pá virada,
em casa faz o que quer...
- Quando briga com a empregada,
faz as pazes com a mulher!…
Melhora a sogra, e o Clemente
que em carinhos se desdobra,
diz que salvou a doente...
com remédio para cobra!…
Mesmo se triste e magoado,
meu sonho não acabou...
- Nosso amor, que hoje é passado,
para mim nunca passou!…
Na carta, volto a rever
lembranças, tuas e minhas...
- hoje eu só consigo ler
saudade... em todas as linhas!…
Não sei se a casa é assombrada,
mas a vizinha me pasma...
- Quando chega a madrugada,
é um entra e sai de fantasma!…
Nosso amor nasceu sagrado,
mas, com o tempo errou tanto,
que hoje chamam de pecado
o que outrora, já foi santo!…
O amor que teve importância,
passou tão perto, e eu, calada,
só pude ver a distância
de dois na mesma calçada!…
O Manoel do Bar, no beco,
pagou um mico danado...
Gritou: “Sai um vinho seco,
que o pau d’água está molhado!...”
Os sonhos, como contê-los,
se o amor, cansado, sem voz,
nem quer ouvir os apelos
que nós fizemos a nós?!
Ouço passos da sacada,
ansiosa, chego ao portão...
- E vejo, em minha calçada,
o final da solidão!…
“Pagou um mico” perfeito
a Clara, em busca de fama!
Disse à esposa do prefeito:
“eu sou a segunda dama!...”
Partiste... e em meio à lembrança
a saudade continua
pondo luzes de esperança
nos postes de minha rua!
Por mais que eu tente esconder
nosso amor, que é todo medo,
o meu olhar, sem querer,
revela o nosso segredo.
Por timidez, dei as costas
ao amor que eu sempre quis...
E a vida deu-me as respostas
às perguntas que eu não fiz!…
Que adianta fazer propostas?...
- Nem tenho mais teu abraço -,
se eu mesmo dou as respostas
às perguntas que eu te faço!…
Sei quanto errei no passado...
Paguei caro à solidão!...
E o pior preço cobrado,
foi não ter o teu perdão!…
Sem pressa, vai percebendo,
na firma, quando ele atrasa,
que o seu patrão vai fazendo
um "serão" em sua casa!…
Sou poeta do Universo,
feito de sonho e magia,
pois faço de cada verso
meu sonho de cada dia!…
Tão metida a ser Dondoca,
tinha um castigo, a Maria:
- Quando fazia fofoca,
a dentadura caia!...
Vendo a espera angustiante,
o meu relógio, sem graça,
vai mostrando o teu semblante
em cada instante que passa!…
Vendo as tristezas tão minhas
na tua ausência, a lembrança
fez da saudade, entre linhas
os meus versos de esperança!…
Voltas com outra proposta,
mas, eu, fingindo altivez,
uso o poder na resposta
e digo não, outra vez! ...

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Aparício Fernandes (Trovas Circunstanciais) Parte 1




Existe um tipo de trovas de duração relativamente efêmera, às quais não se pode atribuir grande valor literário ou artístico, mas que nem por isso deixam de ser interessantes e dignas de menção. São as trovas de circunstância, que assim denominamos por se basearem em ocorrências ou costumes ocasionais. Neste aspecto estão incluídas as trovas de propaganda, as que utilizam gírias, as de brincadeira, visando determinado fato ou pessoa, as de exaltação a personalidades famosas (excetuamos desta categoria as trovas sobre Jesus Cristo), as que abordam temas como o petróleo, nomes de cidades, realizações governamentais, nomes de livros, etc. De um modo geral, não gostamos de trovas laudatórias, mas isso é apenas um ponto de vista pessoal, proveniente talvez do grande respeito que temos por todos os gêneros de Poesia, mormente pela Trova. Com o advento dos Jogos Florais e dos frequentes concursos de trovas, cujas festividades de encerramento reúnem um grande número de trovadores, esses encontros passaram a ser um campo fértil para as trovas de circunstância. Vejamos alguns exemplos.
     O poeta João Rangel Coelho (pai de Colbert Rangel Coelho, muito embora o velho Rangel faça questão de dizer que Colbert é que é filho dele) é um dos grandes campeões da trova no Brasil. Além disso, quando lhe dá na veneta, torna-se tão mordaz que, junto dele, a famosa "boca de inferno" de Gregório de Matos seria uma mísera boca de fogareiro. Não menos ágil de pensamento é o poeta e trovador Aristheu Bulhões, residente em Santos. Sendo excelente repentista, o Aristheu, mal acaba de declamar uma trova que vem de improvisar, e já está mentalmente compondo outra quadrinha para dizer em seguida.
     Certa vez, no ônibus que nos levava para um dos Jogos Florais de Nova Friburgo, João Rangel Coelho estava conversando com a queridíssima (de nós todos) trovadora Magdalena Léa, que, segundo o A. A. de Assis, é o único broto com mais de cinquenta aninhos. Na ocasião, Magdalena mostrava ao Rangel uma fotografia de suas filhas (dela). De repente, o Aristheu interrompe a conversa para dizer ao Rangel a centésima trova que havia improvisado. Este, que escutara pacientemente as outras     noventa e nove, não aguentou mais. Virando-se para Magdalena e apontando a fotografia, saiu-se com esta:
As tuas filhas são belas,
são uns primores de Deus.
Eu adoro os ares delas,
mas detesto os aris...teus!
     Ainda em Friburgo, nos I Jogos Florais daquela cidade, em 1960, calhou de ficarem no mesmo hotel as trovadoras Helena Ferraz, Cléa Marina e Augusta Campos. A expansividade era natural, contrastando com o silêncio reticencioso de uma velha reprodução da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, ali pendurada à guisa de ornamentação. Augusta Campos, poetisa cearense residente no Rio, verdadeiro azougue em matéria de trovas de circunstância, lançou ao quadro um olhar desconfiado e no dia seguinte comentava:
Na parede, a Mona Lisa,
vendo a nossa animação,
fica assim meio indecisa,
sem saber se ri ou não.
     Anos depois, a mesma poetisa estava assistindo a uma reunião
da antiga seção da Guanabara do Grêmio Brasileiro de Trovadores, quando entra na sala, triunfalmente, uma trovadora cujo vestido causaria complexo de Inferioridade ao mais rutilante dos arco-íris. Na mesma hora, Augusta Campos sapecou esta quadrinha:
Margarida vai passando
no seu traje original.
Pensa que está abafando,
parece um pavão real...
Naturalmente, mudamos o nome da poetisa "homenageada", para evitar embaraçosas acareações.
     Vamos a mais um exemplo de trova de circunstância. Nosso querido amigo e confrade Adalberto Dutra de Rezende, mineiro de Cataguases, radicado no Paraná, trovador de alto nível e advogado ilustre, é, sem sombra de dúvida, um homem decidido. Imaginem que, alguns dias antes da semana santa do ano de 1962, deixou a paisagem plácida de Bandeirantes (onde reside)e veio ao Rio apenas para comunicar-me e também ao Colbert Rangel Coelho, Zálkind Piatigorsky e José Maria Machado de Araújo, que havia organizado em Bandeirantes, sob os auspícios do Lions e do Rotary Club, uma Noite de Autógrafos, na qual deveríamos autografar nossos livros, para o público local. A festa seria... no sábado de aleluia! Chantageados pela amizade, não houve como alegar a exiguidade do tempo. Fomos. Em lá chegando — como diriam os puristas — notamos que o Zé Maria estava meio preocupado e até mesmo arredio. É que sua esposa estava nos preparativos finais para a chegada do primeiro herdeiro da casal. Sabendo disto e aproveitando a deixa proporcionada por uma das melancólicas e solitárias caminhadas do trovador lusitano, compusemos esta quadrinha, de parceria com o nosso anfitrião e também com Zálkind Piatigorsky;
Lá se vai o Zé Maria,
cabisbaixo, andando a pé,
pensando: será Maria?
cismando: será José?
     Pouco tempo depois nascia Maria Lúcia, primogênita do casal Machado de Araújo.
     Censurando os três jotas (Juscelino, Jânio e João Goulart) e fazendo alusão às letras iniciais de seus respectivos sobrenomes surgiu certa vez, entre o povo, uma trova muito bem feita, embora bastante ferina. Além de ser de circunstância, é também anônima, pois não se sabe quem a compôs. Ei-la:
Em três anos — quase nada! —
os três jotas: K — Q — G,
fizeram da pátria amada
esta coisa que se vê.
     Em vez de coisa, a palavra era outra, que preferimos não publicar. Aliás, nosso interesse pela quadrinha é simplesmente trovadoresco, sem qualquer inclinação política.
     Certa vez, minha esposa (ainda éramos namorados), quando lecionava num Grupo Escolar, em Minas, viu-se às voltas com um singelo problema: devia  conseguir uma     trova que falasse em alimentação, para ser recitada por um dos seus alunos. Não conseguindo encontrar logo a tal trova, ela mesma fez esta oportuna quadrinha, que salvou a situação, e cuja autoria modestamente atribuiu a um "poeta desconhecido". Eis a trova, perfeitamente caracterizada como "de circunstância", que um de seus pequenos alunos recitou com a ênfase e os gestos de praxe:
Gosto muito de legumes,
verdura e frutas também.
Como tudo sem queixumes,
sou forte como ninguém!
     No dia 21 de novembro de 1965, como parte das festividades dos Primeiros Jogos Florais da Guanabara, foi oferecido aos trovadores um almoço no "Vale do Paraíso Campestre Clube", localizado em Jacarepaguá. Surgiu então a ideia de se fazer entre os presentes um concurso-relâmpago, tendo como tema o nome do clube. Cada um improvisou a sua trova e a poetisa Lourdes Povoa Bley alcançou o 1.° lugar com esta trova de circunstância:
Esta soberba mansão
tem tudo de que preciso.
Deixo, pois, meu coração
no "Vale do Paraíso".
     Quando, no Ceará, desmoronou a barragem do açude de Orós, fazendo inúmeras vítimas,  as circunstâncias me inspiraram esta quadrinha, que dediquei ao bravo povo cearense;
Se a Desgraça conhecesse
a fibra que existe lá,
já teria desistido
de vencer o Ceará!
     Certa vez, conversavam alguns trovadores quando notaram que um pouco adiante, dois padres trocavam ideias sobre o controvertido assunto do celibato sacerdotal. Imediatamente, o trovador A. A. de Assis aproveitou a circunstância para ironizar;
Parece incrível, de fato:
– os padres, neste momento,
lutam contra o celibato,
e nós — contra o casamento!
     Não há poeta ou trovador que alguma vez não tenha sido perseguido por um pai ou mãe, pedindo versos para os seus rebentos. Certa vez tive que improvisar, para um cartão de aniversário, esta quadrinha de circunstância, horrivelzinha como ela só, mas que o orgulhoso papai achou uma beleza:
Hoje eu completo um aninho
e estou contente, porque
vou repartir meu bolinho,
dando um pedaço a você.
     Em outra ocasião, Colbert Rangel Coelho, integrando um grupo de trovadores que viajavam para participar de uns Jogos Florais, teve a sorte de, no ônibus, sentar-se ao lado de uma moça muito bonita, mas calada e compenetrada. Colbert ficou quietinho mas, na primeira parada, ao descer para um cafezinho, piscou o olho e nos segredou:
Eu sentado na beirada,
ela junto da janela.
— Graças às curvas da estrada,
vou sentindo as curvas dela...
     Em Pouso Alegre,MG, fiz uma trova de circunstância que passou a figurar no cardápio da Cantina Uirapuru, e que me valeu uma refeição de graça:
Se você está com fome,
não faça como um zulu!
— Civilizado só come
na Cantina Uirapuru!...
     Em 1969, na cidade mineira de Juiz de Fora, quando do encerramento de um concurso de trovas promovido pelo Lions Clube local, estiveram presentes duas     grandes   poetisas  portuguesas; Maria Helena e Maria Amélia Novais. No banquete oferecido aos trovadores, Elton Carvalho, que é um excepcional "fazedor" de trovas de circunstância, sentou-se entre as duas referidas poetisas. Lá pelas tantas, dirigindo-se aos demais trovadores, que se haviam localizado na outra extremidade da mesa, saiu-se com esta belíssima trova, onde há uma oportuna alusão ao rio Tejo, que banha a capital portuguesa:
Amigos, não os invejo,
tão distantes, isolados:
– estou feliz como o Tejo,
com Portugal dos dois lados.
     O    Desembargador   Dr.  Luís Antônio    de Andrade,     uma  das maiores culturas jurídicas de nosso país, certa vez ofertou ao poeta Manuel José Lamas um exemplar de nossa coletânea 'Trovadores do Brasil", dedicando-o com esta trova de circunstância, cujo último verso é o seu próprio nome, um setissílabo perfeito:
Ai vão, meu caro Lamas,
como prova de amizade,
as trovas que tanto amas!
Luis Antônio de Andrade,
     Eis uma trova de circunstância laudatória, feita por Inês Gaspar Palácio, homenageando a cidade de Maringá {PR):
Maringá! Quanta esperança
se contempla em teu caminho,
pois teu lema é segurança,
trabalho, fé e carinho!
     O poeta Ary de Andrade refere-se a um esperto motorista de caminhão que, ao longo das estradas, "aplicava" sempre esta trova, a qual servia tanto para comover os credores como para as suas conquistas amorosas de Romeu perambulante:
Você não tem coração!
Se tivesse, não faria
que um chofer sem um tostão
vivesse nesta agonia!
continua…
Fonte: Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história & antologia. Rio de Janeiro/GB: Artenova, 1972

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

História da Trova em Imagens 1


Sylvio Ricciardi (Trovador Homenageado)

Achou o carro roubado
e na "Loto" fez a quina!
Nasceu pra lua virado...
"Vá ter sorte assim na China!”
À deriva, neste mundo,
meu coração sofredor
não se esquece, um só segundo,
do teu beijo abrasador.
A máscara de alegria
em meu rosto com frequência,
é apenas a fantasia
no carnaval da existência
A Pafúncia, dorminhoca,
cozinha, vendo a novela...
e, suspirando, a coroca
deixou queimar a panela!
A preguiça era tamanha
que, ao te esperar na porteira,
sentei numa pedra estranha;
me estrepei! Pedra não cheira…
Atirado em fria estiva,
sem bússola, em pleno mar,
meu coração, à deriva,
morre de tanto te amar…

Deixe de orgulho e me abrace
que vai ser melhor assim!...
Tire a máscara da face,
que eu sei que és louca por mim.
Dentre as flores do jardim
e escondido nas ramadas,
é o espinho o espadachim
das rosas despreocupadas.
Ela me chamou de bobo,
porque eu olhei, da janela,
quando o vento, com afobo,
levantou a saia dela.
Em minha lira tão pobre,
não achei a sutileza
de uma rima ou verso nobre
para cantar-te a beleza!
Em tua lira, a paixão
canta meiguice e magia!
Até os anjos, na amplidão,
batem palmas de alegria!
Entre espinhos e entre flores,
em seus dias tão cruentos,
é nas mãos dos professores
que desabrocham talentos.

Falo sempre, em meu delírio,
que a natura é caprichosa!
Do lodo é que vem o lírio,
e entre espinhos surge a rosa.
Meu salário é tão pequeno,
não dá pra nada comprar;
não dá nem para o veneno,
se eu quiser me suicidar!
Meu salário,eu nem te conto!
Ele ficou tão em baixa,
que se tiram o "desconto",
fico devendo pro Caixa!
Nesta ansiedade aflitiva
procurei-te sem cessar...
Meu coração à deriva,
nem sabe onde procurar.
No cristal da fonte brilha
espelho espetacular!
E a lua cheia, andarilha,
vaidosa... vem-se espelhar…
O talento é dom latente,
ou melhor, ouro em jazida;
que sobressai, de repente,
entre os cascalhos da vida!

Partiste... e a angústia em surdina,
gerando a cumplicidade,
veio morar, clandestina,
no meu plantão de saudade.
Que grande dádiva encerra
a mão de Deus, onisciente,
quando acende aqui na terra
a chama do sol nascente.
Quero que poupem dinheiro,
comprando apenas um pão!
E passem o pão no cheiro
da panela do Chefão!
Triste sorte a do seu Lessa:
casou com loura "branquinha"
e hoje tem chifres à beça!
... E uma filha mulatinha…
Tua constante evasiva
fez de mim, ano após ano,
um barco triste, à deriva,
no mar do meu desengano…
Tuas mãos, tão delicadas,
sobre a lira, de mansinho,
são pombinhas namoradas
construindo um lindo ninho!