domingo, 19 de fevereiro de 2017

Paleta de Versos n. 3

Isabel Furini
(Curitiba/PR)

CABEÇAS DE RELÓGIOS MOLES
(de “Os Relógios de Dali”)

De repente surge uma ideia nas cabeças
(ocas)
de fugir da solidão
do vazio
dos medos criados pela civilização
fazendo selfie
(o celular é a nova magia)

logo é só postar nas redes sociais
(e se for possível nos jornais virtuais
nas portas dos shoppings
nos cartazes dos teatros
ou cinzelar nas estrelas próximas)

deixar as perdas e o amor e a saudade
no mar da Catalunha
e ser fiel às ideias de felicidade
ser fiel ao carrossel do mundo
essa é uma obsessão
(como os passos agitados
que fazem ranger
as tábuas do piso
e da escada de madeira)

ser feliz 24 horas por dia!
ser feliz sem pausa e sem monotonia

nossa civilização de faz de conta
está se derretendo como um relógio mole
nossa civilização
alimenta-se de estranhas utopias
enquanto é devorada pelas formigas
do medo e da obsessão.
_____________________

Ubiratan Lustosa
(Curitiba/PR)

FOLIA

Quis brincar no carnaval,
mas não tinha fantasia,
mesmo assim foi pra folia
e festou a se esbaldar.
Mostrou que pra ser igual
aos que dizem ser felizes
basta esconder cicatrizes
e pular, sorrir, cantar.
________________________

MIFORI
(São José dos Campos/SP)

Pantum:
APRENDER COM O SILÊNCIO 

Olhe suas qualidades,
respeitando a sua vida,
a viver em sociedade,
esse silêncio o convida...

Respeitando a sua vida,
saber ouvir e calar,
esse silêncio o convida:
é preciso meditar!

Saber ouvir e calar,
num silêncio poderoso
é preciso meditar:
o viver é prazeroso!

Num silêncio poderoso
surge a voz da consciência;
o viver é prazeroso
se houver amor e decência.

Surge a voz da consciência
mostra todas as verdades, 
se houver amor e decência, 
olhe suas qualidades.
_____________________

Luiz Poeta
(Rio de Janeiro/RJ)

ESPER...ÂNSIAS

Ela desenha uma letra... a mão pesa...
o lápis fura a folha lisa do caderno;
a professora a incentiva, o jeito terno
flui no silêncio com a pureza de uma reza.

Ela se esmera, o resultado é perfeito
e apesar de não ter tanta habilidade
com as palavras, é tanta felicidade
no seu olhar, que ela até sorri... sem jeito.

O mal de parkinson inibe o traço certo,
mas ela insiste, pressiona, comprimindo
a trajetória da palavra, no deserto
da folha em branco que o amor vai imprimindo.

Quando, afinal, a visão fraca está cansada,
ela repousa mansamente e descansa.
Na folha branca, uma palavra está grafada
trêmula, forte e poderosa: e s p e r a n ç a.
_________________

Francisco José Pessoa
(Fortaleza/CE)

VERSEJANDO

As palavras me faltam e, sem dizê-las,
A mudez verbaliza o sentimento
Tal a folha já morta entregue ao vento
Tal o céu tão escuro sem estrelas.
_______________________

Rubens Jardim
(São Paulo/SP)

O POEMA DO AVESSO

O que há em mim
é a lenta preparação
do que há em ti
sombra segada
sangrada 
e sagrada
até nos olhos dos meninos
que nasceram sem olhos

vidência única
(vide o verso)

visão múltipla
(vede o anverso)

e tudo que está
do outro lado 
do espelho.
_______________________

Samuel da Costa
(Itajaí/SC)

EM DIAS DE SOL E CALOR, EM NOITES DE TEMPESTADE E FRIO 
Para Victória Butler Rodríguez e 
Mari Gomes 

Em dias de sol e calor 
Minha alma serena 
Passeia livremente 
Pela charneca em flor 

Nesses dias de extrema felicidade 
Eu tenho sentimentos bons 
Eu tenho pensamentos probos 
Eu sou uma pessoa feliz 

Minha alma leve 
Navega serenamente 
Pelo mar da tranquilidade 
A brisa matinal oceânica 
Faina o meu negro cabelo 
E beija o meu rosto hialino 
Eu sou feliz 

Em dias de sol e calor 
Minha jovem alma aventureira 
Não conhece mais limites 
Percorre o mundo livremente 
Encontra e abraça a vida 
Aceita o convite dela 
Para um eviterno bailar 
Eu encontrei a felicidade 
Eu sou uma pessoa feliz 

Em noites de tempestade 
E de muito frio 
Minha cansada e sôfrega alma 
Voa perdidamente 
Pela negra noite sem fim 

Em noites de tempestade e frio 
Vagueio solitária e languidamente 
Pelo mítico vergel da solidão 
Choro e sofro 
Todas as dores do mundo 
Pelo amor que se foi 
Por tudo que não veio 
E por tudo que nunca virá 

Em noites 
De fortes ventos intempestivos 
E glaciais 
Minha alma diáfana 
Percorre o deserto dentro de mim 

Na alvorada 
No dilúculo de um novo dia 
A minha crença 
De tê-lo ao meu lado 
Esvaece por fim 

Na aurora de um novo dia 
Vivo sem esperanças alguma 
De viver dias melhores 
_______________________

Nei Garcez
(Curitiba/PR)

"Dentro e fora" do Universo, 
em que, aqui, tudo é infinito, 
um só Deus é tão diverso 
sobre tudo... Tenho dito!
______________________

Pedro Du Bois
(Balneário Camboriú/SC)

BARULHOS

No barulho das ruas
algumas horas
de paz e recolhimento

não há música no ar
nem palavra a ser dita

No barulho das casas
alguns minutos
de repouso e acolhimento

não há discurso
nem a fala do ator

no barulho em geral
instante em que o silêncio
aprofunda o gosto

não há como rasgar a folha
nem recitar a prece.
________________________

João Batista Xavier Oliveira
(Bauru/SP)

O CAMINHO DA ROSA

Se cada um fizer a sua parte
não sobra parte para repartir;
não sobra aparte que preocupe a arte...
mundo destarte só resta sorrir.

Se cada um plantar uma roseira
a vila inteira será um jardim;
não sobra beira à espinhosa asneira...
dessa maneira é sorriso sem fim.

Se cada um olhar-se na verdade
fraternidade romperá vereda;
o pensamento terá mais espaço

e minha parte será rosa e há de
ser a verdade daquele que ceda
do seu caminho todo seu abraço!
__________________________________

Olivaldo Júnior
(Mogi-Guaçu/SP)

EU MESMO

Pois é,
era uma vez
eu mesmo.

Eu mesmo,
que vou e que venho,
que risco e desenho,
que tenho e mantenho
esta (in)certa
dis - tân - cia.

Pois é,
era uma vez
distância.

Grades feitas de dor,
cola e muito isopor,
tudo que é anti-flor,
anti-sonho, anti-amor.

Pois é, 
era uma vez
o amor.

O amor 
que eu chamo e reclamo,
que eu amo e proclamo
o senhor
de mim mesmo.

Pois é,
era uma vez
eu:
uma vez
eu mesmo.

Estante de Livros (Lúcio Cardoso: Crônica da Casa Assassinada)

A história de “Crônica da Casa Assassinada” se passa no interior de Minas Gerais, no desenrolar do século XX. Naquele momento as famílias tradicionais estavam começando a temer o desenvolvimento urbano, pois tinham receio que essas novas construções oprimissem o brilho e a soberania dos casarões. E por falar em família, a história gira em torno dos Meneses, uma família que praticamente rege a cidade, sendo considerada a “realeza” local. Apesar do jeito petulante, eles estavam em decadência; suas propriedades já não tinham tanto valor. Com isso, uma coisa se torna muito importante para compreender o que Lúcio Cardoso desejava transmitir com sua Crônica: desconfiar de tudo o que você lê, pois a velha chácara dos Meneses contém segredos inimagináveis.

Em meio às fragilidades do momento, Valdo, membro da família Meneses, retorna do Rio de Janeiro. Porém, ele não estava sozinho, trouxe consigo a bela Nina como esposa, para ser a nova habitante da Chácara. Dona de gostos extravagantes e uma beleza extraordinária, ela rapidamente vai atraindo a atenção dos habitantes da região, também devido o seu jeito mais “liberal”. Os Meneses estavam um tanto quanto preocupados, pois manter as aparências de uma família real era imprescindível.

O próprio título do livro já anuncia o enigma em que ele se constituirá, ao se debruçar sobre as lembranças angustiadas e desconexas dos vários personagens, que não se fiam na memória que construíram sobre suas relações com os outros e com a realidade. O relato que se anuncia como sendo uma crônica carece de verdade, porque não há fatos claros e objetivos. Assim, cabe ao leitor desvelar o assassino e reconstituir o crime que baila entre sofisticadas técnicas narrativas, trabalhadas por uma linguagem meticulosa, que se desdobra em descrições quase líricas não fosse a exploração aguda dos perfis psicológicos elaborados e o grotesco que surge dos dramas apresentados:

"Decerto, quando as pessoas não nos interessam, esmaecem em torno a nós com a indiferença dos objetos. Alberto, para mim, sempre fora o jardineiro, e jamais conseguira identificar sua presença senão daquele modo. Eis que agora, pelo simples manejo da existência de Nina, eu o descobria como havia descoberto a mim mesma. Este deve ser, Padre, o primeiro dom essencial do demônio: despojar a realidade de qualquer ficção, instalando-a na sua impotência e na sua angústia, nua no centro dos seres." (Cardoso, 2008, p. 110)

Crônica da casa assassinada fala, de forma não linear, da decadência e fragmentação de uma família mineira burguesa e tradicional. É narrado por várias vozes, incluindo membros da família Meneses e habitantes de Vila Velha, cidade onde vivem. O romance é construído através de cartas, recordações saudosas, diários etc. Com esse tipo de narração, é preciso analisar os detalhes da obra e não acreditar em tudo que se vê/lê. Por exemplo: quando Nina narra a Chácara onde os Meneses vivem, a impressão que se tem é de que está caindo aos pedaços. Os Meneses são descritos como gente que ficou presa no século passado e o local onde vivem também. Mas é preciso levar em conta que Nina estava acostumada ao Rio de Janeiro, uma cidade grande e urbanizada. E como num passe de mágica, ela se vê numa cidade do interior de Minas Gerais, onde tudo parecia enferrujado e empoeirado, sem contar nas recusas dos Meneses para realizar e fazer parte dos raros eventos sociais que ocorriam na cidade.

Falando um pouco mais sobre os personagens, enquanto Nina era a bela moça da cidade grande, Valdo, seu marido, é um legítimo Meneses. Para ele era necessário conservar a imagem e boa aparência do casarão, pois seria de grande valia para o futuro da cidade. A história ainda aborda o homossexualismo, com Timóteo, homossexual assumido. Ele é confinado por Demétrio (seu irmão mais velho e que assume a chefia da família depois da morte de seus pais) num quarto esquecido da casa. Ali Timóteo é “livre” para viver como deseja. A consciência de Timóteo de que um nome não deve ser um fator limitante ou decisivo da sua identidade se choca com o conservadorismo dos irmãos e do restante da cidade, tornando-o prisioneiro do seu próprio eu. Ana, por sua vez, foi educada ao gosto de Demétrio (seu marido e membro real dos Meneses). Desse modo, ela não teve liberdade para pensar e fazer as coisas como queria. Foi criada para ser rígida, usar cores neutras e passar o mais despercebidamente possível. Mas com a chegada de Nina, Ana começa a despertar para sua realidade de submissa aos costumes do marido. Ana é o oposto de Nina, foi tão bem “domesticada” por Demétrio, que ao longo da narrativa ela é vista como um objeto que se funde às paredes da velha casa.

Composta por meio de cartas enviadas e não respondidas, de trechos de diários, de depoimentos, de confissões parciais, a narrativa é fragmentada, não-linear e sem nexos explícitos de causa e consequência. As primeiras páginas com que depara o leitor são parte do diário de André. Ele nos conta o momento final das tramas ainda a serem apresentadas, mergulhando na profunda dor e revolta que lhe causara a morte de Nina, mulher da capital carioca que aporta no conservadorismo rural sustentado pela casa dos Meneses. Encerrado em seu relacionamento, André se sente profundamente traído pela perda de seu objeto de desejo. Vivendo alienado de todos e do mundo, sua fuga e sua separação da casa dos Meneses ao fim da narrativa, depois do enterro da mãe, não significam uma possível libertação da engrenagem da dor em que se encontrava preso:

"18 de... de 19... - (meu Deus, que é a morte? Até quando, longe de mim, já sob a terra que agasalhará seus restos mortais, terei de refazer neste mundo o caminho do seu ensinamento, da sua admirável lição de amor, encontrando nesta o aveludado de um beijo - ‘era assim que ela beijava' - naquela um modo de sorrir, nesta outra o tombar de uma mecha rebelde dos cabelos - todas, todas essas inumeráveis mulheres que cada um encontra ao longo da vida, e que me auxiliarão a recompor, na dor e na saudade, essa imagem única que havia partido para sempre ?...)" (Cardoso, 2008, p. 19)

É preciso remexer os entulhos e viver o caos. O leitor, depois de cumprir a leitura, descobre que desde o início da trama narrativa também ele era vítima das aparências, pois o incesto, afinal, não ocorrera. André foge da casa sem conhecer a verdade e Valdo, que nem sequer desconfiava do que seu suposto filho pensava estar vivendo, abandona o território dos Meneses. O cadáver de Nina, mesmo enterrado, faz vibrar a urgência de se enxergar através da cortina, por entre alguma brecha possível. Esse desejo de rever o passado para que se faça a justiça é o que movimenta Padre Justino em seu último depoimento

Conhecido por travar polêmicas com os escritores nordestinos regionalistas de seu tempo, Lúcio Cardoso não nutria simpatia por esse tipo de literatura, enveredando por outras searas estéticas. Esse fato torna Crônica da casa assassinada um romance muito particular da história da literatura brasileira, porque não se enquadra facilmente em um único tipo de produção literária. O viés psicológico e o viés regionalista se encontram em processos metafóricos e metonímicos que se combinam sem que oponham. Desse modo, o tom intimista com que é realizada a exploração de personagens enigmáticas como Nina, que seduz seu suposto filho, André, dá forma e sustentação para a contestação da cultura mineira, lida na desagregação das tradicionais formas de relação familiar.

Lúcio Cardoso escreveu uma das obras mais belas e mais impactantes da literatura brasileira. Tratando de temas polêmicos como homossexualismo e o relacionamento incestuoso, o autor rompeu barreiras impostas pela sociedade. Tendo Nina, Valdo e Timóteo Menezes, como personagens principais, esse livro pretende levar o leitor a uma reflexão sobre o certo, o errado e se o imposto pela sociedade é o que deve realmente ser seguido. E cuidado, as aparências enganam! Então até que ponto podemos confiar nelas?

Fontes:
Thereza Cristina, in Catálise Crítica 
Prof. Dra. Giselle Larizzatti Agazzi in APROPUC-SP, 

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Olivaldo Júnior (Liberdade)

Ulisses era um menino de oito anos e meio que morava perto de casa. Cabelo nos olhos, sorriso nos lábios e pés firmes no chão, aprontava com os meninos da rua. Era um menino mágico, livre, que queria voar. Não voava, mas pensava que, se corresse muito, mas muito mesmo, nasceriam asas em suas costas e ele veria o mundo de outra forma. Ora, ele sonhava! Sonhar é voar?

Acontece que, em nossa rua, tinha um velho que não me lembro o nome, bem turrão, criador de passarinhos. "Um dia solto todos eles!", dizia para si mesmo o garoto com nome heroico, tão forte quanto os sonhos que ele tinha. Sonhar é para os fortes. Ouça.

O velho tinha treze gaiolas no quintal caipira, coberto de flores e de ervas daninhas, que ele não fazia separação entre as plantas. Não era um mau homem, mas tinha o mau hábito de cerrar os passarinhos em prisões, gaiolas que luziam o triste olhar de Ulisses assim que ele passava em frente à casa do velho. Ah, por que não se deixava livre um ser de asas, um sol a pino, um céu aberto?

Eram quase seis horas da tarde. Tinha chovido. A rua brilhava com as poças d'água que o choro da chuva formara. Os meninos estavam em casa. Menos um. Sabendo que o velho tinha saído, Ulisses, pé ante pé, pulou o muro da casa das aves e, com as mãos em fúria de quem toca os sonhos, soltou os pássaros ao céu azul, amarelo e rosa de um fim de tarde imenso, intenso, quase tão grande quanto a alma daquele "El Niño" que, radiante, em suas costas sentia o nascer das asas com que sempre sonhou. Um a um, ganhavam o mundo, pedindo licença para ser o que um dia foram: livres. Ulisses, um menino de oito anos e meio, voava com eles, partia com os pássaros rumo ao sem-fim! Libertava alguém e se libertava também, pode haver coisa melhor que aquela? Pulando em volta das grades, cabelo nos olhos, sorriso nos lábios e pés livres do chão, aprontava sua maior travessura. Era um menino mágico, livre e que fazia voar.

Fonte:
O Autor

Álvares de Azevedo (Poemas Escolhidos)


SONETO DO ANJO

Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti — as noites eu velei chorando,
Por ti — nos sonhos morrerei sorrindo!
____________________

SONETO DOS MOÇOS PERDIDOS

Um mancebo no jogo se descora,
Outro bêbedo passa noite e dia,
Um tolo pela valsa viveria,
Um passeia a cavalo, outro namora.

Um outro que uma sina má devora
Faz das vidas alheias zombaria,
Outro toma rapé, um outro espia...
Quantos moços perdidos vejo agora!

Oh! não proíbam pois ao meu retiro
Do pensamento ao merencório luto
A fumaça gentil por que suspiro.

Numa fumaça o canto d'alma escuto...
Um aroma balsâmico respiro,
Oh! deixai-me fumar o meu charuto!
__________________

SONETO DA PREGUIÇA

Ao sol do meio-dia eu vi dormindo
Na calçada da rua um marinheiro,
Roncava a todo o pano o tal brejeiro
Do vinho nos vapores se expandindo!

Além um Espanhol eu vi sorrindo,
Saboreando um cigarro feiticeiro,
Enchia de fumaça o quarto inteiro...
Parecia de gosto se esvaindo!

Mais longe estava um pobretão careca
De uma esquina lodosa no retiro
Enlevado tocando uma rabeca!

Venturosa indolência! não deliro
Se morro de preguiça... o mais é seca!
Desta vida o que mais vale um suspiro?
____________

SONETO DA ARMIDA

Os quinze anos de uma alma transparente,
O cabelo castanho, a face pura,
Uns olhos onde pinta-se a candura
De um coração que dorme, inda inocente.

Um seio que estremece de repente
Do mimoso vestido na brancura,
A linda mão na mágica cintura,
E uma voz que inebria docemente.

Um sorriso tão angélico! tão santo
E nos olhos azuis cheios de vida
Lânguido véu de involuntário pranto!

É esse o talismã, é essa a Armida,
O condão de meus últimos encantos,
A visão de minh'alma distraída!
________________

SONETO DA MORTE

Já da morte o palor me cobre o rosto,
Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!

Do leito embalde no macio encosto
Tento o sono reter!... já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece...
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!

O adeus, o teu adeus, minha saudade,
Fazem que insano do viver me prive
E tenha os olhos meus na escuridade.

Dá-me a esperança com que o ser mantive!
Volve ao amante os olhos por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!
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SONETO DA VIRGEM

Passei ontem a noite junto dela.
Do camarote a divisão se erguia
Apenas entre nós — e eu vivia
No doce alento dessa virgem bela...

Tanto amor, tanto fogo se revela
Naqueles olhos negros! só a via!
Música mais do céu, mais harmonia
Aspirando nessa alma de donzela!

Como era doce aquele seio arfando!
Nos lábios que sorriso feiticeiro!
Daquelas horas lembro-me chorando!

Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro
É sentir todo o seio palpitando...
Cheio de amores! e dormir solteiro!
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SONETO DA DOR

Perdoa-me, visão dos meus amores,
Se a ti ergui meus olhos suspirando!...
Se eu pensava num beijo desmaiando
Gozar contigo uma estação de flores!

De minhas faces os mortais palores,
Minha febre noturna delirando,
Meus ais, meus tristes ais vão revelando
Que peno e morro de amorosas dores...

Morro, morro por ti! na minha aurora
A dor do coração, a dor mais forte,
A dor de um desengano me devora...

Sem que última esperança me conforte,
Eu — que outrora vivia! — eu sinto agora
Morte no coração, nos olhos morte!
_________________________

SONETO DA MÃE

Ó páginas da vida que eu amava,
Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado!...
Ardei, lembranças doces do passado!
Quero rir-me de tudo que eu amava!

E que doido que eu fui! como eu pensava
Em mãe, amor de irmã! em sossegado
Adormecer na vida acalentado
Pelos lábios que eu tímido beijava!

Embora — é meu destino. Em treva densa
Dentro do peito a existência finda...
Pressinto a morte na fatal doença!...

A mim a solidão da noite infinda!
Possa dormir o trovador sem crença...
Perdoa, minha mãe — eu te amo ainda!
______________________

SONETO DO BEIJO

Um beijo ainda! os lábios teus, donzela,
Nos meus se pousem — junto de teu seio
Que treme-te e palpita em doce enleio
Beba eu o amor que teu olhar revela. —

Vem ainda uma vez! és pura e bela,
Arfa-te o seio, amor, n'olhos te leio...
Que importa o mais? vem, anjo, sem receio!
Um beijo em tua face! ind'outro nela!

Aperta-me ao teu colo — assim — um beijo
Desses em que ao céu um'alma se transporta!...
— E o mundo?... — Um louco. — E o crime? — Só te vejo.

— Mas quando a vida em nós gelou-se morta
— E o inferno? — Contigo eu o desejo.
— E Deus? — Meu Deus és tu. — E o céu? — Que importa!
________________

SONETO DO AMIGO

Perdoa se hoje em verso rude não cadente
Ledos os sentimentos de minha alma exprimo:
Tu verás que na arte de poeta eu não primo
Porém verás que só digo o que meu peito sente.

Mas os teus anos que me alegram a mente,
Triste pensamento me faz vir do imo
De meu peito alegre. De ti que eu tanto estimo
Para o ano, em igual dia hei de estar ausente!

Mas se de ti separar-me a extensão tão imensa,
A grande distância que entre nós estiver
Lembrança de ti não me fará perder.

Faz que tua alma a distância também vença,
Neste dia entre os amigos não te esquece
Daquele em quem tua lembrança não fenece.

Contos do Oriente (O Caso do Prefeito Dong)

O prefeito Dong fez 40 anos e morreu poucos dias depois de uma febre maligna. Sua casa parecia amaldiçoada. A primeira mulher tinha morrido três anos antes. Depois, ele casou-se novamente com uma belíssima mulher. Jovem, cheia de vida e amorosa. E antes que o prefeito Dong tivesse descendência, foi levado deste mundo pela febre.

A viúva, Feng Li, passou dois dias prostrada, chorando a morte de quem tinha sido seu único e grande amor. Um amor que havia durado anos, pois ela, desde criança, havia se apaixonado por ele, naqueles amores ardentes, contidos e impossíveis.

A morte da primeira esposa de Dong foi um sinal. O incêndio subterrâneo que consumia Feng Li, propagando-se pelo calor do seu ardor juvenil, voltou à superfície. Mas não ressurgiu arrebatador, como da primeira vez, mas na forma de flores de pessegueiro despetalando-se sobre o Lago Tian.

Todo mundo no povoado conhecia o prefeito Dong. Sua bondade. Suas virtudes excepcionais. Sua disposição em ajudar quem tivesse necessidade. E um dia, durante uma visita que os pais de Feng Li fizeram a Dong, ele percebeu enfim sua rara beleza e algum tempo depois se casaram.

Nisso Dong morreu. E estava ali, agora, no leito, ainda nupcial, seu corpo, que em breve seria levado embora, como um último sopro, de olhos úmidos, sobre sentimentos tão intensos. Foi nesse momento que Fen Li ouviu um profundo suspiro. O suspiro transformou-se em gemidos e esses gemidos vinham de onde se encontrava o prefeito Dong.

Sim, era ele. Pequenos movimentos. De início, quase imperceptíveis. Depois, mais agitados. E era ele, enfim, que despertava, movendo os lábios e pedindo um copo d’água. E ao falar, a voz era bem a sua, Dong, o prefeito. Bebeu um pouco de chá, pensativo, com os olhos semi-abertos, ainda não habituados com a luz, mas o brilho das pupilas não conseguia esconder pequenas nuvens escuras criando uma atmosfera de preocupação.

Ele bebeu um pouco de chá, sentou-se no leito e pediu que Feng Li chamasse alguém para tomar notas, pois ele tinha tido um sonho bastante estranho para contar. Com as costas apoiadas no travesseiro, esperou a chegada dos criados e então, com todos em volta, começou a contar:

“Na noite passada, disse ele, na terceira batida do sino, uma voz me chamou pelo nome. Eu fui até à varanda e percebi no jardim um desconhecido, com roupa de um alto funcionário do Palácio. Ele estava perto de um carro, com dois cavalos atrelados. Mantilhas brancas, que cintilavam à luz do luar, cobriam os dois animais.

Ele disse que tinha uma convocação oficial no meu nome e, em seguida, apertou meu braço com punhos de ferro e me fez subir na carruagem que imediatamente se pôs em movimento, depressa, depressa, veloz, cada vez mais veloz, quase voando. Nós passamos os portões da Prefeitura, escancarados àquela hora da noite, e avançamos na escuridão.

As sombras das árvores também eram velozes, deslizando vertiginosas ao nosso lado, e de repente fomos engolidos por densa neblina. Não demorou muito e a neblina foi se adelgaçando, em farrapos, que contornavam uma imponente muralha, em volta de uma cidade imensa, certamente capital de algum reino distante.

Depois de andarmos ao redor da muralha, escura, como picumã, chegamos a uma porta pintada de vermelho. Ela era flanqueada por duas torres, com as bases na forma de um animal estranho e dessas torres saíam barrotes, que tinha nas extremidades cabeças de mortos recentes ou peles humanas esfoladas que drapejavam como estandartes. Com a nossa aproximação, os dois batentes abriram-se rangendo de um jeito sinistro.

A cidade era recortada por ruas largas, que serviam de limite para uma grande quantidade de quarteirões, palácios, templos e edifícios oficiais. A carruagem parou no pátio interno de um deles e, depois de me fazerem subir por uma escada majestosa, meu guia me conduziu a uma sala de audiências onde estavam três juízes.

Meirinho, disse um deles, me traz o arquivo de capa preta, com um laço roxo, aberto na página de um homem chamado Dong, que exerce a função de Prefeito no Império do Meio.

Depois de um tempo um tanto longo, mesmo em termos de burocracia, a voz do juiz cortou novamente o silêncio:

— Meirinho! O que está acontecendo? Por acaso está dormindo em cima dos registros?

— Queira me desculpar, senhor, não consigo achar o nome do Prefeito Dong.

O juiz começou a trautear sobre o tampo da mesa, arrancando sons secos que logo se espalharam no ambiente. Dessa vez sua voz soou condescendente:

— Tome alguma iniciativa, caro amigo. Estamos perdendo um tempo precioso. O tribunal está atravancado de processo nesses tempos difíceis, disse ele, procura então um arquivo vermelho, o dos casos em litígio.

O meirinho trouxe um novo arquivo, de onde foi retirando folhas de papel amareladas. No fim exclamou:

— Eu bem sabia que estava consignado aqui! Dong, prefeito do Império do Meio. Homem virtuoso, de uma compaixão sem nome e de uma retidão exemplar. Caso muito raro na administração da Dinastia atual. Fez muitas coisas boas e ajudou muita gente sem se importar com posição ou riqueza. Morre aos 40 anos sem deixar descendência.

Os três juízes falaram em voz baixa durante alguns momentos e depois o presidente do tribunal declarou num tom solene:

— Deve ter algum erro aqui. Trata-se, sem dúvida, da negligência de algum funcionário do estado civil do destino. Que injustiça! Um homem assim, cheio de méritos, que morre na força da idade sem deixar ninguém para carregar o seu nome. Isso constitui um terrível mau exemplo para os outros humanos. Não é nada encorajador para outras pessoas que queiram fazer o bem. Vamos entrar com um recurso junto a Sua Majestade Yan Lo. Processo seguinte!

Eu então me virei na direção de meu guia e perguntei:

— Desculpe minha curiosidade, mas não seria esse, por acaso, um dos tribunais do inferno? Se estou entendendo bem, significa que eu morri?

Ele pôs a mão sobre o meu ombro e me respondeu com um sorriso:

— Não fique preocupado, tudo vai dar certo, seu processo está em boas mãos. Você caiu no melhor dos 24 tribunais do Inferno. Juízes íntegros e escrupulosos. Como você está nos registros vermelhos, o das pessoas virtuosas em situação irregular, e como aqui não precisa de dinheiro para suborno nem incenso ou libação para influenciar os juízes, tem todas as chances de voltar para casa.

Enquanto eu esperava, trouxeram um mandarim que tinha uma roupa de seda e distintivos de jade de alto dignatário da Corte Imperial.

— Meirinho — ordenou o juiz. — Diga-nos a identidade e o passado terrestre desse réu.

O escriba abriu o registro de cor preta e leu o seguinte:

— Chen Li, ministro da Justiça do Império do Meio. Depois de ter feito intrigas para afastar injustamente um de seus colegas, a fim de usurpar seu lugar, usou seu cargo para se enriquecer e estender seu poder sem escrúpulos. Culpado de corrupção, sequestros, falso testemunho, luxúria, tortura e condenação de inocentes. Ele morreu no seu leito sem manifestar nenhum remorso.

Os juízes deliberaram e um deles leu a seguinte sentença:

— O referido Chen Li, tendo desonrado sua profissão que lhe havia sido confiada pelo Filho do Céu, é condenado a sofrer todo tipo de suplício que ele infligiu aos seus semelhantes. Ele será detido durante quatro ciclos celestes ena cela nove vezes do Inferno, a fim de purificar seu espírito pelos cinco elementos. Ele deverá em seguida reencarnar na forma de um cachorro, depois na de um burro e finalmente em uma família miserável.

O ministro protestou energicamente, clamou inocência, invocou erro judiciário, gritou que iria apelar, ameaçou os juízes. Os guardas, demônios com cabeça de cavalo, de porco, de serpente, irromperam na sala, amarraram o preso numa cadeira. Um dos juízes dirigiu-se ao condenado nos seguintes termos:

— Saiba que todas as coisas que você fez e todos os seus gestos, foram registrados escrupulosamente nesses arquivos e nada do que acontece no mundo pode nos escapar. A lista de seus crimes e delitos, bem comprida, foi verificada minuciosamente, e por isso mesmo a instrução desse processo demorou mais de um ano. Saiba igualmente que a justiça do Reino das Sombras é implacável e imparcial. Todo mérito é cedo ou tarde recompensado, toda falta, sancionada. E para refrescar sua memória e para que você acabe com essas recriminações, tragam o Espelho da Verdade.

Um auxiliar tirou de uma caixa ricamente trabalhada o espelho de sua alma, onde o condenado pôde ver com horror estampado na face todos os crimes odiosos de que ele era responsável. Depois, com um leve gesto, o juiz deu uma ordem e os guardas levaram o prisioneiro. Nesse meio tempo, chegou um mensageiro. Ele trazia um rolo e o entregou ao presidente do tribunal, que o estendeu sobre a mesa. Depois de fazer um sinal para que eu me aproximasse, o magistrado declarou:

— Sua Majestade Yan Lo, Rei dos Infernos, levou pessoalmente seu processo até o Imperador Celeste. Sua Grandeza Sereníssima permite que você reencarne por mais dois ciclos duodecimais terrestres e concede também, por merecimento, a extensão de sua descendência."

O prefeito Dong, que contava essa história com uma voz fraca e tremente, levou a mão aos olhos e murmurou essa última frase, antes de cair novamente em sono profundo:

— Eu então desmaiei e acordei novamente há pouco na minha cama.

Quatro semanas depois, a jovem esposa do prefeito ficou sabendo que estava grávida e um ano depois da curiosa doença de seu marido, deu à luz um bebê encantador, que segundo alguns adivinhos, trazia os sinais característicos de uma pessoa predestinada.

Fonte: 

Fernando Sabino (A Faca de Dois Gumes)

Aldo Tolentino "E ali estava ele: Aldo Tolentino, 50 anos de idade, advogado, viúvo , um filho do primeiro casamento, dois do segundo, traído pela mulher com seu amigo e colega de escritório, escondido em sua própria casa..." 

Dr. Marco Túlio. "mais baixo, mas desenvolto, bem vestido, queimado de sol, aparência esportiva" 

Maria Lúcia fútil e infiel Paulo Sérgio o filho de Aldo Tolentino acusado injustamente de homicídio - representa o outro lado do gume (ferido) 

Síntese - enredo 
Aldo tenta vingar-se de sua adúltera esposa Maria Lúcia; para tanto furta a identidade de um subalterno do escritório, forja uma viagem de negócios e embarca para São Paulo a mando de seu chefe Marco Túlio. Já em solo paulista nosso herói hospeda-se em um hotel, para que não haja suspeitas e, discretamente evade-se do hotel direto para o Rio de Janeiro via ponte-aérea com passaporte falso na volta.

Ao retornar sigilosamente para casa, promove um flagrante nos adúlteros, aniquilando-os. O crime perfeito ocorre e a vítima será o próprio Aldo Tolentino que vê o próprio filho pagar por seu crime ao suicidar-se na cadeia. Paulo Sérgio chegara na madrugada do crime em casa, lá encontrara os cadáveres e fora o principal suspeito do crime. 

Estrutura da obra: 
Desfragmentação da estrutura narrativa - o discurso em 3° pessoa é permeada de psicologismo, e o fluxo de consciência é retomado o tempo todo por Aldo Tolentino. 

Estrutura textual: 
A violência das obras contemporâneas é recurso notório do retrato de nosso tempo na literatura. A visão do desejo enquanto sexualidade e ódios urbanos se confundem.

A coloquialidade do discurso é também outro fator que nos interessa, o pessimismo é notório e o existencialismo acerca da vida, é clara no final do conto: "...O delegado informou que Paulo Sérgio havia se enforcado com a camiseta em sua cela. - Vou já para aí ( disse Aldo Tolentino) Em vez de sair, foi até a copa, ainda sonolento, apanhou o vidro no armário e tomou todos os comprimidos.

Depois voltou ao escritório, estendeu-se no sofá e em pouco voltava a dormir. 

Aspectos Relevantes 

Tendências Contemporâneas 
O experimentalismo estético da Semana de 22 gera uma ideologia com a qual foram reexaminados os problemas da cultura, como qualidade e tradição. O interesse pela vida contemporânea norteou Josué de Castro, Caio Prado Júnior, Jorge Amado e Jorge de Lima. O Estado Novo (1937-1945) e a Segunda Guerra Mundial aguçaram as tensões no plano das ideias e novas configurações históricas geraram novas experiências nas artes, principalmente na literatura. A produção dos autores da primeira metade do nosso século deixa transparecer angústias e projetos inéditos nos trabalhos de poetas, narradores e ensaístas.

Na poesia, a geração de 45 isolou os cuidados métricos, procurando se contrapor à literatura de 22, menosprezando as conquistas do modernismo. No panorama da nova poesia brasileira, Fernando Ferreira de Loanda insiste na afirmação da diferença e na busca de novos caminhos. É a posição de Alphonsus Guimarães Filho, Péricles Eugenio da Silva Ramos, João Cabral de Melo Neto, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino e Lêdo Ivo, entre outros. Todos defendem um gênero intimista onde imagens são correlatas ao sentimento que os símbolos ocultam e sugerem. Submetem-se às exigências técnicas e formalizantes. 

No romance psicológico caminha-se pela introspeção da psicanálise. Socialismo, freudismo, catolicismo são usados para a compreensão do homem social. Esteja sempre atento para a leitura de obras contemporâneas, pois o que melhor interessa-nos é a sua estrutura narrativa, condensadora e atrativa para o leitor contemporâneo de tantas imagens do mundo digital.

Fonte:

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Antonio Brás Constante (O Sofredor)

Ser goleiro não é fácil. É uma posição que exige um certo talento, ou ao menos alguma técnica. Enquanto todos os demais jogadores torcem para que a bola venha para o seu lado. O goleiro reza para que ela permaneça sempre o mais distante possível dele.

Nas partidas ele sempre fica atrás. Sozinho. Esperando que o pior aconteça. E o pior vem de forma redonda e rápida. A bola é a arquiinimiga do goleiro. Parece uma serpente, pronta para dar o bote através dos pés adversários, acertando, ou melhor, desviando do pobre goleiro para se acomodar junto à rede.

Pior ainda é a situação dos goleiros de fim de semana (como no meu caso). Onde a destreza com a “redonda” é quase nula. Ficamos lá no fundo da quadra. Vítimas de goleadores habilidosos. Sendo apelidados de peneiras, ou ouvindo chamarem nossas goleiras de aviários (já que elas vivem recebendo frangos).

Muitos de vocês sabem como é este sentimento. Pois também se arriscam no gol. Quando defendem, os outros insinuam que foi pura sorte. Mas quando ela passa, as expressões de reprovação na face de seus colegas são as piores possíveis.

Imagine-se em sua partida semanal. Os últimos três jogos perdidos. A culpa pelas derrotas, colocada sobre seus ombros. Não com palavras, mas com olhares. Aqueles olhares fulminantes. Esmagando-o como se fosse uma barata asquerosa.

“Mas aquele jogo será diferente”, você pensa. Irá provar que tem seu valor. O jogo vai seguindo. Algumas boas defesas. Várias desastrosas falhas. Porém seu time continua na frente por um gol.

Então acontece. Faltam poucos minutos para o jogo acabar. O goleiro adversário – aquele que defende melhor que você, e por isso mesmo você o odeia com todas as suas forças – recebe uma bola, chutando-a em sua direção. Um chute forte, que executa um arco perfeito, passando pela cabeça de todos (inclusive a sua), entrando com graça dentro de sua goleira.

O gol do empate. Todos do seu time querendo matá-lo, como se a culpa fosse sua. Você grita com eles. Agora é tudo ou nada. O jogo está para acabar. Um dos zagueiros lhe recua a bola (mais por falta de opção do que por vontade). Os jogadores do seu time prendem a respiração. Você só tem uma fração de segundo para se livrar daquele perigoso globo.

Resolve se vingar. Reúne todas as suas forças e chuta aquela esfera com ódio e determinação. Vai devolver na goleira adversária o gol que acabou de levar. Ao chutar se desequilibra caindo de joelhos. Os braços abertos tal qual um mártir que pretende se redimir de seus pecados.

A bola sobe. Mas não sobe o suficiente. Bate nas costas do zagueiro e volta. Miseravelmente volta de onde partiu. Você impotente vendo a trajetória da maldita, que poderia ter ido para qualquer lugar dentro da enorme quadra, mas preferiu adentrar com uma maldade cruel em seu próprio gol.

A campainha toca. Final de jogo. Seu time sai de cabeça baixa. Nem sequer lhe olham. Mas no fundo você está tranqüilo. Sabe que na próxima semana voltará a atacar no gol. Como foi dito no inicio do texto, alguns jogadores têm talento, outros têm técnica, e você...Bem...Se você for como eu, possuíra aquilo que se considera essencial em qualquer partida: você terá a bola.

Fonte: O Autor