quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Trova 279 - Nei Garcez (Curitiba/PR)


Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 13 a 16

13 — UM PROBLEMA DE DISTÂNCIA
Vocês naturalmente sabem que o homem sempre mediu as distâncias de acordo com seus meios de transporte. Há cinquenta anos atrás nos perguntavam: “Do Rio a Porto Alegre é muito longe?” E a gente, pensando nos meios de transporte daquele tempo, respondeu: “É longe. São muitos dias de viagem.” A resposta hoje seria: “É perto. Algumas horas de avião.” E eu até acho que no futuro um cidadão poderá despedir-se dos amigos na Avenida Rio Branco e dizer: “Até a vista, rapazes. Vou até a Groenlândia. Volto daqui a pouco.”

Pois lá pelo ano de 1500, D. Manuel, o Afortunado, rei de Portugal, andava às voltas com um grave problema. O navegador português Vasco da Gama havia descoberto o caminho para as Índias, voltando de lá com um carregamento de pimenta, canela, gengibre — enfim: todas as preciosas especiarias do Oriente. Ora, esses artigos tinham grande aceitação na Europa, onde eram vendidos a bom preço. Estava claro que aquele que primeiro conseguisse chegar às Índias, voltando também pelo caminho mais curto, faria melhor negócio. Em resumo: a febre das especiarias orientais naquele tempo era mais ou menos parecida com a febre de petróleo de nossos dias.

D. Manuel não hesitou. Organizou uma armada. Botou no comando dela um capitão-mor, Pedro Álvares Cabral, e lhe disse, naturalmente em outras palavras: “Olhe, comandante, precisamos achar um caminho mais curto para as Índias, ouviu?”

A armada zarpou. O que aconteceu na viagem, não sei. Não vi. Contam muita coisa desencontrada. Uns dizem que Cabral se afastou das costas da África, batido por um grande temporal e acabou descobrindo o Brasil por acaso. Outros afirmam que o comandante português não andava às tontas, sabia onde tinha o nariz e chegou à terra desconhecida por causa dum plano muito bem traçado. Nada disto nos interessa. O importante é que o Brasil foi descoberto.

Um dos navios da armada, comandado por um tal André Gonçalves, voltou para Portugal para dar a boa notícia ao Rei, enquanto Cabral seguiu com o resto da frota para as Índias. D. Manuel decerto deu pulos de contentamento ao saber da novidade. Mais terras para a Coroa de Portugal!

Mandou três caravelas explorar a nova terra. As três casquinhas de nozes, todas cheias de velas e bandeiras, correram à costa, descobrindo cobras e lagartos, isto é: cabos, rios, ilhas, baías, montanhas... Dois anos depois veio mais uma esquadrilha exploradora. Alguns anos mais tarde, outra.

14 — A MADRUGADA DO BRASIL
Trinta anos após o descobrimento fez-se a primeira tentativa de colonização. Fundaram-se as primeiras povoações. São Vicente e Santo André da Borda do Campo.

Em 1534 quem reinava em Portugal era D, João III. Resolveu ele distribuir as terras do Brasil entre pessoas importantes do Reino, que tivessem capacidade para povoar e defender a nova pátria. Dividiu a costa em partes mais ou menos iguais a que deu o nome de feitorias. Eram 5: Santa Cruz, Rio de Janeiro. Cabo Frio, Iguaçu e Itamaracá. Logo depois dividiu a nova terra em capitanias hereditárias.

Olhando o mapa da divisão, não posso deixar de sorrir. O Brasil me dá a impressão duma perna de porco dividida em dez fatias. Vejam: Havia espalhados pela perna de porco, isto é, pelas dez capitanias, uns 2000 colonos. A maioria se dedicava à lavoura. Já apareciam os primeiros engenhos, as primeiras fabriquinhas. Era o clarear do dia duma nação. (Gostaram da frase? Pois podem ficar com ela. Dou-lhes de presente. Em 1500 essa imagem podia ser novidade. Mas hoje...)

Vocês pensam que as capitanias viveram em paz? Qual! Sofriam ataques dos selvagens, que não se conformavam com ver sua pátria invadida. Depois, começavam também a aparecer piratas. Vinham espiar a terra nova, com um olho deste tamanho, com uma vontade danada de abocanhar um naco da terra que Portugal descobrira.

Vendo que a divisão do Brasil em capitanias não dava resultado, o rei de Portugal resolveu criar um governo geral. O primeiro Governador Geral se chamava Tomé de Sousa. Trouxe para o Brasil 300 soldados, 300 colonos, 400 degredados e 6 jesuítas. Estes últimos eram chefiados pelo Padre Manuel da Nóbrega.

Tomé de Sousa fundou a cidade de Salvador da Bahia, visitou as capitanias do Sul, mandou grupos de homens explorar o sertão. Foram aventuras tremendas. As proezas de cada um desses grupos, que se chamavam entradas, davam um romance de arrepiar o cabelo. Infelizmente ninguém se lembrou de escrevê-lo.

Uma das coisas mais admiráveis da História do Brasil foi o trabalho dos jesuítas. Os padres fundaram colégios e, enquanto os outros homens pensavam em arrancar da terra ouro e pedras preciosas, eles se preocupavam exclusivamente com a educação dos selvagens. Achavam que uma alma valia mais que um diamante. E, sem armas de guerra, metiam-se no meio dos índios, aprendiam a sua língua, procuravam mostrar-lhes que eles levavam uma vida feia, sem conhecer o Único Senhor do Universo — Deus, um pai que não gostava que seus filhos na Terra cultivassem o pecado e a antropofagia.

Mas agora é que estou vendo que a história da minha vida está virando História do Brasil. Vamos fazer ponto e começar novo capítulo. O capítulo em que continuo as aventuras de Tibicuera, o valente guerreiro tupinambá. (Modéstia à parte.)

15 — EU E MEU FILHO
Todos esses fatos que narrei no capítulo que vocês acabam de ler, aconteceram na terra em que eu me encontrava. No entanto não presenciei nenhum deles. Só me lembro de que certa vez tomei parte num ataque a um aldeamento de portugueses. Fomos repelidos. Eles usavam canhões e espingardas. Os nossos homens ficaram apavorados diante dos “tacapes que vomitavam fogo”.

Minha tribo se meteu no mato. Passaram-se muitas e muitas luas. Meu filho cresceu a meu lado. Era um rapagão desempenado, da minha altura. Tão parecido comigo, que muitas vezes os outros guerreiros da tribo não sabiam distinguir o filho do pai. E como o rapaz se chamasse também Tibicuera, a confusão ficava maior ainda.

Eu amava meu filho. Meu filho me amava. Ensinei-lhe a arte da guerra. Contei-lhe os meus segredos. Ele aprendeu a nadar; a caçar; a fazer pinturas bonitas no corpo; a curar feridas produzidas por flechas envenenadas; a ser mais ágil que a onça; mais flexível que a cobra; mais impetuoso que a anta. Às vezes nós dois passávamos horas e horas um ao lado do outro, conversando. Eu não me esquecia das palavras do pajé, que me dissera que o pai pode continuar no filho, o filho no neto, e assim por diante, de sorte que o tempo e a morte deixam de existir.

Eu pulava de alegria quando meu filho caçava uma onça ou derrubava um inimigo. Às vezes eu olhava para o rapaz e ele imediatamente lia meus pensamentos, sem que fosse necessária a troca de palavras. Eu também enxergava as ideias dele no fundo de seus olhos, do mesmo modo como se vê um peixe colorido nadando no fundo de um rio de água transparente.

Meu filho foi pai de um filho, que recebeu também o nome de Tibicuera e cresceu na taba à nossa sombra. Passei a amar meu neto como amava meu filho. Era uma cadeia de afeição, de compreensão, de camaradagem. Contei a meu filho o que o pajé me disse aquela noite em sua oca a respeito do tempo, da morte e da eterna mocidade. E o resultado de tudo isso é estar eu hoje aqui, depois de mais de quatrocentos anos, sem saber se durante todos esses quatro séculos eu fui apenas uma pessoa ou uma série de pessoas do mesmo sangue, com o mesmo espírito. Não importa. De qualquer forma não importunarei mais vocês com essa história. Para facilidade de narrativa vamos admitir que só existiu um Tibicuera: este que está agora contando as suas aventuras, que coincidem até certo ponto com as aventuras do Brasil.

16 — VI A MORTE DE PERTO

Só sei que um dia me encontrei sozinho no mato, longe de minha tribo. Caminhei todo o dia sem rumo. Ao anoitecer, cansado, dormi debaixo duma grande árvore. Um bando de vagalumes pousou no meu corpo, cobrindo-o todo. Acordei aturdido. Que era aquilo? Sonho? Ou travessura de Anhangá? Meu corpo despedia uma luz esverdeada. Saí a caminhar, assustado. Os vagalumes não me deixavam. E — apaga acende, apaga acende — pareciam estrelas brilhando no céu pardo do meu corpo.

Quando dei por mim, tinha entrado às cegas numa taba. Os índios que me viram começaram a correr e a gritar: “Anhangá! Anhangá!”

Eu corria também, atordoado. Os vagalumes continuavam a piscar. O pajé da tribo desconhecida apareceu e começou a dançar a meu redor, dizendo palavras que eu não compreendia. De repente os vagalumes levantaram o voo Caí no meio da ocara, pois os meus joelhos se vergaram de cansaço.

Vendo que eu era um homem como os outros, os índios me cercaram e me fizeram prisioneiro. Fui levado à presença do morubixaba. Ele me fez perguntas numa língua que eu não entendia.

Tibicuera sacudia a cabeça, como a dizer que não lhes era possível responder.

Levaram-me para o centro da ocara e me amarraram com fortes cipós a um poste. Acenderam fogueiras. Os índios começaram a dançar a meu redor. Eu só via caras ferozes, retorcidas de raiva. A água fervia em grandes potes em cima das fogueiras. Compreendi. Eu ia ser morto, pelado em água fervente, e devorado por aqueles homens!

Olhei para o céu. A lua estava muito calma lá em cima, como se fosse cega, como se não enxergasse a minha desgraça. As estrelas eram como vagalumes agarrados ao corpo escuro da noite.

Os tambores batiam — bum-te-bum — os guerreiros dançavam, a água fervia. O pajé falou à sua gente. Levaram-me para cima duma grande pedra. Fiquei ali com os braços ainda amarrados, as pernas moles, a cabeça zonza. Um enorme guerreiro se aproximou de mim, com um tacape na mão. Era o meu fim. Lembrei-me do meu filho, da minha primeira guerra e esperei com coragem o golpe. Havia um silêncio de morte na taba. O índio ergueu o tacape, reboleou-o no ar. Fechei os olhos. E de repente ouvi uma voz que falava de longe.

Era uma voz diferente, tão clara, tão macia e tão fresca que parecia ter saído da própria lua. Abri os olhos sem querer. O homem que ia me matar deixou cair o tacape. Todas as cabeças se voltaram para o lado donde tinha partido a voz. Da escuridão surgiu um vulto. Não era índio. Não era, nas roupagens, nem parecido com os marinheiros portugueses que eu vira havia muitos anos. Era um homem branco, todo vestido de preto. Pareceu-me tão fraco que nem teria força para erguer um tacape. Havia, porém, no rosto dele qualquer coisa que logo me conquistou. Um rosto amigo e ao mesmo tempo severo. Senti perto dele aquela mesma impressão esquisita que produzira em mim a grande cruz dos portugueses.

O homem misterioso avançou pelo meio dos índios e parou na frente do morubixaba. Disse-lhe baixinho algumas palavras. Vi o chefe da tribo baixar a cabeça e depois dobrar os joelhos e fazê-los cair por terra, aos pés do desconhecido.

Deve ser Tupã que desceu à Terra para me salvar— pensei. Senti que me faltavam as forças. Desmaiei.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Olivaldo Júnior (Carnaval em Trovas) IV


Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 9 a 12

9 — UM BELO ESPETÁCULO
Foram dias de festa para nós. Os marinheiros portugueses desembarcaram e espalharam-se por toda a praia. Riam, falavam alto, cantavam, dançavam. Tocavam instrumentos estranhos. Cantavam numa língua que nós achávamos barbaramente arrevesada. Davam aos índios espelhos, colares e outros objetos: recebiam em troca pedras coloridas, arcos, flechas, potes de barro...

Às vezes o pajé aparecia à entrada de sua oca, olhava os marinheiros, sorria, voltava para dentro de sua morada e ficava fumando cachimbo em
silêncio.

Havia na enseada um ilhéu. Foi nele que os portugueses rezaram a primeira missa. Nunca tínhamos visto aquilo. De olhos arregalados e em profundo silêncio escutamos e olhamos... Não perdemos um gesto, um som. Quando o capelão da armada (naquele tempo eu não conhecia estes nomes...) ergueu no ar o ostensório, tive a impressão de que era o próprio sol que de repente brilhava nas mãos dele. Fiquei deslumbrado. Senti um nó na garganta. Julguei que ia chorar. Eu, um guerreiro!

Dias depois os portugueses saíram em procissão, levando dois pedaços de madeira pregados em cruz. Plantaram-no a pouca distância do mar. Houve nova missa.

Uma noite, enquanto todos dormiam, fui olhar a grande cruz. A noite estava clara. Imaginei-me diante dum gigante negro de braços abertos. Eu sentia qualquer coisa que não sabia dizer que era. A cruz me deixava mudo, com um peso no peito. Naquela noite dormi à sombra dela.

Quando os navios portugueses se aprontaram para partir, o pajé mandou levar ao comandante da armada muitos presentes: cocares, enduapes, pedras preciosas, potes de barro, penas coloridas... O chefe branco — que hoje eu sei que se chamava Pedro Álvares Cabral — recebeu os presentes e decerto achou que eles significavam isto: “Chefe branco, eu te mando estas coisas porque eu e minha gente gostamos de ti e de teus homens e queremos viver em paz com a raça branca.” Na verdade, porém, a intenção do pajé fora outra. Ele quisera dizer: “Mando-vos estes presentes como pagamento das horas divertidas que nos fizestes passar.”

As velas ficaram inchadas, batidas pelo vento. Um canhão deu três salvas. As naus começaram a se mover na direção do mar alto. Aos poucos se foram sumindo...

Os índios ficaram reunidos na praia. Faziam gestos amigos, pulavam. Muitos traziam no pescoço colares e miçangas. As mulheres se olhavam nos pequenos espelhos.

Ficaram conosco dois brancos, que choravam.

O pajé viu as naus se sumirem no horizonte e depois falou:

— Foram-se. Que belo espetáculo!

E durante vários meses não disse mais nada.

10 — ENCONTREI CURUPIRA NO MATO
Se não me falha a memória, foi pouco tempo depois da partida dos portugueses que encontrei Curupira no mato. Andava eu muito orgulhoso dos meus músculos e de minha coragem. Tinha caçado a minha décima segunda onça e tomado parte na minha vigésima guerra. Trazia doze cicatrizes no corpo e tinha muitas caveiras de chefes inimigos na minha caiçara.

Um dia, no meio do mato, dei de repente com o Curupira. Era ele mais feio que o índio mais pavoroso de todas as tabas de Pindorama. Tinha cabelos cor de fogo das fogueiras de guerra. Trazia na mão um maracá, que sacudia como um desesperado, deixando a gente zonza e surda. Olhei para os pés da aparição. Eram torcidos, voltados para trás. Não havia dúvida. Era mesmo Curupira.

Aprontei arco e flecha e disparei o tiro. Pobre de mim! A flecha caiu a dois passos de meus pés, mole e sem força. Curupira matraqueava, matraqueava como um louco. Seus cabelos chispavam. Seu corpo era uma piorra. Seus olhos, dois vagalumes de brilho verde.

Fiquei tão assustado que saí a correr e a gritar. Cheguei sem fala à taba. Os índios me cercaram. Deram-me cauim a beber. Quando o pavor me deixou o corpo, pude dizer:

— Pajé, não tenho medo de homem. Que é que vou fazer para vencer os espíritos do mato?

O feiticeiro sacudiu a cabeça.

— Ninguém pode com eles. Ninguém.

Agora não era mais o medo e sim a raiva que não me deixava falar.

11 — O SEGREDO DO PAJÉ
Um dia o pajé me chamou à sua oca. Entrei. Fui recebido com esta pergunta:

— Tibicuera, qual é o maior bem da vida?

— A coragem — respondi sem esperar um segundo.

— Só a coragem?

Embatuquei. O pajé ficou sorrindo por trás da fumaça do cachimbo. Gaguejei:

— A... a...

O feiticeiro me interrompeu:

— O pajé é corajoso. Mas de que vale isso? Seu braço não pode levantar o tacape, seus pés não têm mais força para correr.

— Oh! — exclamei. — Mas tu és poderoso, sabes de remédios para todas as dores, consegues tudo com tuas mágicas.

O pajé continuou a sorrir. Sacudiu a cabeça:

— Ilusão — disse.

Depois dum silêncio curto tornou a falar:

— O maior bem da vida é a mocidade. Um dia Tibicuera fica velho. Atirado na oca, fazendo rede. Não pode mais ir para a guerra. O jaguar urra no mato e Tibicuera não tem força para manejar o arco. Tibicuera é mais fraco que mulher.

Escancarou a boca desdentada. Eu escondi o rosto nas mãos para não enxergar o fantasma da minha velhice.

— Pajé... Tibicuera não quer ficar velho. Ensina-me um remédio para vencer o tempo, para vencer a morte. Tu que sabes tudo, que viste tudo, que falaste com o grande Sumé.

O pajé continuava a me olhar com os olhos espremidos. Bateu na testa com o dedo indicador da mão direita.

— O remédio está aqui dentro, Tibicuera. Não há feitiçaria. O pajé gosta de ti. Ele te ensina. Escuta. O tempo passa, mas a gente finge que não vê. A velhice vem, mas a gente luta contra ela, como se ela fosse um guerreiro inimigo. Os homens envelhecem porque querem. Só muito tarde é que compreendi isso. Tibicuera pode vencer o tempo. Tibicuera pode iludir a morte. O remédio está aqui. — Tornou a bater na testa. — Está no espírito. Um espírito alegre e são vence o tempo, vence a morte. Tibicuera morre? Os filhos de Tibicuera continuam. O espírito continua: a coragem de Tibicuera, o nome de Tibicuera, a alma de Tibicuera. O filho é a continuação do pai. E teu filho terá outro filho e teu neto também terá descendentes e o teu bisneto será bisavô dum homem que continuará o espírito de Tibicuera e que portanto ainda será Tibicuera. O corpo pode ser outro, mas o espírito é o mesmo. E eu te digo, rapaz, que isso só será possível se entre pai e filho existir uma amizade, um amor tão grande, tão fundo, tão cheio de compreensão, que no fim Tibicuera não sabe se ele e o filho são duas pessoas ou uma só.

Eu olhava para o pajé, mal compreendendo o que ele me ensinava. O feiticeiro falou até madrugada alta. Quando voltei para minha oca fiquei longo tempo olhando meu filho que dormia na rede.

E eu me enxerguei nele, como se a rede fosse um grande espelho ou a superfície dum lago calmo.

12 — A HISTÓRIA É UMA MARAVILHA
Se me pedissem uma definição de História, eu diria: “É a narrativa da aventura do Homem no Mundo.” Ou então: “É um romance de aventuras que se passa na Terra e tem como personagem principal a Humanidade.”

Tenho vivido tanto, que não sei se estas definições são minhas mesmo ou se eu as ouvi ou li de alguém no decorrer de meus quatrocentos e tantos anos de vida.

Um dia destes, lendo a “Pequena História do Mundo” de meu caro amigo H. G. Wells, famoso escritor inglês, encontrei este trecho: “A História do
nosso mundo é ainda muito imperfeitamente conhecida. Há coisa de um par de séculos os homens só eram senhores da História dos últimos três mil anos. O que havia acontecido antes era objeto de lenda e especulação.”

Mas, seja como for, a História é uma maravilha. A gente para no meio da rua e grita:

— Quem foi que descobriu o Brasil?

O garoto que está vendendo jornais levanta o dedinho e grita:

— Foi “seu” Pedro Álvares Cabral!

No entanto eu, Tibicuera, guerreiro da taba tupinambá, homem de trinta anos, não saberia responder a essa pergunta no próprio ano de 1500! E o Brasil por assim dizer tinha sido descoberto a poucos palmos do meu nariz...

Vi os portugueses chegarem. Tomaram conta da terra. Plantaram a cruz. Rezaram duas missas. De novo se fizeram ao mar. E não compreendi que se tratava do descobrimento do Brasil!

A vida para mim continuou a ser a mesma de antes. Correrias pela beira do mar. Guerras. Caçadas. Aventuras. Nasciam crianças na taba. Os velhos morriam. Vinham grandes chuvas. Passavam-se luas e sóis. E o tempo seguia na sua marcha misteriosa, como uma grande cobra que vai deslizando, sem mostrar a cabeça nem a ponta do rabo, isto é: um monstro sem princípio nem fim.

No entanto, abro a História do Brasil e, após vinte minutos de leitura fácil, fico sabendo do que se passou antes do descobrimento e nos cinquenta anos que se lhe seguiram.

Positivamente: a História é uma maravilha!

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Olivaldo Júnior (Carnaval em Trovas) II


Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 5 a 8


5 — VÉSPERA DE BATALHA

Muito tempo passou. Fiquei curumiaçu, que quer dizer adulto. Chegou a véspera da minha primeira guerra. Os tupinambás se enfeitaram de plumas, botaram no pescoço colares feitos com dentes de inimigos mortos, armaram-se de arcos, flechas, tacapes e lanças.

Eu me lembro com se tivesse acontecido ontem... Era de noite. Céu sujo, vazio de lua e de estrelas. As fogueiras ardiam vermelhas, debaixo dos
potes de cauim. O maracá começou a chocalhar.

Minha mãe chegou e disse:

— Tibicuera, vais para a guerra.

— Vou, mãe.

— Teus avós foram valentes.

— Eu sei.

— Estão morando do outro lado das grandes montanhas.

— Eu sei.

Minha voz estava trêmula. Eu olhava a minha sombra no chão. Não era mais o guri barrigudo de pernas de caniço. Eu era agora um homem forte,
um guerreiro.

Minha mãe continuou:

— Matarás muitos inimigos, derrubarás muitas cabeças, serás um grande chefe.

Estremeci. Apertei com força o meu tacape. Senti que meus olhos estavam fuzilando. Perguntei, com um nó na garganta:

— Mãe, mãe, quando chegará a hora? Quando? Estou fervendo como o cauim. Não posso esperar.

Minha mãe sorriu.

O pajé reuniu os guerreiros no meio da ocara. Falou. Sua voz parecia sair do fundo duma caverna cheia de cobras, escorpiões e morcegos. E enquanto o feiticeiro falava, as nuvens foram se abrindo e as estrelas aparecendo uma a uma.

— Guerra! — gritava o pajé. — O guerreiro forte que ficar na taba é covarde.

Penas e braços dançaram no ar. Um coro horrível repetiu:

— Guerra!

O pajé continuou:

— O goitacá traiçoeiro comeu a carne de nossos antepassados. Vingança!

O discurso do pajé durou cinco horas. Depois os tupinambás começaram a dançar e a beber cauim. Também dancei e bebi. E a madrugada ainda não tinha clareado quando nos pusemos a marchar.

6 — A VITÓRIA
O sol dourava o grande campo. A noite tinha se escondido do outro lado das montanhas. Os nossos guerreiros avançavam. Tudo quieto. Às vezes um gavião passava alto. Eu pensava:

— Anhangá pode estar escondido no corpo duma ave...

(Agora, sentado aqui numa boa poltrona, no estúdio de meu apartamento de Copacabana — onde escrevo esta história — eu sorrio ao me lembrar de meus pensamentos de selvagem.)

De repente, um grito. Tive a impressão de que as macegas, a uns duzentos metros de onde estávamos, cresciam de repente. Eram os inimigos que nos esperavam de emboscada. Uma chuva horizontal de flechas cortou o ar. Traziam nas pontas plumas azuis, amarelas, vermelhas e roxas. Eram tão lindas voando e brilhando no ar luminoso que fiquei de boca aberta, a contemplá-las, tão encantado que me esqueci de me deitar para fugir às flechadas.

Vi um companheiro cair perto de mim com uma seta cravada no peito. Os nossos começaram a atirar também. O combate durou muito tempo. No fim foi a luta corpo a corpo.

Os maracás chocalhavam. Os guerreiros gritavam. Agitei o tacape e corri na direção dos inimigos. Surgiu um índio forte na minha frente. Levantei o tacape e dei o golpe. Pan! O inimigo rolou.

(No momento em que descrevo esta cena, estou no ano de 1942. O meu rádio noticia voos estratosféricos, conta maravilhas da televisão. E a um anúncio de sabonete segue-se uma sinfonia de Beethoven. Olho para a minha máquina de escrever portátil e para as minhas mãos agora cuidadas e custa-me acreditar que estas mesmas mãos já empunharam armas brutais, já feriram, já derrubaram cabeças... Estremeço de leve. Toco a campainha. Peço um chá ao meu criado e continuo a descrever a minha primeira guerra.)

Apareceu outro goitacá. Pan! Rolou também. Outro. Pan! A mesma coisa. Todos caíam. Minha arma zunia no ar sem descanso e sem piedade.

Aquele quadro — homens baqueando aos gritos, plumas coloridas voando ao vento, som de maracás — foi tão forte que hoje, passados mais de quatrocentos anos, eu me lembro dele com toda a clareza. Por fim ergue-se na minha frente um guerreiro enorme. Pela pintura que trazia no corpo, vi que era o chefe da tribo inimiga. Levantou o tacape. Recuei e rebolei também a minha arma. As nossas clavas se chocaram no ar. Pléf! E se quebraram.

Olhei para os braços musculosos do meu adversário e pensei: Estou perdido. Mas não perdi a calma. Como um tigre saltei-lhe em cima. Atracados, rolamos por terra. Senti as mãos de ferro do goitacá trançadas nas minhas costas, enquanto seus braços apertavam meu tronco, procurando esmagá-lo. Fiz um esforço doido e consegui segurar com ambas as mãos a garganta do chefe. E enquanto ele me apertava a cintura eu lhe apertava o pescoço. No fim de alguns minutos notei que o abraço do inimigo afrouxava. Senti um alívio. Eu tinha vencido.

7 — SERENATA PARA AS ESTRELAS
Voltamos para a taba com os troféus da vitória.

Minha mãe me esperou sorrindo.

— Cem cabeças de inimigos. Que lindos enfeites para a nossa caiçara, mãe!

(Assim pensava eu no ano de 1490. Hoje, olho urna tela de Portinari ou uma escultura de Brecheret e digo: “Que lindos enfeites para o meu gabinete.)

Veio o pajé com o seu sorriso irônico e me disse:

— Tibicuera é um valente. Oh! Mas ele não pode com os gênios do mato.

Naquela noite a lua me pareceu mais clara, mais suave a minha rede, mais melodioso o barulho do mar. Com o osso da coxa do chefe inimigo fiz uma flauta. E na hora em que a taba dormia, comecei a soprar no instrumento. O som que saiu dele foi doce e triste. Então fiz a minha primeira serenata para as estrelas. Toquei com tanta alma, com tanto sentimento, que a música misteriosa dançou no ar leve voou para o mato e fez calar de espanto o urro do jaguar, o canto de fundo do urutau e o grito guinchado de Curupira. As cobras vieram me lamber os pés, tontas. Pareceu-me até que as próprias estrelas pararam de brilhar para melhor ouvirem a minha musiquinha. Eu soprava na flauta e de tão comovido comecei a chorar.

Mais tarde, fui dormir. Sonhei que o chefe goitacá veio para mim e disse:

— Tibicuera, estou contente por ter sido vencido por ti. Estou orgulhoso de ti. Porque fizeste uma flauta com o meu fêmur e tocas nela tão bem, tão bonito, que até os mortos que moram para além das grandes montanhas ficam com vontade de voltar, só para te ouvir.

8 — VELAS NO MAR
O pajé me contava histórias dos tempos em que a Lua era noiva do Sol. Eu ficava sentado na oca dele, de pernas cruzadas, escutando. Uma fogueira quase morta nos separava. A fumaça subia. Por trás da fumaça o pajé sorria, mostrando a boca escura e desdentada. E a faia dele era como o barulho do vento nas folhagens.

Um dia ele me estava recontando uma história que aprendera do velho Sumé, quando se ergueu uma gritaria na taba. Saí para ver o que acontecia. Um homem vira coisas estranhas no mar. Por isso estava gesticulando, gritando, contando... O chefe da tribo armou os seus guerreiros. Fomos todos para a beira do mar.

O nosso espanto foi enorme. Abria-se na nossa frente a grande baía. Dentro dela, balançando-se de leve, estavam pousadas umas doze ou treze embarcações como nunca tínhamos visto em toda a nossa vida. Nós cortávamos os rios e o mar nas nossas igarás, barcos compridos e rasos, feitos em geral de troncos de árvores. Mas agora era diferente... Tratava-se de barcos altos, compridos, largos, todos cheios de mastros, cordas, panos, bandeiras Eu estava de boca aberta. Olhava muito admirado para as bandeiras coloridas que ondulavam ao vento no cordame dos navios. E só cem anos depois é que eu iria aprender que aquela era a frota portuguesa que descobria o Brasil! Naquela hora não existia Brasil, mas sim a nossa terra, por nós chamada Pindorama, — serra boa e
grande onde nossa tribo e muitas outras corriam, livres, acampando aqui e ali, caçando, pescando, dançando, guerreando...

O chefe tupinambá quis reunir seus homens para o combate. Mas o pajé, veio, olhou, sorriu e botou a mão no ombro do chefe:

— Não vai haver guerra. Eles vão nos divertir.

Não disse mais nada.

Assim como filhotes de ave que deixam a plumagem quente da mãe, muitos barcos se afastaram do maior dos navios e se aproximaram da praia. Os índios os esperaram em silêncio. Quando os barcos embicaram na areia, pudemos ver que eles estavam cheios de homens brancos. Traziam armas desconhecidas. Falavam língua que nenhum de nós entendia.

Um dos estrangeiros avançou para o nosso grupo. Tinha um grosso bigode preto. Sua espada brilhava ao sol. Começou a fazer gestos e caretas. Atrás dele seus soldados esperavam...

O pajé fez um gesto de paz e disse à nossa gente em tupi:

— Que será que esse macaco quer?

Risadas.

O homem do bigodão fez um sinal. Um dos soldados trouxe e colocou aos pés dele um grande cesto. O chefe branco se inclinou e tirou do cesto uma mancheia de colares de miçangas coloridas, espelhos e outras bugigangas para nós desconhecidas. Os índios começaram a ficar inquietos e a dar pulos. Só o pajé continuava a sorrir com indiferença.

Outras canoas se aproximavam da praia, vendo que a primeira fora recebida em boa paz.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Olivaldo Júnior (Carnaval em Trovas) I


Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 1 a 4

1 — NASCI

Nasci na taba duma tribo tupinambá. Sei que foi numa meia-noite clara. Fazia luar. Minha mãe viu que eu era magro e feio. Ficou triste mas não
disse nada. Meu pai resmungou:

— Filho fraco. Não presta para a guerra.

Tomou-me então nos seus braços fortes e saiu caminhando comigo para as bandas do mar. Ia cantando uma canção triste. De vez em quando gemia. Os caminhos estavam respingados do leite da lua. O urutau gemeu no mato escuro. Uma sombra rodopiou ligeira por entre as árvores.

O mar apareceu na nossa frente: grande, mole, barulhento, cheio de rebrilhos. Meu pai parou. Olhou primeiro para mim, depois para as ondas... Não teve coragem.

Voltou para a taba chorando. Minha mãe nos recebeu em silêncio.
2 — CRESCI

Passaram-se algumas luas. Uma tarde eu ia escanchado na cintura de minha mãe e o pajé da nossa tribo nos fez parar na frente de sua oca. Olhou para mim. Viu que eu era magro, feio e tristonho. O pajé era um homem muito engraçado. Como fazia troça de toda a gente e de todas as coisas, diziam que ele era irônico. Pois o pajé me examinou da cabeça aos pés, sorriu e disse:

“Tibicuera”.

O nome pegou. Toda a gente ficou me chamando Tibicuera. Tibicuera na nossa língua queria dizer cemitério. O nome sentava bem. Eu era magro e chorão.

Certa vez fiquei parado, olhando a minha sombra no chão. Era a sombra de um guri cabeçudo, de barriga enorme, como que inchada. As pernas eram finas como os juncos que crescem nos rios. Soltei um grito de tristeza. Na taba até pensaram que tinha sido gemido de urutau.

Uma tarde me debrucei sobre um córrego para matar a sede. Vi minha cara no espelho da água. Levei um susto. Ergui-me num pulo e saí a correr. Agarrei-me às pernas de minha mãe e choraminguei:

— Vi um peixe feio dentro d’água, mãe.

Cresci na caba, comendo terra, perseguindo as formigas e as minhocas. Aos cinco anos fiz minha primeira caçada de tucanos. Mas não me meti fundo no mato, porque tinha medo de encontrar Anhangá, Curupira e os outros espíritos maus.

À noite eu via as danças dos índios ao redor de uma grande fogueira. Os tupinambás pulavam, faziam roda, rebolavam as ancas, erguiam os braços,
batiam com os pés no chão. A fogueira tinha línguas de muitas cores. De dentro dela saltava um clarão que devorava a luz do luar, pintava de vermelho a cara dos guerreiros e ia abolir com o mato que estava dormindo.

Os guerreiros dançavam. Os tambores batucavam — bum-qui-ti-bum. bum-qui-ti-bum. bum, bum... Eu olhava para o céu. A lua parecia uma fogueira e as estrelas eram os índios dançando ao redor dela.

Um dia os tupinambás foram para a guerra. Os tambores soaram com raiva. 0 eco respondeu longe. O pajé reuniu o conselho. Os guerreiros prepararam suas armas. Dançaram os tacapes, os arcos, as frechas e as lanças. Depois os guerreiros entraram no mato. Só ficaram na taba os velhos, as mulheres e as crianças.

Comecei a sentir uma vontade muito grande de ficar homem para ir também à guerra.
3 — O MISTÉRIO DA CAVEIRAOs nossos guerreiros voltaram vitoriosos. Trouxeram muitos prisioneiros e o crânio do chefe inimigo. Fiquei olhando aquela cabeça sem corpo. Que cara horrível! Eu queria fechar os olhos ou olhar para outro lado, mas não podia. 0 crânio do chefe inimigo me atraía, me chamava, me prendia. . .

Naquela noite tive um pesadelo pavoroso. Sonhei que a cabeça sem corpo estava em cima de meu peito, pesando, procurando esmagar-me o coração. Acordei suando frio. Saí da minha oca. Silêncio na taba. A noite ia alta.

A lua minguante lá no céu parecia a caveira de algum grande chefe vencido. Os grilos cantavam. Saí a caminhar. Aonde era que eu ia? Alguma coisa me puxava...

Andei trocando pernas à toa por entre as ocas. Só depois de muito tempo é que compreendi o que queria. Eu tinha era vontade de pegar a caveira do chefe inimigo. Eu sabia que ela estava espetada num pau da caiçara perto da oca de nosso chefe. Fui...

Puxei o crânio branquinho com todo o cuidado. Sentei-me na areia da praia. E, sem ouvir o barulho do mar, nem o uivo do vento, nem os pios das aves da noite, revirei nas mãos a caveira e fiquei com os olhos pregados nela. Eu sentia um grande medo no coração. Queria decifrar o mistério daquela cabeça sem vida. Queria...

Que era aquilo? Cheguei a gritar para o céu. Que era aquilo?

O mar continuou rugindo, o vento uivando, as aves piando. Mas nada respondia à minha pergunta.

De repente senti um ímpeto... Peguei a caveira e joguei-a para o ar, como se a quisesse quebrar contra as pontas agudas das estrelas. A caveira brilhou ao luar e tornou a cair na areia. Póf!

Estendi-me ao lado dela e, cansado, dormi até o amanhecer.
4 — O MEU ENCONTRO COM ANHANGÁ

Eu gostava de visitar a oca do feiticeiro de nossa tribo. Havia lá dentro um ar de mistério, cobras se arrastando pelo chão, ervas colhidas em noites de lua cheia.

O pajé parecia andar sempre dormindo, olhos fechados, cara calma. Diziam que ele era mais velho que as árvores mais velhas do mato antigo. Sabia todos os segredos da vida. Tinha remédio para todos os males.

O pajé gostava de mim. Eu gostava do pajé. Ele me dizia:

— Ninguém pode com os espíritos maus. Anhangá entra no corpo dos guerreiros e os guerreiros ficam perdidos. Ai de quem encontrar Curupira no mato!

Eu escutava, com o coração batendo, os olhos muito arregalados.

Um dia, distraído a perseguir um bicho, me meti no matagal. Quando caí em mim, estava perdido. Comecei a caminhar sem rumo certo, procurando uma saída. Havia a meu redor troncos de árvores tão grossos e retorcidos que davam medo. Pareciam braços musculosos prontos para me esmagar. O sol mal entrava ali, porque a folhagem formava por cima da minha cabeça um toldo verde e espesso. Ouvi longe o ronco duma onça. Tremi. Um pássaro piou. Tremi de novo. Um graveto estalou. Tornei a tremer. Às vezes uma coisa mole e comprida passava ondulando pelo meio das ervas rasteiras. Cobra. Eu sentia calafrios.

De repente ouvi uma voz fina:
— Tibicuera!

Uma voz de caçoada. Parei. Quem seria? Olhei para os lados. Ninguém. Olhei para cima. Nada. Decerto tinha sido ilusão... Continuei a caminhar. Outro chamado:

— Tibicuera!

De repente um vulto cresceu diante de mim. Era uma figura esquisita, meio gente, meio bicho, preta como a noite, de olhos chispantes que pareciam duas fogueiras. Pulava num pé só, doidamente. Abri a boca num
espanto. Era Anhangá! Reuni toda a minha coragem e falei:

— Passa fora!

Anhangá soltou uma gargalhada: “Quá-quá-quá!”

O mato todo riu com ele. Riu de mim. Depois o diabo virou três cambalhotas no ar e começou a dançar com toda a velocidade em meu redor. Senti que meus olhos escureciam. Eu mal e mal ouvia a voz de Anhangá, berrando:

— Ninguém pode comigo! Ninguém me vence, nem Tupã!

Estendi os braços procurando agarrar alguma coisa. Foi quando Anhangá parou de rodopiar, recuou um pouco e pulou com o pé no ar. Senti uma dor muito forte no queixo e desmaiei.

Acordei na taba. Ouvi alguém perguntar:

— Foi Curupira?

Mal tive força para responder:

— Anhangá.

E comecei a chorar de raiva.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Jardim de Trovas n. 5




1
Amigo/amiga, reparto
este espanto com você:
– o parto não é mais parto;
é download de bebê...
A. A. de Assis
(Maringá/PR)
2
Findando minha jornada
na mata do meu sertão,
o cantar da passarada
suaviza meu coração.
Alda Lopes de Oliveira Rezende
(Taubaté/SP)
3
O próprio termo consorte
já diz tudo e está provado
que o casado tem mais sorte
do que o que está separado!
Amilton Maciel Monteiro
(São José dos Campos/SP)
4
Oh, que bonito escarcéu...
Gralha Azul... Panapaná...
A certeza está no céu:
Deus mora no Paraná!
André Ricardo Rogério
(Arapongas/PR)
5
Com tudo desmoronando
na batalha pela vida,
só a Fé fica amparando
a coragem combalida.
Angélica Vilella Santos
(Taubaté/SP)
6
Se as maravilhas são sete
 eu, agora, vou mais fundo
 pois ao meu amor compete
 ser mesmo a "oitava do mundo" !
Antonio Colavite Filho
(Santos/SP)
7
Neste mundo de conflitos
o Poder faz e desfaz...
E os povos seguem aflitos
com a esperança de paz.
Ari Santos de Campos
(Balneário Camboriú/SC)
8
Escrevi teu doce nome
na areia que o mar deixou:
e a onda, que tudo consome,
esse teu nome levou...
Astério Barbosa Gomes de Campos
(Amargosa/BA, 1891 - 1968, Rio de Janeiro/RJ)
9
Ao teu lado, estou seguro;
longe de ti, desgraçado.
Tu és todo o meu futuro,
meu presente e meu passado.
Athayr Cagnin
(Cachoeiro de Itapemirim/ES, 1918 - 2012)
10
Quando acaso sinto, crede,
vontade de trabalhar,
deito-me logo na rede
até a vontade passar...
Augusto Linhares
(Baturité/CE, 1879 -  1963, Rio de Janeiro/RJ)
11
Nossa casa é pequenina,
mas tem a graça de Deus.
De dia o sol a ilumina,
e de noite - os olhos teus.
Augusto V. Rubião
(Campos Gerais/MG, 1905 -    Machado/MG)
12
Como dois botões pequenos,
duas flores orvalhadas,
teus olhos dormem serenos
sob as pálpebras cansadas.
Auta de Souza
(Macaíba/RN, 1876 - 1901, Natal/RN)
13
O tempo - mestre perfeito,
nos vive sempre a ensinar...
Mas tem o grande defeito
de seus alunos matar...
Benedito Camargo Madeira
(Pouso Alegre/MG)
14
Saudade - sombra fagueira
dos tempos que já passaram,
nasceu de ausência primeira
dos que primeiro se amaram.
Benedito Tavares de Cunha Melo
(Goiana/PE, 1911 - 1981, Jaboatão dos Guararapes/PE)
15
É provérbio muito antigo
que todos devem saber:
Quem não evita o perigo
há de nele perecer.
Benedito Lopes de Oliveira
(Pouso Alegre/MG)
16
Quando angústias me consomem
esta crença em mim revive:
Nem só de pão vive o homem,
- de ilusões também se vive.
Benedito Rodrigues Aranha
(Pirassununga/SP, 1892 -   ,São Paulo/SP)
17
Eu venho de longes bandas
e trago em chagas os pés,
mas digas tu com quem andas
que eu te direi quem tu és...
Bernardo Guimarães Filho
(Belo Horizonte/MG)
18
A grande, a maior vitória
que até hoje consegui,
foi remover da memória
as batalhas que perdi.
Carolina Ramos
(Santos/SP)
19
Lobato deu às crianças,
para os seus dias tristonhos,
todo um mundo de esperanças,
dentro de um mundo de sonhos…
Cesídio Ambrogi
(Taubaté/SP)
20
Contra o perigo atual
já não há quem se previna
porque, do gênio do mal,
há um clone em cada esquina!
Clarindo Batista
(Natal/RN)
21
O rio, que é minha vida,
corre em sentido perfeito:
transforma em pedra polida
os tropeços do seu leito.
Conceição Parreiras Abritta
(Belo Horizonte/MG)
22
A mamãe cura o dodói,
afaga, põe a atadura...
e o rosto do seu herói
se lambuza de ternura!
Domitila Borges Beltrame
(São Paulo/SP)
23
Roça: – mata, fogo, chão,
força, braço, homem,  dor;
plantas, flores, frutos, pão,
terra, vida, infância, amor!!!…
Domingos Freire Cardoso
(Ilhavo/Portugal)
24
Na taça de cada dia,
a transbordar de amargura,
cai um pingo de alegria,
e o fel se torna doçura.
Dorothy Jansson Moretti
(Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP)
25
Não temo o mar traiçoeiro
e as ondas em desatino,
porque Deus é o timoneiro
do barco do meu destino!
Eduardo A. O. Toledo
(Pouso Alegre/MG)
26
"Só se ama uma vez na vida..."
Ilusão! Ingenuidade!
Para amar não há medida,
nem limite, nem idade.
Eduardo Borges da Cruz
(Lisboa/Portugal, 1896 -  ,Rio de Janeiro/RJ)
27
Sorte, aleatório caminho
que cada destino traça:
para alguns, tão farto vinho;
a outros, vazia taça.
Eliana Ruiz Jimenez
(Balneário Camboriú/SC)
28
Na minha vida pacata
que levo desde menino,
tenho sido um acrobata
no circo do meu destino.
Filemon F. Martins
(Itanhaém/SP)
29
Deus, garimpeiro maior,
vai, no seu mister profundo,
salvando o que há de melhor
pelo garimpos do mundo...
Flávio Roberto Stefani
(Porto Alegre/RS)
30
Esta vida é uma pomada
da maciez do veludo...
- Eu já não sofro de nada,
de tanto sofrer de tudo!
Francisco de Assis Garrido
(São Luis/MA, 1899 - 1969)
31
Reguei de pranto e mais pranto
a terra, o mundo sem fim.
Chorei, chorei, e entretanto
os homens riram de mim...
Francisco Eugênio Brant Horta
(Juiz de Fora/MG, 1876 - 1959, Rio de Janeiro/RJ)
32
Quem não quer vencer a estrada
como faz o peregrino,
dobra sempre a esquina errada
na contramão do destino.
Francisco José Pessoa
(Fortaleza/CE)
33
Foi fugindo de mim mesmo,
que consegui me encontrar,
numa eterna fuga, a esmo,
num constante procurar!
Gislaine Canales
(Porto Alegre/RS)
34
Sou poeta! O meu destino
é manter enclausurado
um coração de menino
num corpo velho e cansado!
Héron Patrício
(São Paulo/SP)
35
Quando no ocaso da vida,
notamos anoitecer,
se a missão já foi cumprida,
nós não devemos temer...
Ialmar Pio Schneider
(Porto Alegre/RS)
36
A fuga não leva a nada,
meu caminho eu sigo em frente.
Em toda e qualquer estrada,
há um anjo guardando a gente...
Jaqueline Machado
(Cachoeiro do Sul/RS)
37
Cenário sombrio, esboço
da miséria...que tristeza:
- Ver famílias sem almoço
E sem jantar sobre a mesa!
Joamir Medeiros
(Natal/RN)
38
Estou aqui de passagem
sob o véu de fortalezas
que me valem de coragem
para enfrentar incertezas.
João Batista Xavier Oliveira
(Bauru/SP)
39
Vou brincar com pirilampos
e beijar as flores nuas
pra ver se encontro nos campos
a paz que fugiu das ruas!
José Lucas de Barros
(Natal/RN)
40
Chega o inverno como açoite,
tingindo as tardes de gris,
pichando de breu a noite,
caiando a aurora de giz!
Lisete Johnson
(Porto Alegre/RS)
41
Toda a tristeza eu transpasso,
com meu viver rumo à lida.
Se da luta advém cansaço:
- transformo o cansaço em vida!
Luiz Antonio Cardoso
(Taubaté/SP)
42
Nem o sofista profundo
essa verdade falseia:
quem se julga rei do mundo
é um pequeno grão de areia.
Luiz Carlos Abritta
(Belo Horizonte/MG)
43
Se não se pinta uma rosa,
porque beleza já tem,
em uma face mimosa
não se põe tinta também.
Manuel Bezerra da Cunha
(São José dos Bezerros/PE, 1899 -  1976, São Paulo/SP)
44
Eu vi o amor eclodindo
na mensagem de um chamado:
o mar, despido, sorrindo...
o sol se pondo, apressado.
Mara Melinni
(Caicó/RN)
45
A justiça e o bom senso
caminhando de mãos dadas,
mostram num caminho imenso
as verdades reveladas!
Maria Luiza Walendowsky
(Brusque/SC)
46
Nas asas da liberdade
firmei meu corpo a voar,
pois ser livre é ter vontade
de não parar de sonhar.
Messody Benoliel
(Rio de Janeiro/RJ)
47
Esta minha alma indecisa
não consegue se aquietar:
mal um sonho realiza,
outro sonho quer buscar...
Milton Souza
(Porto Alegre/RS)
48
Céu azul, jangada a vela
mar que espuma de emoção
ondas rendilhando a tela
do meu Brasil – meu rincão.
Myrthes Mazza Masiero
(São José dos Campos/SP)
49
Amizades que são boas,
e atitudes tão singelas,
é gostarmos das pessoas,
mesmo assim como são elas!
Nei Garcez
(Curitiba/PR)
50
Morre a tarde!... E, ao fim do dia,
na imagem do sol poente,
há tintas de nostalgia
do fim da tarde da gente.
Prof. Garcia
(Caicó/RN)
51
Depois de muitas andanças,
e tanta ilusão perdida,
vejo lindas esperanças
orvalhando minha vida.
Reinaldo Moreira de Aguiar
(Natal/RN)
52
Sob chuva, ou sol que abrasa,
como nos tempos antigos,
o portão da minha casa
não se fecha aos meus amigos!
Renato Alves
(Rio de Janeiro/RJ)
53
Se o seu viver é um deserto
sem água  e está por falir,
chuvas de trovas, por certo,
farão  sua alma florir!
Roza  de  Oliveira
(Curitiba/PR)
54
Bravura é viver sorrindo,
embora seja evidente
que a vida é dor insistindo
em ser mais forte que a gente.
Thalma Tavares
(São Simão/SP)
55
Um laço azul no cabelo,
meu vestido de organdi...
Mamãe... seu amor... seu zelo...
- Por que, meu Deus, eu cresci?
Vanda Fagundes Queiroz
(Curitiba/PR)
56
Transcendo o sonho e refaço
minhas rotas do passado,
para ter de novo o abraço
do ventre em que fui gerado.
Wandira Fagundes Queiroz
(Curitiba/PR)