segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Vera Abad *, João Roberto Gullino ** (A presença feminina na poesia brasileira como musa inspiradora e como poeta criadora) Parte II

Título completo: A presença feminina na poesia brasileira como musa inspiradora e como poeta criadora - breve estudo comparativo da progressão de temas e linguagem usados por poetas brasileiros do séc. XVIII ao séc. XX

Século do romance, feminismo, revolução

Passando ao século XIX que podemos chamar de século do romance, vemos que a produção literária geralmente se atém a descrever heróis e heroínas ainda dentro do mesmo binarismo: papel de homem, papel de mulher na sociedade. A mulher como ajudante do homem, educadora dos filhos, um ser de virtude, o anjo do lar. Ou o oposto: mulheres fatais e decaídas. A escrita e o saber ainda funcionando como forma de dominação. Mesmo assim, um grande número de mulheres começou a escrever e publicar, tanto na Europa como nas Américas. Encobertas por pseudônimos masculinos, publicando em jornais e revistas, muitas vezes criados por elas próprias, tiveram inicialmente que dominar o manejo da palavra escrita, difícil numa época em que se valorizava a erudição. Mesmo dominando outras línguas, se de camadas sociais mais elevadas, sua educação era sempre voltada para as prendas domésticas e a educação moral e religiosa. Tiveram que rever o que se dizia delas e rever sua própria socialização. Virginia Woolf dizia que para se tornar uma escritora, a mulher precisava primeiro “matar o anjo da casa’,(6) isto é libertar--se do papel estereotipado que lhe era atribuído para poder revelar seu próprio eu. É nessa busca que vamos encontrar as melhores expressões literárias das mulheres poetas no Brasil.

De início, os romances de mulheres eram em grande parte autobiográficos. Precisavam expressar-se descrevendo seu próprio sofrimento, defendendo uma causa própria. Ainda presas aos estereótipos criados pelos autores masculinos, sentiam-se podadas pela insegurança em romper com os padrões socialmente aceitos. Na poesia, o resultado foi uma quantidade de poemas retratando seus próprios sentimentos o que muitas vezes soava piegas, elaborado, sem valor.

O grande jurista Clóvis Beviláqua (7) em crítica a tais poemas, comenta: “Com a direção mental a que geralmente se submetem, as mulheres que em nosso país têm uma educação intelectual, com sua sujeição inevitável à lei do atavismo... aqui as mulheres serão somente poetisas e poetisas voluptuosas, plangentes e desoladas.”
 
Casado com Amélia de Freitas Beviláqua, escritora e editora da revista O Lyrio, incentivou-a a seguir o jornalismo, e a publicar artigos e livros. Porém, quando em 1930, ela se candidatou à Academia Brasileira de Letras, viu sua pretensão barrada pelo simples fato de ser mulher. Do mesmo modo, Julia Lopes de Almeida, autora de romances de sucesso, teve que ceder sua candidatura ao marido, Filinto de Almeida.

Poetas brasileiras do século XIX

Selecionamos entre tantas apenas algumas que por sua obra ilustram o caminho percorrido. Uma seleção simbólica que permite demonstrar, na comparação entre seus poemas com os seus contemporâneos do sexo masculino, as modificações sofridas nos temas e linguagem ao longo do tempo de modo a acompanhar as modificações vivenciadas no papel social da mulher.

Do Nordeste do Brasil vem Nisia Floresta Brasileira Augusta (1810 – 1885). Dionísia Gonçalves Pinto, nascida no Estado do Rio Grande do Norte já revela no pseudônimo escolhido sua personalidade e opções existenciais: Nísia, diminutivo de Dionísia; Floresta, para lembrar o nome do sítio Floresta, onde nasceu; Brasileira, como afirmação do sentimento nativista; Augusta, uma homenagem ao companheiro Manuel Augusto. Sua obra reflete a preocupação com a posição feminina na sociedade. Escreve, de início, crônicas, artigos e opúsculos sempre sobre o mesmo assunto: “Conselhos à minha filha”, “A jovem completa” “O modelo das donzelas” “Discurso às educandas”. Mas em 1849 sai a primeira edição de “A lágrima de um caeté” no Rio de Janeiro, sob o pseudônimo de Telesilla. O poema de 712 versos trata do processo de degradação do índio brasileiro colonizado pelo homem branco e do drama vivido pelos liberais durante a Revolução Praieira ocorrida em fevereiro do mesmo ano. É este exemplo que nos demonstra a ruptura com temas então ditos femininos, e seus versos – embora sejam mais narrativa e descrição, pelo vocabulário escolhido, por sua força e precisão nada têm da suposta pieguice ou “leveza” esperada por sua condição feminina. “As lágrimas de um caeté” fazem par com “I-JucaPirama” de Gonçalves Dias e incluem Nísia Floresta no rol dos melhores representantes da corrente indianista ou nacionalista da primeira geração dos românticos do século XIX, conforme se verifica nos trechos escolhidos.

NÍSIA FLORESTA Brasileira Augusta
(1810–1885)

A Lágrima de um Caeté


Lá quando no Ocidente o sol havia
Seus raios mergulhado, e a noite triste
Denso ebânico véu já começava
Vagarosa a estender por sobre a terra;
Pelas margens do fresco Beberibe,
Em seus mais melancólicos lugares,
Azados para a dor de quem se apraz
Sobre a dor meditar que a Pátria enluta!
Vagava solitário um vulto de homem,
De quando em quando ao céu levando os olhos
Sobre a terra depois triste os volvendo...
Não lhe cingia a fronte um diadema,
Insígnia de opressor da humanidade...
Armas não empunhava, que os tiranos
Inventaram cruéis, e sob as quais
Sucumbe o rijo peito, vence o inerte,
Mata do fraco a bala o corajoso,
Mas deste ao pulso forte aquele foge...
Caia-lhe dos ombros sombreados
Por negra espessa nuvem de cabelos,
Arco e cheio carcaz de simples flechas:
Adornavam-lhe o corpo lindas penas
Pendentes da cintura, as pontas suas
Seus joelhos beijavam musculosos
Em seu rosto expansivo não se viam
Os gestos, as momices, que contrai
A composta infiel fisionomia
Desses seres do mundo social,
Que devorados uns de paixões feras,
No vício mergulhados falam outros
Altivos da virtude, que postergam
De Deus os sãos preceitos quebrantando!
Orgulhosos depois... ostentar ousam
De homem civilizado o nome, a honra!...


Antonio GONÇALVES DIAS
(1823 – 1864)

I-juca-pirama


Em larga roda de novéis guerreiros
Ledo caminha o festival Timbira,
A quem do sacrifício cabe as honras,
Na fronte o canitar sacode em ondas,
O enduape na cinta se embalança,
Na destra mão sopesa a iverapeme,
Orgulhoso e pujante. — Ao menor passo
Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra,
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,
Como que por feitiço não sabido
Encantadas ali as almas grandes
Dos vencidos Tapuias, inda chorem
Serem glória e brasão d’imigos feros.

“Eis-me aqui”, diz ao índio prisioneiro;
“Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,
“As nossas matas devassaste ousado,
“Morrerás morte vil da mão de um forte.”

Vem a terreiro o mísero contrário;
Do colo à cinta a muçurana desce:
“Dize-nos quem és, teus feitos canta,
“Ou se mais te apraz, defende-te.” Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.


Por suas posições feministas, Nísia Floresta amargou severas críticas assim como Narcisa Amália, que veremos a seguir. Desta última disse C. Ferreira no Jornal Correio do Brasil em 1872: “Mas perante a política, cantando as revoluções, apostrofando a reio, endeusando as turbas, acho-a simplesmente fora de lugar (...) o melhor é deixar o talento da ilustre dama na sua esfera perfumada de sentimento e singeleza”. Pois Narcisa Amália (1852 – 1924) filha do poeta Jácome de Campos e da professora Narcisa Inácia de Campos foi a primeira mulher no Brasil a se profissionalizar como jornalista, alcançando projeção em todo o país com seus artigos em favor da abolição da escravatura, em defesa da mulher e dos oprimidos em geral. Da mesma geração de Junqueira Freire e Fagundes Varela e contemporânea de Ezequiel Freire, tem seus poemas mais ao lado dos poetas Condoreiros,(8) na busca da expressão da liberdade. Descreve a sua condição feminina não como ser frágil e delicado, mas como forte para a luta. Eis sua resposta à tal suposição, partida de Ezequiel Freire: Porque sou forte em comparação a Temor de Junqueira Freire, poeta cuja vida breve e angustiada é refletida em poemas plangentes.

NARCISA AMÁLIA
(1852 – 1924)

Por que Sou Forte

a Ezequiel Freire

Dirás que é falso. Não. É certo. Desço
Ao fundo d’alma toda vez que hesito...
Cada vez que uma lágrima ou que um grito
Trai-me a angústia - ao sentir que desfaleço...

E toda assombro, toda amor, confesso,
O limiar desse país bendito
Cruzo: - aguardam-me as festas do infinito!
O horror da vida, deslumbrada, esqueço!

É que há dentro vales, céus, alturas,
Que o olhar do mundo não macula, a tern
Lua, flores, queridas criaturas,

E soa em cada moita, em cada gruta,
A sinfonia da paixão eterna!...
- E eis-me de novo forte para a luta.


Luís José JUNQUEIRA FREIRE
(1832 – 1855)

Temor


Ao gozo, ao gozo amiga. O chão que pisas
A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olhe que a terra
não sinta o nosso peso.

Deitemo-nos aqui. Abre-me os braços.
Escondamo-nos um no seio do outro.
Não há de assim nos avistar a morte,
Ou morreremos juntos.

Não fales muito. Uma palavra basta
Murmurada, em segredo, ao pé do ouvido.
Nada, nada de voz – nem um suspiro,
Nem um arfar mais forte.

Fala-me só com o revolver dos olhos.
Tenho-me afeito à inteligência deles.
Deixa-me os lábios teus, rubros de encanto
Somente para os meus beijos.

Ao gozo, ao gozo amiga. O chão que pisas
A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olhe que a terra
não sinta o nosso peso.


Na terceira geração de românticos, brilha Castro Alves, o poeta dos escravos, e a figura feminina que vamos encontrar a lhe fazer par é justamente sua irmã, Adelaide de Castro Alves Guimarães (1854 – 1940). Marcada pela sombra de homens ilustres – a de seu idolatrado e famoso irmão que lhe deve o cultivo de sua memória e a conservação de seu acervo e manuscritos inéditos; e a do seu marido, intelectual e jornalista respeitado, também abolicionista, Adelaide cumpriu a sina de muitas mulheres do século XIX, que, imbuídas da “sagrada missão de mães e esposas” dedicaram-se à glória dos homens de suas famílias. De fato, assim ocupada, a poetisa esqueceu-se de si própria e de seu talento, vivendo num ineditismo quase absoluto. Só por intermédio de sua filha, também poetisa, Regina Glória de Castro Alves Guimarães, seus poemas foram publicados no século seguinte.

ADELAIDE DE CASTRO ALVES GUIMARÃES (1854 – 1940)



Acercou-se do leito em andar vagaroso:
Condenada dir-se-ia a chegar ao degredo...
O vazio... o abandono... o sossego penoso...
Na marmórea brancura um funéreo lajedo!!...

Onde a estância risonha, o país venturoso
dos afagos sutis... da carícia em segredo...
Dos seus dous corações o pulsar amoroso
De onde a sorte cruel, a expulsara tão cedo?!...

Nesta angústia, que espera esse olhar assim fito
No macio colchão, na macia almofada,
Testemunhos do amor que ora mata-a ora a encanta

Se tão longe, tão longe! Em lençóis do infinito
Prisioneiro ele dorme em alcova isolada
Nesse leito do qual ninguém mais se levanta?...


Antonio Frederico de CASTRO ALVES
(1847–1871 )

Tirana


Minha Maria é bonita,
Tão bonita assim não há;
O beija-flor quando passa
Julga ver o manacá.

Minha Maria é morena
Como as tardes de verão;
Tem as tranças da palmeira,
quando sopra a viração.

Companheiros! O meu peito
Era um ninho sim senhor,
Hoje tem um passarinho
Pra cantar o seu amor.

Trovadores da floresta!
Não digam a ninguém não!
Que a Maria é a bunilha
Que me prende o coração.

Quando eu morrer só me enterrem
Junto às palmeiras do Val,
Para eu pensar que é Maria
Que geme no taquaral...


Extraído de Cachoeira de Paulo Afonso

A poesia lírica que não a mera exposição de sentimentos adequados exigia um eu confessional forte, difícil para as mulheres sujeitas às definições culturais da época. Não podiam se expressar quando lhes era dito que deveriam se autossacrificar pelos outros, que não deveriam fazer afirmações, que deveriam se restringir a sugestões alheias, deixando ao interlocutor a possibilidade de recusa. Esperava-se da lírica feminina a surpresa, submissão, incerteza, ingenuidade.

Adélia Josefina de Castro Fonseca (1827 – 1920) viveu num contexto de efervescência cultural na Bahia. Escreveu o poema “A Aurora Brasileira” em resposta ao “Madrugada” do poeta português João de Lemos. Fala da individualidade feminina e dominando com maestria a forma clássica do soneto, define sua maneira de amar. Ao lado do trecho do poema de Álvares de Azevedo – outro poeta de vida breve, ilustra o ponto de vista feminino e masculino quanto ao objeto de seu desejo. (9)

Os poemas escolhidos a seguir não são contrastantes ou semelhantes, constituem verdadeiros diálogos entre a produção poética masculina e feminina. Generalizar é perigoso, mas os exemplos existem e além dos aqui expostos vários outros podem ser encontrados sem grande dificuldade.

ADÉLIA FONSECA
(1827-1920)

SONETO


Ninguém nas asas da mais leve aragem,
a ti enviou lembranças tão saudosas;
ninguém horas passou tão deleitosas
de amor te ouvindo a férvida linguagem;

ninguém da tua vida na passagem
semeou, sem espinhos, tantas rosas;
ninguém te diz palavras tão mimosas,
contra o peito estreitando tua imagem;

ninguém de alma te deu mais lindas flores,
nem tanto desejou quanto eu desejo,
delas, tão puras, conservar as cores;

ninguém sabe beijar, como eu te beijo;
ninguém assim por ti morre de amores;
ninguém sabe te ver, como eu te vejo.


Do livro: “Vozes Femininas da Poesia Brasileira”, Cons. Est. de Cultura, 1959, SP

MANUEL ANTÔNIO ÁLVARES DE AZEVEDO
(1831 - 1852)

À T...

(...)

Meu amor, minha vida, eu sofro tanto!
O fogo de teus olhos me fascina,
O langor de teus olhos me enlanguesce,
Cada suspiro que te abala o seio
Vem no meu peito enlouquecer minh’alma!
Ah! vem, pálida virgem, se tens pena
De quem morre por ti, e morre amando,
Dá vida em teu alento à minha vida,
Une nos lábios meus minh’alma à tua!
Eu quero ao pé de ti sentir o mundo
Na tua alma infantil; na tua fronte
Beijar a luz de Deus; nos teus suspiros
Sentir as vibrações do paraíso;
E a teus pés, de joelhos, crer ainda
Que não mente o amor que um anjo inspira,
Que eu posso na tu’alma ser ditoso,
Beijar-te nos cabelos soluçando
E no teu seio ser feliz morrendo!


“Lira dos vinte anos” 1853

O comentário de Machado de Assis sobre a obra de Adélia Fonseca, embora imbuído de elogios, traz uma ressalva um tanto machista: “O que nos agrada sobretudo é que este livro exprime uma verdadeira individualidade feminina; não há essa pompa afetada, essa falsa imitação dos tons másculos que algumas escritoras procuram mostrar em suas obras, como recomendação dos seus talentos.”

É curioso notar a menção publicada na capa ou no prefácio de um livro de Adélia Fonseca ressalvando o fato de que a autora não auferia nenhuma remuneração para seu trabalho. A sobrevivência através do trabalho intelectual para a mulher era vedada. Em 1850, começam a aparecer, com frequência, versos de mulheres, que publicavam sempre com a mesma ressalva. Esta situação vinha explicitada na capa ou no prefácio do livro Echos da minh’alma, de Adélia Fonseca, editado em 1866.
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Notas:
6 – “The Angel in the House” – poema narrativo de Coventry Patmore publicado em 1854 e expandido até 1862. Tornou-se conhecido por personificar o ideal feminino na era vitoriana: a mulher como esposa e mãe abnegadamente dedicada aos filhos
e ao lar, submissa ao seu marido.

7 – Sobre Clovis Beviláqua ver Silvio Meira. “Clovis Beviláqua. Sua vida. Sua obra.” Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1990.

8 – Geração condoreira, Condoreirismo. Tendo como símbolo o condor, ave cujo voo solitário alcança as alturas, abrange os poetas de aspiração libertária, com sentimentos liberais e abolicionistas da terceira geração do período romântico.

9 – Alvares de Azevedo foi um dos poetas que melhor personificou a estética ultra-romântica. Dado a temas mórbidos, de uma lírica macabra, teve vida curta, sofrendo de tuberculose o que explica suas inclinações e o fato de seus poemas não terem sido reunidos em livro enquanto viveu.
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continua... Modernismo, século XX
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Fonte:
Teresa Mendes e Luís Cardoso (organizadores). A Mulher na literatura e outras artes – Comunicações apresentadas no I Congresso Internacional de Cultura Lusófona Contemporânea. Instituto Politécnico de Portalegre - Escola Superior de Educação. Portalegre/Portugal: Junho de 2013

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* VERA ABAD
Pesquisadora, poeta e escritora. Petropolitana, publicou dois livros sobre a história da cidade: Deliciosa Herança e Petrópolis – Cidade Imperial, e um romance baseado em fatos reais, Cartas para Mariana. Os temas de seus livros e seu estilo narrativo e poético receberam reconhecimento acadêmico da Academia Brasileira de Poesia – Casa de Raul de Leoni, da qual é membro titular e do Instituto Histórico de Petrópolis, do qual faz parte como associada titular. Além de corresponder-se com várias entidades literárias brasileiras, foi recentemente acolhida como membro titular do PEN Clube do Brasil.

** JOÃO ROBERTO GULLINO
Carioca, nascido em 30/05/33. Aposentado do comércio, iniciou-se tardiamente na poesia e a tem como ocupação primordial (junto com a pintura), opção que considera da maior valia. De membro titular da Academia Brasileira de Poesia - “Casa de Raul de Leoni” foi elevado à categoria de Membro Emérito e é, também, membro honorário da Academia Petropolitana de Letras, tendo integrado a sonhada e natimorta ABRASSO – Academia Brasileira do Soneto.

domingo, 11 de setembro de 2016

Ruy Castro (Prazeres da "Melhor Idade")

A voz em Congonhas anunciou: "Clientes com necessidades especiais, crianças de colo, melhor idade, gestantes e portadores do cartão tal terão preferência etc.". Num rápido exercício intelectual, concluí que, não tendo necessidades especiais, nem sendo criança de colo, gestante ou portador do dito cartão, só me restava a "melhor idade" - algo entre os 60 anos e a morte.

Para os que ainda não chegaram a ela, "melhor idade" é quando você pensa duas vezes antes de se abaixar para pegar o lápis que deixou cair e, se ninguém estiver olhando, chuta-o para debaixo da mesa. Ou, tendo atravessado a rua fora da faixa, arrepende-se no meio do caminho porque o sinal abriu e agora terá de correr para salvar a vida. Ou quando o singelo ato de dar o laço no pé esquerdo do sapato equivale, segundo o João Ubaldo Ribeiro, a uma modalidade olímpica.

Privilégios da "melhor idade" são o ressecamento da pele, a osteoporose, as placas de gordura no coração, a pressão lembrando placar de basquete americano, a falência dos neurônios, as baixas de visão e audição, a falta de ar, a queda de cabelo, a tendência à obesidade e as disfunções sexuais. Ou seja, nós, da "melhor idade", estamos com tudo, e os demais podem ir lamber sabão.

Outra característica da "melhor idade" é a disponibilidade de seus membros para tomar as montanhas de Rivotril, Lexotan e Frontal que seus médicos lhes receitam e depois não conseguem retirar.

Outro dia, bem cedo, um jovem casal cruzou comigo no Leblon. Talvez vendo em mim um pterodáctilo da clássica boemia carioca, o rapaz perguntou: "Voltando da farra, Ruy?". Respondi, eufórico: "Que nada! Estou voltando da farmácia!". E esta, de fato, é uma grande vantagem da "melhor idade": você extrai prazer de qualquer lugar a que ainda consiga ir.

Fonte:
www1.folha.uol.com.br/

Vera Abad*, João Roberto Gullino** (A presença feminina na poesia brasileira como musa inspiradora e como poeta criadora) Parte I

Título completo: A presença feminina na poesia brasileira como musa inspiradora e como poeta criadora - breve estudo comparativo da progressão de temas e linguagem usados por poetas brasileiros do séc. XVIII ao séc. XX

Resumo:
Pretende-se, neste artigo, demonstrar que a obra de Alice Vieira destinada preferencialmente ao público juvenil coloca em cena personagens femininas adolescentes que problematizam e reconfiguram uma certa construção da identidade feminina, nas suas diversas representações discursivas e modalidades enunciativas. Assim, partindo de alguns textos literários da autora, procurar-se-á analisar a forma como as vozes plurais de um sujeito adolescente arquetípico (feminino) dão conta, na primeira pessoa, das suas inquietações de ordem existencial, psicoemotiva e relacional, e como, nos seus discursos introspectivos, as personagens adolescentes femininas narrativizam a problemática da constituição do sujeito como ser oscilante e dramático, plasmando na superfície textual os meandros da sua interioridade e do seu sentir.

A figura feminina, criatura e criadora.


Desde sempre a figura feminina, a mulher, foi fonte e razão de inspiração para a poesia. É possível até que a própria serpente tenha cantado loas à formosura do ser recém esculpido por Deus antes de lhe oferecer a maçã. Entretanto, como autora de textos poéticos escritos, declamados ou cantados, a presença feminina na literatura fez-se esparsa ou totalmente ausente no espaço cultural ocidental por muitos séculos.

Na antiguidade clássica, a poetisa Safo teve sua poesia igualada a Homero e foi elogiada pelo próprio Aristóteles, porém hoje seus textos nos chegam aos retalhos. Depois dela, nenhuma poeta pode medir ombros com reconhecidos nomes do mundo literário como Shakespeare, Dante ou Camões.

A escritora inglesa Virginia Woolf (1882 – 1941) nos dá uma explicação ao mesmo tempo irônica e bem humorada em resposta às considerações de Arnold Bennet expostas no livro “Nossa mulheres – capítulos sobre a discordância entre os sexos” (1920): “Bem”, diz ela, “acredito que todos concordam com o fato de que desde o início dos tempos até o dia de hoje, as mulheres deram à luz e cuidaram de toda a população do mundo. Esta ocupação lhes tem tomado muito tempo e esforço.”(1)

Não acreditamos que as mulheres tivessem realmente ficado à margem da produção poética por tanto tempo. Afora textos resgatados por estudiosos como os de Santa Thereza D’Avila e Heloise Abelard, provavelmente, muitas produções femininas foram desconsideradas, destruídas e relegadas ao esquecimento, como de resto, a maior parte de suas manifestações artísticas. O processo de conquista de espaço no panorama cultural regido, estudado e produzido por representantes do sexo masculino não aconteceu no Brasil de modo diferente do sucedido nos outros países da comunidade ocidental. Tal processo está diretamente relacionado com as modificações ocorridas no papel representado pelas mulheres no contexto
social de cada época e de cada país. São histórias individuais de transgressão e ousadia e de lutas coletivas de afirmação, participação e autoconhecimento.

Este pequeno estudo comparativo entre a produção poética masculina e feminina na poesia brasileira visa contar um pouco de tal história para melhor compreensão da produção poética feminina contemporânea que, embora exista em pluralidade de estilos, com formatos literários e linguagem similares a seus pares masculinos, mantém características próprias e ainda sofrem das muitas restrições e dificuldades impostas às mulheres ao longo dos séculos.

Até meados do século XVII, as mulheres no Brasil quase não tinham acesso à educação. Eram em maioria analfabetas e se submetiam ao domínio social e intelectual masculino. Não por razão de gosto como afirmou Arnold Bennet no já referido trabalho: “(...) também afirmo que não só nos tempos correntes as mulheres gostam de ser dominadas, como continuarão a sê-lo daqui a mil anos senão para sempre. Sempre gostarão de ser dominadas. Este desejo é prova de inferioridade intelectual.” (1)

As mulheres submetiam-se pela mais absoluta falta de outra opção. É tão falsa aquela ideia que foi pela mão dos homens ligados as elas que iniciaram seu aprendizado e começaram a crescer intelectualmente. Pais, esposos e mestres que nelas acreditaram por alguma razão e lhes proporcionaram oportunidade de adquirir conhecimentos e de se dedicar à expressão de sua arte.

Assim como Bennet, na Europa, também no Brasil, vozes de respeitados jornalistas, escritores e juristas se levantaram ao longo dos tempos contestando a inteligência, a propriedade e a capacidade de criação das mulheres.

Lima Barreto (1881 – 1922) em artigo publicado em 1918 foi diretamente contra a contratação de uma mulher para o serviço público por considerar que o ato “aberra a todas as nossas concepções políticas e vai de encontro a todos os princípios sociais. A ocupação pelas mulheres de cargos naturalmente destinados aos homens, prejudica a reprodução de nossa raça”.

“As mulheres têm muita aptidão para a retenção e para a repetição,” _ diz ele em outro artigo “mas não filtram os conhecimentos através de seu temperamento, não os incorporam à sua inteligência” “(... ) em geral em artes, nunca foram criadoras”. (2)

Por muito tempo era dado como indiscutível que ao sexo masculino cabia a vida pública, a produção, a criação e regulamentação da vida social e ao sexo feminino cabia o universo doméstico, a geração e criação da prole.

Vamos nos ater à resposta de Virginia Woolf às considerações mordazes de Arnold Bennet quanto à incapacidade das mulheres para a criação artística por deficiência de espírito e pouca inteligência nata. Do contrário, escapamos de nosso propósito que encara apenas um aspecto das conquistas sociais da mulher ao longo dos tempos. A reação masculina à invasão feminina nos espaços sociais ditos exclusivos do homem sempre foi ferrenha e imediata.

Primeiras poetas


Consideramos os primórdios da poesia dita brasileira as publicações do poeta Gregório de Matos no século XVII. Nascido em Salvador, Bahia, em 1633, apesar de contemporâneo do Padre Antônio Vieira, muito diferente foi sua produção literária. É conhecido por muitos como “Boca do Inferno” por seus poemas satíricos e irreverentes. Não foi, porém, indiferente à paixão humana e religiosa, à natureza e à reflexão. Quanto à mulher, como musa, em dois exemplos vemos o cantar lírico elogioso da figura feminina e o uso da linguagem jocosa e satírica para descrever uma mulher.
Dois sonetos de Gregório de Matos:
“À uma dama dormindo junto a uma fonte.” E “Anjo no nome, Angélica na cara”.

GREGÓRIO DE MATOS Guerra
(1633 - 1696)

Soneto
À uma dama dormindo junto a uma fonte
À margem de uma fonte que corria,
Lira doce dos pássaros cantores
A bela ocasião de minhas dores
Dormindo estava ao despertar do dia.

Mas como dorme Silvia, não vestia
O céu seu horizonte de mil cores;
Dominava o silêncio entre as flores
Calava o mar, e o rio não se ouvia.

Não dão o parabém à nova Aurora
Flores canoras, pássaros fragrantes,
Nem seu âmbar respira a rica Flora.

Porém abrindo Silvia os dois diamantes,
Tudo a Silvia festeja, tudo adora
Aves cheirosas, flores ressonantes.

Soneto
Anjo no nome, Angélica na cara


Anjo no nome, Angélica na cara
Isso é ser flor, e Anjo juntamente
Ser Angélica flor, e Anjo florente
Em quem, se não em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que a não cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente
Que por seu Deus, o não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares
Fôreis o meu custódio, e minha guarda
Livrara eu de diabólicos azares

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda
Posto que os Anjos nunca dão pesares
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.


Para fazer par a Gregório de Matos, nenhuma voz feminina se levantou naquela época. Ou se o fez, não logrou fama. A primeira mulher a fazer história na poesia brasileira foi Barbara Heliodora Guilhermina da Silveira, nascida em fins de 1758 na cidade de São João Del Rei nas Minas Gerais. Fez sua história como poeta e transgressora dos padrões sociais da época. Era esposa do aclamado poeta e inconfidente Alvarenga Peixoto, tendo vivido com ele por bastante tempo antes de desposá-lo, o que aconteceu só depois que a filha, Maria Ifigênia, já completara três anos de idade. Barbara Heliodora viveu os tempos do Arcadismo Brasileiro, cercada de poetas de fama como Cláudio Manuel da Costa, Tomaz Antônio Gonzaga, Basílio da Gama e Santa Rita Durão.(3) Sua produção literária é bastante reduzida e controvertida. A ela são atribuídos os poemas “Sextilhas a meus filhos” ou “Conselhos a meus filhos” e um soneto dedicado à sua filha Ifigênia.

Segundo Rodrigues Lapa, os poemas não podem ser a ela atribuídos porque ela não teria cultura literária, pois não há em suas cartas qualquer menção literária, nem mesmo pedido de livros. No entanto, há cartas, e uma extensa bibliografia sobre sua pessoa, o que é por demais curioso, tendo ela produzido, na melhor das hipóteses, apenas as duas referidas peças. (4)

Por que não seria ela capaz de usar uma linguagem tão enxuta e mordaz em seu poema? Não teria ela talvez escrito, rabiscado poemas e depois os jogado fora, por não levar a sério sua produção? Quantas outras procederam do mesmo modo? Temos hoje ciência de vários poemas soltos e livros representativos da produção literária de mulheres que viveram nos séculos passados através do resgate efetuado por estudos recentes, não por terem sido reconhecidos e divulgados em suas épocas. Nenhuma delas, nem mesmo as citadas mais adiante fazem parte das relações de poetas creditados nos compêndios de literatura brasileira. No entanto, se algo lhes faltou para merecer tal crédito, foi tão só o reconhecimento da academia que as ignorava apenas por razão de sua condição feminina.

Comparemos alguns trechos da “Sextilhas a meus filhos” que, assim como o Soneto à Ifigênia, nos remete à figura feminina como mãe zelosa e amorosa, aos versos saudosos de seu marido, Alvarenga Peixoto, escritos no cárcere da Ilha das Cobras.

BARBARA HELIODORA 
Guilhermina da Silveira (1758 – 1819)
Mineira de São João Del Rei

“Sextilhas a meus filhos”


Meninos, eu vou dictar
As regras do bem viver,
Não basta somente ler,
É preciso ponderar,
Que a lição não faz saber,
Quem faz sábios é o pensar.

Neste tormentoso mar
D’ondas de contradicções,
Ninguém soletre feições,
Que sempre se ha de enganar;
De caras a corações
A muitas legoas que andar.
(...)

Não vos deixeis enganar
Por amigos, nem amigas;
Rapazes e raparigas
Não sabem mais, que asnear;
As conversas, e as intrigas
Servem de precipitar.

Sempre vos deveis guiar
Pelos antigos conselhos,
Que dizem, que ratos velhos
Não ha modo de os caçar:
Não batam ferros vermelhos,
Deixem um pouco esfriar.

Quem fala, escreve no ar,
Sem pôr virgulas nem pontos,
E póde quem conta os contos,
Mil pontos accrescentar;
Fica um rebanho de tontos
Sem nenhum adivinhar.

Com Deus e o rei não brincar,
É servir e obedecer,
Amar por muito temer
Mâs temer por muito amar,
Santo temor de offender
A quem se deve adorar!

Até aqui pode bastar,
Mais havia que dizer;
Mâs eu tenho que fazer,
Não me posso demorar,
E quem sabe discorrer
Póde o resto adivinhar.


Do livro: “Florilégio da Poesia Brazileira”, de Varnhagen, 1946 (nos três tomos constam “fac-símile do frontespício da ed. princeps do “Florilégio da Poesia Brazileira”, de 1850), RJ

A Maria Ifigênia
Em 1786, quando completava sete anos.


Amada filha, é já chegado o dia,
em que a luz da razão, qual tocha
acesa vem conduzir a simples natureza,
é hoje que o teu mundo principia.

A mão que te gerou teus passos guia,
despreza ofertas de uma vã beleza,
e sacrifica as honras e a riqueza
às santas leis do filho de Maria.

Estampa na tua alma a caridade,
que amar a Deus, amar aos semelhantes,
são eternos preceitos da verdade.

Tudo o mais são ideias delirantes;
procura ser feliz na eternidade,
que o mundo são brevíssimos instantes.

Alvarenga Peixoto ou Barbara Heliodora?

Inácio José de ALVARENGA PEIXOTO
(1743 – 1792)

À D. Bárbara Heliodora

Bárbara bela, do Norte estrela,
Que o meu destino sabes guiar,
De ti ausente triste somente
As horas passo a suspirar.

Por entre as penhas de incultas brenhas
Cansa-me a vista de te buscar;
Porém não vejo mais que o desejo,
Sem esperança de te encontrar.

Eu bem queria a noite e o dia
Sempre contigo poder passar;
Mas orgulhosa sorte invejosa,
Desta fortuna me quer privar.

Tu, entre os braços, ternos abraços
Da filha amada podes gozar;
Priva-me a estrela de ti e dela,
Busca dous modos de me matar!


(Poema dedicado à sua esposa, remetido do cárcere da Ilha das Cobras)

Nenhuma diferença há, na qualidade da produção e no apuro da linguagem. Entretanto, vemos que esta primeira manifestação registrada, embora se trate de um exemplo reduzido, nos traz a mulher, ainda que em situação diferenciada em seu contexto social, cumprindo seu papel de mãe e vista como amada esposa e terna genitora.

Bem mais vasta e divulgada foi a produção de sua contemporânea, Beatriz Francisca de Assis Brandão (1779-1868), natural de Vila Rica, atual Ouro Preto. Dedicada à poesia, à prosa e à tradução, encobria-se sob um pseudônimo D. Beatriz para colaborar no jornal “Marmota Fluminense”. Apelidada “Prima de Marília” em alusão ao poema de Tomas Antonio Gonzaga,(5) teve seus poemas publicados em livro: “Cantos da Mocidade” – 1856 e em coletânea no Parnaso Brasileiro: “Carta de Leandro a Hero” e “Carta de Hero a Leandro”.

Foi bastante conhecida e elogiada, mas seu nome nunca foi incluído nos anais da literatura brasileira, mesmo tendo recebido a honra de ser patrona da cadeira 38 da Academia Mineira de Letras.

Trazia a mulher de longa data o seu papel definido dentro do binarismo “o bem” e “o mal”, “anjo” e “demônio”. Ao papel de “força do bem” quando maternal e delicada opunha-se o de “ potência do mal”, quando usurpadora de atividades que não lhe fossem culturalmente atribuídas. A mulher estava atada ao conceito de que a criação era prerrogativa do homem. À ela é negada a autonomia e a subjetividade necessárias à criação. “À ela cabe a servidão e o sacrifício, sem história própria. Demônio ou bruxa, anjo ou fada, ela é mediadora entre o artista e o desconhecido, instruindo-o em degradação ou exalando pureza. É musa ou criatura, nunca criadora.” ( Norma Telles. Escritoras, escritas, escrituras. Ed. Contexto 2009)

D. BEATRIZ
Francisca de Assis Brandão (1779-1868)


Soneto

Voa, suspiro meu, vai diligente,
Busca os Lares ditosos onde mora
O terno objeto, que minha alma adora,
Por quem tanta aflição meu peito sente.

Ao meu bem te avizinha docemente;
Não perturbes seu sono: nesta hora,
Em que a Amante fiel saudosa chora,
Durma talvez pacífico e contente.

Com os ares, que respira, te mistura;
Seu coração penetra; nele inspira
Sonhos de amor, imagens de ternura.

Apresenta-lhe a Amante, que delira;
Em seu cândido peito amor procura;
Vê se também por mim terno suspira.


TOMAS ANTONIO GONZAGA
(1744 – 1810)

Soneto 4


Ainda que de Laura esteja ausente,
Há de a chama durar no peito amante;
Que existe retratado o seu semblante,
Se não nos olhos meus, na minha mente.

Mil vezes finjo vê-la, e eternamente
Abraço a sombra vã; só neste instante
Conheço que ela está de mim distante,
Que tudo é ilusão que esta alma sente.

Talvez que ao bem de a ver amor resista;
Porque minha paixão, que aos céus é grata
Por inocente assim melhor persista;

Pois quando só na ideia ma retrata,
Debuxa os dotes com que prende a vista,
Esconde as obras com que ofende, ingrata.


de “Marília de Dirceu”

A ideia de que a mulher era um ser frágil e inferior intelectualmente, necessitando proteção e apoio de um ser forte e superior, o homem, subsistiu por muito tempo – e ainda subsiste em algumas mentes masculinas.
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Notas:
1 – No outono de 1920, a edição do livro de ensaios do novelista Arnold Bennet sobre: “Nossas mulheres: capítulos sobre a discordância dos sexos” deu origem a uma contenda verbal entre Desmond MacCarthy que fizera a crítica do livro e Virginia Woolf. A troca de cartas foi publicada no New Stateman em outubro do mesmo ano e fazem parte do livro “Killing the Angel in the House: seven essays” Virginia Woolf edição da Penguin Books 1995.

2 – Afonso Henriques de Lima Barreto ( Rio de Janeiro 1881 – Rio de Janeiro 1922) Jornalista e romancista brasileiro colaborou no Jornal do Commercio e na A Gazeta da Tarde, além das revistas O Riso, Fon-Fon e Careta. Em sua observação compara a mulher estrangeira e a brasileira não poupando duras críticas às suas conterrâneas nem como personagens em seus romances nem suas afirmações nos artigos publicados. Carlos Erivany Fantinati: “Literatura e Autoritarismo” Contextos Históricos e Produção Literária Revista nº 12 Universidade Federal de Santa Maria RS. Disponível em: http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/num12/art_08.php

3 – A revolta conhecida como Inconfidência Mineira, foi uma tentativa separatista, ocorrida nas Minas Gerais contra o domínio português. Foi abortada em 1789 pela Coroa portuguesa. Dela fizeram parte intelectuais da então Vila Rica em sua maioria poetas cuja produção trazia forte influência do Arcadismo e Classicismo português.

4 – Manuel Rodrigues Lapa (Anadia 1897 – 1989). Filólogo e escritor português que, quando radicado no Brasil após se afastar de Portugal por motivos  políticos realizou investigações sobre o Setecentos político e cultural de Minas Gerais. Suas pesquisas abarcaram os escritores da Conjuração Mineira publicando e comentando grande documentação sobre eles até então desconhecida.

5 – Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), nascido em Miragaia, no Porto, e falecido na Ilha de Moçambique, na costa oriental da África, foi um dos principais poetas árcades do Brasil. Seu poema Marília de Dirceu foi publicado em Lisboa em 1792.

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continua...Século do romance, feminismo, revolução
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Fonte:
Teresa Mendes e Luís Cardoso (organizadores). A Mulher na literatura e outras artes – Comunicações apresentadas no I Congresso Internacional de Cultura Lusófona Contemporânea. Instituto Politécnico de Portalegre - Escola Superior de Educação. Portalegre/Portugal: Junho de 2013

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* VERA ABAD
Pesquisadora, poeta e escritora. Petropolitana, publicou dois livros sobre a história da cidade: Deliciosa Herança e Petrópolis – Cidade Imperial, e um romance baseado em fatos reais, Cartas para Mariana. Os temas de seus livros e seu estilo narrativo e poético receberam reconhecimento acadêmico da Academia Brasileira de Poesia – Casa de Raul de Leoni, da qual é membro titular e do Instituto Histórico de Petrópolis, do qual faz parte como associada titular. Além de corresponder-se com várias entidades literárias brasileiras, foi recentemente acolhida como membro titular do PEN Clube do Brasil.

** JOÃO ROBERTO GULLINO
Carioca, nascido em 30/05/33. Aposentado do comércio, iniciou-se tardiamente na poesia e a tem como ocupação primordial (junto com a pintura), opção que considera da maior valia. De membro titular da Academia Brasileira de Poesia - “Casa de Raul de Leoni” foi elevado à categoria de Membro Emérito e é, também, membro honorário da Academia Petropolitana de Letras, tendo integrado a sonhada e natimorta ABRASSO – Academia Brasileira do Soneto.

sábado, 10 de setembro de 2016

Olivaldo Júnior (A menina e o jardineiro)

A menina estava doente há muito tempo. Por isso, de uns tempos para cá, morava mais no hospital que em sua casa. Sua mãe, professora no Jardim da Infância em que essa mesma menina tinha estudado, aquela mulher se desdobrava em mil por sua filha.

Foi que, de manhã, pouco antes da mãe despertar, no quarto daquele insípido hospital, adentrava um homem de macacão jeans e suspensórios rubros, que vinha ao pé da cama da menina e dizia:

- Bom dia, flor do dia! Como vai, minha "tulipa"?

A primeira vez em que ela o viu, não gostou de vê-lo. Sentiu medo. Mas, com o passar dos meses, aquele homem se tornara um verdadeiro raio de sol para a menina dos olhos da menina, que sorria mal abria os olhos e via o tal do homem, lá, com seu bom dia.

Contou à mãe sobre o homem de macacão que a visitava, o que deixou a mulher em pânico, chegando a pedir ao diretor do hospital que redobrasse a segurança no quarto de sua filha. Prontamente atendida, em nada adiantou reforçarem a vigia. Dia após dia, com seu bom dia, lá vinha o homem deixar aos pés da cama da menina um botão de rosa, uma flor qualquer que lhe fizesse bem.

Um dia, a menina não acordou mais. Choro. Desespero. A mãe pensou que fosse morrer. Por que será que isso acontece? Onde estava Deus? O jeito era o tempo, diziam a ela no velório. Que tempo pode suprir a ausência de quem nasceu de seu ventre, hein?

À hora exata do enterro, no cemitério lotado de gente, o tempo virou, e todas as flores de todas as lápides foram varridas para o pequeno caixão cor-de-rosa em que o corpo da menina dormia. Ninguém viu o jardineiro, aquele mesmo do hospital, detrás de um mausoléu, sorrindo, como se aquele vento todo fosse obra de Sua vontade de se despedir da menina, que, toda feliz, ao lado Dele, de mãos dadas com Ele, partia. Ai, ai...


Fonte:
O Autor

Angela Maria Rodrigues Laguardia* (Clarice Lispector: a mulher e a escritora; o mérito e o mito)

Clarice Lispector
Resumo: Em A Descoberta do Mundo, antologia de crônicas de Clarice Lispector,escritas para o Jornal do Brasil, entre os anos de 1967 e 1973, confrontamo-nos com a mulher, a ficcionista e a cronista que emerge de reflexões metalinguísticas para resultar no mito Clarice. Ao mover-se entre as fronteiras da literatura e do jornalismo, Clarice constrói um espaço que vai além do modelo convencional do gênero cronístico: descobre-se para “descobrir o mundo” e possibilita um processo de genuína identificação do leitor com os temas que propõe. Percorrendo estas crônicas e elegendo algumas, aqui, para tentar compreender como ocorre esta relação ficcional/factual de seus textos com o leitor, deparamo-nos com o enigma clariciano, como no excerto intitulado Sim ou não: “Eu sou sim. Eu sou não. Aguardo com paciência a harmonia dos contrários. Serei um eu, o que significa também vós” (LISPECTOR, 1984:279).
A sedução e o desafio desta cumplicidade constituem-se em um jogo escritural, dimensionando a travessia da personagem Clarice dentro de sua própria obra, num olhar que se move de dentro para fora e vice-versa, constituído pela poesia e filosofia de seus múltiplos papéis, hábeis disfarces do mistério que alimenta sua obra

Introdução
Este trabalho pretende refletir sobre as crônicas de Clarice Lispector, reunidas na obra A Descoberta do Mundo. Por um lado, visa ajudar a compreender o nascimento da cronista dentro do percurso da escritora. Por outro, procura configurar a mulher e a personagem que emerge dessa escrita, instituindo, através dela, o seu grande mérito e erguendo-a aos píncaros do mito.

1- A mulher e a escritora nas crônicas de A Descoberta do Mundo

A Descoberta do Mundo reúne 468 títulos de crônicas publicadas no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. Esta obra, postumamente editada, em 1984, por seu filho Paulo Gurgel Valente, apresenta “uma continuidade” que permite ao leitor da antologia compreender como os textos que, “aparentemente”, não se enquadrariam no gênero (comentários, recados, trechos de romances, contos, novelas e outros), vão conquistando seu espaço enquanto gênero e também ganham uma proximidade e cumplicidade entre Clarice Lispector e os leitores de suas crônicas.

Este espaço viria também a contribuir para a divulgação das obras da escritora. Segundo Teresa Montero, inicialmente, foram os contos que tornaram Clarice Lispector mais próxima de seus leitores, principalmente quando a revista Senhor publicou contos como A menor mulher do mundo, Feliz Aniversário e A imitação da rosa, na década de 50, obtendo uma resposta positiva do público, assim como o interesse das editoras. Esta proximidade aumenta em 1964, com a publicação do romance A paixão segundo G. H. e do livro de contos A legião estrangeira, alguns dos quais são publicados na Senhor, “mas a sua recepção se expandiu quando o grande público pôde ler alguns deles na coluna de Clarice no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973” (MONTERO, 2009:13).

Em Felicidade Clandestina (1970), a escritora resgata contos de A legião estrangeira e crônicas do Jornal do Brasil. Aqui, com Teresa Montero, pergunta-se: “O que é crônica e o que é conto neste livro? Os gêneros se misturam. Clarice afirmava: ‘Gênero não me pega mais’” (MONTERO, 2009:13).

As experiências anteriores de Clarice Lispector o jornalismo, como colunista, podem ter contribuído para este exercício “transgressor” do espaço da crônica. Em 1952, ela assina a coluna “Entre Mulheres”, no semanário Comício, sob o pseudônimo de Teresa Quadros, a convite do escritor e jornalista Rubem Braga. Em um contexto do pós– guerra, ela tratava de assuntos do lar e de moda, dava conselhos para as leitoras sobre a silhueta, receitas e até da maneira de prevenir problemas no casamento, entre outros assuntos. Porém, ela foi além dos considerados assuntos fúteis, porque a ficcionista, ou a “personagem Teresa Quadros” acrescentou àquele espaço do Comício, seu gosto pela literatura, reproduzindo trechos de textos e referências de autoras como Virgínia Wolf, Katherine Mansfield - e de Clarice Lispector.

Sua segunda colunista fictícia aparece em 1959, como Helen Palmer, no “Correio feminino – feira de utilidades”, no jornal Correio da Manhã. Um trabalho menos sofisticado do que o anterior que, sob o patrocínio da indústria de cosméticos Pond’s, tinha a missão de passar à leitora conselhos de beleza que fossem associados aos seus produtos. Um público em que a “rainha do lar” e zelosas donas de casa eram o enfoque da coluna.

Durante este período, Clarice aceita o convite de Alberto Dines para assinar uma outra coluna feminina no Diário da Noite, desta vez como ghost-writer de Ilka Soares, modelo e atriz do cinema brasileiro. Com o nome de “Só para mulheres”, “Ilka Soares” conversava com as leitoras desta seção, aproximando-se das leitoras para dar dicas sobre o mundo da moda ou sobre questões relacionadas ao cotidiano da mulher comum. Sua contribuição terminaria em março de 1961.

Assim, em agosto de 1967, quando Clarice novamente recebe o convite de Alberto Dines para participar de uma coluna no Jornal do Brasil, sente–se temerosa ao saber que iria escrever crônicas, algo que ainda não fizera e ainda assinadas por ela mesma, sem a “proteção” dos pseudônimos anteriores. Ao mesmo tempo, era um momento delicado da vida de Clarice, sua única atividade extra eram as traduções e ainda se recuperava de um acidente doméstico, um incêndio provocado por um cigarro com graves queimaduras, especialmente nas mãos, abatendo-a profundamente.

No capítulo “O acidente (corpo, a ferida, a escrita)”, de Figuras da Escrita, Carlos Mendes de Souza refere-se a este acidente e como sua colaboração nas páginas do Jornal do Brasil também contaminará a escrita do livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, fator que se define como um marco na escrita clariciana: “Com efeito, a partir daqui desencadeia-se, pelo menos aparentemente, um certo deslaçamento de tensões temáticas expressivas, uma atitude nova perante a escrita (...) ao qual não se pode deixar de associar ao acidente” (SOUZA, 2011:496).

O nascimento da cronista vai revelando as faces da escritora, da mulher e do mito Clarice. Em uma de suas crônicas iniciais, Amor Imorredouro, um aparente despojamento inaugura o tom confessional que ela imprime a muitas de suas crônicas:
Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que se pode chamar propriamente de crônica. E além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me respondeu: mas escrever é um pouco vender a alma. É verdade. Mesmo que não por dinheiro, a gente se expõe muito (LISPECTOR, 1999, p.29).

A cronista vai-se revezando entre as crônicas em que exprime esta sua preocupação em não revelar-se, entre aquelas que possuem um caráter metalinguístico, entre aquelas em que afirma, ou discute sobre ser misteriosa ou não, aquelas em que também questiona seu papel de escritora e tantas outras que não mencionaremos aqui, devido à brevidade deste trabalho.

Neste percurso, o mecanismo de identificação com o leitor é o eixo que conduz ou amarra as crônicas, ora de forma perceptível, ora de forma implícita, em um jogo sedutor e prazeroso com as palavras.

Em Outra Carta, ela responde à carta de um leitor que “parece revelar” que conheceu Clarice só a partir da crônicas e que pede à escritora que não largue sua coluna sob o pretexto de defender sua intimidade, porque para ele, o “escritor, se legítimo, sempre se delata”. Ela responde que, embora seus romances não fossem autobiográficos, quem os lê acaba por informá-la de que ela se delata, por isto o cuidado de não expor-se nas crônicas. Porém, ela diz que, paradoxalmente, “lado a lado com o desejo de defender a própria intimidade, há o desejo intenso de me confessar em público e não a um padre” (LISPECTOR, 1999:78).

O leitor é seu interlocutor, tem sua função questionada neste diálogo, ao mesmo tempo em que ocorre o processo de identificação entre escritor/leitor: “O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias , é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor,é o escritor” ( LISPECTOR,1999: 79).

No desvão desta escrita, Clarice provoca o leitor de suas crônicas, insinuando-se pelo caminho da possibilidade, do que não se define, como na crônica Sim ou não: “Eu sou sim. Eu sou não. Aguardo com paciência a harmonia dos contrários. Serei um eu, o que significa também vós” (LISPECTOR,1999: 279).

Para José Castello, não interessava a Clarice “escrever ‘para o leitor’, mas ‘ser’ este leitor. Escrevia como uma leitora, que se delicia com as palavras alheias” (CASTELLO, O Globo, 2011).

Nesta inquieta incompletude, ela procura palavras que lhe possibilitariam o encontro com o outro e este caminho, sob o pretexto das crônicas, é aludido através da crônica Em Busca do Outro: Não é à toa que entendo os que buscam o caminho. Como busquei arduamente o meu!E como hoje busco (...) o melhor de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei; eis o meu ponto de chegada (LISPECTOR, 1999: 119).

Escrever é um caminho, um modo de aproximar-se do outro, e Clarice, ao longo das crônicas,reporta-se muitas vezes a estes deslocamentos, ora com a angústia de quem tateia o caminho, ora com o entusiasmo da aventura, ora questionando o próprio caminho, ou mesmo “filosofando” sobre ele.

Com o título de Anonimato, temos uma crônica, que expõe esta tensão entre o ato da escrita e a “pessoa Clarice”, diante desta proximidade com o público, imposta pelo espaço da crônica, uma entrega em que resiste e, resistindo, ancora-se na palavra “silêncio” para preservar-se e preservar as palavras:

Tantos querem a projeção. Sem saber como esta limita a vida. Minha pequena projeção fere o meu pudor. Inclusive o que eu queria dizer [:] já não posso mais. O anonimato é suave como um sonho. (...) Aliás eu não queria mais escrever. Escrevo porque estou precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada. Há coisas que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande silêncio dentro de mim. E este silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio. (LISPECTOR, 1999: 75-76).

Em Ser Cronista, Clarice indaga-se para indagar o gênero, um “esboço” que ganha forma na sua singularidade:

Sei que não sou, mas tenho meditado ligeiramente no assunto. Na verdade, eu deveria conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o inventor da crônica. Mas quero ver se consigo tatear sozinha no assunto e ver se chego a entender. Crônica é um relato? É uma conversa? é o resumo de um estado de espírito? (LISPECTOR, 1999:112).

Outras crônicas de natureza metalinguística refletiram sobre o ato da escrita e assinalam esta preocupação constante de Clarice, para quem escrever é transcender o próprio ato. Na crônica Escrever, ela expressa este seu sentimento diante da escrita:

Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. (...) Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva. (...) É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada (LISPECTOR, 1999:134 - grifos nossos).

Clarice compartilha com o leitor de suas crônicas esta “intimidade” com a escrita, daí a genuína cumplicidade, o passaporte lícito para “colocar-se” com leveza e autenticidade, sem abdicar de seu valor como cronista.

Para ela, escrever é também uma aventura, e duas crônicas nomeadas com este tema ilustram a razão desta afirmação: A Perigosa Aventura de Escrever e Aventura. Na primeira, ela diz : “Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras” (LISPECTOR,1999:183), mas depois discorda do que havia dito: “Mas está errado, pois que, ao escrever, grudada e colada, está a intuição. É perigoso porque nunca se sabe o que virá _se se for sincero” (ibidem). E remata a crônica, dizendo: “Não se brinca com a intuição,não se brinca com o escrever: a caça pode ferir mortalmente o caçador” (ibidem).

A segunda crônica, Aventura, repete a frase sobre o valor da intuição, falando de sua necessidade de escrever para entender e como se relaciona com a aventura:

Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o pensamento (...); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever.
(...) Sempre tive um profundo senso de aventura (...). Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, a escrever
(LISPECTOR, 1999:236).

Porém, Clarice foi além da “aventura” da escrita. Ela mergulha dentro de si, busca as palavras, questiona suas origens, como em Escrever ao Sabor da Pena, sabor que consiste na procura: “Estou falando de procurar em si próprio a nebulosa que aos poucos se condensa, aos poucos se concretiza, aos poucos sobe à tona - até vir como num parto a primeira palavra que a exprima” (LISPECTOR, 1999:278).

Escrever é lembrar-se do que nunca existiu” (LISPECTOR, 1999:385) - filosofa Clarice. E esta insistência na “memória” é fundamental para a existência, segundo ela: “Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva”( ibidem).

Ao abordar o tema da escrita em suas crônicas, Clarice estava constantemente lembrando aos seus leitores, sua preocupação com as palavras, não prescindia de seu compromisso com elas, e ainda chamava a atenção para elas: “Mas já que se há de escrever, que ao menos não esmaguem as palavras nas entrelinhas” (LISPECTOR, 1999:385).

2. O mérito e o mito na voz da cronista

Foram as crônicas que mais “falaram” de Clarice. Embora ela almejasse o anonimato, suas palavras acabavam por suscitar, paradoxalmente, o inverso: “No dia-a-dia, ela caminhava sobre o tênue limite entre mostrar e esconder. Não se queria misteriosa, mas tampouco tinha vontade de se expor” (Cadernos de Literatura, 2004:57).

Esta aparente contradição, no decorrer da leitura da Descoberta Do Mundo, ajuda-nos compreender como o mito Clarice se vai delineando através das crônicas e, paralelamente, através de depoimentos ou entrevistas, onde, ora se confirmava, ora se desmentia este mistério que lhe era atribuído.

Numa crônica escrita em agosto de 1967, logo no início de sua participação no Jornal do Brasil, denominada A Surpresa, temos o olhar de Clarice sobre si mesma: “Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência” (LISPECTOR, 1999:23). Ao surpreender-se, ela surpreende quem lê, um espelho de duas faces que alterna a cronista e a personagem Clarice.

Quase um ano depois, na crônica O Meu Próprio Mistério, ela resume-se assim: “sou tão misteriosa que não me entendo” (LISPECTOR, 1999:116).

Perscrutar o mistério? Em Fernando Pessoa Me Ajudando, ela alude ao poeta e aponta o jogo ambíguo do revelar-se: Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. Perco minha intimidade secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao correr da máquina e, quando vejo, revelei certa parte de mim. (...) O que me consola é a frase de Fernando Pessoa, que li citada: “Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos (LISPECTOR, 1999, p.136-137).

Em entrevista para o Correio do Povo, em janeiro de 1971, Antonio Hohlfeldt lhe indagaria se suas crônicas seriam uma confissão. Ela, sem negar nem confessar, justifica-se, dizendo: “Eu preciso do dinheiro. A posição de um mito não é muito confortável. Por isso eu gosto de crônica. Porque ela diminui a distância que existe entre mim e o leitor” (ROCHA1, 2011: 58).

Em 1977, em entrevista concedida ao programa Panorama da TV Cultura, responde a Júlio Lerner que não se considerava uma escritora popular. E, quando ele pergunta qual seria razão, ela dispara:
Ué, me chamam até de hermética. Como é que eu posso ser popular sendo hermética?” (ROCHA2,2011: 178)

Outra preocupação de Clarice, revelada através de uma de suas crônicas, denominada Como É Que Se Escreve?, prendia-se com seu “ofício de escritora”. Diante do leitor, ela se questiona sobre o conceito do ato de escrever e, também, sobre a razão pela qual ainda não se considerava uma escritora:

"Por que, realmente, como é que se escreve? que é que se diz? e como dizer? como é que se começa? (...) Sei a resposta, por mais que intrigue, é a única: escrevendo. Sou a pessoa que mais se surpreende de escrever. E ainda não me habituei a que me chamem de escritora. (...) Será que escrever não é um ofício?

Não há aprendizagem, então?O que é? Só me considerarei escritora no dia em que eu disser: sei como se escreve”
(LISPECTOR,1999,p.156-157).

Para Clarice, escrever era uma forma de existir:

“Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever” (LISPECTOR, 1999:101). Por isto, dispensava os rótulos que lhe eram atribuídos, questionava-os como uma forma de não se deixar impregnar por eles, dispensando-os se sentia “livre” para se exercer, para ser Clarice.

Intelectual? Não - responde Clarice em outra crônica, explicando as razões pelas quais não se considerava como tal. “Literata também não sou porque não tornei o fato de escrever livros ‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’” (LISPECTOR, 1999:149). “O que sou então?”, pergunta Clarice, para depois falar de “si mesma”: Sou uma pessoa que tem coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal. (LISPECTOR, 1994:149).

Somos, assim, surpreendidos pela mulher, pela cronista e pela escritora Clarice, que emergem destas palavras. Seu grande mérito, assim compreendemos, surge deste modo de ser,da autenticidade que seduz o leitor, e da capacidade de colocar em palavras o que o leitor gostaria de dizer e ouvir.

Conclusão


Ao percorrer as crônicas de Clarice Lispector em A Descoberta do Mundo, com destaque para aquelas que elegemos para o presente trabalho, podemos perceber como ela constrói um espaço que vai além do modelo convencional do gênero cronístico: descobre-se para “descobrir o mundo”,movendo-se entre as fronteiras da literatura e do jornalismo.

Nesta “travessia”, conseguimos entrever como ocorre a relação ficcional/factual de seus textos com o leitor de suas crônicas, cujo processo de genuína identificação, por si só, já justificaria o mito e o mérito clariciano.
Porém, lendo suas crônicas, vamos mais além, como Guimarães Rosa, que confessou ler Clarice “não para a Literatura, mas para a vida”.

Referências Bibliográficas

AAVV, Cadernos de Literatura Brasileira. Edição Especial, números 17 e 18. Dezembro de 2004. Instituto Moreira Salles.
CASTELLO, José. Clarice Lispector- Clarice na Cabeceira: romances. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2011.
CASTELLO, José. O Globo. Caderno Prosa e Verso. 8 de janeiro de 2011.
LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999.
MONTERO, Teresa. Clarice Lispector- Clarice na Cabeceira. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2009.
ROCHA, Evelyn. Clarice Lispector- Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.

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1 Entrevista feita por Antonio Hohlfeldt e originalmente publicada no Correio
do Povo em 3 de janeiro de 1971, com o título de Uma tarde com Clarice
Lispector.
2 Entrevista feita por Júlio Lerner, para o programa Panorama da TV Cultura em 1977, com o título A última entrevista.
Fonte:
Teresa Mendes e Luís Cardoso (organizadores). A Mulher na literatura e outras artes – Comunicações apresentadas no I Congresso Internacional de Cultura Lusófona Contemporânea. Instituto Politécnico de Portalegre - Escola Superior de Educação. Portalegre/Portugal:  Junho de 2013._______________________________________________________________________
* Angela Maria Rodrigues Laguardia
Doutora em Letras - Estudos Portugueses, especialidade em Estudos Comparatistas pela Universidade Nova de Lisboa (2014).
Mestre em Letras: Estudos Literários, área de concentração Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008).
Especialista em Literatura Brasileira pelo PREPES, Universidade Católica de Minas Gerais (2001),
Licenciatura em Letras (Português e Literaturas de Língua Portuguesa/ Inglês e suas Literaturas) pela Universidade Presidente Antônio Carlos de Barbacena, Minas Gerais (1984).
Foi professora de Língua Portuguesa e Literatura no Centro Educacional Brasileiro e no Colégio de Aplicação da UNIPAC, em Barbacena. Professora de Língua Portuguesa e Teoria da Literatura nos cursos de Letras; Comunicação Social; Ciência da Computação; Tecnologia em Meio Ambiente e Administração na Universidade Presidente Antônio Carlos.
Dentre suas publicações, destacam-se Fazes-me Falta,de Inês Pedrosa: uma alegoria contemporânea da "saudade" e Maria Lacerda de Moura e Miguel Bombarda: perspectivas da Ciência no limiar do século XX,para a Revista da AMONET. Atua como pesquisadora junto ao CLEPUL ,Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
É pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa Letras de Minas, cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq. .
Fonte:
http://www.escavador.com/sobre/5496835/angela-maria-rodrigues-laguardia

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Olivaldo Júnior (A Felicidade)

É com lágrimas nos olhos que lhe conto esta história. Foi há muito tempo, quando as cidades, por mais próximas que fossem, eram sempre um pouco mais longe do que são hoje. Ontem, parece que foi ontem que tudo aconteceu. Tem um tempo sobrando? Pois, então, chega aqui, senta mais perto.

Era um menino de calças curtas, com a esperança de chegar a ver quem desde sempre ouviu falar. Era alguém que esperava a Felicidade. Felicidade... "Será que ela é velha? Deve ser! Minha avó já falava nela! Deus, que ela não morra até me ver, ou melhor, até que eu veja ela!...", era o pensamento do menino cujo nome era Tomé. Tomé, sim, nome de santo, de quem se diz que só acredita em algo quando vê, toca, cheira, escuta e prova o que existe. Mas, coitado, se assim fosse mesmo, jamais conheceria a Felicidade, que essa coisa, ou pessoa, ou ente, não se vê, não se toca, não se cheira, não se escuta, nem se prova. Só é possível intui-la. A intuição da Felicidade é o que nos faz vê-la, tocá-la, cheirá-la, escutá-la, prová-la e, aí sim, experimentá-la. Você já experimentou a Felicidade? Viu, tocou, cheirou, escutou, provou e intuiu o mundo pelas mãos desse poder, dessa fada hermética, divina?

- Ei, menino! Menino! Quer saber onde é que mora a Felicidade?, perguntou ao garoto um senhor, o Cego da Estação, um homem tão pobre que vivia da compaixão daquela velha cidade.

- Quero, sim, senhor! É o que mais quero na vida!!!, respondeu o menino ao cego. E fazia um dia lindo, com um azul lustroso no céu, carneirinhos de lã pastando ao longe, perto do Sol.

- Está vendo aquela montanha, depois do fim da cidade, pertinho de Deus? É lá que ela mora. Eu iria com o menino, mas, como vê, sou cego de nascença, enjeitado de pai e mãe, sem nada...

O menino, mesmo radiante com a informação, entendeu o que o cego lhe pedia e tirou do bolso as moedinhas que tinha. O dia estava ao meio. Se corresse, chegaria logo ao topo da montanha e, depois de tanta espera, finalmente se encontraria com aquela que, mesmo pedida como presente de Natal, não era trazida, a Felicidade. Que mistério o aguardaria? Como será que ela era? Como?

Voltou para casa e, escondido da mãe, pegou seu embornal de aventuras e saiu correndo em direção à montanha, depois do fim da cidade, pertinho de Deus.

O terreno a se escalar na montanha era íngreme, cheio de pedras que, ao toque do minúsculo pé do menino, rolavam montanha abaixo, espantando os urubus que já se amontoavam, ardilosos, à espera de que o pior ocorresse. "Um menino daquele tamanho escalando? Ah, vai dar em queda!...", pensavam.

Meus olhos já se enchem de lágrimas de novo. Desculpe-me. É que a vida, o menino, ai, ai...

Já eram quase três da tarde. O topo estava próximo. "Como custa a chegar!", pensou o menino. "Há de valer a pena! A Felicidade!..". Um tanto cego pela luz que reluzia cruelmente nas pedras, um pouco antes de chegar ao topo, viu uma luz sem igual. "Era ela! Estou perto!", disse para si mesmo o pequeno. "Não me escapa! Vou te pegar, Felicidade!...". E a luz lhe revelava uma caverna, de que a luz ficava mais forte a cada suave passo do pobre. Pé ante pé, suor no rosto, passos titubeantes, sol do deserto, e... zás! Uma coruja lhe vem de encontro e lhe sangra os olhos, derrubando-o no chão! Os urubus, enfileirados, previam a morte iminente, mas, desconfiada, a mãe do garoto pediu a um velho amigo que o seguisse. Chegou tarde. Quando alcançou o menino, este, que já estava com as mãos cobrindo os olhos, chorava, soluçava e gritava que não era justo, tinha que vê-la, tinha que vê-la, o cego mentiu!

Num dos ombros do amigo da mãe, desceu a montanha, cruzou a cidade, chorando, chorando muito. Ao longe, o cego, sabendo o que tinha feito, se riu e começou a cantar um velho cântico.

O menino usava calças curtas e mantinha a esperança de chegar a ver quem desde sempre ouviu falar. Era alguém que esperava a Felicidade. Felicidade... "Será que ela é velha? Deve ser! Minha avó já falava nela! Deus, que ela não morra até me ver, ou melhor, até que eu veja ela!...", era o pensamento do menino cujo nome era Tomé. Sim, Tomé, nome de santo.

Fonte:
O Autor

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Folclore Japonês (A Princesa e a Peônia)

Este é um dos antigos e mais poéticos contos do folclore japonês. Ele nos conta a triste história de um amor impossível entre uma bela princesa e um espírito encantador materializado em forma de flor: O espírito da peônia que manifesta-se sob a aparição de um belo jovem.

Há muitos e muitos anos, em Gamo-Gun, na província de Omi, havia um castelo chamado Azuchi. Era um lugar antigo e magnífico, cercado por uma alta parede de pedras e um fosso cheio de lótus. O senhor feudal era um homem muito rico, porém mal humorado chamado Yuki Naizen no Jô. Sua esposa tinha estado doente por muitos anos e teve uma única filha, que todos chamavam carinhosamente de Aya Hime (princesa Aya).

Na época, o Japão vivia um longo período de paz e tranquilidade, e os senhores feudais haviam abandonado a ideia de guerrear constantemente para conquistar novos territórios. Como os feudatários mantinham relacionamento amigável, Naizen no Jô percebeu então que, a época era oportuna para encontrar um bom pretendente para sua princesa.  Depois de vários contatos, ele optou pelo segundo filho do senhor do castelo de Ako, da província de Harima. Este, para Naizen no Jô, seria apropriado para ser o marido de sua única e amada filha. Os dois feudatários ficaram muito satisfeitos com a possibilidade de que seus filhos viessem a se casar, pois a aliança matrimonial fortaleceria o poder bélico de ambos.

Por esse tempo, no Japão, as famílias ricas marcavam os casamentos de seus filhos sem que estes tivessem prévio conhecimento um do outro. Já que era obrigada a aceitar a determinação de seu pai, a princesa Aya fez grande esforço mental para aceitar seu futuro marido, falando e pensando nele positivamente, mesmo sem nunca tê-lo visto.

Certa ocasião, junto com sua dama de companhia, Aya Hime caminhava pelo enorme jardim do castelo e foi até o canteiro das peônias. Era o seu local preferido, onde adorava apreciar o reflexo da lua, projetada nas águas do lago, e fazia isso, principalmente, em noites de lua cheia que lhe trazia belas inspirações para compor poesias.

Naquela noite, quando Aya Hime estava passeando distraidamente na beira do lago, tropeçou em uma raiz exposta e desequilibrou-se em direção à água. De repente, foi amparada por um jovem que surgiu como num passe de mágica, evitando milagrosamente que ela afundasse lago adentro. Em seguida, assim que a colocou no chão, o rapaz desapareceu tão rapidamente como apareceu. A dama de companhia viu, quando ela tropeçou, um clarão de luz em torno da princesa refletido na água, mas não chegou a ver claramente nenhum rapaz protegendo-a da queda. Já Aya Hime tinha visto perfeitamente o rosto de seu salvador.
A Princesa encontra o Jovem Espírito da flor…

Era o  homem mais bonito que ela poderia imaginar. –Vinte anos de idade, disse ela a Sadayo San, sua dama de companhia favorita, –Ele deve ser um samurai da mais alta ordem. Seu traje estava coberto com minhas peônias preferidas, e sua espada era ricamente ornamentada. Oh!!! eu poderia tê-lo visto mais um minuto, para agradecer-lhe por me salvar da água! Quem pode ser?

– Mas princesa, como ele teria chegado ao jardim, se todo o castelo está cercado pelo fosso e existem muitos guardas no portão? Acho melhor não comentar nada a ninguém, pois seu pai pode ficar zangado, se souber que um estranho esteve no jardim.

A partir daquela noite, Aya não conseguiu esquecer o misterioso rapaz. Por várias vezes esteve no jardim, mas nunca mais o viu.

Tempos depois, ela ficou muito doente e com dificuldades para comer e dormir. Cada dia foi ficando mais pálida e tornou-se impossível realizar seu casamento com o príncipe de Ako na data marcada.
Vários médicos vieram de Quioto para examinar Aya Hime, porém ninguém conseguiu diagnosticar de que doença se tratava. Como último recurso, o senhor feudal Naizen no Jô, interrogou com veemência Sadayo, a dama de companhia de sua filha, pois sabia que ela era a confidente da princesa.

– Os médicos chegaram a pensar que ela estava fingindo estar doente, só para não se casar com o prometido príncipe de Ako. Se você sabe de algum amor secreto dela, me diga, pois, se continuar assim, ela vai acabar morrendo. Você não quer que ela morra, quer? – perguntou o feudatário.

– Senhor, eu prometi à sua filha que jamais revelaria seu segredo. Porém, diante do risco de vida que ela está correndo por causa de sua enfermidade, sou forçada a revelá-lo, se é que isso contribuirá para sua salvação.

Assim, Sadayo contou detalhadamente o que aconteceu na noite de lua cheia no canteiro das peônias…

– Meu senhor, acredito que a doença da princesa Aya é uma doença de amor. Ela está profundamente apaixonada pelo jovem que viu por alguns instantes e depois desapareceu misteriosamente. Tenho medo de que, se não conseguirmos encontrar o tal jovem, ela definhe dia a dia até morrer – disse Sadayo, a dama de companhia da princesa.

– Mas o nosso castelo é muito vigiado, é humanamente impossível que alguém consiga entrar e sair sem ser visto pelos guardas dos portões…  murmurou o pai de Aya, Naizen no Jô.

– Está sugerindo alguma coisa senhor?! Bem sabes que raposas e texugos têm o poder de se transformar em seres humanos e nos enganar. Será possível que algum desses bichos tenha entrado no castelo por alguma pequena abertura no muro?!

Nessa noite, para tentar reanimar a princesa, foi trazido da capital o famoso músico Yashakita Kengyo, mestre num instrumento de cinco cordas chamado “biwa”. A noite estava quente, e o concerto musical foi ao ar livre. Os acordes espalharam-se pelo ar, tomando conta do belo jardim do castelo.

De repente, no canteiro das peônias, um jovem de ar nobre apareceu para ouvir a música. Desta vez todos o viram, e ele trajava a mesma roupa com bordados de peônias em fios de ouro. – É ele! – gritaram todos os que assistiam o concerto. Diante da reação das pessoas, o jovem desapareceu instantaneamente.

 A princesa ficou visivelmente excitada. Levantou-se e foi procurar pelo moço no jardim, mas nada encontrou. O pai dela, senhor do castelo, ficou muito confuso com a situação. No dia seguinte, mandou fazer uma busca minuciosa no jardim, revirando pedras, removendo canteiros de arbustos e procurando em cima das árvores, porém, não encontrou ninguém escondido, nem mesmo raposa ou texugo.

Nessa mesma noite, quando dois músicos do castelo, Yaesan e Yakumo tocavam seus instrumentos, respectivamente a shakuhachi (flauta) e o koto (instrumento de cordas), o jovem novamente apareceu e desapareceu ao ser notado. O mistério aumentou, pois a vigilância tinha sido triplicada, e tudo no castelo foi vasculhado palmo a palmo.

Yuki Naizen no Jô resolveu chamar, então, o renomado Maki Hyogo, um veterano oficial do exército que atuava como conselheiro na corte do Shogun, para capturar o jovem misterioso. O astuto Maki, que adorava desafios, aceitou prontamente a missão. Vestiu-se de preto, como um ninja, para fazer-se invisível e escondeu-se no canteiro das peônias.

Todos tinham percebido que a música exercia certo fascínio sobre o jovem misterioso. Consequentemente, os músicos Yaesan e Yakumo fizeram um concerto naquela noite. O público presente prestou mais atenção no canteiro das peônias do que na música. A certa altura, um belo jovem surgiu no jardim, com magnífica veste ornada de peônias bordadas.

Maki Hyogo levou um susto, pois o jovem surgiu do nada exatamente a um passo de onde ele estava escondido. Em seguida, agarrou o jovem por trás, na altura da cintura. Manteve-o apertado por alguns segundos, quando sentiu uma baforada de vapor na cara e caiu no chão agarrado firmemente ao jovem.

Os guardas e o pessoal do castelo que assistiram à cena correram para o canteiro e, ao chegarem deparam-se com Maki Hyogo no chão:

– Vejam, consegui agarrá-lo – disse Maki, mas, vendo o que estava abraçando, descobriu que se tratava apenas de uma enorme peônia. Como Hiogo também era astrólogo, logo descobriu do que se tratava.

– Raposas e texugos não conseguiriam passar pelos portões e os guardas do castelo, porém, o jovem sim, pois ele é o espírito da peônia e nasceu aqui mesmo.

Os videntes que estavam no local concordaram plenamente com Maki Hiogo. O espírito da peônia manifestava-se sob aparição de um belo jovem, porém não era na verdade um ser material. Esclarecido o caso, a princesa Aya levou a grande flor de peônia para seu quarto e colocou-a num vaso com água.

Dia a dia, ela foi melhorando de saúde, até recuperar-se completamente. Inexplicavelmente, a grande peônia do vaso também ficava cada vez mais radiante, não dando nenhuma mostra de murchar, apesar de o tempo ir passando.

Como a princesa estava agora com ótima aparência, seu pai não via nenhum motivo para continuar adiando o casamento. Então, dias depois, o senhor de Ako e sua família chegaram com uma luxuosa comitiva, para realizar o casamento de seu segundo filho.

A princesa Aya, com pesar, despediu-se da grande peônia e foi para a cerimônia de casamento. Após o ofício, seguiu com seu marido para o castelo de Ako.

As camareiras que acompanharam a princesa viram a incomparável beleza da flor quando foram para a cerimônia. E, após o evento, quando passaram pelo quarto da princesa novamente, viram a peônia murchar e despetalar-se.

A alma da flor, não suportando a dor de ver sua amada princesa casando-se com outro, despetalou-se de tristeza.
 
Fontes: Livro de Richard Gordon Smith, contos antigos e Folclore do Japão in Caçadores de Lendas

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Paulo Leminski (XLV)


Ângela Ramalho (Poemas Escolhidos)

PARTES DE MIM

Uma parte de mim é festa,
outra parte é melancolia,
uma parte de mim silencia,
enquanto outra se manifesta.

Uma parte de mim é emoção,
outra parte um ser racional,
uma parte é sentimental
enquanto outra prefere a razão.

Uma parte de mim é menina
outra parte altiva senhora,
uma parte de mim vai embora
enquanto outra se descortina.

Uma parte me pede segredo,
outra parte se escancara,
uma parte de mim dá na cara
enquanto outra se encolhe de medo.

Uma parte de mim faz furor,
outra parte vive camuflada,
uma parte de mim é abafada,
enquanto outra vive o esplendor.

SONETO DE DEVOÇÃO

Essa que veio na rede, imagem dividida
e foi achada por simples pescadores,
tornou-se nossa Mãe Aparecida,
A que veio curar as nossas dores.

Intercessora, salvou-me a vida
Curou o mal sem deixar cicatriz,
A ela sou eternamente agradecida,
Hoje é a padroeira desse meu país.

Inconfundível mãe, de cor morena,
Que a minha mãe em sonho visitou,
num momento de desespero e aflição.

Vendo sofrer uma criança tão pequena
No corpo em chamas um milagre operou,
Graças vos dou, eterna é minha devoção!

DIAMANTE BRUTO

Você gosta de músicas antigas,
de comidas simples,
de ficar em casa.
Você não liga para a aparência.
Você, tão sem cerimônias,
com seu jeitão de matuto...
Você, meu diamante bruto!
Você, simples e verdadeiro,
de mãos calejadas e de jeito rude,
que eu quero conhecer, mais amiúde...
Você às vezes lembra meu pai, severo, astuto...
Você, meu diamante bruto!

Você, homem de caráter e brio,
que me aquece quando tenho frio,
e me faz transpirar, sem ter calor.
Você, companhia da qual eu desfruto,
pedra preciosa, diamante bruto,
mas que, se eu lapidar, perde o valor.

AMOR E POESIA

Há tempos não fazemos um soneto,
Isso requer um tema embriagador,
Eu e você fazemos um bom dueto
Nas parcerias das rimas e do amor.

Rimamos tanto e em tanta sintonia
Que juntos, parecemos tão iguais,
E os belos versos desta poesia,
Até parecem alguns dos imortais.

Entre versos, desejos e malícias,
O amor flui em perfeita harmonia,
E a um canto... a caneta e o papel,

Esperam que troquemos mil carícias,
Ser tua em prosa e verso, à luz do dia,
É mais que poesia, é ir ao céu!

PALAVRAS...

Palavras...
Palavrinhas...
Palavrões...
Falam tudo,
falam nada,
tecem canções.
Causam raiva,
causam ira,
arranhões...
Nos cutucam,
nos inflamam,
são paixões.
Deixam sequelas
coisas belas,
sensações.
Causam alegria
euforia,
aos corações.
Nos ensinam
nos fascinam
aos milhões.
Mas sem elas,
ai meu Deus
como seria?
Deixaria
de existir
a poesia?

DE POETAS E LOUCOS…

Da minha loucura,
tiro lucidez,
chego até vocês.
Da minha lucidez
invento loucuras,
como ninguém fez.
Sou louco, sou pouco,
sou muito, sou tantos
e em tantos, sozinho,
procuro um ninho,
igual passarinho.
Na rua, assobio,
sorriso escrachado,
sem ninguém do lado,
mas dou meu recado:
Se tenho alegria
Sou louco de fato,
Pois faço meu dia
Virar poesia.
Sou muitos,
sou tantos,
Em tantos,
sou pouco
a muitos encanto,
a outros espanto.
Sou poeta, sou louco,
Entretanto,
sou quantos?

SÓ POESIA...

Acabei de fazer um soneto,
quase ao meio dia,
de barriga vazia,
só me alimentando
de poesia!

Alimentar o corpo
a gente espera.
Esqueço a fome,
deixo-a quieta:
-Agora sou poeta!

IDENTIDADE

Em que momento,
em que fase,
em que período,
eu me distanciei de mim?

Por quem fui levada?
(ou melhor dizendo)
Porque me deixei levar?

Quantas escolhas vãs,
quantos amores desfeitos,
quanto sacrifício inútil.

Só agora me dou conta
que a maturidade
trouxe de volta
minha identidade.

A VIDA ENSINA

Não sei porque cismei com você.
Não sei porque achei
que poderia te levar a sério.
Quanta insensatez!
Quantas promessas vãs,
quanto romantismo barato,
quanta ironia!
E eu aqui sonhando
e fazendo poesia.
Onde foi parar minha razão?
Porque deixei falar
mais alto o coração?
Será que amor faz mal,
deixa doente?
Ou eu é que fui
muito inconsequente?
Fazer o que,
sofrer é minha sina.
Contra mal de amor
não existe vacina,
nenhum remédio
cura essa ferida.
Bem ou mal,
levo comigo pela vida
lições de amores não correspondidos.
De professora, passei a aluna
cuja matéria sequer compreende,
embora o que a gente não aprende,
a duras penas a vida ensina.

CORINGA

Pego o baralho: corto!
Embaralho e me pego,
pensando na vida
(tão embaralhada).
Compro uma carta que não me
serve.
A prudência me pede para retê-la,
mas tomada pelo imediatismo,
descarto.
É apenas um jogo, penso.
Mas, e na vida
quantas vezes descartei sem pensar?
É minha vez de comprar.
Mais uma que não me serve.
Não tem coringa nesse monte?
Descarto cartas sem serventia,
e sem muito refletir,
vou comprando, comprando…
Alguém bate
e eu fico com as mãos
repletas de cartas,
e a minha falta de lucidez.
Quantas partidas a vida ainda me dará,
até que eu aprenda a pensar,
sem me acomodar,
à espera que venha o coringa?