terça-feira, 30 de agosto de 2016

Paulo Leminski (XL)


Nilto Maciel (O Menino e o Bacamarte)

Para Airton Monte

De batismo chamava-se João Alves Mendes, nome depois reduzido a Jão. Apelidou-se Carcará, dizendo-se danado.

Virou índio aos cinco anos. Despia-se e corria pelo quintal, espantando galinhas e porcos. Subia às laranjeiras e de cima atirava laranjas podres nos bichos. Deu para fabricar arcos e flechas com que irritava os galos. Queria matar todos os brancos da cidade com as armas nativas amontoadas no canto do muro. Crescia analfabeto e grosseiro, metido nos ca­fundós do quintal, sem reza e sem hora para nada.

   — Vem comer, menino.

    — Já comi.

Devorava bananas quase verdes e chupava as laranjinhas mal brotadas.

Aos doze anos organizou uma tribo e saía pelas ruas a experimentar seu arsenal nos ossos dos cachorros. Os vizinhos reclamavam, o povo todo se maldizia.

— Mataram meu gato.

— Foi o moleque do Pedro Mendes.

— O doidinho?

  Já rapazinho, viu-se só. Nenhum dos companheiros de infância queria mais brincar de índio. Preferiam namorar nas pracinhas. E Jão seminu, armado de arco e flecha, pintado de jenipapo. Correndo o mato atrás de preás, pescando no Potiú. Mal dormia em casa.

Um dia deram-no por perdido. Vasculharam toda a cidade e arredores, e nada de notícia dele. Nos leitos dos rios nem sinal de corpo apodrecido. Nos açudes talvez nada. Nos matos nenhum mau cheiro. A mãe só faltou morrer de chorar. O pai resmungava.

Dias depois a notícia chegou: Carcará havia tentado invadir Parangaba, onde brancos escravizavam Jaguaribaras. Repelido, foi bater na Precabura. E em seu encalço saíram trinta soldados e alguns habitantes da Fortaleza. Acossado, embrenhou-se nos matos.

— Vamos pegar o doido.

Em Parangaba criou fama. Andava armado e voltaria para matar qualquer inocente. Talvez até uma criança. O povo todo do bairro só falava nele e alguns se armavam para caçá-lo.

Foi visto às margens do Choró e correu espantado feito bicho do mato.

— Querem ocupar também aqui?

Depois passaram pelo Pacoti.

Sua fama se espalhou. Todo o Ceará já sabia de um doido fantasiado de índio que andava pelos sertões. A confusão se fez logo. Qualquer rapazote visto de calção no mato era perseguido. Muitos apanhavam até provarem nunca ter ouvido falar de índio. Houve casos de barbaridades. E o estopim se alastrava pelo Rio Grande do Norte. Todo o sertão pegava fogo: Carcará atacava vilarejos com suas flechinhas que mal ofendiam um passarinho, e os homens o perseguiam com revólveres e metralhadoras.

Certo coronel João de Barros, saudoso de seus tempos de chefe de capangas, prometeu caçar e prender o delinquente. Procurou o padre João da Costa e prometeu-lhe entregar o doido. Dito e feito. Com poucos dias de caçada, lá estava Jão acuado numa grota, cercado por mais de vinte homens, seguro e amarrado. Levado à presença do padre, aquietou-se e prometeu viver pacificamente daí em diante.

Na conversa, conseguiu fugir, deixando o padre atarantado. Dessa carreira foi bater no Banabuiú. Vagou pelos sertões à cata de companheiros. Chegava às fazendas e convocava os caboclos para uma guerra.

— Que guerra, seu menino?

 — Para acabar com os brancos.

Aliciou alguns rapazes que já tinham ouvido falar em reforma agrária.

— Vamos expulsar os ricos das terras?

A guerra começaria em Aquiraz. De lá partiriam para outras cidades e as fazendas. E seguiram, ele nu e armado de arco e flecha, os outros vestidos de calça e camisa e armados de foice e facão. No meio do caminho encontraram uns capangas, que dispersaram o regimento, mas Carcará conseguiu escapar e continuar viagem. E entrou em Aquiraz, onde disparou centenas de flechas contra indefesos e pacatos aquiraenses atônitos. Ciente da carnificina causada, fugiu para o rio Choró, onde se defrontou mais uma vez com o coronel João de Barros, saindo ferido.

Em Aquiraz o pânico crescia. Organizou-se uma expedição para caçar o louco, caçada que nunca deu em nada. Carcará então já vagava por Pacatuba, Pacoti, Catu, Cocó, espiando as coisas.

Um dia foi ter numa fazenda de certo Senhor Feitosa, que disputava terras a uns tais Montes e precisava de homens valentes, cabras machos. A partir daí a vida de Carcará mudou. Deram-lhe um bacamarte. E virou capanga, com mais de cem mortes nas costas.

Fonte:
MACIEL, Nilto. As insolentes patas do cão. São Paulo: Scortecci, 1991.

domingo, 21 de agosto de 2016

Paulo Leminski (XXXIX)


Lenda Africana (O Violino do Macaco)

A fome e a necessidade de satisfazê-la forçou o macaco a abandonar a sua terra e procurar outro lugar entre estranhos para o tão necessário trabalho. Bulbos, feijões da terra, escorpiões, insetos, e estavam completamente extintas em sua própria terra. Mas, felizmente, ele recebeu, por enquanto, abrigo com um tio-avô dele, Orangotango, que morava em outra parte do país.

Quando ele tinha trabalhado durante certo tempo ele quis voltar para casa e, como recompensa seu tio deu-lhe um violino e um arco e flecha e lhe disse que com o arco e flecha, ele poderia acertar e matar qualquer coisa que ele desejasse, e com o violino ele poderia obrigar qualquer coisa a dançar.

O primeiro que ele encontrou em seu retorno para a sua terra foi o irmão lobo.  Este velho companheiro disse-lhe todas as novidades e também que ele estava desde cedo tentado perseguir um cervo, mas tudo em vão.

Então macaco disse para ele todas as maravilhas do arco e flecha que ele carregava nas costas e lhe garantiu que se avistasse o cervo, ele iria acertá-lo para ele. Quando o lobo mostrou-lhe o veado, o macaco estava pronto e derrubou o cervo.

Eles fizeram uma boa refeição juntos, mas em vez do lobo ser grato, o ciúme se apoderou dele e ele pediu o arco e flecha. Quando o macaco recusou-se a lhe dar, ele usou sua força para ameaçá-lo, e assim, quando passaram pelo chacal, o lobo disse que o macaco tinha roubado o seu arco e flecha. O chacal tendo ouvido falar do arco e flecha, declarou-se incompetente para resolver o caso sozinho, e ele propôs que eles levassem a questão para o Tribunal do Leão, Tigre, e os outros animais. Nesse meio tempo, ele declarou que iria ficar tomando conta do que tinha sido a causa de sua discussão, de modo que seria mais seguro, como ele disse. Mas o chacal imediatamente atirou em tudo o que era comestível,  e isso gerou um longo período de matança, antes que o macaco e o lobo concordassem em levar o caso para o tribunal.

As evidências do macaco era frágeis, e para piorar, o testemunho de chacal foi contra ele.  Ele pensou que desta forma seria mais fácil obter o arco e flecha para si mesmo.

E assim a sentença foi contra macaco. O roubo foi encarado como um grande crime: ele seria enforcado.

O violino ainda estava ao seu lado, e ele recebeu como um último desejo do tribunal o direito de tocar uma música nele.

Ele era um mestre dos truques de sua época, e além disso, tinha o maravilhoso poder de sua rabeca encantada. Assim, quando ele emitiu a primeira nota do “Canto do Galo” no violino, o tribunal começou logo a mostrar uma vivacidade incomum e espontânea, e antes de terminar a primeira estrofe da valsa da velha canção toda a corte estava dançando como um redemoinho.

Mais e mais, mais rápido e mais rápido, tocou a melodia do “Canto do Galo” no violino encantado, até que alguns dos bailarinos, exaustos, caíram, embora ainda mantendo seus pés em movimento. Mas o macaco, músico como ele era, ouvia e não via nada do que tinha acontecido à sua volta. Com a cabeça colocada carinhosamente contra o instrumento, e seus olhos meio fechados, ele tocou, mantendo a cadência com o seu pé.

O lobo foi o primeiro a gritar em tom suplicante, sem fôlego, “Por favor, pare, primo macaco! Pelo amor de Deus, por favor, pare!”

Mas o macaco nem conseguiu sequer ouvi-lo. Mais e mais a valsa “Canto do Galo” parecia irresistível.

Depois de um tempo o leão mostrou sinais de fadiga e, quando ele rodava mais uma vez com a leoa, ele rosnou quando passou do macaco, “Todo o meu reino é vosso, macaco, se você parar com essa música!”

“Eu não quero isso”, respondeu macaco “, mas retire a sentença e devolva o arco e flecha, e você, lobo, reconheça que você o roubou de mim!”

“Eu reconheço, reconheço!” gritou o lobo, e o leão no mesmo instante, chorou anulando a punição.

O macaco ainda deixou-os girando mais uma vez ao som da valsa, e depois recolheu seu arco e flecha, e sentou-se no alto da árvore de espinhos mais próxima.

A corte e outros animais estavam com tanto medo que ele pudesse começar de novo que apressadamente correram para outras partes do mundo.

Fonte:
http://www.sacred-texts.com/afr/saft/sft05.htm in https://casadecha.wordpress.com/category/lendas/

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Paulo Leminski (XXXVIII)


Nilto Maciel (O Inseto)

Sonhou João Cordeiro que subia aos céus, no bojo de uma nave estranha, tripulada por seres esquisitos.

Contou o sonho primeiro a sua mulher. Levaram aquilo muito a sério e durante toda a manhã engendraram novas teo­rias, que à tarde deixaram seus ouvintes em estado de graça.

A sabedoria de João assentava-se em Os fundamentos da vida, de um tal Krishnaradha, edição apócrifa do Rigveda, traduzida do francês para o português pelo carioca Si­darta Hastinapura. E também em Sodoma e os deuses, de Jack Morton, e Os extraterrestres, de Teddy Young.

Armado de tão maravilhosas armas, levava a vida a com­bater os leitores de porcarias e inutilidades, como Homero, Camões, Machado, Graciliano.

Os materialistas, coitados, mereciam dele as mais ferinas farpas, por voltarem as costas à vida, à energia cósmica, à realidade impalpável.

Sua sábia boca enchia-se de espuma diante de bebedo­res de cerveja, fumantes, frequentadores de motéis, revolucio­nários, admiradores de Lampião, Pelé e Carlitos.

No seu sonho privilegiado, acompanhado apenas dos navegantes do infinito, olhava para a Terra, aquela minúscula bolinha azul, e ria dos bichos humanos, salvo da catástrofe.

A palavra jorrava de seus olhos feito chispas incendiá­rias. Onde permanecesse por mais de um discurso, deixava plantado o vírus de sua ciência.

  — Só existe uma verdade e esta eu a sei. Ela está nas palavras dos seres, não destes imbecis chamados filósofos, mas daqueles que nunca aprenderam nada, porque já trouxeram consigo todas as explicações.

Se alguém se interessava por suas pregações, não mais parava de falar, a citar Krishnaradha a três por dois.

Parecia viver o sonho: liberto da mentira da Terra, a na­vegar no rumo da Verdade, passageiro da Nave da Vida.

No trabalho contava com alguns ouvintes e uns poucos adversários. Aos primeiros dedicava uma ou duas horas por dia e aos outros chamava de vermes, bichos e cadáveres.

Se falavam de salários, carestia, injustiça, irritava-se com tanta mesquinhez. A vida vibrava dentro de cada um, lá fora, na selva, na água, no ar.

— A realidade está além de tudo isto, porque antes da roupa que vestimos, do livro que vocês leem, das preocupa­ções que vocês têm, já a vida existia.

Lembrava-se bem: a espaçonave de seu sonho tinha for­mas variadas — achatada, pontiaguda, circular — e os tripu­lantes não falavam, comunicavam-se com ele por meio de si­nais, gestos, cores, sentimentos materializados.

Conhecia pessoalmente o mestre Krishnaradha, que vivia na Suíça, ocupado apenas com os ensinamentos da vida, em conferências diárias.

— Quantos seres existem entre nós?

— Dez, cem, milhares. Eles estão por aí, vivendo, aguar­dando o momento da Viagem.

A ciência de João ia além dos livros indianos, da sabedo­ria antiga e eterna dos seres como Cristo e Krishnaradha.

— Os homens, como os outros animais, nasceram de se­mentes lançadas à Terra por seres superiores, habitantes de outros mundos.

Os extraterrestres podiam apresentar formas humanas. No sonho, por exemplo, os tripulantes da nave até falavam português e vestiam-se como lavradores.

— De longe percebi tudo e nem me espantei quando per­guntaram se eu já queria partir.

A reputação de João variava de pessoa para pessoa: sábio, sa­bido, doido, besta. Para sua mulher talvez chegasse a santo.

Apregoava o fim da raça humana, por se ter distanciado da vida, dos objetivos do Criador, e ao mesmo tempo abria baterias contra postemas como Hitler.

—    A catástrofe não tarda — bradava.

— A guerra? — perguntavam, espantados, seus ouvintes.

            – Ela e tudo: maremotos, furacões, terremotos, incêndios, inundações. E dela só se salvarão os seres, porque vocês, a grande maioria, não são seres, são bichos.

   No sonho, deixava a Terra, essa morada podre de vermes, e alcançava a dimensão dos deuses.

   Não viajou em vida, porém. Morreu recentemente, após ingerir um litro de inseticida.

Fonte:
MACIEL, Nilto. As insolentes patas do cão. São Paulo: Scortecci, 1991.

Lenda Australiana (O Goanna e Suas Listras)

Novamente foi nos dias em que os animais andavam sobre duas pernas e eram em todos os sentidos iguais aos seres humanos. Havia duas tribos que viviam juntas, Mungoongali os Goannas (1) e Piggiebillah os Équidnas (2). Era uma associação desconfortável, pois seus antepassados, que vieram de terras distantes no oeste, eram de diferentes espécies. Os Goannas nasceram ladrões, enquanto os porcos eram uma tribo muito mais autossuficientes, e eram caçadores especializados.

Os goanas mandaram os équidnas dormir, assaram a comida e depois queriam roubar tudo, subindo com a caça nas árvores

Na planície oriental para a qual as duas tribos tinham migrado, os Piggiebillahs ou équidnas ocupavam-se da caça, mas a comida dos Mungoongalis ou goanas comiam somente os favos das abelhas nativas, que eles coletavam subindo em árvores, e comida que roubavam da aldeia dos dos Porcos.

É triste relatar que suas depredações ia além disso, pegando as crianças desprotegidas dos équidnas que eram mortas e comidas em segredo.

Em certa ocasião, os goannas convidaram seus vizinhos para se juntar a eles em uma expedição de caça. Os porcos riram com desdém.

‘Vocês se tornaram especialistas na perseguição desde ontem, ou no dia anterior? eles perguntaram ‘Obrigado por sua oferta, mas vamos fazer muito melhor sem vocês. “

“Por favor, venha com a gente”, pediram. “Nós sabemos que não podemos caçar, mas enquanto vocês estiverem ocupados, vamos reunir favos de mel das árvores,” um dos équidnas mais jovens disse ao seu povo:  “isto pode funcionar. Vamos nos juntar a eles?

“Tendo em conta o fato de que somos notoriamente mal sucedidos em subir em árvores, eu acho garoto que você está mostrando mais do que sua sagacidade habitual”, o équidna mais velho observou ao jovem sarcasticamente.

Os homens das duas tribos saíram juntas. Os équidnas fizeram uma grande matança, mas no final do dia, e os goannas não haviam catado um único favo de mel. Embora fossem hábeis em escalada de árvores, eles estavam com preguiça de trabalhar sob o sol quente. Quando eles viam que estavam sendo observados, eles fingiam fazer buracos nos troncos das árvores para subir, mas tão logo os équidnas lhes davam as costas, eles se deitavam e dormiam.

“Não importa”, os goannas disseram no final do dia. ‘Favos estão escassos neste ano. Agora é hora de vocês descansarem. Vamos cozinhar a caça. Vão dormir. Vamos chamá-lo quando a comida estiver pronta.”

“A luz do fogo piscavam sobre as folhas das árvores e sobre as formas adormecidas dos équidnas. De vez em quando um deles se virava e perguntava sonolento: “A janta não está pronta ainda?”

“Ainda não. Vão dormir. Vamos acordá-los quando estiver pronta. “

Os équidnas partiram pra cima deles pra recuperar a caça!

Quando a comida ficou pronta os goanas correram até as árvores e se esconderam nas folhagens. Um deles ficou para trás e jogou os corpos assados dos animais um por um para seus companheiros nas árvores. Mas fazendo isso ele passou muito perto do fogo, batendo contra um tronco queimado de modo que caiu sobre um sobre um équidna, que acordou com um grito. Os outros ficaram de pé e viram a comida desaparecer entre as árvores.

Um dos équidnas pegou um pedaço de lenha acesa e atacou o goana. As cinzas caíram sobre seu corpo dourado, queimando a carne e deixando um rastro de listras pretas e amarelas, que tem sido desde a coloração que distingue os goannas de outros lagartos monitores.

Não é de estranhar, portanto, que os goanas e équidnas se evitem, pois eles não tem os pensamentos mais felizes um sobre o outro.…
_________________________
Nota:

1) Tipo de lagarto monitor australiano;
2) Os équidnas são mamíferos que põe ovos que habitam a Austrália.

Fonte:
http://www.artistwd.com/joyzine/australia/dreaming/goanna.php#.UjB72z8iz5k 
in https://casadecha.wordpress.com/category/lendas/

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Nilto Maciel (O Riso do Gato)

Nunca ria o gato. Sisudo, posava dia e noite para os de casa e os de fora. Costumeiramente vivia em cima da mesinha de centro. Às vezes nas prateleiras da estante, ao lado da Bíblia, da enciclopédia, dos discos. Mil vezes escapou do fim. Quando a arrumadeira se zangava. Quando os meninos brinca­vam de bola na sala. Quando qualquer mão descuidada o aba­nava.

Não lhe faltavam elogios. Chamavam-no gato bonito, ga­tinho lindo, belo gatão. Mesmo quando percebiam sua cir­cunspecção. Talvez até vissem nela o melhor de sua beleza.

As visitas chegavam a ser impertinentes, mal-educadas. Queriam saber onde a dona da casa havia comprado tão fino bibelô. Que loja vendia adornos como aquele? Onde encon­trar enfeite tão raro? Se era de gesso, porcelana, barro.

Imune à curiosidade geral, o gato olhava muito sério para o meio da sala. Nem sequer mexia os longos fios do bigode colado às faces. Como se falassem do fim do mundo, de mor­tes e dores.

Um dia, porém, o gato amanheceu outro. Um largo sorri­so enchia seu rosto formoso. O bigode mais espalhado, os olhos mais brilhosos. Não, não se tratava do mesmo objeto. Alguém andava brincando naquela família.

A dona da casa se irritou. Queria de volta seu gato sisu­do. Ou não servia o café. O dono da casa apoiou a mulher. Ou o gato antigo, ou muita briga.

Desconfiaram da arrumadeira. Se não desse conta imediatamente do gatinho lindo, perdia o emprego. E ganhava um processo na Justiça. Por roubar um enfeite raro.

A cozinheira jurou inocência pelas chagas de Cristo. Adora­va o gato bonito. Só não falava em verdadeira paixão para não ser chamada de doida.

A moça da casa chamou os pais de idiotas. Deixassem de besteiras. Ninguém roubara o gato. Simplesmente o bicho re­solvera mudar de cara.

Terminado o café, todos já concordavam com a moci­nha. Cada um, no entanto, defendia, com unhas e dentes, sua opinião a respeito do motivo daquela tão esquisita mudan­ça de feições. Para a mãe, o gatinho lindo ria por um só motivo — estava amando. Segundo o pai, o belo gatão ria à toa. Co­mo um débil mental. O rapazinho achava o gato um gênio, que ria da imbecilidade humana.

A copeira limpava a mesa e resmungava. O gatinho sorria como qualquer pessoa. Mais tarde, talvez chorasse.

Um dos meninos achou por bem dar palpite. O bichano ria de satisfeito. Durante a noite pegara um ratinho. Só podia ser aquilo.

Houve gargalhadas em toda a casa.

Zangado, o garoto quis arriscar outra opinião. E se aproxi­mou da mesinha de centro. Seus pais e irmãos gargalhavam ainda.

Súbito agarrou e ergueu a peça. A gargalhada teve fim. Ha­via realmente um ratinho no fundo oco do objeto.

Fonte:
MACIEL, Nilto. As insolentes patas do cão. São Paulo: Scortecci, 1991.

Nemésio Prata e José Feldman (Correspondências em Versos)

NAVIOS

Ouvi falar com receio
de um cabra de muitos brios:
– Nemésio está no torneio?
Deixa-nos a ver navios!!!
(José Feldman)

RESPOSTA DO NEMÉSIO

Torneio mesmo só é
bom quando a turma é das boas;
sou grato ao amigo Zé
pelos navios de loas!

Mas, por falar em navios,
lembrei de trama passada:
eu, todo cheio de brios,
fui ao mar numa jangada.

Depois de muita marola,
quase vomitando os bofes
voltei à terra. Gabola,
hoje faço essas estrofes!
____________________
UM ADEUS NO DOMINGO

Ayllin 
(25 set 2001 - 22 mai 2016)
Ayllin... assim se chamava,
leal, doce, puro amor...
 Sua ternura encantava,
mesmo em momentos de dor!
(José Feldman)

RESPOSTA DO NEMÉSIO:
Leal, terna e encantadora,
razão de alegria e risos,
doce "Ayllin", tão sedutora,
hoje calou os seus guizos!

No sofá, o seu lugar
predileto está vazio;
silenciou seu ronronar...
a alegria fez estio!

Dura perda, caro irmão
pra você que tanto amor
tem aos bichanos, que são
razão de alegria e dor!
_________________________
NEMÉSIO PRATA
MANHÃ DE ABRIL

Nesta manhã aprilina
choveu no meu Ceará,
também veio chuva "fina"
das bandas do Paraná;
este "chover", na verdade,
que banhou a nossa herdade,
veio lá de Maringá!

Às vezes, fico a pensar
como ficará, no dia
que esta chuva nos "faltar";
vai secar toda alegria
do Trovador brasileiro,
seu chão vai virar braseiro...
- Livrai-nos desta agonia!
_______________________

MATE O TEMPO MAS NÃO MATE A TROVA

NEMÉSIO PRATA

Saiu por aí, disperso.
Tão logo se viu sozinho
buscou o caminho inverso;
perdeu-se num descaminho!

Cuidado quando sair
por aí, buscando atalho,
pois você pode cair
na armadilha de um bandalho!

 

Quando sair pra balada,
a noite, é bom se cuidar
para não ser assaltada
e "perder" seu celular!

- O celular! -Vai passando!
Pede o assaltante, peralta.
- Um momento! - Estou mandando
um "zap-zap"! Diz o internauta!
(Nemésio Prata)

JOSÉ FELDMAN DANDO CORDA

O tempo nunca é perdido...
Por mais que o tempo se vá,
mesmo sendo um foragido,
ele está aqui e acolá.

Na vida, saindo em atalhos,
nada de bom acontece,
pois eles são qual cascalhos
que sob o pé, se padece.

O celular é importante,
pois até para assaltar,
é nele que o assaltante
diz: - Alô! Vou te roubar!
(José Feldman)

RESPOSTA DO NEMÉSIO SOBRE SUA TROVA DE PÉ QUEBRADO (em itálico acima)

Neste atalho tinha um galho,
nem dei fé, dei um tropeço;
mil perdões... foi ato falho:
já botei o pé no "gesso"!

Depois de consulta "métrica"
ao "ortotrovista" Zé,
estou de bota "ortopédrica"
para consertar o "pé"!

Graças ao "esteticista"
das trovas, já consertei
a trova, que vai revista:
e mais cuidado terei:

Cuidado quando sair
à solta, buscando atalho,
pois você pode cair
na armadilha de um bandalho!

ou, numa versão mais "atualizada":

Depois de levar um malho
do meu amigo José,
não vou mais pegar atalho
para não "quebrar o pé"!
(Nemésio Prata)
_________________________
NEMÉSIO PRATA
FAZENDO TROVAS

No contexto de uma trova
deve o Trovador rimar
com cuidado, pondo à prova
a trova, pra não "melar"!

Não fazer verso "perneta"
e nem de "perna comprida"
são cuidados que o exegeta
deve tomar de saída!

E nem brincando rimar
tamarindo com limão
só porque ao paladar
ambos azedos lhes são!

Singrando o mar da poesia
o Trovador deve ter
cuidado na travessia
pra nas rimas não morrer!

Jamais se deixar levar
pelos ventos de pretextos
falsos, sem antes cuidar
de enfunar velas no texto!

Mas se o contexto o levar
a um pretexto alucinante
deve o Trovador lembrar
do leitor: o navegante!

Depois de escrever as tais
"asneiras", fico a pensar
se já não está demais
de "besteiras"... vou parar!

Folclore Japonês (Anchin e Kiyohime: O Monge e a Serpente)

Este é um velho conto japonês que inspirou gerações de poetas, e é uma das histórias mais encenadas no Japão. É uma antiga lenda a respeito do sino de Dojoji, um templo budista na província de Kishu, hoje Wakayama. Que muitas centenas de anos atrás, abrigou um belo monge com o nome de Anchin, irmão do imperador Suzyaku. Existem muitas versões literárias deste trágico conto, em que o jovem monge se envolve com uma delicada menina provocando seu ódio a ponto de transformá-la em uma terrível e vingativa serpente.

Há muitos e muitos anos, havia um jovem monge chamado Anchin. Todos os anos, ele fazia uma peregrinação nos Caminhos de Kumano. Certa ocasião, quando se dirigia a um dos templos, começou a escurecer, precavido, procurou abrigo onde pudesse passar a noite. O religioso encontrou uma aldeia chamada Hidaka e bateu à porta de uma de suas habitações. Foi atendido pelo senhorio Kiyotsugu que era o administrador da aldeia. Lá, o monge teve uma recepção calorosa, e foi convidado a passar a noite.  Kiyotsugu tinha uma bela filha adolescente chamada Kiyohime.

Anchin elogiou a beleza da garota e disse brincando que um dia viria buscá-la para se casarem. Kiyohime acreditou nele. Na manhã seguinte, Anchin seguiu em peregrinação.

Na casa de seu pai, Kiyohime esperou pacientemente pelo retorno de seu prometido amor. O tempo passou. As estações mudaram, e os crisântemos no jardim de flores desapareceram novamente, mas Anchin não retornou.

Três anos se passaram e Anchin novamente estava fazendo a peregrinação pelos Caminhos de Kumano. Por coincidência, quando passava próximo da aldeia, o tempo fechou e começou a escurecer. Lembrando que já conhecia o administrador local, foi pedir hospedagem.

O monge já nem se lembrava da menina Kiyohime, mas, ao vê-la na casa do administrador, a lembrança voltou à mente do monge. Ao mesmo tempo, o religioso ficou  surpreso ao constatar que ela havia se transformado em uma bela mulher.

O coração de Anchin ansiava pela calma do templo ao som dos sinos da noite e o canto suave dos sutras. Mas a noite caía rapidamente e ele estava cansado. Então Anchin retirou-se para o quarto ofertado pelo senhorio.

Anchin já havia pegado no sono quando foi despertado pela presença de Kiyohime ao lado de seu leito. Ela se atirou em seus braços e disse emocionada: – Obrigada por ter vindo me buscar. Esperei tanto por esse momento que, durante três longos anos, fiquei contando os dias à sua espera. O monge não protestou… foi uma noite de volúpia.

Ao despertar, na manhã seguinte, Anchin, caiu em si. Como bonzo (Sacerdote budista), estava proibido de se casar. Mas não teve coragem de contar a verdade para a inocente Kiyohime. Prometeu a ela que iria até o templo em Kumano e na volta passaria em sua casa para assumir seu compromisso matrimonial.

Na tarde deste dia, Anchin chegou ao templo. Como estava com a cabeça nas nuvens, Osho-san, o monge superior, logo percebeu que ele poderia estar pensando em alguma mulher. Por isso, aconselhou-o que meditasse bastante antes de fazer alguma bobagem. Anchin meditou muito e finalmente disse para si mesmo: – Eu sou um bonzo. Não posso querer Kiyohime. Regressarei por outro caminho para não me encontrar com ela. E assim fez.

Enquanto isso, Kiyohime, preocupada, se perguntava: – Por que Anchin não volta do templo? Ela decidiu ir ao seu encontro. Perguntou para um peregrino que passava por ali se ele não havia visto um monge e fez a descrição de seu tipo físico. – Sim, eu o vi no templo, ele tomou outro caminho para retornar a sua cidade.

– Não posso crer. Ele havia prometido que viria ao meu encontro – disse Kiyohime surpresa e quase chorando.

Ela então correu muito para alcançar Anchin e chegou a vê-lo na travessia do Rio Hidaka.

– Anchin, me espere! Anchin, me espere! – ela gritou com toda a força de seus pulmões.

Ao vê-la, Anchin disse: – Remador, rápido, zarpe o bote.

Kiyohime surpreendeu-se e ficou sem entender porque ele estava fugindo. Ela ficou muito triste, desesperada e cega de raiva, seu amor transformou-se em ódio. – O rato entrou no rio e desapareceu. Somente uma serpente aquática pode acabar com um rato da água.

Kiyohime estava com tanto ódio, que mergulhou no rio para tentar atravessá-lo a nado. Pessoas que estavam na beira do rio ficaram pasmas com o gesto impensado de Kiyohime. Naquele rio, a correnteza era tanta que era impossível atravessá-lo nadando. Testemunhas contaram mais tarde que a moça atravessou o rio nadando e, quando surgiu na outra margem, havia se transformado em uma enorme serpente.

Dizem que o desejo de sua mente moldou seu corpo, transformando-a numa serpente aquática. A jovem transformada pela ira, mergulhou no rio e foi nadando atrás do bote onde estava o monge.

Anchin desembarcou do bote e refugiou-se no Templo Dodoji. – Socorro, socorro, escondam-me por favor! Os monges do templo, mesmo sem saber de que se tratava, abaixaram um enorme e pesado sino, ocultando Anchin em seu interior.

A serpente subiu a escadaria e encontrou o sino. Anchin rezava desesperadamente. Enfurecida, ela se enrolou no grande sino, jorrando chamas de sua enorme boca como um dragão serpente.

O sino começou a esquentar, esquentar, até que o metal avermelhou completamente e deformou-se, derretendo um dos lados, matando Anchin  em seu interior.

Os monges de Dodoji fizeram o enterro do jovem Anchin. Após a tragédia, encomendaram a fundição de um novo sino e determinaram que nenhuma mulher poderia se aproximar novamente de sua plataforma.

O tempo passou, e o novo sino chegou ao Templo Dodoji. Foi preparada uma grande festa para instalação do sino com a participação da comunidade local, porém a cerimônia de entronização estava proibida para mulheres. Entretanto, durante a cerimônia, uma encantadora jovem finamente vestida aproximou-se, e se atirou-se tocando o sino e, para espanto de todos reunidos, desapareceu sem deixar vestígios, como se engolida pelo gongo.

A partir desse acontecimento, o sino ao ser tocado, não soava  como os sinos dos templos, mas gemia como uma voz terrível. E cada vez que ele tocava, desastres aconteciam. Até finalmente, por não mais suportarem, o sino foi levado para baixo, e enterrado.

Ele permaneceu enterrado durante 200 anos, até que Toyotomi Hideyoshi ordenou que fosse cavado e levado para o santuário Myomanji, onde as cinzas de “Sakyamuni Buddha” foram consagradas pelo Imperador Asoka. E lá, dizem que o som da “Sutra de Lótus” incessantemente entoada pelos monges do templo, finalmente trouxe o descanso para as almas atormentadas de Kiyohime e Anchin.

Com o tempo, o som do sino adquiriu uma beleza irresistível, tingida com sabedoria e consciência de dukkha (o sofrimento necessário à mudança).

Ainda hoje, o sino permanece em Myomanji, como um tesouro do templo, junto com as cinzas sagradas de Sakyamuni.

Dizem que, muito tempo depois, Anchin e Kiyohime apareceram abraçados e felizes em sonhos dos monges do Templo Dodoji, eles finalmente encontraram seu destino nos caminhos da Sutra de Lótus.

Fontes:
Wikipedia
Caçadores de Lendas

domingo, 14 de agosto de 2016

Paulo Leminski ("das coisas")


Ialmar Pio Schneider (Download do livro da Coleção Terra e Céu)


Coleção Terra e Céu, publicado pela Editora Texto Certo, de Porto Alegre, lança a Coleção Terra e Céu, com  um trovador vivo e um falecido de diversos estados do Brasil, em seus 100 livros, homenageando os 100 anos de nascimento de Luiz Otávio . São cerca de 40 páginas repletas de trovas.

Neste, de número 94, trovas do gaúcho Ialmar Pio Schneider, o qual homenageia o falecido Rei das Trovas, Adelmar Tavares.


Palavras Iniciais do Livro

Para bem comemorar o centenário de nascimento de Luiz Otávio, idealizador e fundador da maior entidade congregadora de cultores do gênero poético TROVA do mundo, a seção de Porto Alegre da mesma criou a coleção “LUIZ OTÁVIO É CEM”, com o intuito de editar cem livros de trovas até o final do ano.
E agora, em cima disso, uma outra, complementando-a: “TERRA E CÉU”. Ou seja, os trovadores vivos homenagearão os falecidos, seus amigos, com a edição de um livro duplo, com trovas de um e de outro.
A ideia é sempre a mesma, mudou um pouquinho a forma. E, com certeza, teremos uma porção de belos livros, uns virtuais, outros físicos, mas serão sempre livros. Dessa forma, lavra-se mais um tento nesta busca incansável, nesta verdadeira cruzada de que os trovadores brasileiros participam, qual seja a de ver, um dia, este gênero poético devidamente valorizado e divulgado, inclusive pela chamada grande mídia.

Flávio Roberto Stefani
Presidente da UBT Porto Alegre

Para baixar o livro clique sobre um dos links abaixo, que será encaminhado para nova página para fazer o download.


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Ou se preferir ou estar com dificuldade para fazer o download, escreva para pavilhaoliterario@gmail.com, pedindo o livro.

Virgínia Woolf (Um Diálogo no Monte Pentélico)

“Aconteceu, e não há muitas semanas, que um grupo de turistas ingleses desceu a encosta do Pentélico. Eles porém teriam sido os primeiros a retificar esta frase e a assinalar o quanto de inexatidão e injustiça se continha nessa descrição de seu grupo. Porque chamar um homem de turista, quando o encontramos no exterior, é definir não apenas suas circunstâncias, mas também sua alma, e suas almas inglesas, teriam dito — mas os burros assim tropeçam nas pedras —, não estavam sujeitas a limitações desse tipo. Os alemães são turistas e os franceses são turistas, mas os ingleses são gregos. Tal era o sentido da conversa entre eles, e devemos ouvir suas palavras, que nisso, de fato, eram de muito bom senso. O monte Pentélico, como sabemos nós que o lemos, traz porém em seu plano a nobre cicatriz dos ferimentos sofridos nas mãos dos canteiros gregos que o malhavam, recebendo de Fídias um sorriso, quando não um insulto, como recompensa por seu trabalho.

Assim, para fazer justiça ao monte, deve-se meditar sobre vários temas à parte e combiná-los da melhor maneira possível. Não se deve tomá-lo apenas por aquele contorno que passava por tantas janelas gregas — Platão erguia os olhos da página, nas manhãs ensolaradas —, mas também como oficina de trabalho e local de moradia onde inumeráveis escravos iam perder a vida. Para o grupo, quando ao meio-dia eles desmontaram, foi salutar ter de cambalear penosamente por entre os blocos de mármore em bruto que, por alguma razão, tinham sido esquecidos ou deixados de lado quando as carretas desciam para Atenas. Foi salutar porque na Grécia pode-se esquecer que as estátuas sejam feitas de mármore, foi benéfico ver como se opõe o mármore, sólido e fragoso e intratável, ao cinzel do escultor.

“Assim eram os gregos!” Quem ouvisse tal grito poderia supor que cada um dos falantes tinha alguma conquista pessoal a celebrar, sendo ele mesmo o generoso vencedor da pedra. Que outrora a forçara, com suas próprias mãos, a entregar seus Hermes, seus Apolos. Mas então os burros, cujos ancestrais tinham sido estabulados na gruta, deram fim à meditação e os cavaleiros, seis em fila, foram descendo gravemente pelo flanco do monte. Tinham visto Maratona e Salamina, e Atenas, se não houvesse uma nuvem que a acariciava, também teria sido deles, de alguma forma sentiam-se municiados de ambos os lados por presenças tremendas. E, para mostrarem-se devidamente inspirados, não só repartiram sua garrafa de vinho com o séquito de jovens gregos do campo, imundos, mas até condescenderam em dirigir-se a eles na própria língua local, como a falaria Platão, se tivesse aprendido grego em Harrow. Que outros decidam se foram justos ou não, mas o fato de palavras gregas faladas em solo grego serem mal compreendidas por gregos destrói de um só golpe toda a população da Grécia, homens, mulheres e crianças. Uma palavra apropriada, em face da crise, lhes veio aos lábios, uma palavra que Sófocles poderia ter dito e que Platão teria sancionado - eles eram “bárbaros”. Denunciá-los assim era não só desincumbir-se de um dever em relação aos mortos, mas também proclamar os legítimos herdeiros, e as pedreiras de mármore do Pentélico, por alguns minutos, estrondearam a notícia a todos que pudessem dormir debaixo dos seus calhaus ou ocupar as cavernas. O povo espúrio foi condenado, a raça escura e tagarela, de língua solta e instável de intenções, que por tanto tempo havia parodiado a fala e surrupiado o nome dos grandes, foi pega e condenada.

Obediente ao grito do arrieiro ao descer aos locais de sua guarda — uma mula branca puxava a fila — com a boa vontade de alguém que livra as próprias costas a cada golpe que aplica sobre costas alheias. Pois o inglês, quando gritou, julgou que era melhor ir mais rápido. Não poderia ter-se mostrado mais feliz como crítico, o momento possuía sua própria palavra, poeta algum faria mais do que isso, e a um prosador seria fácil ter feito menos. Assim, com aquele simples grito, os ingleses saíram aos tropeções de seu clímax para descer a montanha em algazarra, tão despreocupados e jucundos como se a terra fosse deles. Mas a descida do Pentélico a certa altura se aplaina numa chapada verde onde a natureza parece soerguer-se um momento antes de mergulhar novamente encosta abaixo. Há grandes plátanos de mãos benevolentes abertas, e há cômodas moitinhas, dispostas em estrita ordem caseira, há um riacho do qual se pode pensar que cante loas e as delícias do vinho e da canção. Poder-se-ia ouvir a voz de Teócrito, na queixa que fazia nas pedras, e alguns dos ingleses a ouviram mesmo, embora o texto, nas prateleiras em casa, andasse bem empoeirado. Aqui, seja como for, a natureza e o cantar do espírito clássico impulsionaram os seis amigos a desmontar e descansar um pouco. Seus guias se recolheram, mas não tão longe que não pudessem ser vistos em seus trejeitos de bárbaros, pulando e cantando, puxando-se uns aos outros pela manga e falando das uvas já maduras que pendiam nos campos. Mas se há coisa que sabemos dos gregos é que eram gente tranquila, muito expressiva ao gesticular e falar, e aqueles, ao sentarem-se à beira do riacho, sob um plátano, dispuseram-se como um pintor de vasos teria certamente gostado de retratá-los: o rosto escuro do velho, quando seu queixo caiu sobre o cajado, virou-se para cima do jovem estendido no gramado a seus pés. Mulheres sérias, caladas, passavam de roupa branca por trás, equilibrando ânforas nos ombros. Nenhum especialista da Europa poderia recompor esse quadro, nem convencer nossos amigos de que algum teria mais direito de construir tais visões do que eles mesmos. Estenderam-se pois na sombra, e não foi culpa deles, nem dos antigos, se seu discurso não esteve à altura, na concepção pelo menos, de seu nobre modelo. Mas como, em se tratando de diálogos, escrever é ainda mais difícil do que falar, como é duvidoso se diálogos escritos foram jamais falados ou se diálogos falados jamais foram escritos, trataremos de salvar tão-somente fragmentos concernentes à nossa história. Não deixaremos de dizer todavia que a conversa entre eles era a melhor conversa do mundo.”

Lenda Inca (Viracocha e a Chegada dos Incas)

Os nativos destas terras afirmam que, no início, e antes que deste mundo ser criado, havia um ser chamado Viracocha . Ele criou um mundo escuro, sem sol, lua ou estrelas . Devido a esta criação foi nomeado Viracocha Pachayachachi, que significa "Criador de todas as coisas". E quando ele criou o mundo , ele formou uma raça de gigantes de grandeza desproporcional pintados e esculpidos, para verificar se ele fiaria bem fazer os homens reais daquele tamanho. Ele, então, criou o homem à sua semelhança como são agora, e viveram na escuridão.

Viracocha ordenou que estas pessoas que vivessem sem brigas, e que eles deveriam conhecê-lo e servi-lo. Ele deu-lhes certas regras que eles precisavam observar sob pena de serem confundidos se eles as quebrassem. Mantiveram esses preceitos, por algum tempo, mas não foi mencionado o que eram. Mas, como surgiu entre eles os vícios do orgulho e da cobiça, eles transgrediram o preceito de Viracocha Pachayachachi e caíram, através deste pecado, vítimas de sua fúrias, ele confundiu todos e os amaldiçoou . Em seguida, alguns foram transformados em pedras, outros em outras coisas, alguns foram engolidos pela terra, outros pelo mar, e sobre tudo , veio uma inundação geral que eles chamaram unu pachacuti, que significa “água que engole a terra” Dizem que choveu 60 dias e noites  que se afogaram todas as criaturas da criação, e que só permaneceu alguns vestígios daqueles que foram transformadas em pedras, como um memorial do evento, e como exemplo para a posteridade, os edifícios de Pucara , que estão a 60 léguas de Cuzco.

Algumas das nações, além da Cuzcos, também dizem que alguns foram salvos desta inundação para deixar descendentes para uma época futura . Cada nação tem sua fábula especial que é contada por seu povo, de como os seus primeiros antepassados ??foram salvos das águas do dilúvio. Que as ideias que criaram em sua cegueira podem ser entendidas, vou apresentar apenas uma, contada pela nação dos Cañaris, uma terra de Quito e Tumibamba, a 400 léguas de Cuzco e muito mais.

Dizem que na época do dilúvio chamado unu pachacuti havia uma montanha chamada Guasano na província de Quito e perto de uma cidade chamada Tumipampa. Os nativos ainda a encontram. Para esta montanha foram dois dos Cañaris chamados Ataorupagui e Cusicayo. A medida que as águas aumentavam, a montanha também continuava subindo e se mantendo acima da inundação, de tal maneira que nunca seria coberta pelas águas do dilúvio. Desta forma, os dois Cañaris escaparam. Estes dois, que eram irmãos, quando as águas diminuíram depois do dilúvio, começaram a semear. Um dia, quando eles estavam no trabalho, no retornar à sua casa, encontraram nele alguns pequenos pedaços de pão e uma jarra de chicha, que é a bebida usada nesse país em lugar de vinho, feito de milho cozido. Eles não sabiam quem havia trazido, mas eles deram graças ao Criador, comeram e beberam dessa provisão. 

No dia seguinte, a mesma coisa aconteceu. Como eles se maravilhou com esse mistério, eles estavam ansiosos para descobrir quem trouxe as refeições. Então, um dia eles se esconderam para espiar os provedores de seus alimentos. Enquanto eles estavam vigiando eles viram duas mulheres Cañari preparar os alimentos e colocá-los no lugar de costume. Quando estavam prestes a ir embora, os dois homens tentaram pegá-las, mas elas evitaram seus captores e fugiram. Os Cañaris, vendo o erro que cometeram em molestar aquelas que os haviam feito o bem, ficaram tristes e oraram a Viracocha pelo perdão dos seus pecados, pedindo-lhe para deixar as mulheres voltarem e dar-lhes as refeições habituais . O Criador concedeu seu desejo. As mulheres voltaram e disseram aos Cañaris :”O Criador pensou que seria bom que retornássemos para vocês, para evitar que vocês morressem de fome.” Elas trouxeram-lhes comida. Em seguida, se iniciou uma amizade entre as mulheres e os irmãos Cañari, e um dos irmãos Cañari tinha uma conexão com uma das mulheres. Então, como o irmão mais velho, morreu afogado em um lago que estava próximo, o sobrevivente se casou com uma das mulheres, e fez da outra sua concubina. Através delas, ele teve dez filhos, que formaram duas linhagens de cinco cada, e aumentando em números chamaram uma linhagem de Hanansaya que é o mesmo que dizer que é a casta superior, e a outra era Hurinsaya, ou a casta menor. Destas linhagens descendem todos os Cañaris .

Da mesma forma todas as outras nações têm fábulas de como algumas de suas pessoas foram salvas, de quem eles têm sua origem e descendência. Mas os Incas e a maioria daqueles de Cuzco, entre aqueles que se acredita saber mais, dizem que ninguém escapou da inundação, e que Viracocha criou os homens de novo, como será explicado mais à frente. Mas uma crença é comum entre todas as nações desta parte do mundo, todos eles falam de um grande dilúvio, que eles chamam de unu pachacut. A partir daí podemos entender claramente que, se, por estas bandas eles têm uma tradição da grande inundação, que falam de uma grande massa das ilhas flutuantes que mais tarde chamaríamos de Atlândita, quer dizer que nas Índias de Castela, ou América, chegou uma população que veio de longe, logo após o dilúvio, embora, do seu jeito, os detalhes que ele contam são diferentes daqueles que as Escrituras nos ensinam. Isto deve ter sido feito pela Providência divina, através dos primeiros colonos chegadas à terra da ilha do Atlântico (Américas). Então os nativos, embora bárbaros, deram as razões para a origem desse antigos assentamentos, ao relatar do dilúvio.

Fontes:
http://www.sacred-texts.com/nam/inca/inca01.htm in https://casadecha.wordpress.com/category/lendas/

sábado, 13 de agosto de 2016

Paulo Leminski (rosa rilke raimundo correia)


Juan Pablo Villalobos (1973)

“A influência dos espaços na produção literária”, com Juan Pablo Villalobos, dia 16/09, às 19h30, na 3ª FLIM - Festa Literária Internacional de Maringá, no Centro de Convivência Comunitária Renato Celidônio, ao lado da prefeitura.
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Juan Pablo Villalobos nasceu em Guadalajara, México, em 1973.

Casado com uma brasileira, com quem tem dois filhos “meio mexicanos, meio brasileiros”, foi residir em Campinas (SP), onde se dedicou a concluir a trilogia sobre seu país natal. Na Espanha, com uma bolsa de estudos da União Europeia, fez o doutorado em Teoria Literária.

Autor dos romances Fiesta en la madriguera (Anagrama, Espanha), publicado no Brasil como Festa no covil (Companhia das Letras, 2012), traduzido para 15 idiomas, e Si viviéramos en un lugar normal (Anagrama, Espanha), publicado no Brasil como Se vivêssemos em um lugar normal (Companhia das Letras, 2013), traduzido para 8 idiomas. A edição inglesa de Festa no covil, Down the Rabbit Hole (And Other Stories), foi finalista do prêmio First Book Award do jornal londrino The Guardian e selecionada como livro do ano nas listas de The Daily Telegraph e The New Statesman. Festa no covil foi adaptado para o teatro em São Paulo e seus direitos foram vendidos para o cinema. A edição inglesa de Se vivêssemos em um lugar normal, chamada Quesadillas (And Other Stories), recebeu o Pen Club Award e foi selecionada como livro do ano nas listas de The Guardian e Financial Times.

Escreve para diferentes revistas, jornais e blogs do México, Brasil, Espanha, Colômbia, Argentina, Reino Unido e Estados Unidos. É colunista do Blog da Companhia das Letras e do Blog do Pen Club do Reino Unido. Seus livros estão publicados no Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Holanda, Hungria, Turquia, Estados Unidos, Japão, Rússia, Israel, Romênia, Bulgária e Portugual.

Traduziu para o espanhol os romances brasileiros Todos os cachorros são azuis, de Rodrigo de Souza Leão, e O drible, de Sérgio Rodrigues. É bolsista do Sistema Nacional de Creadores de Arte de México.

Fontes:
Facebook
CELPCYRO

Folclore Japonês (Neko-no-Hi: Dia dos Gatos no Japão)

Os gatos são um dos bichos mais estimados na “Terra do Sol Nascente”. Tanto é verdade que existem lugares e lendas que o tem como sagrado. São Santuários, amuletos, mascotes, cafés e até ilhas, isso mesmo, ilhas conhecidas como “Ilha dos Gatos”, onde o bichano é reverenciado. Nestas duas ilhas japonesas, a de Aoshima e Tashirojima, os gatos, rodeados por um pequeno grupo de humanos, é que reinam. O amor por esses pequenos felinos é tamanho que existe até um dia dedicado a homenageá-los, é o dia 22 de fevereiro, conhecido no Japão como “Neko-no-hi”, ou “O dia dos gatos”.

Neko-no-Hi: Origens

A escolha da data tem uma razão, na língua japonesa o número 2 é pronunciado como “ni” e 22 de fevereiro pode ser escrito 22/2, ou seja, “Ni Ni Ni”. Portanto, se repetida três vezes a data, a pronúncia: “Nyan Nyan Nyan” se assemelha ao miado de um gato.

Considerada uma jogada de marketing, a data foi criada em 1987, por uma fabricante de ração para pets, a “Japan Pet Food Association”. Neste dia os donos celebram seus bichanos queridos com presentes, passeios especiais como a ida a um Santuário dedicado ao felino. Acontecem ainda diversos eventos e campanhas no arquipélago, seguida de atividades educativas sobre os gatos.

Inspirados por esse apego dos japoneses ao gato, no Japão existem Santuários Xintoístas destinados exclusivamente a rezar por saúde e vida longa de seus animais de estimação, os “Nekogami Jinja” (Santuário dos Gatos). Localizados em Kagoshima e Kannushi, os Santuários Xintoístas tem uma fonte de água, onde os visitantes jogam moedas e fazem pedidos logo em seu “Toril” (Portal de entrada). Existe até uma lenda que justifica a criação dos Santuários:

Origem do  Santuário dos Gatos

Segundo a lenda, por volta do ano de 1572, Yoshihiro Shimazu, um grande samurai, viajou certa vez de Kyushu para a Coreia, para a “Batalha de Kizakibaru”. Junto com sua comitiva, ele levou sete gatos, porém não como animais de estimação.

Contam que, o samurai conseguia decifrar as horas ao longo do dia através das pupilas dos olhos dos 7 gatos, que mudavam de acordo com a posição do sol, especificamente 6:00 am, 8:00 am, 10:00 am, meio-dia, 2:00 pm, 4:00 pm e 6:00 pm. O que possibilitou Yoshihiro ter uma maior precisão do tempo durante sua longa batalha, permitindo vencer seu inimigo. A vitória contra o clã Ito, é tida com grande contribuição para a unificação de Kyushu.

Sendo um budista devoto, Yoshihiro construiu um monumento para as tropas inimigas durante a “Segunda Guerra dos Sete Anos”. A participação de Yoshihiro foi essencial para o clã Shimazu, tornando-se o 17 º Senhor de Shimadzu.

Por fim, ao final da batalha, apenas dois dos sete gatos sobreviveram e foram levados de volta à Kagoshima. Como forma de gratidão ao serviço e lealdade prestados, em 1602, o senhor Shimadzu construiu um santuário dedicados exclusivamente a eles.

Após a Restauração Meiji (1868), a família mudou-se para a Vila Shimadzu e o Santuário dos Gatos foi transferido para lá, tornando-se um local de devoção a todos os gatos.

Ainda relacionado ao evento, no Santuário foi criado o “Toki no kinenbi” (Dia do Tempo) comemorado no dia 10 de junho.

Nessa data, no Templo, relojoeiros e apreciadores de gatos, prestam homenagem a estes dois gatos sobreviventes da lenda, os “gatos do tempo”. No local também são feitas orações para os gatos que tenham morrido ou que estejam doentes, ou para encontrar seus bichos perdidos. Ou simplesmente, agradecer e celebrar seu animal de estimação, com mensagens escritas em plaquinhas de madeira (emás) que são penduradas nas paredes do Santuário.
A paixão pelos felinos é tamanha, que no Japão existem locais onde, pessoas que não tenham oportunidade de manter esses bichanos em seu lar, possam passar um tempo com seus animais preferidos, os chamados “Cat Cafe”.

Ou, se preferir, pode adquirir um amuleto com o gato da sorte, o “Manekineko” ou um exemplar do mascote do Castelo de Hikone, província de Shiga, muito popular no Japão o “Hikonyan” também chamado de “Gato Samurai”. Ou ainda, a gatinha mais famosa do Japão, a “Hello Kitty”.

Enfim, gatos não faltam na “Terra do Sol Nascente” e são, sem sombra de duvidas, um dos animais mais queridos dos japoneses.

Fonte:
Caçadores de Lendas

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Paulo Leminski (" O poema")


Ana Maria Machado (Era uma Menina do seu Tamanho)

Era uma vez uma menina. Não era uma menina deste tamanhinho. Mas também não era uma menina deste tamanhão. Era uma menina assim mais ou menos do seu tamanho. E muitas vezes ela tinha vontade de saber que tamanho era esse, afinal de contas. Porque tinha dias que a mãe dela dizia assim:

- Helena, você já está muito grande para fazer uma coisa dessas. Onde já se viu uma menina do seu tamanho chegar em casa assim tão suja de ficar brincando na lama? Venha logo se lavar.

Que já era bem grande.

Mas às vezes, também, o pai dizia assim:

- Helena, você é muito pequenina para fazer uma coisa dessas. Onde já se viu uma menina do seu tamanho ficar brincando num galho de árvore tão alto assim? Desça já daí. Se não, você pode cair

Ai Helena achava que era mesmo uma bebezinha que não podia fazer nada sozinha.

E era sempre assim. Na hora de ir ajudar no trabalho da roça, ela era bem grande. Na hora de ir tomar banho no rio e nadar no lugar mais fundo, ela ainda era muito pequena. Na hora que os grandes ficavam de noite conversando no terreiro até tarde, ela era pequena e tinha que ir dormir. Na hora em que espetava o pé com um espinho e queria ficar chorando no colo de alguém, só com dengo e carinho, sempre dizia que já estava muito grande para ficar fazendo manha. Se ela tivesse um espelho mágico, que nem rainha madrasta da Branca de Neve, bem que podia perguntar:

- Espelho meu, espelho meu, que tamanho tenho eu?

Fonte:
Ana Maria Machado. Bem do seu tamanho. RJ: Brasil – América, 1982

Sandra Regina Moura* (O Processo de Investigação de Caco Barcellos como Ato Comunicativo)

*(UFPB/PUC-SP)

Quando pensamos na investigação jornalística de Caco Barcellos com tendência para a comunicação, faz-se necessário ressaltar que estamos lidando com conceitos explorados pela pesquisadora Cecília Almeida Salles, que, a partir da semiótica peirciana, olha para o processo de criação como um ato comunicativo.

Em termos peircianos, todo pensamento é dialógico na forma, seja externamente, ocorrendo entre duas pessoas ou mais, seja internamente, ocorrendo no próprio pensamento de uma pessoa. Cecília Almeida  Salles coloca a questão nos seguintes termos:

Cabe nos relembrar que essa recepção criativa do pensamento não é limitada, para Peirce , à presença de um  interlocutor externo. Pode se tratar de um diálogo que se dá na mente de um mesmo indvíduo — é o diálogo entre diferentes fases do ego de que Peirce fala — o interlocutor  é interno, é o próprio indivíduo.
Em sua fase de gestação, o pensamento do criador mostra ser dialógico. É o seu pensamento dialogando com diferentes fases do ego. É o escritor não como um individual  — seus  pensamentos são o que ele está dizendo a ele mesmo (inesperadamente e intrometidamente ele está, também dizendo aquele que observa seu processo criativo)
”(1990: 77).

A nossa proposta toma como base a ideia de que a investigação de Caco Barcellos surge  como diálogo do jornalista com ele mesmo, com seus pesquisadores, com seus amigos e com suas fontes de informação. Para estudo, tomamos como referência o livro de sua autoria, Rota 66, lançado em 1992.

Rota 66 é resultado de um trabalho investigativo em que o jornalista Caco Barcellos denuncia que a maioria das pessoas assassinadas por policiais militares, no período de abril de 1970 a junho de 1992, durante o patrulhamento no município de São Paulo, constitui-se de inocentes. A obra  desvenda os métodos de extermínio da PM, traça o perfil dos matadores e das vítimas e mostra as circunstâncias em que foram assassinadas. O balanço final revela que  a polícia mata mais jovem, negro ou pardo, migrante, principalmente da região Nordeste, e morador da periferia da cidade.

NO JORNALISMO:

Antes de adentramos no processo de investigação de Caco Barcellos, optamos por apontar a presença do ato comunicativo no processo de produção jornalística, mais especificamente na relação do jornalista com três dos principais processos de captação da informação: entrevista, fonte e pauta.

Nossa opção justifica-se tendo em vista que Caco Barcellos traz para a reportagem em livro, no caso Rota 66, esses três recursos de obtenção da informação jornalística.

Em linhas gerais, podemos dizer que está na própria natureza da entrevista a necessidade de ser compartilhada. Um dos seus objetivos é exatamente o da comunicação humana. Nesse sentido, evidenciamos que a relação do jornalista com as fontes de informação é um ato comunicativo, que se manifesta nas perguntas e respostas ou até mesmo  nas perguntas sem respostas, na busca da confiança recíproca, nas interferências, no gesto, no olhar e na atitude corporal.

Ao apontar a evolução do processo de captação da informação, no jornalismo, Cremilda Medina (1982) sugere que, mais do que extrair informações do entrevistado, o repórter deve estabelecer elos de confiança para que se instaure o diálogo de fato na entrevista. “É justamente neste ponto do processo jornalístico que se define uma situação comunicacional e não apenas, como insistem os teóricos, depois que o produto é veiculado e ocorre ou não a reação de feedback” (1982: 146).

Ao nosso ver, Medina  constata que o processo jornalístico se manifesta com uma tendência para a comunicação. Neste trajeto o jornalista já encontra-se imerso na rede comunicativa. A autora mostra, ainda, que “na feitura da reportagem existe uma situação comunicativa básica: as fontes de informação são parte da própria realidade e a relação do repórter com essa realidade pode se processar de forma dinâmica, interativa, ou estática, unilateral” (1982: 146).

No âmbito das preocupações do processo jornalístico, a pauta mantém relações estreitas com a entrevista e a fonte. Apresenta-se também como espaço de comunicação em que repórter, pauteiro, chefias, editorias e diretorias  se interagem sobre a feitura das edições jornalísticas. Clóvis Rossi (1988) atribuiu à pauta duas funções básicas: a de orientar repórteres para a cobertura jornalística e a de manter chefias e direção a par de tudo que está sendo planejado e executado pela redação.

A pauta concentra em si força determinante no processo comunicativo. Desde o momento em que é planejada, até a sua execução, ela é construída com tendência para a comunicação. A começar pelas chamadas reuniões de pauta, em que editores discutem os prováveis fatos a serem noticiados. Sem falar que ela poderá decorrer também de sugestões do repórter e do leitor.

Ronaldo Henn (1996) observa que, dependendo da estatura de cada redação, uma série de reuniões de menor porte são desenvolvidas nas editorias específicas, que poderão delinear novas pautas em função das pulsões do cotidiano ou mesmo da inadequação do que foi proposto inicialmente. O autor lembra, ainda, que, quando a edição entra em processo final de fechamento, nova reunião de pauta é realizada, com o intuito de se fazer um balanço do que foi apurado no decorrer do dia.

Inserindo o estudo de Ronaldo Henn na nossa discussão, podemos dizer que as observações do autor reforçam a ideia de que a pauta é um processo com tendência comunicativa. Nas rotinas dos periódicos e meios eletrônicos, a pauta funciona como uma espécie de elo entre repórteres, pauteiros, chefias e editores. Ela praticamente obriga os produtores do jornalismo a permanecerem ligados durante todo o dia. Motivados pela pauta, é comum encontrar nas redações editores indagando seus repórteres durante o processo de produção jornalística: “Conseguiu falar com o ministro?”, “Localizou o senador?”. E por aí vai.

A INVESTIGAÇÃO:

As formas de registro do processo investigativo de Caco Barcellos revelam a investigação como um percurso com tendência para a comunicação. Observando o  trajeto de Barcellos, flagramos instantes em que o jornalista dialoga com ele mesmo, com sua equipe de pesquisadores, com suas fontes de informação e com seus amigos.

Essas marcas da comunicação na questão processual, no caso de Caco Barcellos,  se manifestam, por exemplo, em uma das cartas localizada no emaranhado dos documentos que nos foi entregue para estudo. Nesta correspondência, que supomos, pelo teor,  tratar-se de um interlocutor da confiança do jornalista, há uma voz que elogia e comenta o estilo de Barcellos em Revolução das Crianças: sobre a revolução sandinista na Nicarágua, um livro anterior a  Rota 66.

Esta carta é um dos elementos que nos permite flagrar o incentivo que o jornalista recebeu dos amigos para a realização de Rota 66 e também permite revelar momentos de fragilidade do jornalista diante de seu objeto. “Não tenho certeza, mas acho que é Conrad quem diz que o objetivo de um escritor é fazer o leitor enxergar. Acho seu livro um bom exemplo disso. Há uma sinceridade, um compromisso, uma urgência, uma espécie de ‘febre’ humanista”, diz um dos trechos da correspondência referindo-se à Revolução das crianças. Logo a seguir, temos entre parênteses: “Lembrei-me de você falando que, às vezes, ficava desanimado para escrever Rota 66 por achar que isso só interessaria a você e tive vontade de te telefonar, em plena madrugada, para dizer que  você tem o compromisso moral de escrever este livro. Hoje eu tenho certeza que a tarefa do romancista contemporâneo é exatamente esta, colher pedaços de vida e dispôs-los no papel”. É o que diz a carta quando Barcellos ainda esboçava a idéia de escrever o seu segundo livro.

    Seguindo na linha do aspecto comunicativo, observamos que alguns amigos têm um papel fundamental no processo de Caco Barcellos. “Quando escrevi as primeiras linhas de Rota 66, enviei o texto para um amigo meu em Porto Alegre.   Ele leu e devolveu dizendo que gostou do texto”, revela o jornalista em depoimento à autora deste trabalho.

    Essa necessidade de uma  quase que “aprovação” dos seus leitores particulares, quando a obra encontra-se ainda em processo, pode ser apontada em outro momento do trajeto de Barcellos. Na fase de redação, são dadas sugestões pela editora e amiga Eliana Sá, a quem o jornalista confiou a sua obra. “Acabei não cortando nenhum dos textos dos processos. Achei que procedem e que, afinal de contas, um dos capítulos pode ser mais ‘preciso’. Fiz algumas pequenas mudanças e enxuguei algumas outras laudas. Veja o que você acha”. Em outra anotação, a mesma leitora acrescenta: “Caco, devolvendo já lido. Gostei. Veja algumas propostas de mudanças”.

PESQUISADORES:

Além dos amigos, identificamos também diálogos entre Caco Barcellos e seus pesquisadores. Nesse sentido, as fichas, criadas para armazenar informações sobre assassinatos divulgados pelo Notícias Populares, jornal diário de SP, envolvendo civis e policiais militares, desempenham um papel fundamental na investigação. Além de servirem para abrigar o resumo dos principais dados de cada caso, as fichas registram boa parte da comunicação travada pelo jornalista com seus colaboradores.

A ficha, criada  para dar praticidade a anotação dos dados principais de cada caso, traz informações sobre a vítima, como nome, idade, cor da pele, endereço, profissão, local e motivo da morte. Também armazena dados dos matadores, além dos nomes da delegacia da área do tiroteio e do delegado que escreveu o boletim de ocorrência.

No espaço destinado nas fichas às observações do pesquisador, há manifestação do aspecto comunicativo. São idéias registradas em anotações de Barcellos para os seus colaboradores e vice-versa. Nas fichas, do período de 1970 a 1979,  correspondente ao resumo das matérias do Notíciais Populares, em boa parte se localizam as expressões: “Investigar na ficha IML”, “Procurar na ficha IML” ou “Ver  ficha IML”. São termos utilizados por Barcellos para dar continuidade a investigação dos casos noticiados pelo jornal.

Um exemplo dessa comunicação entre Barcellos e seus colaboradores está na ficha datada de 10 de abril de 1979. No resumo dos dados, o pesquisador Sidnei Marques Silva escreve o nome e a idade de dois mortos, a partir das informações colhidas no NP. Na mesma ficha, Caco Barcellos faz a seguinte anotação: “Não consta IML? Checar”.

Os pesquisadores atuam como interlocutores. Sidney Silva mantém com Caco Barcellos o seguinte diálogo: “Hoje faz quatro meses que estou lendo esse jornal. Você já notou que não tem notícia de tiroteio com sobrevivente?”. Em outro momento, o pesquisador sugere: “Tiroteio na Penitenciária. Placar: 31 mortos. PM zero. Nenhum. Isso é um massacre, Caco Barcellos. Tem que ser denunciado”. São observações que oferecem rumo à investigação: “Mais um morto no meu bairro. Sempre negro ou pardo, está percebendo”, diz Sidnei em um outra anotação, chamando a atenção de Caco Barcellos para a hipótese de que a PM mata mais negro ou pardo.

FONTES:

Outro aspecto interessante, do ponto de vista processual, é a comunicação que Caco Barcellos estabelece com as fontes  de informação. Para o trabalho de identificação dos matadores e de suas vítimas, Barcellos tentou, durante anos, obter informações sobre o andamento de processos na Auditoria Militar de São Paulo. Os juízes negavam esses pedidos, alegando dificuldades na localização  dos processos porque o jornalista nem sempre tinha identificação dos envolvidos no crime.

Depois  que conseguiu identificar os principais matadores pelo banco de dados que criou no início da pesquisa, juntamente com sua equipe, Barcellos conseguiu obter no distribuidor criminal da Auditoria os números dos processos que desejava. Na documentação de Rota 66 que tivemos acesso, encontramos vários pedidos, por escrito,  em que Barcellos solicita ao órgão responsável bloco de folhas para requerer certidões no poder judiciário, alegando que o objetivo era a realização de uma longa pesquisa sobre antecedentes criminais para a sua empresa Pena Branca Produções de Vídeo.

No seu percurso, Barcellos se defronta com outros entraves burocráticos. De posse dos números obtidos no distribuidor criminal, o jornalista tentou consultar os processos nos cartórios da Justiça Militar. Em 1987, alguns juízes não permitiram. Cinco anos depois, o jornalista, em  pedido encaminhado ao juiz da primeira Auditoria, Paulo Antônio Prazak, solicita autorização para consultar os processos de sete policiais militares. Desta vez, alega que o objetivo da pesquisa é o levantamento de dados para a produção de futuros trabalhos jornalísticos.

    Entre os documentos submetidos à nossa análise, localizamos esta solicitação,  acompanhada da resposta do juiz, com data de 10.02.92.

“1 — D. O signatário a formular pedidos distintos para  cada qual dos processos aos quais serão juntados apresentando qual: filiação(...),incluindo seu(s) endereço(s)
2 — em conta dos objetivos, o signatário deverá responsabilizar-se, por eventuais lesões causadas, notadamente quanto ao que dispõe o artº 5º, inciso X da Constituição Federal, aliás expressamente referido pelo art. 220, parágrafo 1º da mesma Carta Magna”.

     A relação de Caco Barcellos com as suas fontes vem se revelando a todo momento tratar-se de um ato comunicativo. Deparamo-nos com um documento, datado de 24 de abril de 1992, dirigido ao Diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, em que Barcellos solicita autorização para Sidnei Marques Silva, da sua equipe de pesquisadores, prosseguir no levantamento de dados, junto ao fichário desta Instituição, para o complemento da pesquisa de sua autoria sobre “morte por causa violenta”. E esclarece: “Nesta parte do trabalho sua tarefa será a de conferir dados já obtidos. Portanto, poderá ser realizada num período aproximado de dez dias”.

Esse processo comunicacional entre jornalista-fonte é reforçado por um outro documento localizado no material que nos foi apresentado. Trata-se de um questionário encaminhado por Caco Barcellos a pessoas que perderam parentes, vítimas da violência na cidade de São Paulo. O documento, redigido em uma única folha, divide-se em dois tópicos: o primeiro, com cinco perguntas, refere-se à hipótese de a pessoa não ter recebido indenização pela morte do parente; o segundo, com seis indagações, destina-se aos casos de pessoas que não foram indenizadas.

Na comunicação com suas fontes, Barcellos esclarece o objetivo da sua pesquisa. “Meu interesse nesse trabalho é saber exatamente qual é o tamanho do seu drama. O seu caso já está registrado no nosso Banco de Dados. Mas ainda nos faltam algumas informações, que são fundamentais para conseguirmos melhores resultados nesse trabalho”.

Esse recurso comunicativo permeia todo o processo. Encontramos Caco Barcellos dialogando com ele mesmo. Seu caderno de anotações esboça algumas indicações desse momento dialógico. É o jornalista mergulhado na sua tarefa de conhecer melhor cada caso. “Checar caso Dirley e Hoffman (17 anos) Favela Heliópolis - Liga Martinez”. Em outra anotação: “Ir ao Paulistano”. Ou: “Nomes  PMs averiguar”.

Os trechos das anotações do jornalista, em seu caderno, revelam a preocupação constante de investigar cada vez mais os casos envolvendo crimes de policiais militares. Evidencia a necessidade de checagem das informações, o cuidado com a apuração dos assassinatos, a atenção a detalhes dos casos investigados e a busca por um aprofundamento dos fatos.

Em determinado momento, flagramos Barcellos numa conversa, na qual evidencia essas preocupações: “Fiz pesquisa no distribuidor criminal sobre alguns PMs”. Em outra folha do caderno, temos: “A fazer auditoria. Caso Pixote. Caso Zezinho. Caso Casa de Detenção”. De certo modo, os registros desses instantes vão deixando transparecer o método de investigação do jornalista.

Nas fichas do NP, também identificamos marcas dessa comunicação íntima. Nesse diálogo, Barcellos vai fazendo conexão com outros casos. Na ficha NP, datada de oito de abril de 1979, encontramos essa ligação. “Atenção Diadema - lembrei Lázaro”.

CONSIDERAÇÕES:

A intromissão no processo investigativo de Caco Barcellos permite apontar que a rede comunicativa se instaura no sentido de oferecer pistas à investigação, colaborar na apuração de dados e auxiliar o jornalista em suas decisões.

Com base no que foi analisado, até o momento, percebemos que esses documentos revelam as estratégias criadas por Caco Barcellos para ter acesso à informação. Como vimos, ora o jornalista justifica que os dados servirão para a realização de uma longa pesquisa sobre antecedentes criminais para a sua empresa Pena Branca Produções de Vídeo, ora o levantamento de dados destina-se à produção de futuros trabalhos jornalísticos. Uma terceira possibilidade apresentada é de que a pesquisa é sobre morte por causa violenta.

O mergulho no mundo processual do jornalista vai revelando, a cada documento, a complexidade do processo de investigação dos casos de Rota 66. Cada vez mais, nos deparamos com uma rede comunicativa, que vai revelando uma série de mediações entre o acontecimento e a investigação.

Como vimos, são mediações ancoradas nas fontes, na pauta, nos pesquisadores, nos amigos etc. Uma anotação de uma das pesquisadoras,  Luciana Burlamaqui, para Barcellos, após o cumprimento de uma das pautas preparadas pelo jornalista, exemplifica bem  esse desencadeamento de signos interpretantes que irá redundar em Rota 66. Vejamos o registro: “Procurei reproduzir a entrevista, dando as minhas impressões no que julguei mais importante, para tentar lhe passar qual a postura dele diante do caso 66 e de outros conceitos”. Vale lembrar que Burlamaqui refere-se à entrevista feita por ela com o sargento Antônio Sória, um dos envolvidos nos casos de assassinatos.

Eis outro trecho que registra as impressões de Burlamaqui:

Sobre o caso de Rota 66, ele não disse nada de muito revelador, acho que você sabe tudo. O mais interessante são as suas opiniões, o que pensa da polícia, bandidos e como se coloca no caso com a sua ‘falta de memória’ e o seu medo de falar. Achei o mais importante de tudo o fato dele não se arrepender de nada e que faria tudo novamente”.

         Tal constatação evidencia a complexidade do processo investigativo de Caco Barcellos. No caso citado acima, os acontecimentos (os assassinatos) já passam pela mediação de um signo produzido pela pauta (elaborada por Barcellos), pela fonte (no caso, o militar Antônio Soria), e pela repórter (encarregada de executar a entrevista, transcrevê-la e selecionar o que julga mais importante).

 BIBLIOGRAFIA

BARCELLOS, Caco. Rota 66: a história da polícia que mata. 18ª ed. São Paulo: Globo, 1993.
HENN, Ronaldo. Pauta e Notícia: uma abordagem semiótica. Canoas-RS: Ulbra, 1996.
MEDINA, Cremilda. Profissão jornalista: responsabilidade social. Rio de Janeiro: Forense, 1982.
________________. Entrevista: o diálogo possível. São Paulo: Ática, 1986.
ROSSI, Clóvis. O que é jornalismo. São Paulo: Brasiliense, 1988.
SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998.
_____________________.Uma criação em processo, Ignácio de Loyola Brandão e Não Verás País nenhum. Tese de Doutorado apresentada na PUC de São Paulo, 1990.