sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (A morte da cigarra)

Eu, que vendo como compro as imagens que ou vislumbro, ou imagino, vi esta manhã uma cigarra morta. Eu estava chegando ao trabalho, e lá estava ela, intacta, parada, com a barriga para baixo e as translúcidas asas para cima, reluzentes, sólidas, ao sol. Lembrei-me na hora de um verso bonito de Cecília Meireles que diz: Não tenho inveja às cigarras: / também vou morrer de cantar. Isso é bonito, porque um poeta é meio cigarra também. Digo meio e não inteiro por causa do próprio ofício de escrever poemas, que, quase sempre, leva o poeta a ter outro trabalho, a fim de garantir o leite das crianças e, o que não é raro, seu próprio. Assim, meio cigarra, meio formiga, atravesso as páginas de meus dias, cantando e escrevendo o que vejo. Hoje, pela manhã, vi uma das minhas caída, morta na calçada. Se foi macho, cantou até morrer por sua amada. Se foi fêmea, amou, até morrer, seu bem-amado. Se eu fumasse, acenderia um cigarro e ganharia um trocadilho. Como não fumo, me resta, mais tarde, quando em casa, pegar a guitarra e me lembrar de que as cigarras, como os brutos, os músicos, os poetas e outras formas de inocência distraída, também amam. Com seu canto de moído vidro, seus cacos na garganta atroz, suas asas que desfocam o sol, recolhem-se e morrem.
____________
Fontes:
O Autor
Imagem = http://sorrisos-e-restos.deviantart.com

Contos Populares Portugueses (O Cego e o Mealheiro)

Era uma vez um cego que tinha ajuntado no peditório uma boa quantidade de moedas. Para que ninguém elas roubasse, tinha-as metido dentro duma panela, que guardava enterrada no quintal, debaixo duma figueira. Ele lá sabia o lugar, e, quando arranjava outra boa maquia, desenterrava a panela, contava tudo e tornava a esconder o seu tesouro.

Ora um vizinho espreitou-o, viu onde é que ele tinha a panela e foi lá e roubou tudo. Quando o cego deu pela falta, ficou muito calado, mas começou a dar voltas ao miolo para ver se arranjava maneira de tornar a apanhar o seu dinheiro. Pôs-se a considerar quem seria o ladrão e achou que por força teria de ser o vizinho. Tratou de ir à fala com ele e disse-lhe:

- Olhe, meu amigo, quero contar-lhe uma coisa muito em particular, que ninguém nos ouça.

- Então o que é, senhor vizinho?

- Eu ando doente, e isto há viver e morrer. Por isso quero dar-lhe parte que tenho algumas moedas enterradas no quintal, dentro de uma panela, mesmo debaixo da figueira. Já se sabe, como não tenho parentes, há de ficar tudo para si, que sempre tem sido um bom vizinho e me tem tratado bem. Ainda tinha aí num buraco mais umas moedas de ouro e quero guardar tudo junto, para o que der e vier.

O vizinho, ao ouvir aquilo, agradeceu-lhe muito a intenção, e naquela noite tratou logo de ir enterrar outra vez a panela de dinheiro aonde ela estava, no fito de apanhar o resto do tesouro. Quando bem entendeu, o cego foi ao sítio, encontrou a panela e levou-a para casa. Depois desatou num grande berreiro, para que o vizinho o ouvisse:

- Roubaram-me! Roubaram-me tudo!

E daí em diante guardou as suas moedas num sítio onde nunca ninguém soube.

Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (O nó)

Não, não era o nó dos sapatos, nem o da gravata que o incomodava. O nó era mais fundo, profundo, que um simples nó cego numa corda capaz de aguentar mil pessoas de um lado até o outro da ponte. Mais fértil que um campo minado por beija-flores, que esparramam pólen pela terra em transe do mundo, o nó transgredia os costumes e calava os trinados de qualquer ave. Não, já não era mais a época da repressão política e social iniciada em 1964 neste país, mas este nó, essa nódoa na roupa intelectual de quem se deixasse por isso enredar, este nó o reprimia como nunca. "Pai, afasta de mim esse cálice"... Nossa Senhora! Que nó era esse? Nós, que não tínhamos nada convosco, nem conosco, nos livrávamos desse nó. Era assim mesmo? Quantas vezes esse nó nos norteara rumo ao roubo das rimas, ao ramo das rosas que só era por nós quando nos convinha e, cá entre nós, não reparávamos que, quase sempre, nos perdíamos nele como peixes na rede de nós habitualmente trançada por um pescador experiente. Entrávamos e sentíamos esse nó que nos nublava a visão... Cego, feito o amor, sente hoje na garganta desnuda um cordão umbilical, primeiro nó, que lhe aperta o pomo de Adão, o nó de sua alma, cordão de prata que liga seu corpo à fonte, às mãos do Pai e da Mãe que o alimentam, sem nem mesmo ser nenhuma das aves do céu, nenhum dos peixes do mar. O nó, invisível, essencial, prende sua voz e solta suas lágrimas. Sim, sempre afrouxa os nós dos sapatos e os da gravata que, é bom que se diga, não usa. Mais fundo, profundo, o nó da existência.
_________
Fontes:
O Autor
Imagem = http://pt.dreamstime.com

Jorge Luís Borges (A sedução do tigre)

Na infância pratiquei com fervor a adoração ao tigre; não o tigre cor de pêssego dos camalotes do Paraná e da confusão amazônica mas o tigre rajado, asiático, real, que só pode ser enfrentado pelos homens de guerra, encastelados sobre um elefante. Costumava demorar-me infindavelmente diante de uma das jaulas no Zoológico; apreciava as vastas enciclopédias e os livros de história natural pelo esplendor dos seus tigres. (Lembro-me ainda dessas figuras: eu que não posso recordar sem horror o rosto ou sorriso de uma mulher). A infância passou, caducaram os tigres, e a paixão por eles, mas eles ainda permanecem em meus sonhos. Nessa lembrança submersa ou caótica, continuam a prevalecer, e assim: adormecido, um sonho qualquer distrai-me e eu sei de imediato que é um sonho. Costumo então pensar: Este é um sonho, uma pura diversão de minha vontade e, já que tenho um poder ilimitado, vou produzir um tigre.

         Oh incompetência! Meus sonhos nunca sabem engendrar a apetecida fera. Aparece o tigre, isso sim, mas dissecado e débil, ou com impuras variações de forma, ou bastante fugaz, ou tirante a cão e a pássaro.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (Parabéns para um menino )

Há um ano nascia um menino que chamaram Arthur. Sim, Arthur, nome de rei, o da Távola Redonda. Seu pai, Luís Felipe, também nome de rei, mandou-me uma fotografia de seu pequeno, que mal nascera e já estava lá, sorrindo, aberto para a vida. Por causa desse sorriso, fiz uma música, uma canção de ninar e passei a cantá-la para minha mãe sempre que ela me pedia, até que, finalmente, a mostrei para o pai da criança. Não sei se ele costuma cantá-la para o filho. Muita, muita água rolou desde então, sob a ponte e pelos olhos, que a vida vem da água, vive em água e volta para a água. Se existe algum pó em nossos corpos e em nossas almas é o do tempo, que nos cobre e nos recobre de poeira de estrelas, nossa cosmicidade natural, tão clichê, que nem a notamos. Somos de tempo, os tais seres históricos. De história em história, viramos memória e voltamos para as águas, de rio e de mar, com seus afluentes. Eu, que, em meio ao trajeto, me perco em lagos, pequenas fontes, parabenizo os pais pelo nascimento do menino Arthur há exatamente um ano.

A imagem de seu sorriso é a primeira e a única que tenho. Quando o vi ao vivo, ele estava dormindo. Não é à toa que as crianças e os velhos dormem tanto. No caso delas, por estarem se acostumando ao nosso mundo; no dos velhos, porque já estão se preparando para o outro, que, no fundo, é o mesmo, dois lados do eterno espelho em que nos vemos todos. Pela água, pela luz e pelas fotografias, como essa, a do Arthur.
____________
Fontes:
O Autor
Imagem = www.chegadadobebe.com

Contos Populares do Tibete (A Oração que foi Escutada)

O pequeno cômodo brilhava à luz das lamparinas de gordura colocadas com esmo sobre a mesinha baixa diante do altar. Neste, podiam-se distinguir os objetos sagrados: os livros santos envolvidos num pano, a imagem de Buda, um retrato emoldurado do Dalai lama, xícaras de ofertório de prata; e, na parede do fundo, com a fumaça do incenso enroscando-se à sua volta, o tanka1 que reproduzia a divindade tutelar e padroeira do Tibete: Chenrezik, o bodhisattva da compaixão, com onze cabeças e mil braços. Pelas outras paredes do pequeno cômodo, havia quadros de outras divindades, todas elas objeto de devoção para o povo do Tibete. Havia uma representando Dolma, o aspecto feminino da compaixão, e Jamyang (Manjushri), o bodhisattva da sabedoria.2

Esse cômodo, o oratório, era o mais rico da pequenina vivenda. O povo do Tibete era muito religioso, e suas vidas giravam em torno dos ensinamentos de Buda, tal como estes haviam sido explicados pelos grandes mestres e santos que tinham alcançado o estado final de iluminação. As pessoas acreditavam que os grandes santos, embora tendo chegado ao estado de iluminação, ainda se preocupavam pelo bem de todos os seres, e que aqui permaneciam para protegê-los e guiá-los em seu caminho por esta e por suas outras vidas futuras.

Assim o acreditava também uma velhinha que estava sentada num canto da capela, a desfiar nos dedos as contas do seu rosário e a repetir, lentamente, a oração de Chenrezik: OM MANI PADME HUM. Uma e outra vez, a poderosa oração brotava dos seus lábios. A anciã vivia preocupada, pois era uma viúva sem dinheiro nem terras: tudo o que possuía no mundo era a sua única filha.. E ela achava que, sem um dote pata oferecer, a moça jamais iria ser pretendida pelos homens ricos da região, e, portanto. iria viver a vida inteira na miséria. Não era por sua própria vida que ela se preocupava, pois a sua vida quase já se havia consumido, mas desejava, de todo o coração que a vida de sua filha pudesse ser próspera e feliz. Por isto é que rezava.

E sucedeu que um homem pobre, de uma aldeia vizinha, tinha ouvido falar da filha da anciã, e, quando a vira, ficara tão impressionado com a sua beleza, que determinou faze-la sua esposa. Ele sabia que não seria fácil que a mãe da moça consentisse no casamento da filha com um homem de uma condição tão humilde quanto a sua. Por isso, tramou fazer com que a mãe acreditasse que era um homem próspero e rico.

Escondendo-se na capela da casa da velhinha, ele esperou que ela entrasse, fizesse as suas oferendas de alimentos e se sentasse num canto a rezar. A anciã rezava e rezava com fervor, pedindo aos deuses que mandassem um rico marido para tomar sua filha em casamento. O pobre homem ficou escutando até que ela terminasse o pedido. E, no exato momento em que ela se dispunha a deixar a capela, ele falou:

A velhinha se assustou ao ouvir a voz. E, como não visse ninguém mais no local, acreditou que fosse a voz dos deuses. Ouviu a voz dizer-lhe que, no dia seguinte num cavalo branco, apareceria um homem rico para pedir-lhe a filha em casamento.

A anciã não cabia em si de contentamento. Ela e a filha limparam a casa inteirinha, a fim de deixá-la preparada para receber o homem rico que os deuses iam enviar para marido da moça. Depois de preparar a comida, a velhinha foi dizer aos vizinhos que ficassem prevenidos para a grande festa do dia seguinte, pois que a sua única filha ia se casar com um homem rico.

E, no outro dia, a anciã e a filha se levantaram bem cedo. Os pássaros cantavam e o azul do céu contrastava com o vermelho dos picos das montanhas, banhados pela luz do sol que nascia A velhinha e a moça estavam emocionadas e contentes. Sentaram-se na parte de fora da pequena casa e ficaram esperando a chegada do homem do cavalo.

Não muito tempo depois, ele apareceu no horizonte. E, enquanto o homem se aproximava a cavalo da casa, a filha ia sentindo a angústia cansada pelos súbitos pressentimentos que a dominavam. Perguntava-se como seria ele, se elegante e bom; se a sua vida de casada iria ser tranquila e feliz como ela sempre havia desejado; e perguntas como estas lhe vinham a mente. Mas depois lembrou que este homem era uma dádiva dos deuses, de modo que ela não deveria sentir temor algum.

Até que, enfim, homem pobre, vestido com roupas que os vizinhos lhe haviam emprestado e montado no cavalo branco que era o único que possuía parou diante da casinha da anciã. Desmontou, sorriu para a moça e tomou a mão dela entre as suas. Contendo a emoção com muita dificuldade, a velhinha pediu ao homem que entrasse na casa e descansasse um pouco. Ele assim o fez. E, depois de terem conversado por algum tempo, ele pediu à anciã a mão de sua filha em casamento.

O regozijo foi grande. Celebrou-se a festa e todos os vizinhos e amigos vieram para desejar ao casal a maior felicidade, pois dava para se perceber que aquele casamento havia sido mesmo determinado pelo céu.

O homem pobre chamou a moça e, colocadas as poucas coisas que pertenciam a ela num baú, os dois partiram rumo à humilde casa dele, numa aldeia vizinha. Durante a viagem, o homem começou a se inquietar pela impostura que havia praticado. Tinha medo que a moça gritasse e berrasse quando soubesse que ele não era, em absoluto, um homem rico, mas, sim, um camponês muito humilde; temia, também, que ela fugisse e ele a perdesse para sempre.

Preocupado por esses pensamentos, o homem pobre concebeu um plano. Tirou as coisas da moça do baú e as enterrou. Depois, disse a ela que se enfiasse no baú, pois iria fazer-lhe uma surpresa quando chegassem à casa. Quando a moça já estava dentro do baú, o homem o fechou à chave e o colocou numa valeta que havia num caminho da floresta. Depois, se dirigiu à sua casa.

Chegando lá, o homem pobre foi correndo aos vizinhos mais próximos, e, contando-lhes que trazia para casa uma recém-casada, logicamente nervosa, preveniu-os de que, se ouvissem gritos e berros durante a noite, não se preocupassem. Depois, pôs ferrolhos novos e fortes na casa, a fim de que a moça não pudesse escapar.

Enquanto o homem pobre estava em sua casa, um homem rico e de influência foi dar justo no lugar onde a moça estava fechada no baú, esperando a volta do marido. O homem rico e influente ordenou a seus servidores que abrissem o baú, e, quando viu a moça dentro, ficou tão impressionado com a sua rara e delicada beleza, que a levou com ele. Dentro do baú, no lugar da moça, deixou um urso feroz.

O homem pobre voltou em busca da esposa; amarrou uma corda em volta do baú e o arrastou até a sua casa. Já dentro desta, abriu o baú e... ficou aterrado diante do urso feroz — de uma ferocidade que, naturalmente, se havia exacerbado durante o trajeto dentro do baú e pela violência do tratamento. O homem pobre gritou e berrou a mais não poder, pedindo ajuda, enquanto o urso o atacava, mas os vizinhos não fizeram caso do barulho, pois o próprio homem os havia prevenido a respeito.

E assim, o homem pobre, que havia tramado todo aquele embuste com a pretensão de ser um deus, acabou morrendo nas garras de um urso selvagem. E a moça viveu para sempre mais feliz do que nunca, como esposa de um homem rico e influente. As orações da anciã haviam sido escutadas.
__________________________________
Notas
1. Um tanka (thang-sku, "algo que se enrola") é uma pintura sobre tela geralmente de algodão, que num dos bordos, ou em ambos, leva uma ripa ou uma vara de bambu que permite possa ser enrolada. Quase sempre a pintura é emoldurada com um brocado de seda.
A confecção de um lanka está sujeita a regras precisas, transmitidas pela tradição, e nada deve à improvisação ou ao subjetivismo. Os lankas, no geral, são de tema sagrado e constituem, rigorosamente, da mesma forma que os ícones cristãos, suportes de medição. Não obstante, os narradores ambulantes também levavam lankas com representações de caráter épico e narrativo, que ilustravam lendas populares e acontecimentos.
2. Manjusrí (em tibetano, 'Jam-d pai) é um bodhisattva que personifica a Sabedoria da mente completamente iluminada. Aparece sempre, na iconografia tibetana, brandindo na mão direita uma espada flamígera, a qual corta a raiz da ignorância.


Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (O mundo é seu )

Flor de ir embora, eu vou
Agora esse mundo é meu
Fátima Guedes

O rapaz chegou à casa e não encontrou ninguém. Todos haviam saído. A casa seria dele, apenas dele aquela noite. Pensou em colocar uma música, mas primeiro tomaria banho e colocaria uma roupa limpinha e bem velha, velhinha, como só ele gostava de usar. Não tinha ninguém em casa, ninguém para dizer a ele "Troca essa roupa, menino!"... A casa estava só. E ele se solidarizava com ela.

Depois do banho, pintou vontade novamente de música. Colocou-a no MP3 e se deitou no sofá, tomando o cuidado de elevar os pés em duas fofas almofadas de algodão, como se duas nuvens fizessem carinhos angélicos em seus pés, tão cansados. Cansaço. Eis a palavra que lhe vinha à mente enquanto se deixava embalar pela voz da cantora. Quem não gosta de música? Suave, então... Ah...

Eram pouco mais de seis e meia da tarde. Não sei se foi a luz amarelada, translúcida, adentrando a sala, mas o sofá transfigurou-se em delicada nuvem, os móveis sumiram e, em pouco tempo, ele estava dormindo em branquíssimo chão, lá no céu. Assustado, tentou acordar, não conseguiu. Queria levantar-se, mas o solo, fofo e branco, não deixava que seus pés progredissem e, como se pisasse em movediça areia, não saía do lugar. Começou a gritar pedindo socorro. Ninguém ouviu. Onde estaria São Pedro, seu avô falecido, o cachorrinho da irmã que morrera tragicamente atropelado naquela avenida? Não sabia. Talvez o céu seja igual ao Japão, isto é, sem endereço para correspondência, e as pessoas se percam um pouco por lá. Estava perdido. Morreria afogado numa nuvem, sem direito a tábua, digo, a boia de salvação? Foi então que apareceu um anjo, todo alegre, e lhe perguntou o que estava acontecendo.

- Me ajude, seu anjo, por favor, estou morrendo! Não consigo sair dessa nuvem, desse buraco em que me meti! - O anjo, calmamente, como se fosse irreal o medo do moço, pediu a ele que prestasse mais atenção a suas costas. Nessa hora, como se nunca tivesse sabido quem era, sentiu uma enorme protuberância logo abaixo da nuca e, num intuitivo gesto, tirou a camisa. Estava com asas. "Meu Deus!", pensou, "Tenho asas para fugir desse lamaçal em que, sem querer, me enfiei!". O anjo, ainda mais calmo, falou como se lhe ordenasse:

- Voa! Voa! O céu, o mundo é seu! Voa, moço! - Corajoso, com vontade e pulso firme, prendeu a respiração e... quando viu, estava na sala outra vez, com a mesma luz amarela encantando os vidros, enredando a tarde, como se lhe dissesse: "Dorme, dorme, menino, que a tarde é velha, mas o sonho, a história, a noite é só uma criança!...".
__________
Fontes:
O Autor
Imagem = http://economistinha.com

Contos Populares Portugueses (A Mão do Finado)

Havia um mercador que tinha três filhas e todos os anos fora da cidade para buscar uma renda. Aconteceu falecer-lhe a mulher, e, quando teve de se ausentar, custou-lhe deixar as filhas sozinhas. Disse-lhes então:

- Minhas filhas, eu preciso de ir receber a renda do costume, mas custa-me ir porque não queria arredar-me da vossa beira.

As filhas responderam:

- Vá, meu pai, que não nos vai acontecer nada. Nós |fechamo-nos por dentro e não se consente que ninguém cá entre.

Fiado na palavra das filhas, foi o mercador embora.

Havia fora da cidade uma quadrilha de ladrões, e o capitão deles andava à espera da ocasião da partida do mercador. Assim que soube o dia em que ele saiu da cidade, vestiu-se com trajes de mendigo, e ao anoitecer estava toda a sua quadrilha no canto da rua onde moravam as três meninas.

Foi o capitão bater-lhes à porta e, como estivesse a chover, pediu pousada do ar da noite. As meninas mais velhas compadeceram-se dele e queriam-no agasalhar. A mais moça disse:

- Não! Lembrem-se da palavra que deram ao pai. Damos-lhe esmola e ele que vá com Deus.

Respondeu a mais velha:

- A menina, como mais criança, não determina nada aqui!

E o falso velhinho sempre entrou em casa. Deram-lhe na cozinha uma enxerga e cordas para ele estender a roupa e puseram-lhe a ceia diante. As meninas, depois de terem arranjado o velho, foram também cear.

Estavam elas a acabar quando o velho foi ter com elas à mesa e lhes deu três maçãs dormideiras, uma para cada uma comer à sobremesa. Ficou o capitão dos ladrões ainda um bocado a ver se elas as comiam. De facto, as mais velhas comeram-nas, enquanto a mais nova fingiu que o fazia, escondendo o fruto.

Foram-se as meninas deitar e as mais velhas pegaram em sono profundo, mas a mais nova, com medo, não conseguiu dormir. Quando o ladrão calculou que a dormideira estava a fazer efeito, agarrou num alfinete real e foi confirmar que todas dormiam. Chegou ao pé da mais velha e deu-lhe uma picada a ver se estremecia. Ela não sentiu a picada. Fez o mesmo à do meio, que também nada sentiu. A mais nova, com medo de que o ladrão a matasse, fingiu que dormia e, quando ele a picou, fez que não sentiu.

O ladrão trazia consigo uma espada, uma pistola e uma mão de finado. Numa banca pôs estas coisas todas. A menina mais nova abriu os olhos para ver o que o ladrão ia fazer e tornou-os a fechar. O ladrão pôs lume à mão do finado para as meninas ficarem mais pesadas no sono e correu as salas para arrumar o que tinha que roubar. Abriu o alçapão que dava para a loja das fazendas, entrouxou o que quis e abriu a porta da loja. Saiu a chamar a sua quadrilha.

A menina mais nova levantou-se ao mesmo tempo que o ladrão saiu, viu as trouxas e as fazendas prontas, e a toda a pressa trancou a porta da loja. O ladrão, que já vinha com a quadrilha, ainda se pôs aos empurrões na porta, ao mesmo tempo que dizia:

- Foi a mais nova que me enganou e que não comeu a maçã dormideira!

E começou a ameaçar que ela lhe havia de pagar tudo. Teve ainda a confiança de tornar a bater à porta, pedindo à menina que lhe desse a sua mão de finado. Ela respondeu-lhe de dentro que a mão estava em labareda e não sabia como a apagar. Pediu então o ladrão que a deitasse numa tigela de vinagre, que ela apagava por si. A menina foi buscar a espada, que o ladrão deixara, e disse-lhe:

- Aqui está a mão do finado.

Ora na porta havia um buraco em que cabia uma mão. Disse-lhe o ladrão:

- Meta a menina a mão pelo buraco.

- Se quer, meta a sua, que eu lhe darei a mão do finado.

Vai o ladrão, cai em meter a mão, e a menina traçou-a com a espada.

Os ladrões foram-se embora e o capitão com a mão quebrada. A menina foi para o quarto onde as irmãs estavam dormindo, apagou no vinagre a mão do finado, e ao mesmo tempo as irmãs começaram a estremecer e acordaram.

A boa da menina fê-las levantar, contou-lhes tudo e levou-as a ver os sinais da desgraça em que estavam. Elas ficaram muito assustadas e choraram muito, lembrando-se do que o pai diria quando chegasse e soubesse que lhe tinham desobedecido.

Chegou o mercador da renda e viu as filhas, que lhe pareceram muito tristes. Pediu a menina mais nova a seu pai que a escutasse. Contou o que se tinha passado e como se tinha livrado dos ladrões. O mercador chamou então as filhas e disse:

- Daqui por diante daremos obediência a vossa irmã mais moça. Eu, com ser seu pai, farei o que ela determinar, porque venho de conhecer que vos livrou da morte e de ficarmos desgraçados.

Quando, por fim de muitos anos, o capitão dos ladrões, que tinha mandado fazer uma mão de ferro com engonços e andava de luvas, vestido como qualquer senhor, estabeleceu um armazém defronte da casa do mercador.

Ora um dia o mercador, por o vizinho lhe parecer boa pessoa, convidou-o para ir lá jantar. Ele aceitou de boa vontade e as meninas ficaram satisfeitas com isso. A mais nova é que se mostrou muito triste, e o pai perguntou-lhe o que era. A menina respondeu que não gostava que o pai convidasse o tal senhor para ir a sua casa. Chegou à hora do jantar e foram para a mesa. As outras duas irmãs, essas, estavam muito contentes. Houve uma conversa e neste tempo o visitante pediu em casamento a menina mais nova. O mercador ficou muito satisfeito e disse que sim. Mas a menina respondeu:

- Aqui o desengano, pai, que com ele não me quero casar.

  O vizinho, aborrecido, pediu a mais velha, que ficou muito contente, e ele começou a dizer os bens que tinha e que morava em palácios longe da cidade.

Chegou o dia do casamento, despediu-se a menina mais velha e montou no carro- mais o marido para fora da cidade. Lá no meio da estrada, ele apeou-se mais a mulher e pagou ao boleeiro, para que não se soubesse onde morava. Foram andando, até que chegaram a umas casas metidas nuns matos. Assim que a sua companhia o avistou, vieram com os seus ouros e joias oferecer à senhora, que ele apresentou como sua mulher.

Entrou o capitão de ladrões com ela para um quarto e deu-lhe um papel para escrever uma carta ao pai. Ditou-lha, dizendo que estava muito satisfeita com ver tanta riqueza e que mandava buscar uma das suas irmãs para estar uns dias em sua companhia. Acabada a carta, que ele fechou, tirou então a luva e a mão de ferro, mostrando o braço maneta, perguntando:

- Conheces quem me fez isto? Ela respondeu-lhe que não.

- Bem sei que não tens culpa, mas o pagarás e tuas irmãs também!

Acabado isto, pegou na espada e degolou-a. No fim de uns dias, levou a carta ao sogro, que a sua mulher lhe mandava. O pai leu-a e disse à filha do meio que fosse. O ladrão levou-a consigo e fez que ela escrevesse uma carta para ir também a mais nova. Depois de a degolar, apareceu outra vez com a carta ao sogro. O mercador mandou a última filha que tinha em casa. Ela não queria ir, mas, para não desobedecer, sempre se resolveu. Lá foi com o cunhado, que no meio da estrada a fez apear e, depois de irem a pé por muito tempo, descalçou a luva e mostrou-lhe o punho sem mão, dizendo:

- As tuas manas já pagaram. Agora é a tua vez! Chegaram a casa. Os ladrões apareceram-lhe todos e ele determinou:

- Façam de conta que é minha irmã!

Pôs ao pescoço da menina uma pera de ouro e disse:

- Podes ir a todos os quartos deste palácio menos a este.

Partiu com a quadrilha, mas, assim que ele voltou costas, a menina tirou a pera do pescoço e foi ao quarto dos mortos. Viu lá um menino príncipe todo esfaqueado, que lhe disse:

- Esta casa é um covil de ladrões. Que faz a menina aqui? Olhe que eles estão aí a chegar.

A menina fechou outra vez tudo. Pôs a pera ao pescoço, e nisto chegou o cunhado.

- Fez o que lhe mandei? - Fiz.

Ele olhou para a pera sem malha, ficou muito contente. Destinou-lhe serviços para ela fazer e foi-se outra vez embora para uma viagem de oito dias.

A menina tirou a pera e foi ao quarto dos mortos levar um caldo ao menino príncipe, que ficou são. Sentiram uns carros do rei que levavam esterco e eles fugiram e foram ter com os carreiros para os levarem para o palácio. Pararam os carreiros e perguntaram:

- Que novidades há nessa cidade?

- Ofícios dobrados pela falta do príncipe.

- O príncipe sou eu e esta menina deu-me a vida, na casa onde eu estava esfaqueado pelos ladrões. Agora, carreiro, deita esterco fora do carro de trás, põe meia sebe e deita em cima esterco, que nós nos esconderemos aí.

O carreiro assim fez. Eram três carros e puseram-se a andar. Os ladrões tinham encontrado um feiticeiro e ele ofereceu-se para ir para a sua companhia. Chegaram a casa, o capitão não encontrou a menina, mas o feiticeiro logo lhe disse que ia de fugida no carro de trás.

Partiu um dos ladrões para a ir buscar. Chegou ao carreiro, mandou-o parar e cavar no carro de trás até meio e, vendo que não achava nada, foi-se. Os meninos passaram para o segundo carro. Chegando a casa, disse o ladrão:

- É mentira! Não achei ninguém, pois despejei o carro até meio!

E o feiticeiro aconselhou:

- Despeja o carro todo, que eles lá estão.

Parte o ladrão a toda a pressa, apanhou o carreiro, mandou despejar o carro todo. E como os meninos já tinham passado para o segundo, não achou ninguém. Disse outra vez o feiticeiro:

- Vai lá, que eles passaram-se para o carro da frente. Mas os carros chegavam já ao palácio e escaparam os fugitivos. O rei ficou muito contente por ter tornado a encontrar o seu filho e soube da menina tudo desde a mão do finado até dar a vida ao príncipe, que quis logo casar com ela. O rei deu o sim e nos dias das festas do casamento veio um dos ladrões com moedas de ouro, entrou para a igreja que estava preparada e abriu uma saca e dizia com ar de tolo:

- Tão bonito! Tão bonito! Apareceu ali um vassalo e desdenhou"

- Quando você se admira disto, que seria se visse a câmara real!

E o que fingia de tolo:

- Eu dava todas estas moedas de ouro a quem me levasse lá.

O vassalo ofereceu-se, e o ladrão, no meio de tanta gente, sumiu-se e meteu-se debaixo da cama sem o vassalo ver. Casaram-se os príncipes e foram para a câmara real. A princesa, com uma grande agonia, não podia dormir e não se quis deitar.

Exclamou o príncipe:

- Deita-te, que os ladrões não podem vir aqui matar-nos.

- O meu coração diz que é mesmo aqui que me hão de vir matar!

O príncipe levantou-se, chamou a sentinela para fora da porta e um leão para a borda da cama. O leão, mal entrou, começou a farejar para debaixo da cama. A menina levantou-se e foi ver onde o leão estava dando sinal. Chamou o príncipe para ver um dos ladrões que os tinha querido matar. Acudiu a sentinela, que fez sair o ladrão, que ainda fingia de tolo, dizendo:

- Tão bonito! Tão bonito!

Mas levaram-no dali para a prisão, até confessar quem o tinha ali mandado, sendo enforcado com o vassalo. O rei mandou tropa a rodear a casa dos ladrões,, foram todos mortos e encontraram muitas riquezas, que o rei deu aos noivos, que foram muito felizes.

Fonte: Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (À Luz de Velas)

- Onde tem vela, vó? - perguntou Felipinho.

- Embaixo da pia, Lipe! - respondeu a avó, lá do quintal.

Os homens da companhia de luz haviam cortado a energia elétrica daquela casa logo à tarde. Não quiseram nem saber. Não pagou, se danou. E a luz foi cortada. Moravam apenas avó e neto naquela casa de quatro cômodos na periferia da pequena cidade em que moravam. A mãe dele havia morrido de doença ruim. O pai, sabe-se lá onde estava. Sumiu. Ficou para a avó criar o neto. Para isso, lavava roupa para fora. O dinheiro era pouco, mas dava para o pão. Sem pão, ninguém vive. E Felipinho adorava pão fresco, margarina e café coado em coador de pano, quente e doce.

Lipe, ou Felipinho, depois da escola. com seus dez anos de idade, catava latinhas de refrigerante nas ruas do bairro e fazia pequenos serviços para os vizinhos. Queria ser médico quando crescesse. Achava bonito. Gostava de ver Dr. House na tevê. A avó embarcava no sonho, sonhava junto. Ter um sonho é vital. Persegui-lo é surreal. O tempo daria conta de Lipe e de seu sonho? Não sei, o tempo não fala o tempo todo. De vez em quando, sisudo, se cala e custa a passar. Aliás, falando em passar, dona Nica e Felipinho passariam o Natal daquele ano à luz de velas. Romântico?

Era véspera de vinte e cinco de dezembro. Caía a noite. A avó sentou-se ao lado do neto e lhe fez um doce afago nos cabelos.

- Acende as vela, Lipe, enquanto a vó faz arroz pra nós, "filho"...
 
Felipinho, devagar, com se acendesse uma esperança, alumiou a casa dos dois. Depois, na mesa da cozinha mesmo, com o barulho da avó refogando o arroz e cantando um samba antigo do Paulinho da Viola, Lipe escrevia. Sua avó nem viu que aquela carta era um gesto de agradecimento. As sombras na cozinha, cuidadosamente formadas pela luz amarelada das velas acesas por Felipe, indicavam a poeticidade da noite. Lipe agradecia pela chance de ter a avó como mãe, a única que conhecera. Deixaria essa cartinha na meia furada, posta do lado de fora da janela. Não, não para o Papai Noel, que, assim como seu pai, nunca aparecera. Escrevia para o Menino Jesus, tão bonito, que ele via no presépio da praça ao fim do mês de novembro, sempre que voltava da escola. Logo, à luz de velas, arroz com carne moída e suco, ceariam. 
-------------
Fontes:
O Autor
Imagem = http://comofas.com

Jorge Luiz Borges (O Livro)

Aula proferida na Universidade de Belgrano 1978

Dentre os instrumentos inventados pelo homem, o mais impressionante é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da visão; o telefone uma extensão da voz e finalmente temos o arado e a espada, ambos extensões do braço. O livro, porém, é outra coisa. O livro é uma extensão da memória e da imaginação. Em César e Cleópatra de Shaw, quando se fala sobre a biblioteca de Alexandria , os livros são descritos como a memória da humanidade. O livro é isto e muito mais, é também a imaginação. O que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Afinal que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado ? A função do livro é recordar.

Pensei, certa vez, em escrever uma história do livro, não do ponto de vista físico. Os livros não me interessam fisicamente - sobretudo as coleções dos bibliófilos, em geral imensas -, mas sim como eles podem ser avaliados ao longo do tempo. Splenger me antecipou, em seu livro "Decadência do Ocidente" onde têm páginas preciosas sobre o livro. Com alguma pitada pessoal penso ater-me aqui ao que disse Splenger

Os antigos não professavam nosso culto ao livro - coisa que me surpreende. Para eles o livro é um sucedâneo da palavra oral. A frase latina "Scripta manet, Verba volans" não quer dizer que a palavra oral seja volátil, mas sim que a palavra escrita permanecerá e está morta. Por sua vez a palavra oral tem algo de sutil, volátil, sublime e sagrado, como disse Platão. Todos os mestres da humanidade foram, curiosamente, mestres orais .

Vejamos o primeiro caso: Pitágoras. Sabemos que, deliberadamente, Pitágoras nada escreveu. Pitágoras não escreveu porque não quis. Não escreveu porque não desejava limitar-se à palavra escrita. Sentiu sem dúvida que a letra mata mas o espírito vivifica; o que, mais tarde, será citado na Bíblia. Ele deve ter sentido isto, e não quiz limitar-se à palavra escrita, por isto Aristóteles nunca fala de Pitágoras, mas sim dos Pitagóricos. Nos disse por exemplo que os pitagóricos professavam a crença, o dogma, do eterno retorno, que mais tarde foi redescoberto por Nietzsche. Ou seja, a idéia do tempo cíclico, que foi refutada por Santo Agostinho em Cidade de Deus. Santo Agostinho nos diz, através de uma linda metáfora, que a cruz de Cristo nos salva do labirinto circular dos estóicos. A idéia de um tempo cíclico também foi revista por Hume, Blanqui e tantos outros.

Pitágoras não escreveu porque não quis. Queria que seu pensamento permanecesse vivo além de sua morte física, na mente de seus discípulos. Daqui veio aquele ditado (eu não sei grego, tratarei de dizê-lo em Latim) "Magister dixit" (o mestre assim disse ). Isto não significa que estivessem limitados ao que o mestre havia dito, ao contrário, afirmavam a liberdade de continuarem refletindo o pensamento original do mestre.

Não sabemos se Pitágoras foi o iniciador da doutrina do tempo cíclico, porém sabemos que seus discípulos a professavam. Pitágoras morre fisicamente e eles, por um tipo de transmigração - e isto teria agradado a Pitágoras - seguem pensando e repensando seu pensamento, e quando se reprovam ao dizer algo novo, se refugiam naquela fórmula: "assim disse o Mestre - Magister Dixit."

Porém temos outros exemplos. Platão, em um exemplo ilustre, disse que os livros são como esfinges (pode ter pensado em esculturas ou em quadros), que nós cremos que estão vivas, porém se lhes perguntamos sobre alguma coisa elas nada respondem. Então para corrigir esta mudez dos livros, ele inventa o diálogo platônico. Digamos que Platão multiplica-se em vários personagens: Sócrates, Gorgias e os demais. Também podemos pensar que Platão queria consolar-se da morte de Sócrates imaginando que este seguiria vivendo em seus Diálogos. Frente a qualquer questão Platão perguntava-se: "O que Sócrates pensaria a respeito disto?". Deste modo Platão imortalizou Sócrates, que também não deixou nada escrito e foi um mestre oral.

Sabemos que Cristo escreveu uma única vez algumas palavras na areia que o vento acabou apagando. Ao que se saiba não escreveu mais nada. Buda também foi um mestre oral e só ficaram suas prédicas. Temos uma frase de Santo Anselmo "um livro nas mãos de um ignorante é tão perigoso quanto uma espada nas mãos de uma criança" . Isto é o que se pensava dos livros.

No Oriente existe ainda um conceito de que um livro não deve revelar as coisas, um livro deve, simplesmente, ajudar-nos a descobri-las. Apesar de minha ignorância do Hebraico, estudei algo da Cabala. Li as versões inglesas e alemãs do Zohar (O Livro do Esplendor), El Sefer Yezira (O Livro das Relações). Sei que estes livros não estão escritos para serem entendidos, porém para serem interpretados , são desafios para que o leitor continue a pensar.

A antiguidade clássica não teve este nosso respeito pelo livro, embora saibamos que Alexandre da Macedônia tinha, em baixo do travesseiro, a Ilíada e a espada, estas duas armas. Havia grande respeito por Homero, porém não era considerado um escritor sagrado no sentido que temos hoje pela palavra. Não se pensava na Ilíada e na Odisséia como textos sagrados, eram livros respeitados, porém podiam ser criticados. Platão pode expulsar os poetas de sua República sem cair em suspeita de heresia.

Do testemunho dos antigos contra os livros podemos apontar um muito curioso de Sêneca. Em suas admiráveis cartas a Lucílio, tem uma dirigida contra um indivíduo muito vaidoso, de quem se diz que tem uma biblioteca de cem volumes; e quem - pergunta Sêneca - pode ter tempo para ler cem volumes ?. Por outro lado hoje se apreciam bibliotecas grandes.

Na antiguidade tem uma coisa de difícil compreensão, que não se parece com nosso culto ao livro. O livro sempre é visto como uma extensão da palavra oral, porém surge no Oriente um conceito novo, de todo estranho à antiguidade clássica: a do livro sagrado . Vamos tomar dois exemplos, começando pelo mais recente: os muçulmanos. Eles pensam que o Alcorão [Do ár. al-qurAYn, 'o que deve ser lido.] é anterior à criação, anterior à língua árabe; é um dos atributos de Deus, não é uma obra de Deus, é como se fosse sua misericórdia ou sua justiça. No Alcorão se fala de uma forma muito estranha do livro original. Este livro é um exemplar do Alcorão escrito no céu. Talvez venha a ser o arquétipo ideal de Platão do Alcorão, e este mesmo livro, nos diz o Alcorão, que está escrito no céu, que é o atributo de Deus e anterior à criação. Assim nos dizem os suleimans, os doutores muçulmanos.

Temos outros exemplos mais próximos de nós: A Bíblia, ou mais precisamente o Tora ou o Pentateuco. Acredita-se que estes livros foram ditados pelo Espírito Santo. Isto é um fato interessante: atribuir a livros de diversos autores e épocas diferentes a um único espírito, porém a própria Bíblia diz que o Espírito sopra de onde quer. Os hebreus tiveram a ideia de juntar obras literárias de diversas épocas e formar com elas um único livro, cujo título é Tora,ou Bíblia em Grego. A todos estes livros atribuem a um único autor: O Espírito A Bernard Shaw perguntaram uma vez se acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia. Ele respondeu: Todo livro que vale a pena ser lido foi escrito pelo Espírito. Eu acrescento: Todo livro que vale a pena ser relido foi escrito pelo Espírito.

Vale dizer, um livro tem que ir além da intenção de seu autor. A intenção do autor é uma pobre coisa humana, falível, porém o livro tem que ir além. Don Quijote por exemplo, é mais do que uma sátira aos livros de cavalaria. É um texto absoluto em que nada é improvisado. Pensemos nas consequências desta idéia. Por exemplo se digo:

Correntes águas, puras, cristalinas,
árvores que estais refletindo nelas
verde prado, cheio de frescas sombras.

É evidente que os três versos são de onze sílabas. Foi proposta pelo autor, assim o quis.

Porém o que é isto comparado com uma obra escrita pelo Espírito, o que é isto comparado com o conceito de Divindade, que se curva frente à literatura e dita um livro. Neste livro nada poderia ser ao acaso, tudo teria que estar justificado, letra a letra. Entende-se, por exemplo que o início da Bíblia: Bereshit bara Elohim, começa com a letra B, porque isto corresponde a bendizer. Trata-se de um livro em que nada é ao acaso, absolutamente nada. Isto nos leva à Cabala, nos leva ao estudo das letras de um livro sagrado ditado por uma divindade, que vem a ser o contrário do que pensavam os antigos. Estes pensavam na musa de um modo bastante vago. "Canta, musa, a cólera de Aquiles" diz Homero no princípio da Ilíada. A musa tem, aqui, o seu correspondente à inspiração. Por outro lado pensar no Espírito é pensar em coisa mais concreta, mais forte: Deus, que nos condescende a literatura. É Deus que escreve um livro; e neste livro nada é ao acaso, nem o número de letras nem a quantidade de sílabas de cada versículo, nem o fato de que possamos fazer jogos de palavras com as letras, de que possamos considerar o valor numérico das letras. Tudo foi previsto. O segundo grande conceito dos livros - repito - é que ele pode ser uma obra divina. Talvez isto esteja mais próximo daquilo que agora sentimos do que da ideia que os antigos tinham dos livros, quer dizer, o livro é um mero sucedâneo da palavra oral.

Logo que cai a crença do livro sagrado ela é substituída por outras crenças. Por exemplo a de que cada país está representado por um livro. Recordemos que os muçulmanos dominam aos judeus, o povo do livro; recordemos a frase de Heinrich Heine sobre uma nação cuja pátria era um livro: a Bíblia dos judeus. Temos então um novo conceito, o de que cada país tem pode ser representado por um livro, ou ao menos por um autor, que pode ser autor de muitos livros.

É curioso, não creio que isto tenha sido observado antes, que os países elejam para seus representantes autores que não se parecem com eles. Alguém poderia pensar, por exemplo, que a Inglaterra poderia escolher Doutor Johnson como seu representante. Porém não! A Inglaterra escolheu Shakespeare, e Shakespeare é, digamos assim, o menos inglês dos escritores ingleses. O típico da Inglaterra é o Understatement, que significa dizer um pouco menos sobre as coisas. Ao contrário, Shakespeare tendia à hipérbole na metáfora e não nos surpreenderia que Shakespeare tivesse sido, por exemplo, italiano ou judeu. Outro caso é o da Alemanha. Um país admirável, tão facilmente fanático, que elege precisamente um homem tolerante, que não é fanático, e a quem o conceito de pátria não é demasiadamente importante, elege Goethe. A Alemanha é representada por Goethe.

Na França não se elege um autor, porém temos Victor Hugo. Desde logo, sinto uma grande admiração por Hugo, porém Hugo não é tipicamente francês. Hugo é estrangeiro na França, com este estilo decorativo, com estas vastas metáforas, não é típico da França.

Outro caso ainda mais curioso é o da Espanha. A Espanha poderia ter sido representada por Lope, Calderón, por Quevedo, porém a Espanha é representada por Miguel de Cervantes. Cervantes é um homem contemporâneo da Inquisição, porém é tolerante, é um homem que não tem nem as virtudes nem os vícios espanhóis. É como se cada país pensasse ser representado por alguém diferente dele mesmo, por alguém que possa ser, um pouco, uma espécie de remédio, uma espécie de "triaca" , um antídoto contra seus defeitos.

Nós, os argentinos, poderíamos ter escolhido Facundo de Sarmiento, que é nosso livro, porém não; nós com nossa história militar, nossa história de espada, elegemos como livro a crônica de um desertor, elegemos el Martín Fierro, que bem merece ser eleito como livro. Como pensar que nossa história está representada por um desertor da conquista do deserto? Porém, assim é, como se cada país sentisse esta necessidade. Vários escritores escreveram de modo brilhante sobre os livros. Quero referir-me a uns poucos. Primeiro me concentrarei em Montaigne, que dedica um de seus ensaios ao livro. Neste ensaio tem uma frase memorável: Não faço nada sem alegria. Montaigne mostra que o conceito de leitura obrigatória é um conceito falso. Diz que ao encontrar uma passagem difícil em um livro, deixa-o: porque vê na leitura uma forma de felicidade.

Recordo-me que há muitos anos realizou-se uma pesquisa sobre o que é a pintura. Perguntaram à minha irmã Norah e ela respondeu que a pintura é a arte de mostrar com alegria as formas e as cores. Eu diria que a literatura também é uma forma de alegria. Se lemos alguma coisa com dificuldade, o autor fracassou. Por isto considero que um escritor como Joyce essencialmente fracassou, porque sua obra requer esforço para ser lida. Uma leitura, um livro, não deve demandar esforços pois a felicidade não demanda sacrifícios. Penso que Montaigne está certo. Montaigne enumera os livros de que gosta. Citando Virgílio, ele diz preferir as Geórgicas à Eneida porém isto não é importante. Montaigne fala dos livros com paixão, diz que, embora os livros sejam uma forma de felicidade, são contudo um lânguido prazer.

Emerson o contradiz. Eis um outro grande trabalho sobre o livro. Nesta conferência Emerson diz que uma biblioteca é uma espécie de salão mágico. Neste salão estão presos os melhores espíritos da humanidade, porém esperam nossa palavra para sair de sua mudez. Temos que abrir os livros e então eles despertam. Diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais.

Emerson diz que podemos contar com a companhia dos melhores homens que a humanidade já produziu, porém que os evitamos e preferimos ler comentários e críticas e não o que dizem os originais. Fui professor de literatura inglesa durante vinte anos, na Faculdad de Filosofia y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Sempre digo aos meus alunos que tenham pouca bibliografia, que não leiam as críticas, que leiam diretamente os livros. Talvez entendam pouco, porém sempre terão o gozo de ouvir a voz de alguém. Eu diria que o mais importante de um autor é sua entonação, o mais importante de um livro é a voz do autor, esta voz que chega até nós. Dediquei parte de minha vida às letras, e creio que a leitura é uma forma de felicidade. Outra forma de felicidade menor é a criação poética, ou aquilo a que chamamos de criação, que é uma mistura de esquecimento e lembrança do que lemos. Emerson concorda com Montaigne sobre o fato de que devemos ler somente aquilo que nos agrada e que um livro tem que ser uma forma de felicidade. Devemos tanto às letras. Eu procuro mais reler do que ler. Creio que reler é mais importante, embora para se reler seja necessário ter lido uma primeira vez.

Eu tenho este culto ao livro. Posso dizê-lo de um modo tolo e não quero ser tolo, quero que seja uma confidência que faça a cada um de vocês, não a todos, porém a cada um, pois todos é uma abstração e cada um é concreto. Continuo achando que não sou cego pois prossigo comprando livros e enchendo minha casa deles. Outro dia presentearam-me com uma edição de 1966 da Enzyklopadie Brockhaus e eu senti a presença deste livro em minha casa, senti-a como uma forma de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com os mapas e gravuras que não posso ver e, apesar disto, o livro estava ali. Eu o sentia como uma atração amistosa. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que nós, humanos, temos.

Dizem que o livro desaparecerá, eu creio que é impossível. Perguntam: que diferença pode haver entre um livro e uma revista ou um disco? A diferença é que uma revista é para ser lida e esquecida, um disco se ouve, e mesmo assim, para o esquecimento, é uma coisa mecânica e portanto frívola. Um livro se lê para a memória. O conceito de livro sagrado, do Alcorão, da Bíblia e dos Vedas - onde também se diz que os Vedas criaram o mundo - pode estar ultrapassado, porém o livro tem uma espécie de santidade que devemos cuidar para que não se perca. Pegar um livro e abri-lo guarda a possibilidade do fato estético. Quais são as palavras inseridas no livro? O que são estes símbolos mortos? É simplesmente um cubo de papel e couro, com folhas. Porém se o lermos ocorre uma coisa rara, creio que ele muda a cada momento. Heráclito disse (e tenho repetido isto em demasia) que nada se banha duas vezes no mesmo rio. Nada se baixa duas vezes no mesmo rio porque as águas mudam porém, o mais terrível, é que nós mesmos não somos menos fluídos que um rio.

Cada vez que lemos um livro, o livro se modifica, a conotação das palavras é outra. Além disto, os livros estão carregados de passado. Tenho falado contra a crítica e vou aqui ser contraditório (porém o que me importa ser contraditório). Hamlet não é exatamente o Hamlet que Shakespeare concebeu no início do século 17. Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe e de Bradley. O mesmo se passa com o Quijote. Igual se sucede com Lugones e Martínez Estrada, o Martin Fierro já não é o mesmo. Os leitores acabam enriquecendo o livro. Se lemos um livro antigo, é como se o tivéssemos lido durante todo o tempo transcorrido entre o dia que foi escrito e o nosso tempo. Por isto convém manter o culto ao livro. O livro pode estar cheio de erratas, podemos não concordar com as opiniões do autor, porém ele conserva algo de sagrado, de divino, não de modo supersticioso, mas com o desejo de encontrar a felicidade, de encontrar a sabedoria. Isto é o que queria dizer-lhes hoje.
 Buenos Aires, 24/05/1978

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

domingo, 31 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (O Violão Primaveril)

Para o jovem homem, sobrara "apenas" o violão. Não sabia bem de quem tinha sido, mas não isso não lhe importava. Sem casa, sem pouso, onde desse, parava e tocava, encantando quem o ouvia.

Seu velho chapéu, já meio puído, curtido pelo sol e pela chuva que o moldavam a seu modo, seu terno chapéu lhe servia de caixa e, dentro dele, tilintavam as moedas que o povo lhe dava. "Dim-dim"…

Um dia tivera uma casa com pessoas a quem chamou de família. Hoje, com seu jeans surrado e sua camisa meio aberta, faltando alguns botões, botas de couro falso e o já famoso chapéu, tocava.

Dormia em hotéis, comia em botecos, mas era muito feliz. De carona em carona, corria o mundo e, de vez em quando, olhava o azul e pensava na história infantil A festa no céu. Seria aquele sapinho?

Tinha pensado em se casar, ter mulher e filhos, mas vivia para as cordas do violão, que o amarraram à música de um jeito que nem ele mesmo podia explicar. Era amante dos sons, tocador ao léu.

Um dia, numa crise de "público" pagante, passando fome, quase pensou em vender o violão para comer, mas, contando com a caridade de um velho mendigo, almoçou com ele e não vendeu nada.

O dono das cordas era ele. Ninguém o tiraria de si. Tocava e cantava onde, quando, como e para quem o quisesse ouvir. Se não tivessem dinheiro, tocaria também. Não tinha "frescura", mas frescor.

De uns tempos para cá, notou que seu violão já não era o mesmo. Crescia em torno dele um musgo bem verde e, de dentro da caixa de ressonância do amigo, saíam ramos que ameaçavam florir.

Desesperado, foi até o luthier mais próximo, que morava na cidade vizinha. Não teve jeito. Seu violão primaverava numa velocidade incrível. O luthier dera o caso como impossível. O que faria ele?

Voltando para o hotel em que estava, de volta à cidade provisoriamente sua, decidiu-se pelo sensato e, num belo canteiro da praça central, deixou seu violão florido. Duas semanas depois, cadê? Não se via mais o violão que fora deixado lá. Completamente em flor, encoberto para sempre, o violão ficou sem dono, e o dono das cordas acordou. Arrancou algumas flores da boca do pinho, agora encantado e, cheirando-as bem, resolveu voltar para sua casa.

Chegando a ela, viu que todos o abraçavam, comovidos. Ele estava de volta. Mais velho, mas belo, primaverava também. Seu violão já era um sonho que ficou para trás, Porém, de vez em quando, naquela praça de uma cidade de que o nome sequer se lembrava, alguém escutava uns acordes que vinham do jardim. Primavera.

Fontes:
O Autor
Imagem = http://elidebemcomavida.blogspot.com

Contos Populares do Tibete (O Tesouro Perdido)

O sol poente se afundava detrás dos picos gelados das montanhas, tornando-os vermelhos como brasas. Nos terraços das casas de Lhasa, os meninos faziam subir seus papagaios de vivas cores, presos a fios polvilhados de pó de vidro. Corriam e saltavam, entrecruzando-se — e os papagaios iam seguindo seus movimentos —, e riam, em alvoroço, tentando cortarem-se, uns dos outros, os fios dos papagaios. Um menino de uns seis anos estava sentado junto ao tio, um monge vestido de hábito marrom. Observavam o papagaio do menino subindo cada vez mais no céu. Mantido pelo vento, estava tão alto, que parecia que não se movia. Sem deixar de olhar o papagaio, o menino disse:

— Me conte um conto, tio.

O monge sorriu ternamente.

— Uma história antiga, vamos!

E o monge começou, então:

"Um pai disse a seu filho:

— Vou morrer logo, meu filho. Leve o meu ouro para a sua casa. É seu. Mas lembre-se de que não deve confiar em ninguém. Nem sequer na sua esposa.

O pai acreditava que o filho — cujo nome era Sonam — soubesse seguir seu conselho e que compreendesse como acontecem as coisas no mundo.

Sonam tinha um grande amigo, de nome Tamchu. Quando crianças, tinham ido junto à escola, e, todas as tardes, brincavam do jogo de volante com o pé. Tamchu vivia na aldeia próxima, com a mulher e dois filhos pequenos.

Certo dia, Sonam decidiu sair em peregrinação ao mosteiro santo. Antes de partir, lembrou-se de que, quando vivo, o pai lhe havia dito que não confiasse em ninguém. Mas, ao pensar no amigo Tamchu, não pôde admitir que as palavras do pai devessem ser aplicadas também a este. Não, a Tamchu, não. E assim, levou suas duas bolsas de pepitas de ouro à casa do amigo e lhe disse:

— Tamchu, por favor, guarde-me o ouro enquanto eu estiver fora. Este é o ouro que meu pai me deixou, ao morrer.

Tamchu respondeu:

— Oh, sim, naturalmente. Guardarei o seu ouro com muito cuidado, e, quando voltar de sua peregrinação, você aqui o encontrará. Você não tem por que se preocupar. Somos bons amigos, não somos?

— E assim — continuou o monge —, passou-se um ano e Sonam voltou da sua peregrinação. Foi à casa de Tamchu e pediu ao amigo:

— Você pode me devolver o ouro, Tamchu?

— Oh, eu sinto tanto, Sonam! Aconteceu uma desgraça, uma grande desgraça! O ouro se converteu em areia! — respondeu Tamchu, olhando o amigo com cara de quem estava desesperado.

Mas, Sonam, enquanto o amigo lhe contava o estranho acontecimento, não pareceu surpreso e, depois de alguns minutos de silêncio, disse:

— Está bem, Tamchu, não se preocupe. Você fez tudo o que pôde para vigiar o meu ouro.

E os dois amigos comeram juntos em paz, como se a perda do ouro tivesse sido esquecida por completo. Ao entardecer, Sonam disse ao amigo:

— Tamchu, eu gostaria de cuidar dos seus filhos durante uns meses, já que não tenho minha própria família. Gostaria de dar-lhes boa comida e boa roupa. Eles seriam muito felizes em minha casa.

— Muito boa idéia, Sonam!, disse Tamchu, pensando:

"Embora ele tenha perdido todo o seu ouro nas minhas mãos, ainda quer cuidar de meus filhos. Sem dúvida, é uma ótima pessoa". E, assim, acrescentou: Naturalmente, Sonam. Você pode levar meus filhos pelo tempo que quiser.

Sonam levou as crianças para a sua casa e tratou deles muito bem. Mas comprou dois macaquinhos e pôs neles os nomes dos meninos. Durante os dias que se seguiram, adestrou os monos para que, quando ele chamasse: "Tendzin, venha aqui!", o macaquinho maior corresse para ele; e, quando chamasse: "Thupten, venha aqui!", o macaquinho menor também fosse em direção a ele. Os macaquinhos entenderam muito bem e aprenderam muito rapidamente.

Passado o tempo, quando Tamchu foi buscar os filhos, Sonam mostrou uma cara muito triste ao amigo:

— Oh, eu sinto tanto, Tamchu — disse. Aconteceu uma desgraça, uma grande desgraça! Seus filhos se converteram em macacos!

Tamchu ficou muito triste e chamou os filhos por seus nomes. Imediatamente, apareceram os dois macaquinhos e correram para ele. Tomaram a mão de Tamchu e dançaram à sua volta, como se fossem menininhos. Tamchu ficou desolado e perguntou ao amigo:

— Sonam, que podemos fazer? Como podemos fazer com que estes macacos se convertam de novo em meus filhos?

Sonam mostrou-se pensativo por uns instantes e depois respondeu:

— Isso é fácil, meu amigo, mas vamos precisar de muito ouro,

— De quanto? — perguntou Tamchu.

— De umas duas bolsas de pepitas de ouro, pelo menos,

— Tão logo possa, trarei as bolsas de ouro — disse Tamchu, e saiu correndo para sua casa.

Mais tarde, voltou e deu o ouro ao amigo. Sonam o pegou e disse a Tamchu que esperasse enquanto ele subia ao andar de cima.. No fim de alguns momentos, desceu.

— Aqui estão, Tamchu.. Transformei os macacos em sereshumanos de novo, em seus filhos..

Tamchu ficou encantado por recobrar seus filhos, mas olhou com vergonha para Somam. Logo depois, porem, os dois amigos caíram no riso.'"

Ao terminar a história, o próprio monge começou a rir, ao ver como o fio do papagaio de seu sobrinho havia sido cortado enquanto escutava o relato. Ambos contemplaram o papagaio que flutuava sobre o vale e voava para os dourados telhados de Potala

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

sábado, 30 de janeiro de 2016

Contos Populares Portugueses (Os Dois Soldados)

Havia dois rapazes que eram muito amigos. Um era um ano mais velho do que o outro, de modo que, quando o mais novo sentou praça, já o mais velho tinha um ano de serviço militar. Eram muito bem comportados e andavam sempre juntos. Saiu o mais velho da praça, e voltou passados treze meses a visitar o amigo. Era um dia em que este estava de serviço ao quartel. O soldado pediu ao seu capitão dispensa do serviço, e logo que este soube que era para acompanhar o seu velho amigo e patrício dispensou-o do serviço, mas não o dispensou de recolher a certas horas.

Foram os dois amigos passear e entraram numa casa de comidas e bebidas. Conversaram, conversaram, até que foram avisados pelo dono da casa de que eram horas de fechar o estabelecimento.

- Pois que horas são?

- Meia-noite.

Ficou o soldado muito aflito: era a primeira vez que apanhava um castigo. Saiu da casa e o seu amigo ficou.

Próximo do quartel viu ele um sujeito montado num cavalo e notou que o cavalo trazia as patas enroladas em trapos. Espreitou.

O sujeito aproximou-se de uma casa alta, de cuja janela desceram pequenos fardos, mas muito pesados, e, no fim, uma senhora, que desceu por uma escada de corda. Em seguida, ela montou com o sujeito no cavalo, e este partiu a grande galope. O soldado trazia consigo a baioneta e foi seguindo o cavalo. A curta distância parou o cavalo, e o cavaleiro ordenou à senhora que se apeasse. Ela assim fez.

- Faça o ato de contrição, porque vai morrer - disse ele.

- Eu não fiz mal nenhum, por que razão me quer matar?

- Pois supunha que eu casasse consigo? Eu só queria o seu dinheiro. Agora estou governado, mas é preciso que morra aqui!

E, dizendo estas palavras, avançou para a senhora. A este tempo estava próximo o soldado, que arrancou a sua baioneta e matou o indivíduo, que era um terrível ladrão.

Em seguida, o soldado montou no cavalo a senhora e as malas e foi levar tudo à casa da infeliz. Esta deu ao soldado um lenço com moedas de ouro e pediu-lhe que todos os dias às onze horas lhe passasse defronte da casa. Ora a menina era filha de um mercador muito rico.

Dirigiu-se o soldado para o quartel ao romper da manhã e logo foi avisado pela sentinela de que o capitão estava muito zangado por ele faltar à hora do recolher.

Apresentou-se o soldado ao capitão, e tais foram as desculpas e tão bom era o seu comportamento, que não foi castigado.

No dia seguinte, pelas onze horas, passou o soldado defronte da janela do mercador, e a filha deste atirou-lhe outra bolsa de dinheiro, que ele apanhou. Repetiu-se isto mais vezes, até que o soldado entendeu que fazia um pecado em receber aquele dinheiro. Dirigiu-se a uma igreja e encontrou um cardeal, a quem pediu que o ouvisse de confissão, e nesta contou tudo. O cardeal aconselhou-o a que apanhasse o dinheiro, visto que a senhora lho dava. No outro dia, passou o soldado defronte da loja do mercador e viu lá o cardeal, que o chamou. Estiveram conversando por algum tempo, o suficiente para o soldado ficar a saber que o cardeal era irmão do mercador, e portanto tio da senhora que ele salvara da morte.

Logo que foram horas de jantar, foi o soldado convidado a jantar, convite que aceitou.

No fim do jantar, disse o cardeal para o irmão:

- Se a tua filha fosse salva por um homem, que farias tu?

O mercador respondeu:

- Se esse homem fosse solteiro, dava-lhe a minha filha em casamento.

Então o cardeal pediu ao irmão que desse a sua filha em casamento ao soldado.

Deram-se todas as explicações que o caso exigia e o nosso soldado casou com a filha do mercador.

Fonte: Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XXIII, final

Angela Lago (2000) retrata o já conhecido em um novo contexto. Na verdade, a escritora não reescreveu nenhum conto de fadas, mas a forma com que os personagens, até então perenizados em seus papéis e posturas sociais, assumem papéis inesperados é surpreendente. Tanto que o futuro príncipe, chamado Seinão, é considerado um menino zonzo, indeciso e que não sabe o que realmente quer da vida. Além disso, não possui sangue real, mas apaixona-se pela princesa.

A princesa não é nada convencional em suas atitudes, ou seja, é uma jovem independente, inteligente e debochada. E, por não levar a sério o amor de Seinão, propõe a ele uma tarefa impossível em troca de sua mão em casamento. Nessa tarefa não há dragões e nem ao menos princesas que dormem sonos seculares.

Seinão deveria ir não sei onde e buscar não sei o quê. De acordo com a determinação dessa prova, a princesa não queria se casar com o moço, aliás, ela escolheria quem seria seu marido. Decisões impossíveis há séculos atrás, uma vez que a mulher era condicionada a aceitar as ações do destino, as quais significavam as decisões da sociedade patriarcal.

O futuro príncipe foi submetido a uma missão que exigia coragem, situação semelhante imposta aos demais príncipes de contos precedentes, que, na verdade, representavam a coragem de forma simbólica, ou seja, eram os homens certos para um certo momento. Assim, ele, o Seinão, andou em inúmeras direções e foi até o inferno. Chegando lá, começou a trabalhar como atualizador dos arquivos e pastas de pecados e pecadores. Em troca, receberia a encomenda da princesa, que ele mesmo não sabia o que era.

De certa forma, essa obra retoma a ideia de que os príncipes do passado também foram até o inferno para conquistar o amor da princesa. No entanto, um certo dia, o diabo dispensou o garoto com um embrulho nas mãos, assim dizendo: “É não sei o quê, mas você não pode abrir, pois se abrir deixa de ser” (2000, p. 18).
 
O menino chegou vitorioso ao palácio entregando o “não sei o quê” à princesa, uma vez que a sua tarefa era ir buscá-lo. Agora, Seinão está muito bem casado com a princesa que não o queria, e o embrulho segue embrulhado.

Nessa história, o ambiente é o mesmo das narrativas já conhecidas, uma vez que havia um palácio e os sábios, conselheiros da princesa. Além disso, apesar de o pretendente da jovem ser desorientado e não possuir sangue real, ele agiu como os demais príncipes, sendo vitorioso em sua missão. Contudo, o diferencial está na atuação da personagem feminina, a qual tem muito em comum com a mulher contemporânea, pois ela se tornou independente, decidida, uma vez que é de sua escolha optar pelo matrimônio ou não. E essa decisão era única e exclusiva da jovem, sendo que os pais dela participaram da narrativa, porém jamais opinaram quanto a sua escolha. Somando-se a isso, a missão atribuída ao futuro príncipe de ir buscar um embrulho era somente um teste para se medir as suas virtudes e talvez, a curiosidade deste, visto que em Amor e psiquê, a personagem feminina não conseguiu ser mais forte que o seu ímpeto curioso e, por isso, ela não foi bem em sua aventura, inicialmente. Seinão mostra-se diferente, tanto que o embrulho que ele traz segue da mesma forma.

A imagem do príncipe Seinão de Angela Lago é bastante parecida com a figura proposta por Liz Lochhead, citada por Izabel Brandão, isto é, a imagem do príncipe que deveria simbolizar a perfeição, a completude e a força do sexo masculino, é massacrada e ironizada pela princesa. Depois de anos a fio reclusa, a princesa passou a se conhecer melhor e a questionar todas as coisas que não entende ou que não preenchem seus pré-requisitos. (LOCHHEAD apud BRANDÃO, 1997, p. 201)                     
Mais de cinquenta anos se passaram desde o grito de basta das feministas que não mais aceitam papéis submissos na ficção e na vida real. Aliás, Laura Cavalcante Padilha tão bem expressou essa ideia, citando em seu artigo a fala de Paula Tavares, escritora angolana: “Eu sinto-me melhor quando grito” (TAVARES apud PADILHA, 1997, p. 67). Laura Padilha ainda afirma que o grito recalcado das mulheres escritoras foram silenciados no passado pelos cordéis da dominação e que Paula Tavares é um exemplo dessa repressão machista contra a escritura e publicação de livros.

Franz já afirmava que “homens e mulheres não poderão reencontrar sua natureza    profunda    senão    no    reconhecimento    e    no    respeito de    sua complementaridade” (1995, p. 262). De acordo com essa visão, os tempos já se mostram renovados, uma vez que hoje, a mulher, a Bela adormecida do passado, não necessita mais de um beijo para acordar. Mas, talvez, de um beijo para dormir, após muito tempo estar acordada, escrevendo ou re-escrevendo sua história, numa trajetória histórica em que assumiu inúmeros papéis, que variaram desde o de bruxa até o de fada. No entanto, o mais importante no momento é escrever de próprio punho a narrativa de sua vida e nela mostrar que a Bela não se encontra mais em sono profundo e que papéis assumidos em remotos tempos não mais condizem com sua postura contemporânea. É evidente que nesse contexto a emancipação feminina não diz respeito somente à mulher, mas à libertação de um sistema histórico de dominação masculina.

Foi graças a mulheres de diferentes épocas como Beaumont, Carter, Atwood, Drabble, Etxebarría, Lago, Warner, Tatar, Lochhead, Franz, entre outras que, pensando a personagem feminina ao longo de uma incessante caminhada de sacrifícios e lutas, conseguiram desmistificar a representação determinada pelos preceitos masculinos. Tanto que na atualidade vêem-se a Julie, as Angelas, as Margarets, a Lucía, a Marina, a Maria, a Liz, a Marie-Louise, filhas, irmãs ou mulheres de quem? A ninguém interessa responder esta questão porque elas possuem as suas próprias sombras, não precisam representar que são sombras de figuras masculinas. Elas representam o novo feminino que se abstraiu de modelos passados. A imagem de donzela reprimida, a menina ignorante ou ingênua (como em A bela adormecida) ou o extremo, a bruxa perversa, não se encaixa mais em cenários contemporâneos. Visto que ao longo deste percurso, que pode ser caracterizado como feminino, muitas transformações aconteceram, especialmente relacionadas à postura ingênua da mulher. E essa mudança gradativa e contínua pode ser muito bem representada pelas personagens de Carter, Drabble e Etxebarría, entre outras.

Hoje, fruto de reivindicações, lutas, guerras, conquistas são colhidas. Sendo acertado afirmar que a emancipação da figura feminina, enquanto escritora, personagem e membro social, é parte da emancipação humana, o que deve resultar no equilíbrio almejado de saberes por ambos os sexos. Desse modo, homens e mulheres podem viver em harmonia os seus verdadeiros papéis em contos de fadas ou na vida real, retratando os novos tempos, desde que saibam respeitar os seus espaços e as suas próprias individualidades.

                           CONSIDERAÇÕES FINAIS
                            
É sabido que os contos existem desde o surgimento da humanidade, contribuindo para moldar a sociedade em seu tempo e valores. O curioso é a influência que estas narrativas exercem sobre a estrutura psicológica e social das pessoas. Tanto que, ainda hoje, muitos sonham em ser príncipes e princesas, reis e rainhas, além de desejarem viver em um conto de fadas, por mais que seja através de outros meios. Como exemplo disso, há os concursos de beleza em que a mulher vive um conto de fadas na contemporaneidade.

No entanto, o que se observa na constituição desses desejos é que as características dos personagens sofreram profundas transformações. Narrativas que correspondem a modelos alinhavados e costurados em séculos antes de Cristo, ainda circulam, no entanto percebe-se que moldes de príncipes-heróis e princesas– indefesas desatualizaram-se em meio à evolução da humanidade.

É bem verdade que a mulher ainda sonha em ser princesa ou rainha, mas com uma condição: ser normal. Nada de incorporar uma Madre Tereza de Calcutá. Aliás, essa exigência fazia parte do passado, em que a mulher deveria ter uma boa formação religiosa, que se estendia a ser uma boa filha, esposa, mãe, mulher devota. Essa formação já não consta mais dos manuais de conduta feminina.

Desde os séculos IX a XIII, com a obra Sendebar, de Sendabad, a figura da mulher permaneceu inerte, sem personalidade própria, em seus papéis, enquanto bruxa, madrasta, fada, princesa ou rainha, e essa perspectiva feminina foi disseminada também no século XIX pelos contos dos Irmãos Grimm, vindo somente a ser repensada em meados do século XX, quando a recomposição da personagem feminina passou a ser estruturada sob um novo enfoque, consoante com a ótica feminista.

Percebe-se, realmente, com a obra Sendebar, ou também chamada de O livro dos enganos das mulheres que a mulher passou a ser lograda, enganada em seu papel, como traiçoeira, falsa, má. E, para desfazer esses enganos, há muito registrados e disseminados através da cultura e entre as culturas, Bettelheim e Clarissa Pinkola Estés comprovaram que todo ser humano pode ser bom e mau, sendo que essa variação torna-se comum quando o mesmo interage no meio em que vive, uma vez que estes dois pólos opostos habitam o consciente humano.

Anteriormente a Bettelheim e Pinkola Estés, escritores como Basile, Perrault, Grimm, Romero divulgaram e persistiram na velha imagem do mito feminino, anjo ou demônio, que, na verdade, eles, como homens escritores, desejavam perpetuar, uma vez que a sociedade feminina era moldada de acordo com os ditames masculinos.

No entanto, movimentos começaram a se formar contra a discriminação feminina, ainda quando os folhetins estiveram em voga e os contos ultrapassaram a oralidade dos lares para alcançarem as ruas. Na verdade, as mulheres que começaram a se reunir contra o poder asfixiante patriarcal, viram-se como soldados que tomavam a frente e se prostravam diante de um pelotão extremamente armado com valores excludentes e preconceituosos.

Nessa batalha, muitas mulheres morreram, outras foram presas ou internadas em hospícios, mas foram raríssimas as que conseguiram driblar a vigilância masculina. Seguiram redigindo seus contos, suas histórias anônimas ou registradas com pseudônimos. Infelizmente, a história mostra que escrever contra a voz patriarcal é como se a princesa lutasse de mãos vazias contra o dragão.

Mesmo contrariando a situação adversa, um movimento se formou. As preciosas somaram forças, registrando as suas vivências, amarguras, desejos nos contos de fadas. Inicialmente, as escritoras divulgavam suas obras a um grupo seleto no interior de seus quartos ou salões.

Essas mulheres ousaram inserir-se em um universo de homens escritores. Algumas iniciaram seus trabalhos auxiliando escritores na redação de livros. Outras traduziram obras de homens, é claro!

Seguidoras de Mme d’Aulnoy continuaram a sua luta em favor das conquistas femininas, apesar de sofrerem constantes humilhações, maus-tratos. Nesse movimento de adesão literária, formado pelas preciosas, mulheres de muitas partes do mundo irmanaram-se a esta causa.

Posteriormente, mulheres de coragem redobrada surgiram, as escritoras que comprovaram que o estereótipo da figura feminina criada pelos homens em nada condizia com a sua realidade. Elas estavam cansadas de usarem máscaras que representavam papéis dissimulados no contexto literário e social.

Obras belíssimas surgiram, à luz da célula-mater oriental Calila e Dimna. Evidentemente que as mulheres escreveram usando pseudônimos, principalmente masculinos, para se protegerem e se inserirem em uma sociedade em que a condição da figura feminina estava subjugada por longo do tempo ao poderio masculino/patriarcalista.

Tristes realidades registradas em Marmoisan ou L’innocent tromperie, Peau d’ours, Le magasin des enfants. Nessas narrativas, as escritoras vestiram suas personagens de homens, soldados, em peles de urso, para serem vistas, valorizadas ou fugirem de freqüentes maus-tratos. Nessas estão os registros de tempos difíceis em que as mulheres eram condenadas a viver na segunda classe, como diria Angela Carter.

No Brasil, em meados do século XIX e XX, escritoras como Júlia Lopes de Almeida, Zalina Rolim, Francisca Júlia da Silva Munster e Alexina de Magalhães Pinto começaram a despertar para o mundo literário, escrevendo para o público infantil.

De outro modo, o reinado das mulheres começou sem mesmo elas se tornarem princesas, sob novo perfil, com Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Mundialmente, Alice e Dorothy já tinham mostrado a nova face feminina.

Essas personagens-protagonistas criadas por Lobato, Carrol e Baum possibilitaram à mulher, na ficção, mostrar a sua real identidade e seu espírito de liderança. Assim, percebiam-se novos rumos quanto ao destino da mulher, enquanto personagem e membro social.

Visto que, em meados dos anos 50, o Movimento Feminista se firmou, em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil, convém salientar a presença de Presciliana Duarte, dentre as escritoras brasileiras, que foi uma figura de destaque, em âmbito literário e educacional, enquanto mulher e também feminista.

Dessa forma, com a disseminação do feminismo, sistemas sociais foram revistos e, consequentemente, a literatura se inseriu nesta reavaliação. Marina Warner já havia afirmado que os contos de fadas possuem poder perene, ou seja, a essência desses são sempre iguais, o que há de diferencial são os interesses e as necessidades do povo que determinam a sua moldura: “São histórias que possuem um poder permanente, como mostra sua Antiguidade, porque os significados que geram estão, eles mesmos, sempre mudando de forma e dançando segundo a necessidade do público” (1999, p. 22). E os interesses do povo mudaram, tanto que ritmos diferentes exigem novos movimentos, embasados em leituras representativas de sua realidade.

De certo modo, os dolorosos anseios e apelos femininos do passado se tornaram realidade. Essas solicitações já tinham sido escritas nas linhas e entrelinhas dos contos. Assim, as novas conquistas das mulheres, na verdade, não passam de antigas reivindicações femininas. Na verdade, a militância política feminista associada ao grupo restrito de escritoras transformaram a história social da humanidade. Tanto que hoje a mulher pode optar pela carreira militar e concorrer a patentes com os demais, homens e mulheres.

Conquistas as mulheres realmente tiveram, após uma longa caminhada de escravidão, medo, obediência. Adquiriram sim, o direito ao voto, à educação, à liberdade, à sexualidade, de optar ou não pelo casamento, de concorrer a cargos públicos, de participar da esfera política e administrativa de seu país, de controle da natalidade, de disputar vagas de trabalho em igualdade com homens, de conquistar seu espaço profissional fora de casa (com isso, somando, infelizmente, uma dupla jornada), mas o que se faz importante é que, através do trabalho, principalmente literário, a distância entre homens e mulheres se fez menor.

Carter, Atwood, Lago, Drabble, Etxebarría, Lochhead, são escritoras que, através de seus trabalhos, desmistificaram a personagem feminina, identificando a nova mulher, que é decidida, corajosa, inteligente, sutil, esclarecida, trabalhadeira, sensual, longe de endeusamentos, tanto que ela ainda sente momentos de insegurança, medo e vazio existencial.

E, nessa releitura dos papéis femininos, as paródias, os intertextos se fizeram mais que pertinentes, uma vez que o resultado foi o nascimento da mulher contemporânea, que não admite mais estar constantemente sob o jugo masculino.

É bastante sugestivo o título usado por Pinkola Estes (Mulheres que correm com os lobos), pois as mulheres correm com os lobos e não mais correm dos lobos. E, segundo Marina Warner, as mulheres variam de fera à loira, de acordo com seu bel-prazer. Agem como feras se querem lutar por seus ideais, seus filhos, sua família. Quando querem mostrar-se femininas, as feras transformam-se em morenas, ruivas, loiras, dependendo de seu estado de espírito.

As escritoras feministas adequaram seus personagens às atuais estruturas sociais, bem como diria Rita Terezinha Schmidt (Mulheres e literatura: (trans) formando identidades). Angela Carter permitiu que a Fera tirasse sua máscara e vestimentas seculares,    transformando-o,  senão em um príncipe, em um animal bonzinho. A personagem Bela, que há muito vinha sofrendo, pensando em morrer, na época de Beaumont, em Carter, deseja mais é viver e ser feliz. O ogro Barba-Azul, de Perrault, tem um páreo duro para enfrentar, a sogra, personagem de Carter.

A história das protagonistas mulheres na literatura de autoria feminina registra sua trajetória ao longo de séculos em que buscavam conquistar seu espaço. Além disso, as obras escritas por mulheres assumem grande importância para o público feminino, uma vez que contribuem para a composição da identidade da mulher em tempo presente e futuro, quer seja na ficção ou na vida real.

Segundo Guedes, “a reinterpretação dos contos de fadas por escritoras contemporâneas fornece textos mais positivos para as mulheres, em que os estereótipos são rompidos e as possibilidades de desenvolvimento feminino são reexaminadas e expandidas” (GUEDES, 1997, p. 78-79).

Contrariamente ao que Chaucer mencionou a respeito do sexo feminino, ou seja, que só quer mandar (ALMEIDA, 2003, p. 20), é possível afirmar que a mulher, enquanto escritora e personagem, não quer representar papéis, mas quer sim viver o seu papel em um espaço já conquistado, em um território não mais somente masculino.

Comprova-se, através da história que páginas e páginas foram escritas pelos homens. Agora, novas páginas estão construindo ou reconstruindo o percurso literário feminino, prenunciando novos tempos de igualdade.

A partir dessas observações, verifica-se a necessidade de se buscar possíveis respostas ou alternativas que contribuam para o campo literário, resultando em projetos novos relacionados à evolução da figura feminina nos contos de fadas, através dos tempos, e também na ficção, seja ela assinada por mulheres ou homens.

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Carolina Ramos (Crônica Poética à Cidade Amada: Santos – Terra da Liberdade e da Caridade)

Vem, forasteiro! Desce comigo a Serra. Olha lá para baixo. Não...não é miragem!

Há de fato, uma linda cidade escondida por detrás da neblina. A minha cidade! E com que orgulho digo que esta cidade, que é minha, é também encantamento, história e tradição!

Um dos mais importantes pedaços do nosso Brasil! Por que? A ti, que vens de fora, evito falar dos seus encantos. Hás de travar contato com eles, daqui a um nada!

Disse-te que a minha cidade é História. Sim, foi lá que muita coisa começou! Muita coisa de suma relevância para o destino da nacionalidade.  Para o meu...e para o teu destino!

Minha terra natal tem sangue índio – Enguaguaçu era chamada, antes que lhe dessem o nome protetor de Todos os Santos. Por fim, sei que adivinhaste, chamaram-na simplesmente Santos – A Princesa do Mar! Desse mar que se amansa e que lhe beija os pés de areia, cobrindo-os de rendas, enciumado do abraço do sol que lhe manda, lá de cima, o seu carinho ardente!

Santos! Berço augusto de tanta gente ilustre! Não, não citarei nomes, cujo rol transcende os limites desta folha - filhos insígnes que carregam consigo a nobreza do berço!

Ninho de poesia, minha Santos gerou poetas da mais alta inspiração! Que menos não lhe permitiria o festival de mago encantamento que a Musa lhes oferecia e, até hoje, ainda oferece.

Ah! As auroras rosadas desta linda Santos, prenúncio dos mais cálidos e luminosos dias! E os crepúsculos incomparáveis?! E as noites?! Veludosas noites refulgentes de joias! Noites feitas para os idílios, para os sonhos! Noites feitas para o amor! 

Santos! Terra excelsa dos Andradas! Que fidalgo lugar te reservam os anais da História! Basta lembrar que em teu seio germinou a semente da liberdade, cujo grito eclodiu à beira do Ipiranga e o eco estendeu-se aos quatro cantos do nosso imenso Brasil! Santos abolicionista, empenhada em quebrar algemas e a secar o pranto de uma raça valorosa e sofrida!

“Porta aberta para o mar...” Braços amplos, escancaradamente abertos a quantos adentrem seus limites, em busca de abrigo ou, simplesmente de descontração, nas horas preguiçosas que o leito morno e amplo de suas praias lhes oferece. Lá no alto, a Senhora do Monte Serrat abençoa a paisagem, emoldurada de jardins floridos! E abençoa, também, a todos que desfrutam dessas benesses e as respeitam, como merecem!

O porto de Santos? Turbulento, embora, é nada mais nada menos, o primeiro e maior porto da América Latina! Colo amigo onde os navios encostam seus cansaços, após a faina incessante de transportar sonhos que alimentam esperanças de um povo raçudo e laborioso, de alma sempre empenhada em vencer!

Nosso brasão, afirma convicto: “À Pátria ensinei Caridade e Liberdade”.

Pode haver mais nobre tema, para pautar a conduta dos filhos desta terra, agora e sempre, muito especial?!

Fecha os olhos, forasteiro... Fecha os olhos a tudo que te pareça de algum modo negativo. Perfeito mesmo, só Deus! E entre Deus e os admiráveis encantos que nos legou, impossível evitar a ação de criaturas, por Ele mesmo criadas, nem sempre corretas, nem sempre santistas e, não raro, nefastas. Esquece-as, por favor! Assim é em qualquer canto da Terra!

Creio que basta, Se abusei das exclamações admirativas, perdoa-me, também.  Hás de convir, leitor amigo, que não poderia ser diferente. E não me chames de piegas, peço-te. O excesso de amor pode, sim, conduzir a pieguismos, mas, põe-te no meu lugar. Farias certamente o mesmo! Duvidas? Então vem comigo. Desçamos a Serra juntos. Terás certeza de que não exagero.

Minha Santos pode não ser a “Cidade Maravilhosa”, contudo, que maravilhosa cidade é a minha Santos!

Vem!... Mas pisa com respeito este chão santista! E, principalmente, pisa com muito ... muito Amor!

 Vem!...

Fonte:
A Autora