quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Poetas Africanos III

Fotos dos poetas deste número
Não foi encontrada foto de Orlando Mendes

AGOSTINHO NETO
Angola

  Com os olhos secos

Com os olhos secos
- estrelas de brilho inevitável
através do corpo através do espírito
sobre os corpos inanimados dos mortos
sobre a solidão das vontades inertes
nós voltamos

Nós estamos regressando África
e todo o mundo estará presente
no super-batuque festivo
sob as sombras do Maiombe
no carnaval grandioso
pelo Bailundo pela Lunda

Com os olhos secos
contra este medo da nossa África
que herdamos dos massacres e mentiras

Nós voltamos África
estrelas de brilho irresistível
com a palavra escrita nos olhos secos
- LIBERDADE.
____________________

ARMANDO ARTUR
Moçambique

    Pelo dever

    de resistir e caminhar
    pelos destroços da nossa utopia,
    eis-nos aqui de novo, acocorados,
    aqui onde o tempo para
    e as coisas mudam.

    E para que o nosso sonho renasça

    com a levitação do vento e do grão,
    eis-nos aqui de novo,
    passivos como os espelhos,
    no tear da nossa existência.

    Este sempre será

    O nosso amanhecer.
    E a nossa perseverança
    é como a da erva daninha
    que lentamente desponta na pedra nua."
____________________

DAVID MESTRE
Angola
  
Espera

 Existo acento de palavra, carapinha
 recordação áspera de monandengue,
 mapa de conversas na visitação da lua,
 grávida luena sentada no verso da fome.

 aqui esqueço África, permaneço
 rente ao tiroteio dialeto das mulheres
 negras, pasmadas na superfície do medo
 que bate oblíquo no quimbo quebrado.

 num gabinete da Europa, dois geógrafos
 vão assinalar a estranha posição
 dum poeta cruzado na esperança morosa
 das palavras africanas aguardarem acento.
____________________

TOMAZ VIEIRA DA CRUZ
Angola

Fruta

Quitanda de fruta verde,
dá-me um gomo de laranja
para matar a sede.

Ou, então, será melhor
dar-me um veneno qualquer
porque eu ando perturbado
e o meu sonho anda queimado
por uns olhos de mulher!

- Minha senhora, laranja,
limão, fresquinho, caju,
ananás ou abacate!...

E a quintandeira passou,
saudável, viva, graciosa,
com uma flor desfolhada
no seu sorriso escarlate.

E no ar um som de musica ficou
e um perfume de fruta
que não matou minha sede

Ó agridoce quitanda
da fruta verde!...
____________________

ORLANDO MENDES 
Moçambique

História
        
Diz a História que descendo
De celtas, mouros e visigodos.
Descendo e deles herdei todos
Os caracteres fundamentais
E talvez herdasse alguns mais
    Da mestiçagem de outras raças
    Que fizeram guerras, combatendo
    Conquistaram e perderam praças.
    Diz a História e não tenho
    Do contrario uma prova séria
    Em testamento que a revele.
    E admito pois que o tamanho,
    O rosto, o sangue, a cor da pele,
    A fria razão e o instinto,
    Adquiri em séculos de Ibéria
    Para ser o que penso e sinto
    O que mostro e o que oculto,
    Excitável carne e uma voz
    Memória de um país adulto
    Que se não cala por não trair-me
    No idioma de meus avós,
    Para ser a mão direita firme
    Que enche de palavras o papel,
    Perpétuo aprendiz que sou eu
    De velho ofício sem licença.
    Admito. E as datas festejo
    E retomo lutas que não venço
    E amo nas horas do desejo
    Com o mesmo requinte que deu
    Origem de mim à Criação
    E bebo o vinho e como o pão
    Da minha sede e da minha fome.
    Admito. E por isso, deponho.
    Contudo, nada herdei que dome
    A grandeza nova que transmito,
    Não apenas sede, fome e sonho
    De vinho, de pão ou de infinito,
    Desejo, posse e fecundidade
    Coragem forjada no segredo
    Medo que se chore ou se brade
    Guerra de amigo ou de inimigo,
    Não propriamente o enredo
    Mas esta seiva elementar
    De África nos versos que digo
    E os homens a saibam cantar.
____________________

NELSON SAUTE 
Moçambique

    A ignorância do poeta

    O poeta contempla o mar
    no agoniado tédio da tarde.
    Caminha ao som de seus passos
    ombros recurvos mãos nos bolsos
    perseguindo a sua sombra.
    O cão que lhe roça a solidão
    não tolhe o verso escrito da memória.
    Os namorados não o fitam.
    De esguelha admira a inocência
    dos gestos amorosos.
    À sombra de jacarandás
    percorre o trajeto
    sobre as folhas silenciadas.

    O poeta ignora, mas a direção
    leva-o ao coração dos homens.

Théophile Gautiér (A Cafeteira)


Vi sob sombrios véus
Onze estrelas nos céus,
A lua, o sol também,
Me reverenciando,
E silenciando,
No meu sono e além.
A visão de José

I
Ano passado. Fui convidado, junto com dois amigos de ateliê. Arrigo Cohic e Pedrino Borgnioli, para passar alguns dias numa fazenda no interior da Normandia.

O tempo, que, na nossa partida, prometia ser maravilhoso, resolveu mudar de repente, e caiu tanta chuva que os caminhos esburacados por onde andávamos eram como o leito de uma torrente.

Afundávamos na lama até os joelhos, uma camada espessa de terra gorda se grudara nas solas de nossas botas, e seu peso retardava tanto nossos passos, que só chegamos no nosso destino uma hora depois do pôr-do-sol. Estávamos exaustos; por isso, nosso anfitrião, vendo o esforço que fazíamos para reprimir os bocejos e manter os olhos abertos, tão logo acabamos de cear, nos mandou levar cada um a seu quarto. O meu era grande; senti, ao entrar, uma espécie de calafrio, pois me parecia ter entrado em um mundo novo.

De fato, tinha-se a impressão de estar na época da Regência, diante da bandeira da porta de Boucher representando as quatro estações, os móveis sobrecarregados de ornamentos rococó de muito mau gosto, e os tremós dos espelhos pesadamente esculpidos. Nada estava fora do lugar. A penteadeira, coberta de caixas de pentes, de almofadas de pó-de-arroz, parecia ter sido usada na véspera. Dois ou três vestidos furta-cor, um leque pontilhado de lantejoulas em prata cobriam o assoalho bem encerado, e, para meu grande espanto, uma tabaqueira de esmalte aberta sobre a lareira estava cheia de fumo ainda fresco.

Só notei essas coisas depois que o empregado, colocando o castiçal na mesa-de-cabeceira, me desejou um bom sono e, confesso, comecei a tremer como uma folha. Despi-me prontamente, deitei-me, e, para acabar com tais temores bobos, logo fechei os olhos, virando-me para o lado da parede.

Mas foi impossível ficar nessa posição: a cama se agitava sob meu corpo como uma onda, minhas pálpebras se retraíam violentamente. Fui obrigado a me virar e ver. O fogo que ardia lançava reflexos avermelhados no aposento, de maneira que se podia distinguir sem esforço os personagens da tapeçaria e os rostos dos retratos enfumaçados pendurados na parede. Eram os antepassados do nosso anfitrião, cavaleiros em armaduras de ferro, conselheiros de peruca e belas senhoras de rosto pintado e cabelos empoados de branco, segurando uma rosa na mão.

De repente, o fogo adquiriu um estranho grau de atividade, um clarão esbranquiçado iluminou o quarto, e vi claramente que o que eu tomara por vãs pinturas era a realidade; pois as pupilas desses seres emoldurados se moviam, cintilavam de forma singular; seus lábios se abriam e se fechavam como lábios de pessoas que falam, mas eu nada ouvia além do tique-taque do relógio e do assobio de vento de outono. Um terror incontrolável se apoderou de mim, meus cabelos se arrepiaram na testa, meus dentes se entrechocaram a ponto de quase quebrar, um suor frio inundou todo o meu corpo. O relógio bateu onze horas. A vibração da última badalada retiniu longamente, e quando cessou por completo...

Ah! não, não ouso dizer o que aconteceu, ninguém acreditaria em mim e me tomariam por louco. As velas se acenderam sozinhas; o fole, sem que nenhum ser visível lhe imprimisse movimento, pôs-se a soprar o fogo, chiando como um velho asmático, enquanto as pinças remexiam os tições e a pá revolvia as cinzas. Depois, uma cafeteira atirou-se da mesa sobre a qual estava colocada e dirigiu-se, mancando, para o fogo, onde se meteu entre os tições. Em alguns instantes, as poltronas começaram a se mover, e, agitando seus pés retorcidos de maneira surpreendente, vieram se acomodar em volta da lareira.

II

Não sabia o que pensar do que via; mas o que estava por ver era ainda mais extraordinário. Um dos retratos, o mais antigo de todos, de um gordo bochechudo de barba grisalha, parecido, a ponto de ser confundido, com a imagem que eu tinha do velho Sir John Falstaff, tirou, com uma careta, a cabeça de seu quadro, e, depois de muito esforço, tendo passado os ombros e a barriga rotunda por entre as estreitas hastes da moldura, pulou pesadamente no chão. Nem bem tomou fôlego e tirou do bolso de seu gibão uma chave de uma pequenez impressionante, soprou sobre ela, para se assegurar de que a cavidade estaria bem limpa, e a utilizou em todos os quadros, um após outro. E todas as molduras se alargaram de modo a deixar passar facilmente as figuras que continham.

Padrecos janotas; senhoras idosas, secas e amarelas; magistrados com aspecto grave, envoltos em grandes togas negras; jovens fidalgos de meias de seda, calções de lã preta, com a ponta da espada erguida; todos esses personagens apresentavam um espetáculo tão bizarro que, apesar do meu pavor, não pude deixar de rir. Esses dignos personagens se sentaram; a cafeteira pulou agilmente para a mesa. Tomaram o café em xícaras japonesas de porcelana azul e branca, que acorreram espontaneamente de cima de uma escrivaninha, cada uma delas munida de um torrão de açúcar e uma colherinha de prata. Depois de tomado o café, xícaras, cafeteira e colheres desapareceram ao mesmo tempo e começou a conversa, certamente a mais curiosa que jamais ouvi, pois nenhum desses estranhos interlocutores olhava para o outro ao falar: todos tinham os olhos fixos no relógio.

Eu mesmo não conseguia desviar o olhar do relógio e me impedir de seguir o ponteiro, que caminhava para a meia-noite a passos imperceptíveis. Enfim, soou meia-noite; uma voz cujo timbre era exatamente o do pêndulo, fez-se ouvir e disse:

— Está na hora, é preciso dançar.

Toda a assembleia levantou-se. As poltronas recuaram por si mesmas; então, cada cavalheiro tomou a mão de uma dama, e a mesma voz disse:

— Vamos, senhores da orquestra, comecem!

Esqueci de dizer que o tema da tapeçaria era um concerto italiano de um lado, e do outro uma caça ao cervo na qual vários pajens tocavam trompa. Os picadores e os músicos, que até ali não haviam feito qualquer gesto, inclinaram a cabeça em sinal de assentimento. O maestro levantou a batuta, e uma harmonia viva e dançante ergueu-se dos dois lados da sala. Dançaram primeiro o minueto. Mas as notas rápidas da partitura executada pelos músicos não combinavam com aquelas reverências graves; por isso, cada casal de dançarinos, após alguns minutos, pôs-se a fazer piruetas como um pião alemão. Os vestidos de seda das mulheres, amassados nesse turbilhão dançante, emitiam sons de natureza peculiar; dir-se-ia o barulho de asas de um voo de pombos. O vento que se engolfava por baixo os inchava prodigiosamente, de modo que pareciam sinos dobrando.

O arco dos virtuoses passava tão rápido sobre as cordas, que jorravam centelhas elétricas. Os dedos dos flautistas se erguiam e baixavam como se fossem azougues; as bochechas dos picadores estavam infladas como balões, e tudo isso formava um dilúvio de notas e trinados tão apressados e de gamas ascendentes e descendentes tão intrincadas, tão inconcebíveis, que nem os próprios demônios seriam capazes de seguir tal compasso por dois minutos. Portanto, dava dó ver todos os esforços daqueles dançarinos para acompanhar a cadência. Eles pulavam, davam cabriolas, faziam semicírculos com as pernas, realizavam jetés battus e entrechats de três pés de altura, a tal ponto que o suor, caindo-lhes da testa sobre os olhos, lhes tirava as pintas e a maquiagem. Mas seu esforço era inútil, a orquestra estava sempre três ou quatro notas a sua frente.

O relógio bateu uma hora; eles pararam. Vi algo que me escapara: uma mulher que não dançava. Estava sentada numa bergère no canto da lareira e não parecia de modo algum tomar parte no que se passava ao seu redor. Nunca, nem em sonho, algo tão perfeito se apresentara aos meus olhos; uma pele de uma brancura deslumbrante, cabelos de um louro-acinzentado, longos cílios e pupilas azuis, tão claras e tão transparentes que através delas eu via sua alma, tão distintamente quanto uma pedra no fundo de um riacho. E senti que, se algum dia me acontecesse amar alguém, seria ela. 

Precipitei-me para fora da cama, de onde até então não conseguira me mover, e me dirigi para ela, guiado por alguma coisa que agia em mim sem que eu pudesse me dar conta; e me vi junto a seus joelhos, uma das suas mãos nas minhas, conversando com ela como se a conhecesse há vinte anos. Mas, por um prodígio bem estranho, enquanto eu lhe falava, ia marcando com uma oscilação de cabeça a música que não havia cessado de tocar; e mesmo estando no cúmulo da felicidade por conversar com uma pessoa tão linda, meus pés ardiam de vontade de dançar com ela. No entanto, não ousava convidá-la. Parece que ela compreendeu o que eu queria, pois, levantando para o mostrador do relógio a mão que eu não estava segurando, disse:

— Quando o ponteiro chegar ali, veremos, meu caro Théodore.

Não sei como ocorreu, não fiquei em absoluto surpreso ao ouvir ser assim chamado pelo meu nome, e continuamos a conversar. Enfim, a hora indicada soou, a voz com timbre de prata vibrou outra vez no quarto e disse:

— Ângela, você pode dançar com o cavalheiro, se lhe der prazer, mas sabe no que isso vai resultar.

— Pouco importa — respondeu Ângela, amuada.

E passou o braço de marfim em volta do meu pescoço.

— Prestíssimo! — gritou a voz. E começamos a valsar. O seio da jovem tocava o meu peito, sua face aveludada roçava a minha e seu hálito suave flutuava diante de minha boca. Nunca na vida sentira tamanha emoção; meus nervos estremeciam como molas de aço, meu sangue corria nas artérias como torrentes de lava e ouvia meu coração bater como um relógio preso as minhas orelhas. Entretanto, esse estado não tinha nada de penoso. Eu estava inundado de uma alegria inefável e gostaria de permanecer sempre assim, e, coisa admirável, ainda que a orquestra tivesse triplicado a velocidade, não precisávamos fazer esforço algum para segui-la.

Os espectadores, maravilhados com a nossa agilidade, gritavam bravo e com toda a força batiam palmas, que não emitiam som algum. Ângela, que até então valsara com energia e precisão surpreendentes, pareceu cansar-se de repente; pesava sobre meus ombros como se as pernas lhe tivessem faltado; seus pezinhos que, um minuto antes, roçavam o chão, só lentamente dele se desprendiam, como se estivessem carregados com um peso de chumbo.

— Ângela, você está cansada — disse-lhe eu. — Vamos descansar.

— Bem que eu gostaria — respondeu ela, enxugando a testa com o lenço.

— Mas, enquanto valsávamos, todos se sentaram; só resta uma poltrona e nós somos dois.

— Que importância tem isso, meu anjo lindo? Vou colocá-la no colo.

III

Sem fazer a menor objeção, Ângela sentou-se, envolvendo-me com os braços como se fossem uma echarpe branca, escondendo a cabeça no meu peito para se aquecer um pouco, pois se tornara fria como mármore.

Não sei por quanto tempo ficamos nessa posição, pois todos os meus sentidos estavam absorvidos na contemplação dessa misteriosa e fantástica criatura. Não fazia mais qualquer ideia da hora nem do lugar; o mundo real não existia mais para mim e todos os laços que me unem a ele tinham se rompido; minha alma, liberta de sua prisão de lama, nadava no vago e no infinito; eu compreendia o que nenhum homem pode compreender, os pensamentos de Ângela se revelando a mim sem que ela precisasse falar, pois sua alma brilhava em seu corpo como uma lâmpada de alabastro e os raios que saíam de seu peito traspassavam o meu de lado a lado.

A cotovia cantou, uma claridade pálida cintilou nas cortinas. Assim que Ângela a percebeu, levantou-se precipitadamente, deu-me adeus com um gesto e, após alguns passos, soltou um grito e caiu no chão. Tomado de assombro, acorri para levantá-la... Meu sangue congela só de pensar: tudo o que encontrei foi a cafeteira quebrada em mil pedaços. Diante dessa visão, persuadido de que tinha sido o joguete de alguma ilusão diabólica, apoderou-se de mim tal pavor que desmaiei.

Quando voltei a mim, estava em minha cama, com Arrigo Cohic e Pedrino Borgnioli de pé a minha cabeceira. Assim que abri os olhos. Arrigo exclamou:

— Ah! Ainda bem! Há quase uma hora estou esfregando suas têmporas
com água de colônia. Que diabo você fez essa noite? Hoje de manhã, vendo que você não descia, entrei no seu quarto e o encontrei estirado no chão, vestido à francesa, apertando nos braços um pedaço de porcelana quebrada como se fosse uma moça bonita.

— Por Deus! É a roupa de casamento de meu avô! — disse o outro, levantando uma das abas de seda de fundo rosa com ramagens verdes. — Vejam os botões de strass e filigrana dos quais ele tanto se vangloriava. Théodore deve tê-lo achado em algum canto e o vestiu para se divertir. Mas por que você se sentiu mal? — acrescentou Borgnioli. — Isso é coisa para uma amantezinha de ombros brancos; nós a pomos para descansar, tiramos seus colares, sua echarpe, e ela tem uma bela oportunidade para se fazer de dengosa.

— Foi apenas um desfalecimento que tive; sou sujeito a isso — respondi secamente. Levantei-me, despojei-me de minha ridícula vestimenta. E depois, fomos almoçar.

Meus três amigos comeram muito e beberam mais ainda; não comi quase nada, a lembrança do que se tinha passado me causava estranhas distrações. Terminado o almoço, como chovia a cântaros, não tivemos condição de sair e cada um se ocupou como pôde. Borgnioli tamborilou marchas guerreiras nas vidraças; Arrigo e o anfitrião jogaram uma partida de damas; eu puxei do meu álbum um pedaço de pergaminho e me pus a desenhar. Os esboços quase imperceptíveis traçados por meu lápis, sem que eu sequer percebesse o que fazia, acabaram por representar com maravilhosa exatidão a cafeteira que desempenhara um papel tão importante nas cenas da noite.

— É impressionante como esse rosto se parece com a minha irmã Ângela — disse o anfitrião que, terminada a partida, me observava trabalhar por cima do meu ombro.

De fato, o que ainda há pouco me parecera uma cafeteira era com toda a certeza o perfil doce e melancólico de Ângela.

— Por todos os santos do paraíso! Ela está morta ou viva? — exclamei num tom de voz trêmulo, como se a minha vida dependesse de sua resposta.

— Ela morreu há dois anos, de pneumonia, depois de um baile.

— Que pena! — respondi dolorosamente. E, contendo uma lágrima que estava prestes a cair, recoloquei o papel no álbum. Acabava de compreender que não mais haveria para mim felicidade sobre a terra!

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Adelino Fontoura (Poemas Escolhidos)


BORGHI MAMO

Ao doce timbre harmonioso e brando
Da tua voz, ó alma enamorada,
Sinto minha alma em sonhos embalada
E como que eu também fico sonhando!

Como agitava o vento, perpassando,
A harpa eólia no salgueiro alada,
Tal me agita essa voz apaixonada
Quando, ó ave de amor, surges cantando.

Ouvir-te é como ver nascer a aurora:
Tudo inunda de luz, tudo ilumina
A tua voz angélica e sonora.

Solta, pois, a volata peregrina!
Ama, geme, soluça, canta e chora,
Celeste Aída, Malibran divina!

ATRAÇÃO E REPULSÃO

Eu nada mais sonhava nem queria
Que de ti não viesse, ou não falasse;
E como a ti te amei, que alguém te amasse,
Coisa incrível até me parecia.

Uma estrela mais lúcida eu não via
Que nesta vida os passos me guiasse,
E tinha fé, cuidando que encontrasse,
Após tanta amargura, uma alegria.

Mas tão cedo extinguiste este risonho,
Este encantado e deleitoso engano,
Que o bem que achar supus, já não suponho.

Vejo, enfim, que és um peito desumano;
Se fui ter junto a ti de sonho em sonho,
Voltei de desengano em desengano

ANTES DE PARTIR

Venho ensopar de lágrimas o lenço
No tristíssimo adeus de despedida;
Em breve a Pátria vou deixar perdida
Além - na curva do horizonte imenso!

Em breve sobre o mar profundo e extenso
Adejará minh’alma dolorida,
Como a gaivota errante, foragida,
Sem ter um ninho onde pousar, suspenso!

Então, senhora, hei de pensar, tristonho,
Revendo a vossa angélica bondade,
Neste ninho de amor calmo e risonho;

E triste, sobre a triste imensidade,
Como quem despertou de um ledo sonho,
Hei de chorar o pranto da saudade.

VÁCUO

Não sei se pode haver padecimento
Mais profundo, mais íntimo e que tanto
Nos ponha na alma a dor que gera o pranto,
Do que um longo e tristonho isolamento.

Não ter um bem sequer no pensamento,
Nem o calor de um lar, nem o encanto
De um amor de mulher suave e santo,
É viver sem nenhum contentamento.

Bem sei que é bom sofrer, e me parece
Que esta vida sem dor nada seria,
E que é por isso até que se padece.

Mas esta solidão contínua e fria
Chega a ser tão cruel, que a não merece
Um coração que a dor mereceria.

SÚPLICA

Por mais que aspire ou queira, anele ou tente
Esquecer-me de ti - jamais me esqueço,
Ó bem amado ser por quem padeço,
Por quem tanto soluço inutilmente!

Bem que eu te peça, foges de repente,
E só me fica a dor que te não peço;
E eis tudo, ó céus! eis tudo o que eu mereço,
Em paga deste amor tão puro e crente.

Se te não move, pois, um desafeto
E se te apraz ao menos consolar
A desventura amarga deste afeto,

Ilumina com teu divino olhar
Esta alma que os teus pés, anjo dileto,
Vem, banhada de lágrimas, beijar.

GAZETINHA
 (No dia do seu primeiro aniversário)

Eu não venho trazer a voss’excelência
Um fantástico mimo high-lifeano;
Possuo um coração meridiano,
Mas não vivo nas pompas da Regência.

Porém, se eu fosse um príncipe indiano,
De sangue azul e antiga descendência,
Possuindo a Golconda, essa opulência,
E os tesouros do Índico Oceano,

Nessas pequenas mãos, tímido e mudo,
Minha senhora, eu deporia tudo...
Como os brilhantes de um colar, dispersos!

Mas... se sou pobre, o que tão mal me fica,
Consinta que, sem luvas de pelica,
Venha depor-lhe aos pés estes meus versos.

DESPEDIDA

Pois que é chegada finalmente a hora
Do triste afastamento e da provança,
Venho dizer-te adeus, gentil criança,
Venho dizer-te adeus, pois vou-me embora.

Morreu em mim a última esperança,
Bem como um sonho bom que se evapora;
Não sei que dor maior que resta agora
Sofrer, nem que maior desesperança.

Não sei, ó sorte mísera e nefasta,
Que assim me arrancas do seu lar querido,
Que assim me roubas sua imagem casta.

Bem vês que eu tenho o coração partido,
E teu peito, inda assim, não desengasta
Um soluço, uma lágrima, um gemido.

OHS! E AIS!

Essa mulher que tantos ohs! provoca,
Essa mulher que tantos ais! arranca,
Essa mulher quem é? Por que abre a boca
O Silvestre quando a vê? - É branca?

É morena? É francesa? É carioca?
As belezas helênicas desbanca?
O seu olhar os cérebros desloca?
O seu sorriso as lágrimas estanca?

Vamos, Raimundo, tu que viste há dias
A mágica visão, o ser terrestre,
Por quem já deste uns ais! e uns ohs! eu sinto,

Tira as garras da dúvida ao Matias,
Faze valsar o Lins, rir o Silvestre
E reler os Subsídios o Filinto.


terça-feira, 14 de novembro de 2017

Olivaldo Júnior (Poemas Escolhidos) III

Um pequeno barco

Pela praia mais bonita,
onde o mundo é só um arco
e minh'alma é infinita,
vem vindo um pequeno barco...

Vem vindo um pequeno barco
que parece a minha vida:
porto a porto, vira um marco
que só marca despedida...

Barco a vela, vela ao vento
que nos leva para longe,
onde o mundo é um moinho

e essa praia, o movimento
da memória cujo bonde
traz à tona algum barquinho...
_____________________

Cora, doce Coralina!...
20/08/2017: 128º Aniversário de Cora Coralina+

Cora, doce Coralina!...
Inda acolhe uma menina,
a "doceira de Goiás",
num fazer que a satisfaz!...

Da colher, tão pequenina,
doce Cora, a Coralina,
faz nascer quem vai e faz,
verso a verso, sua paz!

Velho tacho acobreado,
no calor do coração,
ferve a obra, seu legado,

nobre amor que vira pão,
o poema adocicado
que de Cora vem à mão!...
_____________________________

No Café do Amor Platônico

No Café do Amor Platônico,
bebo só com a Solidão,
pois meu bem ficou irônico
ao pedir-lhe a sua mão...

Já tomei meu "Biotônico",
me afoguei no chá em vão,
pois o mal é supersônico,
sempre alcança o coração.

No Café de quem foi bobo,
vou tomando amor com pão,
sou cordeiro, nunca o lobo...

Um pedaço a mais de "não",
e eu me perco no meu globo,
meu "mundinho" de ilusão.
_____________________________

Uma pérola de homem...
À memória de Luiz Melodia (7/1/1951 - 4/8/2017)

Negra pérola em fulgor
fez nascer a melodia
que vibrou neste cantor
toda a luz da poesia...

'Luís Carlos' fez amor
com as fadas que 'tecia',
magrelinhas de valor,
negras musas, dia a dia...

Juventude Transviada
cala a boca frente à cruz,
ante à pérola apagada

que mantém a sua luz
sob as vistas da moçada
lá do Estácio, de Jesus.
_____________________________

Pelas mãos do Agricultor
28 de julho: Dia do Agricultor

Lá no ventre da Mãe Terra,
pelas mãos do Agricultor,
a semente vence a guerra,
'primavera' à luz em flor.

A verdura que ela encerra,
pelas mãos do Agricultor,
mais saúde a nós descerra,
dando à vida mais sabor.

Sem veneno, tão divino,
pelas mãos do Agricultor,
cada ramo vira um hino,

canto verde de um labor
que, gigante ou pequenino,
faz nascer um lavra-dor!
_____________________________

O escritor já está em casa
25 de julho: Dia Nacional do Escritor

- Falem baixo, por favor,
que o silêncio perde a asa!...
Devagar com seu andor,
o escritor já está em casa.

Cada estrela é um amor
que São Jorge logo abrasa!...
Deixe em brasa sua flor,
o escritor já está em casa...

O escritor já está em casa,
no seu quarto, sem ninguém,
pois jamais o "tal" se casa!...

Sem "donzela", nem vintém,
de uma "pena" faz a casa
que aprisiona e lhe faz bem.
_____________________________

Para o filho que hoje é pai
13 de agosto de 2017: Dia dos Pais

Para o filho que hoje é pai,
toda a paz de ser alguém
cuja força não se esvai,
nem que parta para o Além...

Nem que parta para o Além,
quem foi filho e já foi pai
nunca fica sem ninguém,
pois é filho de Deus Pai...

Num asilo, lá no "exílio",
para o pai que já foi filho
sempre é dia de pensar

que seu filho vai voltar
e, vagão com fé no trilho,
ter o pai por estribilho.

Fonte: O Autor

domingo, 12 de novembro de 2017

Contos do Mundo: Brasil (A Festa no Céu)

Entre os bichos da floresta, espalhou-se a notícia de que haveria uma festa no Céu. Porém, só foram convidados os animais que voam. As aves ficaram animadíssimas com a notícia, começaram a falar da festa por todos os cantos da floresta. Aproveitavam para provocar inveja nos outros animais, que não podiam voar.

Um sapo muito malandro, que vivia no brejo, lá no meio da floresta, ficou com muita vontade de participar do evento. Resolveu que iria de qualquer jeito, e saiu espalhando para todos, que também fora convidado.

Os animais que ouviam o sapo contar vantagem, que também havia sido convidado para a festa no céu, riam dele.

Imaginem o sapo, pesadão, não aguentava nem correr, que diria voar até a tal festa! Durante muitos dias, o pobre sapinho, virou motivo de gozação de toda a floresta.

- Tira essa idéia da cabeça, amigo sapo. - “ dizia o esquilo, descendo da árvore.- Bichos como nós, que não voam, não têm chances de aparecer na Festa no Céu.

- Eu vou sim.- dizia o sapo muito esperançoso. - Ainda não sei como, mas irei. Não é justo fazerem uma festa dessas e excluírem a maioria dos animais.

Depois de muito pensar, o sapo formulou um plano. Horas antes da festa, procurou o urubu. Conversaram muito, e se divertiram com as piadas que o sapo contava. Já quase de noite, o sapo se despediu do amigo:

- Bom, meu caro urubu, vou indo para o meu descanso, afinal, mais tarde preciso estar bem disposto e animado para curtir a festa.

– Você vai mesmo, amigo sapo? - perguntou o urubu, meio desconfiado.

– Claro, não perderia essa festa por nada. - disse o sapo já em retirada.- Até amanhã!

Porém, em vez de sair, o sapo deu uma volta, pulou a janela da casa do urubu e vendo a viola dele em cima da cama, resolveu esconder-se dentro dela.

Chegada a hora da festa,o urubu pegou a sua viola, amarrou-a em seu pescoço e voou em direção ao céu. Ao chegar ao céu, o urubu deixou sua viola num canto e foi procurar as outras aves. O sapo aproveitou para espiar e, vendo que estava sozinho, deu um pulo e saltou da viola, todo contente.

As aves ficaram muito surpresas ao verem o sapo dançando e pulando no céu. Todos queriam saber como ele havia chegado lá, mas o sapo esquivando-se mudava de conversa e ia se divertir. Estava quase amanhecendo, quando o sapo resolveu que era hora de se preparar para a "carona" com o urubu. Saiu sem que ninguém percebesse, e entrou na viola do urubu, que estava encostada num cantinho do salão.

O sol já estava surgindo, quando a festa acabou e os convidados foram voando, cada um para o seu destino. O urubu pegou a sua viola e voou em direção à  floresta. Voava tranquilo, quando no meio do caminho sentiu algo se mexer dentro da viola. Espiou dentro do instrumento e avistou o sapo dormindo , todo encolhido, parecia uma bola.

- Ah! Que sapo folgado! Foi assim que você foi à festa no Céu? Sem pedir, sem avisar e ainda me fez de bobo!

E lá do alto, ele virou sua viola até que o sapo despencou direto para o chão. A queda foi impressionante. O sapo caiu em cima das pedras do leito de um rio, e mais impressionante ainda foi que ele não morreu. Nossa Senhora, viu o que aconteceu e salvou o bichinho. Mas nas suas costas ficou a marca da queda; uma porção de remendos. É por isso que os sapos possuem uns desenhos estranhos nas costas, é uma homenagem de Deus a este sapinho atrevido, mas de bom coração.

Fonte:
Christiane Angelotti, adaptação do conto de Luís da Câmara Cascudo. Disponível em Contos de Encantar