quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Estante de Livros (Dina Salústio: Mornas eram as noites)

artigo “O lirismo como voz em ‘Mornas eram as noites’, de Dina Salústio”, por Carina Carvalho

Os 35 textos bastante curtos de “Mornas eram as noites” mergulham no calor de histórias com um lirismo intenso, em que a subjetividade desponta na narrativa

Segundo os dicionários, algo morno se caracteriza pela ausência de energia, de vida, pela pouca intensidade e até por certa monotonia. O adjetivo parece descabido, no entanto, se pensamos no livro de contos da escritora cabo-verdiana Dina Salústio.

Dina, pseudônimo de Bernardina de Oliveira (1941), escreve em 1994 esta obra. Em 35 textos bastante curtos, raramente ultrapassando página e meia, mergulhamos no calor de histórias com intenso lirismo, em que a subjetividade desponta na aparente simplicidade narrativa.

A morna, verdadeiro símbolo cabo-verdiano, é um tipo de música cantada e dançada em ritmo lento – tradicionalmente, um canto de mulheres. Assim, a incursão pelo texto de Dina Salústio acontece em uma atmosfera de histórias contadas e cantadas com um forte caráter de oralidade e poesia. Engana-se quem pensa que, dadas essas características, os contos tratam somente de temáticas leves ou onde impera a doçura. Morte, solidão, violência, pobreza e frustrações também invadem as páginas, compondo um panorama social que não se compromete com mascarar a dureza cotidiana.

Logo nos primeiros contos, não demoramos a captar um olhar mais demorado da autora para as personagens e problemáticas femininas. Conhecemos a prostituta que, com medo de entrar no cemitério, deixa no testamento “o seu último e ilegítimo desejo”: música a acompanhá-la no momento do enterro, quando as esquinas acordarem sem seu corpo.

“O sobrinho, mais pobre que os pobres, espreitou, dias e dias no cemitério, todos os enterros que se seguiram ao dela. Ao décimo dia o peito minguado encheu de esperança: um senhor e seu violino choravam na campa de alguém. Raúl arranjou coragem e pediu-lhe, quase soluçando, que tocasse uma música para tia Djina. Uma só. Não a clássica morna hora di bai, mas uma canção francesa que falasse de amor – com todo o respeito, senhor – soluçou o sobrinho.” (p. 32)

Deparamos, ainda, em “Liberdade adiada”, com a angústia de uma mulher cansada, com um “enorme peso que lhe caía irremediavelmente em cima”, esperando que “a qualquer momento o coração lhe perfurasse o peito, lhe rasgasse a blusa” (p. 5). Carregando sua lata cheia de água pela estrada, o barranco sorri em convite, promete liberdade em um mergulho – ao mesmo tempo que o pensamento chega à casa, onde os filhos certamente já chamam por ela.

Embora ocupem espaço notável na maior parte das tramas, não só em torno das mulheres se constrói o livro, mas de temáticas que nos fazem pensar a própria condição humana, reproduzindo extratos de vida de várias classes sociais no cenário cabo-verdiano. É nessa percepção atenta que o livro nos capta, conferindo nova roupagem, de coisa conhecida, história sabida porque vivenciada, à realidade dos dias. Em “Ele queria tão pouco”, temos um adolescente rebelde, cujo passado todos desconhecem, residente de um lar para jovens sem família ou casa. No conto, o dono da loja vizinha reclama do roubo de um aparelho seu, cobra providências dos responsáveis. O rapazinho, então, acaba descoberto:

“Encontrei-o deitado à sombra da árvore, com a barriguinha nua para cima, o rádio colado ao ouvido, quieto, apenas o pé direito no ar, marcando um compasso que eu não adivinhava. Estava tão indefeso, tão entregue, que preferi deixar para falar com ele mais tarde, consciente de que cometia uma infracção. […] confessou que roubara o rádio, porque gostava de ouvir música sozinho e em silêncio e, na sala, os colegas faziam muito barulho. […]
— Eu queria um rádio só pra mim – dizia enquanto o retirava para mo dar.
Era mais um sonho que ele desenterrava para abandonar, para entregar.” (p. 26)

Se em muitos momentos as palavras nos chegam duras, cabe destacar quanto colaboram para a reflexão dos caminhos ainda a percorrer, e lembrar que, em outros tantos, encontramos uma esperança em minúcias: “Na rua, o tempo é cálido e uns pinguinhos de chuva dizem-me que é julho. Vou contar à minha amiga que está a chover e que vale a pena viver, nem que seja somente para ouvir a alegria dos sapos” (p. 66).

Seja nos meandros das vivências femininas, no retrato da violência e da miséria ou das relações humanas, os contos de Dina Salústio nos mostram uma matéria real em que, se a mornidão ainda impera, há sinais de que residam movimento e possibilidades no tom da noite.

“Sem idade, sem verdade
Encontrei-te por acaso. Sorrindo, disseste-me que a vida era bela. Não te perguntei a idade. Para que? Tu eras verão e tinhas nos olhos a madrugada. Nos gestos, a infância do louco que, montando num pássaro, desafia as nuvens. Cheiravas a rosa abrindo-se na moleza do sol e tinhas a macieza da terra bebendo o orvalho das manhãzinhas. Trazias inteira a doçura do mar no corpo de um bote ao sol poente e o teu sorriso era a beleza de um instante belo.

Como dizer ao verão que o inverno acontece frio e triste? Como dizer à madrugada que ela é mentira, que é dia, quando a letra vence, e é noite, quando as dores aumentam? Como avisar o louco que por baixo das nuvens o abismo corre cada vez mais rápido, cada vez mais fundo? Conseguiria dizer à rosa que logo haverá missa pelas almas com terços e flores? Conseguiria? Como dizer à terra que o orvalho não basta e que a estiagem fere, racha até sangrar? Como? Poderia dizer a um instante que o dia tem muitas horas, muitos meses, muitos séculos? Como dizer ao mar, ao barco e ao sol poente que o ciclone vem aí? Como?

Olhei para ti e nem me perguntaste porque de repente ficara tão triste. E deixei-te ir. Leve. Suave. Feliz. Sem idade. Sem verdade.” (p. 37)

Fontes:
SALÚSTIO, Dina. Morna eram as noites. 3.ed. Praia: Instituto da Biblioteca Nacional, 2002.
Artigo disponível em Homo Literatus

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 20

Fonte: Facebook da trovadora

Contos do Egito Antigo (O Tesouro de Rhampsinit)

0 rei Rhampsinit possuía um tão grande tesouro que ninguém, nenhum de seus sucessores, o teve nem maior, nem perto do que ele era. Para conservá-lo com segurança, ele mandou construir uma sala de pedra talhada e quis que uma das suas muralhas se projetasse para além do corpo da construção e dos limites do palácio; no entanto, o construtor talhou e colocou uma pedra de tal modo perfeita que nem dois homens, quanto mais um só, poderiam tirá-Ia ou removê-Ia.

Construída a sala, o rei ali reuniu todas as suas jóias. Algum tempo depois, o pedreiro-arquiteto, ao sentir que se aproximava do final de sua vida, reuniu os filhos, que eram dois, e contou-lhes como realizara a empreitada e o artifício que havia usado ao construir a câmara do rei, a fim de que eles pudessem viver sem problemas de dinheiro. E depois de claramente ter-lhes feito entender a maneira de tirar a pedra, deu certas instruções e avisou-os de que, se elas fossem bem observadas, seriam eles os grandes tesoureiros do rei. E em seguida, expirou. E seus filhos não tardaram de pôr mãos à obra: foram à noite até o palácio do rei e, achando sem dificuldades a tal pedra, conseguiram deslocá-Ia e saíram de lá com grande quantidade de ouro. Porém, quando quis o destino que o rei fosse visitar sua sala do tesouro, encheu-se: ele de espanto ao perceber que suas ânforas estavam desfalcadas, e ficou sem saber a quem acusar ou de quem suspeitar, pois as marcas que colocara estavam intactas, e a sala muito bem fechada e refechada. E voltando lá por duas ou três vezes para constatar que suas ânforas continuavam se desfalcando, resolveu ele afinal, a fim de impedir que os ladrões ali voltassem com tanta facilidade, mandar construir armadilhas e colocá-Ias bem perto das ânforas onde estavam os tesouros.

Retornaram os ladrões, como seria de se esperar, e um deles entrou na câmara e, mal se aproximando de uma das ânforas, viu-se capturado pela armadilha. Percebendo a extensão do perigo, chamou depressa o irmão e mostrou-lhe o estado em que se encontrava, aconselhando-o a ali entrar e que lhe cortasse a cabeça para que ele não viesse a ser reconhecido e assim não prejudicasse também o irmão. Este achou que fazia sentido o que ele lhe dizia e seguiu-lhe enfim o conselho; e depois de repor a pedra, voltou para casa carregando a cabeça do irmão.

Na manhã seguinte, entrou o rei na sua câmara especial; e ao ver o corpo do ladrão preso na armadilha, e sem cabeça, muito espantado ficou já que não havia vestígio nem de entrada nem de saída do recinto. E, matutando como deveria proceder em tal circunstância, mandou que pendurassem o corpo do morto na muralha da cidade e encarregassem alguns guardas de prenderem e levarem à sua presença aquele homem ou mulher que vissem chorar ou demonstrar pena do degolado.

Ao ver o corpo desta forma exposto, a mãe, pela grande dor que sentia, exigiu do outro filho que, fosse lá como fosse, tratasse de trazer o cadáver do irmão, ameaçando-o de, caso se negasse a fazê-lo, denunciá-lo ao rei como o ladrão do tesouro. O filho, notando que a mãe falava sério, e que de nada lhe valiam suas argumentações, concebeu o seguinte ardil: mandou que albardassem alguns asnos com odres cheios de vinho e pôs-se a andar com eles, tocando-os com uma vara. Ao chegar ao local onde estavam os guardas, isto é, no local do morto, desatou dois ou três de seus odres e, vendo o vinho escorrendo pelo chão, começou a esmurrar a própria cabeça e a praguejar, como se não soubesse para qual dos asnos devia se voltar em primeiro lugar. Os guardas, ao perceberem que grande quantidade de vinho se derramava, acorreram até lá com vasilhas, considerando o ganho que teriam se apanhassem o vinho perdido. O mercador pôs-se então a xingá-los, dando sinais de viva indignação. Mas os guardas mostraram-se gentis e aos poucos ele foi se acalmando; moderou então sua raiva, afastando por fim os asnos do caminho para tornar a carregá-los; demorando-se no entanto com pequenas conversas com uns e outros, tanto que um dos guardas disse uma pilhéria ao mercador, que riu e até lhe deu, ainda por cima, um odre de vinho. E então os guardas resolveram sentar-se ali mesmo para continuar a beber, pedindo ao mercador que ficasse e bebesse com eles, o que foi aceito; e vendo que eles revelavam nisso grande prazer, o mercador ofereceu-lhes o resto de seus odres de vinho. 

Quando estavam já caindo de bêbedos, viram-se dominados pelo sono e adormeceram ali mesmo. O mercador esperou até alta noite; depois foi despendurar o corpo do irmão e, rindo-se dos guardas, raspou-lhes a todos a barba da face direita. Colocou o corpo do irmão sobre um dos asnos e tocou-os todos em direção de casa, executando assim a
ordem de sua mãe.

No dia seguinte, quando o rei tomou ciência de que o corpo do ladrão fora roubado misteriosamente, ficou muito aborrecido e, querendo porque querendo encontrar o autor de tal astúcia, fez tal coisa que, por mim, mal consigo acreditar: abriu a casa da sua filha e mandou que ela recebesse quem quer que por prazer viesse a procurá-Ia, indiferente de quem fosse, com a condição de que ela, antes de se deixar tocar, induzisse cada um deles a dizer o que fizera em sua vida de mais prudente e de mais perverso; aquele que lhe contasse o caso do ladrão deveria ser detido por ela, que não podia deixá-lo sair do seu quarto. A princesa obedeceu ao pai; mas o ladrão, ao perceber para que objetivo a coisa era feita, quis ficar a cavaleiro de todas as astúcias do rei e deu-lhe o seguinte contragolpe: cortou o braço de um recém-falecido, ocultou-o sob suas próprias vestes e foi ao encontro da moça. Logo que entrou, ela o interrogou, como fizera com os outros, e ele contou-lhe que o crime mais monstruoso por ele cometido fora o de arrancar a cabeça do irmão, preso na armadilha do tesouro do rei. Por outro lado, a ação mais avisada que praticara fora despendurar aquele seu mesmo irmão depois de ter embriagado os guardas. Assim que isso tudo ouviu, ela procurou detê-lo; mas o ladrão, valendo-se da escuridão do quarto, estendeu-lhe a mão morta que trazia oculta, e que ela apertou como se fosse a mão daquele com quem falava; enganava-se, porém, pois o ladrão facilmente encontrara como se escapar.

Quando este fato foi relatado ao rei, ele mostrou-se especialmente espantado com a astúcia e ousadia de tal homem. Por fim, ordenou que se fizesse anunciar por todas as cidades do seu reino que ele perdoava tal pessoa, e que se ela quisesse vir se apresentar ao rei, ele lhe concederia largos favores. O ladrão deu crédito à publicação real e foi ter com ele. Quando o rei o viu, ficou assombrado; no entanto, deu-lhe a filha em casamento. Pois - isso pensou ele - os egípcios eram superiores a todos os demais homens, e ele era superior aos próprios egípcios...

Fonte:
COSTA, Flávio Moreira da (organizador). Os 100 Melhores Contos de Crime e Mistério da Literatura Universal. RJ: EDIOURO, 2002.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Clevane Pessoa (Teia de Trovas sobre Lembranças)



Preservar nossa memória
é a quintessência da mente:
- Nos mesclamos, pela história,
preservamos outra gente!

Recordar é um privilégio,
que organiza a trajetória,
da existência e sortilégio
de aprendiz na própria história!

Se lembramos nossa vida,
é por bom funcionamento
dos arquivos de uma lida,
a inundar o pensamento...

Episódios vivenciais, 
da retrógrada memória,
são sabores muito mais
lembrados em nossa história.

Em idoso que padeça
desmemória imediata, 
perde óculos ...na cabeça,
mas relembra antiga data!

De lembrar , eu gosto tanto!
é atestado desta vida:
– Qual a letra em certo canto,
sem lembrança...estou perdida!

E perpassa pelo afeto
recordar fatos passados, 
por caminho torto ou reto,
todos ficam registrados!

Testemunhas oculares
de vivencias necessárias,
subimos os patamares…
palavras são cantigárias!

Fonte: A Autora

Olivaldo Junior (Teimosia)

Faria de novo. E de novo. E de novo. O quê?! Implorar amor. Mas era um homem, como pode um homem daquele tamanho implorar amor? Pode. Não só pode, como deve implorar um pouco mais hoje à noite, um pouco mais amanhã cedo e um pouquinho mais à tarde. Pensou no quanto sofria? 

Tinha amado sem ser amado, e isso lhe trouxera um coração amargo, sem todo o vermelho sangue que nos traz vida. Seu coração, além de amargo, ficara cego, surdo, mudo e insensível ao toque de quem se tocava e só queria lhe dar um toque. Sai dessa! Sairia, sim. Sabia que quem dizia isso só queria vê-lo bem. Bem que eles falavam! Mas, de vez em quando, no hall de entrada da dor, uma poça de mágoa fazia com que ele escorregasse em suas lágrimas e voltasse a penar. Penas são panos que botamos nas situações sem remédio. 

A que fim levaria aquele homem, tão teimoso? Não sabia. Sabiá que perde o canto canta em silêncio. Vai onde Deus manda, ou ele mesmo se impõe que vá. Quem tanto tinha amado sequer se lembrava dele com aquela intensidade, com o mesmo sentimento. A vida é dura para os silentes. 

"Não aprendi dizer adeus / Mas deixo você ir / Sem lágrimas no olhar / Se o adeus me machucar / O inverno vai passar / E apaga a cicatriz"... Conhece essa música? É de autoria de Joel Marques, compositor de Lagoa Vermelha, no Rio Grande do Sul. Fez grande sucesso com Leandro e Leonardo. Ultimamente tem ouvido a gravação do Alexandre Nero para ela. Também a tem cantado. Com teimosia. Até quando?

Fonte:
O Autor

Estante de Livros (China: O Sonho da Câmara Vermelha)

(literalmente “ O Sonho da Mansão Vermelha), é uma obra-prima da literatura chinesa e um dos Quatro Grandes Romances Clássicos da China. O livro foi escrito em meados do Século XVIII, durante a Dinastia Qing, e tem sua autoria atribuída a Cao Xueqin. Esta obra é reconhecida como o ponto mais alto dos romances clássicos chineses. "Vermelhologia" é o campo de estudo dedicado exclusivamente a esta obra. 

O romance circulou em cópias manuscritas com vários títulos até sua impressão em 1791. Enquanto os primeiros 80 capítulos foram escritos por Cao Xueqin, Gao E, que preparou a primeira e segunda edições impressas com seu sócio Cheng Weiyuan em 1791–2, adicionou 40 capítulos a mais ao romance.

Acredita-se que o conteúdo da história seja semi-autobiográfica descrevendo o destino da própria família do escritor e, por extensão, da dinastia Qing. Como o autor detalha no primeiro capítulo, o livro se destina a ser um memorial para as mulheres que ele conheceu em sua juventude: amigas, familiares e serviçais. O romance é memorável, não só pelo seu enorme elenco de personagens (a maioria deles do sexo feminino) e pelo âmbito psicológico, mas também pela sua precisa e detalhada observação da vida e das estruturas sociais típicas da aristocracia chinesa do século XVIII.

O tema principal gira em torno de um triângulo amoroso entre a personagem principal, Jia Baoyu, que ama sua prima adoentada Lin Daiyu, porém está predestinado a se casar com outra prima, Xue Baochai. Este triângulo amoroso tem como pano de fundo o declínio do clã (família) Jia, cujos antepassados foram feitos duques, e no início do romance, este clã está entre as mais ilustres famílias na capital.

A história é escrita em chinês baihua (ou chinês vernacular), ao invés de chinês clássico, apesar de seu autor ser bem versado no chinês clássico, com trechos no estilo semi-wenyan, e é uma das obras que ajudaram a estabelecer a legitimidade do chinês baihua. Os diálogos são escritos em um dialeto de Pequim vivo com influências do Mandarim de Nanjing. No começo do século XX, lexicógrafos utilizaram o texto para estabelecer o vocabulário da nova língua padronizada e reformistas usaram o romance para promover a escrita vernacular.

No capítulo de abertura do romance, um dístico é introduzido: Verdade torna-se ficção quando a ficção é verdade; Real torna-se irreal onde o irreal é real.

Como um crítico aponta, o dístico significa “ uma divisão não rígida e determinística entre falsidade e verdade, realidade e ilusão, mas a impossibilidade de se fazer essa distinção em qualquer mundo, ficcional ou real.”

O nome da família principal, Jia, é um homônimo com o caracter ji, significando falso ou fictício; isso se reflete em uma outra família com o sobrenome Zhen, um homófono para a palavra “ real”. Foi sugerido que a família do romance é tanto um reflexo realístico e um uma versão ficcional ou“ sonhada” da própria família
de Cao.

O romance é normalmente chamado de Hung Lou Meng ou Hong Lou Meng, literalmente O Sonho da Câmara Vermelha. A câmara vermelha, é uma expressão idiomática que designava as salas protegidas onde as filhas das famílias abastadas viviam.

A história se refere a um sonho tido por Baoyu, fixados em uma “ câmara vermelha” , onde o destino de muitos das personagens do sexo feminino é prenunciado. A palavra “ câmara” é também muitas vezes traduzida como “mansão” , devido à grande dimensão de significados da palavra chinesa. Porém, o termo“ mansão” não traduz corretamente a atmosfera da história e é considerada um erro de tradução por Zhou Ruchang.

Fonte:
Wikipedia

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Ógui Lourenço Mauri (Oração ao Despertar)


Paleta de Versos n. 2

Isabel Furini
(Curitiba/PR)

A CANETA DO POETA

o poeta reflete sobre a vida
concentra-se nos movimentos da caneta

o poeta compreende a estratagema da caneta
:
a caneta faz piruetas
                        mímicas
                           acrobacia
dança
     ziguezagueia
                        espia
(qual astuta serpente)
e por fim escreve a poesia
que o poeta guardava no laboratório de alquimia
localizado no portal da mente subconsciente
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Clevane Pessoa
(Belo Horizonte/MG)

A BELEZA E A MUDEZ

O pássaro belo e próximo, 
grande, 
sugerência de trinado, 
quintessência da Criação, 
influência de contentamento, 
não foge á presença 
de quem ama as aves. 
Poso , sorridente, 
entre a luz da tarde 
e a luminescência da alma. 
Nas crenças egípcias, era a alma-pássaro, 
a que habitava o corpo de penas 
até ao destino final 
ser marcado. 
Não me bica, 
não tatala as asas 
em euforia ou temor. 
O pássaro e eu. 
Ele também foi fotografado 
e faz parte de uma exposição a céu aberto (*). 
Gostaria de ser maga o suficiente 
para inflar-lhe vida, 
vê-lo catar grãos na grama, 
dar pulinhos aqui e alí. 
Ah, se pudesse ouví-lo em seus cantares 
inflamando de notas ardentes os ares 
ou num galho, num canto qualquer 
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* 2009, Parque Municipal Américo renê Gianetti, na capital mineira, , galeria da Árvore, exposição do MUNAP (um olhar sobre o Parque), organizada pela poetisa e fotógrafa Regina Mello, autora dessa foto.
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Luiz Poeta
(Rio de Janeiro/RJ)

QUANDO MEU SORRISO FALA

Se eu te amo e minha boca silencia,
Meu olhar, contrariando o meu receio,
Grita anseios, produzindo a fantasia
Que repousa dentro do meu devaneio.

Tenho o tema, o coração e a vontade,
Mas o grito sufocado não permite
Que eu liberte esse desejo que me invade
E sussurre que te amo... ou que te grite.

No dilema entre a voz e o fitar-te,
Meu olhar transforma a emoção em arte
E uma lágrima sublime que resvala

Pinta a tela dos meus lábios onde o riso
Reproduz o sentimento mais preciso
Dos meus olhos, quando o meu sorriso fala.
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Vivaldo Terres
(Itajaí/SC)

QUE NOITE DORIDA

Não sei como consigo me enganar,
Pensando que vivo sem ao menos viver.
Depois que tudo aconteceu... 
Ela era o sol da minha vida,
A luz para meu caminho escurecido.
Como foi me deixar,
Deixando a alma e o coração desiludido.

Que noite dorida e fatal,
Quando ainda no seu leito disse a chorar:
– Eu vou e sei que vais ficar, mas onde eu estiver...
Jamais deixarei de te amar.

Ela partiu levando suas boas qualidades,
Sua alma e seu coração enquanto viveram...
Eram cheios de bondade.

Nunca deixou de ajudar os desvalidos,
Ou o doente sofredor.
Até porque em sua alma e em seu coração,
Nunca lhe faltou o amor. 
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Francisco José Pessoa
(Fortaleza/CE)

SENTIMENTO

Meu sentimento vaga na poesia,
meu cantar tomou forma do meu pranto
pois chorar, se por ti, fez-se acalanto
saber tudo do nada que eu sabia
é sentir que sentindo não sentia
o prazer, se é prazer tudo que sinto
e o amar, se é amor, amo e não minto
um sei lá!... posto quando a ti me achego
na impossibilidade de um chamego
sonho louco, num louco labirinto...

“sentindo que sentir eu não sentia
o prazer qual prazer não me aprazia”.
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Samuel da Costa
(Itajaí/SC)

EVOCAÇÃO
Para Bel Lopes 

Um breve 
E ebúrneo sorriso teu
Eu de olhos bem fechados
Enlevado 
A sonhar contigo
Negra ninfa do bosque

Eu 
Encerrado e lúgubre
No vergel em chamas

És negra flor 
Musselinosa e enclausurada 
Em uma noctívaga 
Digressão
No verve meu 

Caem as folhas mortas 
No meu coração
Pois é outono
Pois é anunciação 

E uma negra lágrima 
Brotou
No lívio rosto teu
Esvaeceu
Trespassou 
E se perdeu 
Para além do infinito

Não vá
Não me abandone
Não agora 
Nem nunca
Deusa imortal 
Minha negra Valquíria

Abriga-te 
Para todo o sempre
Na minha écloga
No estro meu
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Sílvia Regina Costa Lima
(Vinhedo/SP)

ANTES DA AURORA
(soneto n.121)

Indecisa, eu paro na encruzilhada
até o teu vulto (assustada) divisar,
meio impreciso à luz clara do luar,
caminhando lento na madrugada.

Escuto, embaraçada, a tua risada
que me lembra as ondas do mar
arrastando qualquer coisa lunar,
numa sensação por mim almejada.

Tremo intranquila no sentir primário
que a tua mão me desperta... e aflora
a paixão pelo ser - que me é contrário.

Ah, tu me deitas sob a árvore frondosa
e antes... muito antes da luz da aurora,
fazes-me tua amante... mulher... e rosa!
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Sandra Galante
(Piracicaba/SP)

AUSÊNCIA... 

Não deixarei que a tua ausência me maltrate. 
Me enfeitarei com o brilho das estrelas 
Para que nunca me vejas sofrendo e triste. 
Mas quero ser o perfume das tuas brisas. 

Quero te envolver nos véus da minha lua, 
Exibir-me esplendorosa pra ti toda nua. 
Em teus sonhos renascerei em ti e por ti 
Minh`alma te seguirá e te ti não sairei... 

Te levarei dentro de mim eternamente. 
Viveremos dias felizes em minhas fantasias. 
Eterno será o fugidio encontro em nossas luas 
Do teu amor e paixão, jamais serei descrente.
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Pedro Du Bois
(Balneário Camboriú/SC)

(DES)IMPORTÂNCIA

Na relativa importância
legamos conhecimento

impávidos descendentes
de (im)próprios deuses
cientes em verdades

em relativa (des)importância
insetos voam ao redor 
da luz onde se multiplicam

utilitários ascendentes
transferem aos novos

o necessários para a vida.

H. G. Wells (A Marca do Polegar)

Éramos três estudantes, e tínhamos chegado cedo. Estávamos de pé junto à janela do laboratório, olhando as ruínas da casa do outro lado da rua. Era uma manhã chuvosa e de muito vento; o pavimento molhado reluzia, e o céu por trás das ruínas enegrecidas mostrava algumas faixas azuis por entre as pesadas cortinas de nuvens que passavam. O verde vívido e primaveril das castanheiras e dos lilases diante da casa contrastava estranhamente com os destroços negros que se viam por trás. O fogo destruíra totalmente a construção; a maior parte do teto tinha desabado, e através dos contornos
carbonizados das janelas, que mal retinham um ou outro pedaço de vidro, era possível ver as paredes consumidas pelas chamas e a indescritível desolação que se segue a um incêndio assim. Curiosamente, embora uma parte da parede tivesse desabado sobre o pórtico de entrada, o pequeno quarto de dormir que ficava por cima estava intacto, e podíamos ver, pendurado de encontro ao papel de parede encharcado, a foto emoldurada de um soldado em uniforme.

O aluno recém-chegado, um homem pálido de cabelos negros — acho que seu nome era Chabôt —, estava mais absorvido do que os outros na contemplação das ruínas.

— Ninguém se feriu? — perguntou ele.

— Ninguém, felizmente — disse Wilderspin.

Ele soltou um grunhido.

Nesse momento Porch entrou aos gritos:

— Pessoal, já ouviram isto? Grande atentado anarquista! Londres em pânico! Por que não estão tremendo de pavor? É por causa deste abominável sistema de avaliação. Nenhum de vocês teve tempo para ler um jornal hoje de manhã.

Todos nos viramos para ele.

— Ouçam bem — disse Porch, fazendo pose. — Ontem, essa era a casa do Inspetor Bulstrode, o famoso Inspetor Bulstrode, e nenhum de nós sabia disso. Agora, olhem!

— Como sabem que isto foi obra de um anarquista? — perguntou o novo aluno, e nisto Askin entrou no aposento.

— Eles agora atribuem todos os acidentes aos anarquistas — disse Wilderspin.

— A polícia — disse Porch — tem ótimas razões para acreditar que essa atrocidade foi obra de um anarquista, é o que dizem os jornais. Mas nada transpirou por enquanto. Contudo, é muito simpático da parte dos anarquistas terem escolhido uma casa bem em frente à nossa janela. Vai nos aliviar dos rigores da maratona de serões da semana passada.

— E fez, aliás, com que Smith se atrasasse uma vez — disse Wilderspin, olhando o relógio.

— Eu o vi lá fora — disse Askin —, quando desci a rua.

— Por Júpiter! O que ele estaria fazendo lá? — disse imediatamente o novo aluno.

— Bisbilhotando, acho eu — disse Askin. — Conversava com um dos policiais, e tinha nas mãos uma caixa com alguma coisa escura dentro. Acho que vai nos pedir para analisá-la.

— Lá vem ele — disse Wilderspin.

Todos nos viramos novamente para a janela. O sr. Somerset Smith, nosso estimado professor de química, aparecera numa porta lateral e agora rodeava a casa pelo lado do portão de entrada. Carregava uma caixa com a marca “Sabão Hudson”, e dentro dela um amontoado de destroços enegrecidos, incluindo, entre outras curiosidades, um frasco de vidro partido. Seu curioso rosto largo estava contorcido numa expressão inescrutável. Veio andando mergulhado em seus pensamentos, e ficou momentaneamente oculto de nós ao subir os degraus que conduziam ao nosso pórtico da frente. Ouvimos-o subir até a sala onde fazia os preparativos dos seus materiais, ao lado do laboratório, onde entrou e bateu a porta. Os outros quatro ou cinco alunos que completavam aquela turma foram chegando, de um em um.

Logo estávamos todos mergulhados numa calorosa discussão sobre as atrocidades dos anarquistas. Mason ouvira de alguém que tinha sido justamente Smith a descobrir que o fogo na casa em frente tinha sido obra de um incendiário, e que encontrara os restos queimados de uma placa incendiária. Askin fez uma piada óbvia a respeito. O novo aluno fez uma série de perguntas rápidas, com nervosismo. A excitação parecia estar despertando seus dotes para o diálogo, porque até então ele chamara a atenção por manter uma reserva que muitos entre nós consideravam puro mau humor. Nosso vozerio se interrompeu quando Smith entrou.

Ao contrário de seu comportamento habitual ele não foi direto para o quadro-negro, mas veio por uma das alas até perto da janela. Carregava um peso de papel de mármore negro numa mão, e na outra, certo número de tiras de papel. Estas foram colocadas sobre a mesa de Wilderspin. Ele passeou os olhos pelo nosso grupo, por baixo de suas sobrancelhas espessas.

— Alguém ausente?

— Ninguém, senhor — respondeu alguém.

— Este fogo na casa em frente, cavalheiros, é uma ocorrência muito singular... muito singular. Talvez nenhum dos senhores saiba como foi provocado. Mas precisam saber sem nenhuma demora, creio eu, que uma suspeita muito grave paira por aqui. Uma suspeita, para ser preciso, de que o incendiário, porque nada disto foi acidente, mas um incêndio criminoso, obteve daqui os materiais que usou. Pelo que posso avaliar, a casa foi incendiada por meio de fósforo dissolvido em bissulfeto de carbono.

Houve uma exclamação por toda a classe.

— Como devem saber, cavalheiros, dos estudos elementares que fizemos no outono passado, quando o fósforo dissolvido em bissulfeto de carbono é exposto à evaporação ele se precipita num estado tão fino que entra em combustão. Bem, ao que parece foi retirada a tampa que protege o carvão, foi jogada uma grande quantidade de papel entre a lenha e o carvão miúdo que havia no piso do porão, e depois uma quantidade robusta desta solução — a qual, cavalheiros, deve ter sido preparada aqui, neste edifício — foi derramada sobre tudo. A evaporação começou de imediato, o fósforo acabou pegando fogo e inflamou o papel, e dentro de meia hora um belo incêndio estava subindo as escadas rumo ao andar de cima para acordar o Inspetor e sua família. “Como sou capaz de afirmar isto? Em parte devido ao acaso, e em parte pelas minhas pesquisas. O que houve de acaso foi isto: ontem, às dez horas da noite, tive a ocasião de vir à minha sala de preparativos, e senti ali o cheiro bem característico do vapor de bissulfeto de carbono. Acompanhei esse odor até o depósito logo adiante, e, quando entrei, vi imediatamente que alguém tinha remexido no material. Um frasco de mucilagem de amido tinha sido derrubado, e o líquido escorria pela mesa, gotejando sobre o chão. Outras garrafas tinham sido retiradas mas não substituídas. Examinei tudo em volta, para ver se encontrava outro furto, e a princípio não percebi a ausência de nada a não ser do bissulfeto de carbono, mas depois percebi que o vidro de fósforo estava vazio. A inferência possível era que, ou um estudante estava brincando de químico em casa às minhas custas, ou que algum atentado com fogo estava se preparando. Em qualquer um destes casos eu estava ansioso para descobrir o culpado, e achei que não teria uma ocasião melhor do que aquela, quando o aposento estava exatamente da maneira como ele o deixara. Vocês sabem que nós, cientistas, temos um afeto especial por provas.”

Ele olhou atentamente o nosso grupo. Eu fiz o mesmo. A não ser que fosse um fisionomista muito superior a mim, nada havia ali que pudesse ser detectado. Todos o olhavam com interesse, e todos mais ou menos desconcertados diante daquela acusação. Askin, por exemplo, estava ruborizado; Wilderspin tinha um tique nervoso no canto da boca, que estava se contraindo fortemente; e os lábios do aluno mais novo estavam lívidos.

— Agora, tenho a satisfação de dizer que quando deixei o laboratório eu tinha um palpite, que logo depois se transformou numa prova conclusiva sobre quem tinha levado meu bissulfeto de carbono; uma prova tão sólida quanto uma prova tem que ser.

Uma pausa dramática. De minha parte, eu estava um pouco assustado. Será que o sr. Smith não estaria chegando a alguma conclusão precipitada? Isso poderia ser inconveniente para alguns de nós.

— O cavalheiro, inadvertidamente, deixou uma assinatura em seu furto; deixou uma prova manual de suas ações, literalmente a sua assinatura manual, meus senhores.

Ele nos deu um sorriso esquisito. Esperamos que apontasse o dedo para alguém. Olhou por um momento as tiras de papel na mesa ao seu lado, e hesitou. A esta altura, claro, todos estávamos interessadíssimos.

— O senhor não quer dizer... — disse o aluno novo — não quer dizer que o homem que roubou o bissulfeto de carbono foi tão distraído, tão idiotamente distraído, que escreveu o nome...?

O professor, ainda sorridente, abanou a cabeça negativamente.

— Não foi bem assim — disse. Era visível que ele queria prolongar nossa agonia.

— Quando o fogo teve início no outro lado da rua — continuou ele, normalmente — suspeitei que as duas coisas estivessem relacionadas. Hoje de manhã, bem cedinho, antes mesmo de o sol nascer, fui até lá. Reconstituí o trajeto do fogo, com a ajuda dos bombeiros, até lá embaixo, no porão. Ele tinha sido aceso, como imaginei, através da grade protetora do carvão. Procurei meu frasco de bissulfeto de carbono entre as brasas e as cinzas do porão, assim que ele esfriou o bastante para permitir nossa busca; mas não o encontrei. Minha suspeita quanto à nossa ligação com o incêndio arrefeceu um pouco, mas me mantive fiel a ela. O porão estava extremamente quente, e por isto meu exame foi muito superficial, de modo que decidi repetir a busca numa hora mais avançada. Para passar o tempo, depois do café da manhã e de um banho fui até o jardim da casa, e comecei minha caçada. A primeira coisa que achei foi uma tampa de garrafa que me era familiar, e isto me animou; depois, numa moita de lilases, encontrei a garrafa, quebrada, suponho, pela bota de um bombeiro. O rótulo, como os senhores devem lembrar do nosso depósito de material, é um rótulo largo de papel, que quase dá a volta ao frasco.

Ele se deteve e nos deu um sorriso benevolente.

— Naquele rótulo estavam visíveis as palavras “Bissulfeto de Carbono”, e também ao lado, escritas a lápis por algum cavalheiro, “Fedor terrível”.

— Ora, mas fui eu que escrevi isso, três dias atrás! — disse Askin, agressivamente.

— Imagino que o tenha feito. Eu disse que isto era o que havia visível no rótulo. Mas hão de lembrar, cavalheiros, que nosso amigo havia derrubado um frasco de mucilagem de amido. Bem, permitam que lhes recorde as propriedades da mucilagem de amido. Ela é tão descolorida quanto é possível ser, mas combinada com o iodo fornece um belo colorido azul-púrpura. É um teste para acusar a presença do iodo, mesmo que este esteja na quantidade mais insignificante.

— O azul aparece com apenas uma parte de iodo para 450 mil partes de água, de acordo com Thorpe — disse Wilderspin.

— Muito bem. Estou vendo que está pronto para a prova. Agora, antes de deixar o laboratório eu tinha notado que nosso amigo tinha molhado os dedos naquela substância, porque sobre a maçaneta da porta distinguiu o que me pareceu ser marcas de dedos, e ao testá-las com iodo fiquei alegre ao ver que estava correto. Eram, porém, ainda muito borradas para meu propósito. Mas achei que se eu localizasse o frasco certamente haveria alguma marca dos dedos do nosso amigo sobre o rótulo, pois do modo como ele certamente o segurou não havia como não deixar essas marcas. E, seguindo o mesmo raciocínio, apliquei àquele rótulo uma solução de iodo muito leve; e agora, senhores, estou satisfeito em poder dizer que tenho três marcas azuis de dedos, e uma bela impressão de um polegar.

Ele faz uma pausa para apreciar nosso espanto.

— Devem ter ouvido falar no professor Galton — disse o professor, falando mais rápido e recolhendo as tiras de papel. — Ele fez um estudo especial das linhas que há no polegar humano, e propôs um método para a identificação de criminosos. Recolheu milhares de impressões de polegares humanos molhados com tinta, no Laboratório Antropométrico de South Kensington, e não há dois seres humanos com impressões idênticas. Publicou um livro com esse material, e é um livro muito bom. Bem, como veem, eu tenho aqui um pouco de tinta de impressão misturada com óleo, espalhada sobre este peso de papel, e aqui algumas tiras de papel, e com isto resolveremos o problema em poucos minutos. Se o delinquente estiver entre nós, vamos descobri-lo; se não...

— Cuidado! — gritou Wilderspin.

Virei-me, e vi o novo aluno segurando um frasco em cada mão. O anarquista tinha se desmascarado. Estava pronto para arremessar um dos frascos, de vidro esmerilhado, que provavelmente continha algum ácido. Abaixei-me, instintivamente, e o projétil passou por cima da minha cabeça, atingiu Smith no ombro e ricocheteou com estrépito numa mesa cheia de tubos de ensaio. Sentiu-se no ar um cheiro inconfundível de óxido de nitrogênio. O segundo frasco felizmente passou longe, esbarrou num bico de Bunsen e em duas trípodes, e fez um estrago por entre os frascos pequenos de reagentes sobre a bancada de Wilderspin. Nunca vi um grupo de homens se dispersar com tamanha rapidez. Ainda me virei com a intenção de agarrar o lunático, mas vi-o erguer um frasco de ácido sulfúrico ou vitríolo, o popular ingrediente dos filtros de amor parisienses. Isto foi demais para mim, e me escondi sem demora por trás de uma bancada. Alguns dos meus colegas tinham conseguido deixar a sala e amontoavam-se agora na escada, onde Smith também se refugiara. Vi Wilderspin, com a boca contraindo-se mais do que nunca, por trás de outro banco. Assim que tivemos uma chance, seguimos o exemplo dos outros e corremos para o patamar. Um pequeno frasco de ácido clorídrico atingiu Wilderspin no pescoço, fazendo-o dar um grito, e deixou no seu paletó uma grande mancha vermelha.

Havia algum método na loucura do Anarquista. Ele parou de arremessar coisas assim que se viu no controle do laboratório, e começou a recolher todos os frascos de ácido, sublimado corrosivo, nitrato de prata e assim por diante, colocando-os sobre a bancada mais próxima da janela. Tinha o claro propósito de vender caro sua rendição. Mas Smith era um oponente à altura. Tinha corrido para o depósito, e emergiu de lá como um garrafão do mais insuportável dos gases, o sulfeto de hidrogênio.

— Arranque o tampão e jogue isto lá dentro, rápido! — disse ele, e voltou ao depósito, em busca das pungentes qualidades de amônia.

Seguiram-se, em rápida sucessão, arremessos de um garrafão coberto de vime cheio de ácido clorídrico e outro de sulfeto de amônia, um gás cujo odor repugnante só encontra rival no sulfeto de hidrogênio. O inimigo só percebeu nossas intenções quando os vapores começaram a se espalhar na sua direção, e limitou-se a se esconder por trás de uma bancada. Dentro de trinta segundos, havia dentro do laboratório um conflito tão desagradável de odores químicos como não é difícil imaginar, e o ar estava denso com nuvens brancas do cloreto de amônia. O inimigo percebeu então nosso propósito e tentou fazer uma carga frontal. Quando o garrafão de sulfeto de amônia se espatifou no chão, vi um pequeno frasco vindo na minha direção por entre os vapores, mas ele não acertou a porta, e acabou derrubando o quadro-negro.

— Fora do meu caminho! — gritou o Anarquista, erguendo-se no meio dos vapores e da fedentina, mas nós batemos a porta, trancando-o lá dentro daquela atmosfera. Ele tentou furiosamente girar a maçaneta, e esmurrou a porta como louco. Ouvi-o pedir clemência e cair ao chão tossindo. Achei que o tínhamos derrotado, e por mim teria aberto a porta se Smith, temendo um ataque, não me segurasse. Ouvimos os passos do Anarquista retrocedendo e depois silêncio. Ficamos esperando outra arremetida dele. Uma garrafa se espatifou na porta pelo lado de dentro, e daí a pouco outra. Houve um intervalo de silêncio. Talvez tenham se passado uns três minutos.

Askin estava socorrendo Wilderspin na outra sala, e os outros estávamos agrupados no
patamar.

— Ele deve ter sufocado e caído — disse Porch.

— A janela! — exclamou Smith de repente. — Deve ter fugido pela janela. Não pensei nisso. Alguém ouviu a janela ser quebrada? Vocês três — ele indicou a mim, Porch e Mason — cuidem desta porta.

Os outros desceram precipitadamente as escadas, seguindo Smith. Ouvimos a porta da rua ser aberta e depois as vozes deles, gritando no pátio fronteiro. Então nos arriscamos a abrir de novo a porta do laboratório; vimos a janela do lado oposto escancarada, e as rajadas de vento agitando os vapores. O Anarquista tinha escapado.

Smith tinha sido um pouco intelectual demais na sua abordagem do caso, e pouco vigoroso.

— Depois daquela marca de polegar... — disse ele, quando a classe voltou a se reunir no dia seguinte, por entre os destroços do laboratório. — Depois que a marca foi descoberta ele devia ter se rendido imediatamente. Não havia nenhum argumento que o salvasse. Pela lógica, em todo caso, ele estava irremediavelmente encurralado. Começar a arremessar ácidos em redor, francamente! Uma coisa que não fui capaz de prever. Muito desleal da parte dele. Esse tipo de coisa tira todo o encanto intelectual que há no trabalho de um detetive

Fonte:
WELLS, H. G. O País dos Cegos e outras histórias. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.