sexta-feira, 20 de abril de 2018

Trova 292 - Ronnaldo Andrade (São Paulo/SP)

Fonte: Facebook (Bonde Trova)

Fernando Pessoa (Quadras Populares) VI


Andei sozinho na praia.
Andei na praia a pensar
no jeito da tua saia
quando lá estiveste a andar.

A vida é um hospital
onde quase tudo falta.
Por isso ninguém te cura
e morrer é que é ter alta.

Baila em teu pulso delgado
uma pulseira que herdaste...
Se amar alguém é pecado,
és santa, nunca pecaste.

Boca de romã perfeita
quando a abres p’ra comer,
que feitiço é que me espreita
quando ris só de me ver?

Linda noite a desta lua,
lindo luar o que está
a fazer sombra na rua,
por onde ela não virá.

«Mau, Maria!» — tu disseste,
quando a trança te caía.
Qual «Mau, Maria», Maria!
«Má Maria!» «Má Maria!»

Menina de saia preta
e de blusa de outra cor,
Que é feito daquela seta
que atirei ao meu amor?

Na praia de Monte Gordo,
meu amor, te conheci.
Por ter estado em Monte Gordo
e que assim emagreci.

O guardanapo dobrado
quer dizer que se não volta.
Tenho o coração atado:
– vê se a tua mão mo solta.

O papagaio do paço
não falava — assobiava.
Sabia bem que a verdade
não é coisa de palavra.

O pescador do mar alto
vem contente de pescar.
Se prometo, sempre falto:
receio não agradar.

O teu carrinho de linha
rolou pelo chão caído.
Apanhei-o e dei-o e tinha
só em ti o meu sentido.

Santo Antônio de Lisboa
era um grande pregador,
mas é por ser Santo Antônio
que as moças lhe têm amor.

Teu olhar não tem remorsos,
não é por não ter que os ter.
É porque hoje não é ontem
e viver é só esquecer.

Trazes a bilha à cabeça
como se ela não houvesse.
Andas sem pressa depressa
como se eu lá não estivesse.

Trazes um manto comprido
que não é xale a valer.
Eu trago em ti o sentido
e não sei que hei de dizer.

Velha cadeira deixada
no canto da casa antiga,
quem dera ver lá sentada
qualquer alma minha amiga.

Fonte:
PESSOA, Fernando, Quadras ao gosto popular, Lisboa, Ática, 1994.

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Gislaine Canales (Glosando Delcy Canalles) II

MINHA ALMA CHORA...

MOTE:
Quando a lembrança me invade
a solidão, como agora,
cresce, no peito, a saudade
e a alma soluça e chora!
(Delcy Canalles)

GLOSA: 
Quando a lembrança me invade
tomando conta de mim,
eu perco a serenidade
e a tristeza não tem fim!

Quando chega, é uma agonia,
a solidão, como agora,
sinto a falta da alegria,
me angustia essa demora!

Relembro o amor e a amizade
que a nós dois um dia uniu...
Cresce, no peito, a saudade
depois que você partiu!

A minha noite é bem triste,
já não tenho mais aurora,
pois o meu eu não resiste
e a alma soluça e chora!
_______________________

Ó VELHICE!

MOTE:
Ó velhice, eu que temia
que chegasses de repente,
vivo em tua companhia,
sem notar que estás presente!
(Delcy Canalles)

GLOSA:
Ó velhice, eu que temia
que tinha medo de ti,
sem nem perder a alegria,
constatei que estás aqui!

Eu tinha um medo feroz
que chegasses, de repente,
matando tudo que em nós
nos faz bem e nos faz gente!

Parece até bruxaria,
pois chegaste, sem eu ver
vivo em tua companhia,
e é bom esse conviver!

Mas continuo a jornada
com alma de adolescente,
sigo, contigo, esta estrada
sem notar que estás presente!
__________________________

ANZÓIS DE ESPERANÇA

MOTE:
Em meus sonhos de criança,
desejei pescar a lua,
e pus anzóis de esperança
nas poças d’água da rua!
(Delcy Canalles)

GLOSA:
Em meus sonhos de criança,
nas nuvens eu caminhava...
Hoje guardo na lembrança
os sonhos, que, então, sonhava!

Nos meus sonhos, incontida
desejei pescar a lua,
porque, sem luar, a vida
fica triste, fica nua!

Dos ventos, fiz uma trança,
como linha de pescar,
e pus anzóis de esperança
quando as joguei no meu mar!

Sonhando eu faço meus versos,
relembrando a imagem tua,
eu vejo até universos
nas poças d’água da rua!

Fonte:
Gislaine Canales glosando Delcy Canalles. 
In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós.
 http://www.portalcen.org. Janeiro de 2004.

Contos e Lendas do Mundo (A Galinha Ruiva)

Era uma vez uma galinha ruiva, que morava com seus pintinhos numa fazenda. Um dia ela percebeu que o milho estava maduro, pronto para ser colhido e virar um bom alimento. A galinha ruiva teve a ideia de fazer um delicioso bolo de milho. Todos iam gostar! Era muito trabalho: ela precisava de bastante milho para o bolo. 

Quem podia ajudar a colher a espiga de milho no pé? Quem podia ajudar a debulhar todo aquele milho? Quem podia ajudar a moer o milho para fazer a farinha de milho para o bolo? Foi pensando nisso que a galinha ruiva encontrou seus amigos: 

– Quem pode me ajudar a colher o milho para fazer um delicioso bolo? 

– Eu é que não, disse o gato. Estou com muito sono. 

– Eu é que não, disse o cachorro. Estou muito ocupado. 

– Eu é que não, disse o porco. Acabei de almoçar. 

– Eu é que não, disse a vaca. Está na hora de brincar lá fora. 

Todo mundo disse não. Então, a galinha ruiva foi preparar tudo sozinha: colheu as espigas, debulhou o milho, moeu a farinha, preparou o bolo e colocou no forno. Quando o bolo ficou pronto … Aquele cheirinho bom de bolo foi fazendo os amigos se chegarem. Todos ficaram com água na boca. Então a galinha ruiva disse: 

– Quem foi que me ajudou a colher o milho, preparar o milho, para fazer o bolo? 

Todos ficaram bem quietinhos. ( Ninguém tinha ajudado.) 

– Então quem vai comer o delicioso bolo de milho sou eu e meus pintinhos, apenas. Vocês podem continuar a descansar olhando. 

E assim foi: a galinha e seus pintinhos aproveitaram a festa, e nenhum dos preguiçosos foi convidado.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Lia-Rosa Reuse (Trovas & Poemas)

TROVAS
1
A beleza é a cortina
da dura realidade
para a qual não há vacina
salvo a solidariedade.
2
Abro todas as cortinas
do meu ser à vida plena:
um dia esgotam-se as minas
desta passagem terrena.
3
Aquele galo imponente
foi tão gracioso pintinho;
morreu na rinha inclemente,
longe dos seus e sem ninho.
4
Aqueles céus estrelados
que viam nossos avós
diante das casas, sentados,
são só sonhos para nós
5
Brincando alegres nos mares,
sem roupas e bem juntinhos,
ante todos os olhares
nadavam os dois golfinhos!
6
Cada instante é a vidraça
pela qual podemos ver
que, forma física ou raça,
não é a essência do Ser.
7
Cada ser é gota d’água
que faz os mares e avança;
é Deus que evitando a mágoa
de todos, dá sua lança.
8
Caminhava solitário
pela estrada inexorável
o tempo com seu rosário
de almas, pobre miserável.
9
Cobre o mundo uma cortina
que exibe a palavra PAZ
porém qual é mesmo a sina
que se encontra por detrás?
10
Como é imenso teu valor
dentro do grande universo,
de toda a alegria ou dor
sabe retirar um verso.
11
Como explicar a beleza
que vai brotar de um poema?
É mistério, singeleza,
é o autor em seu dilema.
12
Como explicar a poesia
que nasce no coração?
É tristeza, é alegria,
é prece e também canção.
13
Como posso ver beleza
sem sentir no coração
toda a mágoa e a tristeza
daquele que não tem pão?
14
Como saber se é urgente
de verdade o que queremos
quando tanta, tanta gente
nada tem do que nós temos?
15
Convidou-me uma baleia
pra ver o fundo do mar
onde estava a Lua Cheia
em busca do verbo Amar.
16
Do outro lado da vidraça
a força da natureza,
maltratada por fumaça
defende sua beleza.
17
Ela amava a descoberta
do cosmos, filosofia.
Descobriu com mente aberta,
ser cortina que o escondia.
18
Era luz, era poesia,
era carinho e ternura,
era fonte de alegria:
minha infância de candura.
19
Infeliz quem fecha a porta
ao triste que tanto chora,
nele Deus vê quem se importa
com Ele e então vai-se embora.
20
Janela aberta, vidraça
levantada é coisa antiga.
O que o progresso estilhaça,
a natureza mendiga.
21
Menina se apaixonou
por moço belo, maduro,
que, num coração, traçou
seus nomes num largo muro.
22
Mergulhado na harmonia,
o bom coração transporta
como terna sinfonia
quem procura sua porta.
23
Nas profundezas do mar
cantam tímidas sereias,
suas vozes ao luar
são sinfonia na areia.
24
Nas terras como nas águas
o Amor escreveu só ‘Paz’,
a inveja jogou-lhe tábuas
acrescentando  “Aqui jaz” .
25
Os namorados à porta
da cozinha conversavam
e, fugindo para a horta,
escondidos se beijavam.
26
Os noivos diante da torta
de casamento murmuram
que se abre enfim a porta
dos desejos que os torturam.
27
O Sol brilha sobre a Terra,
mira-se em cada vidraça,
onde o homem faz a guerra
sua luz se despedaça.
28
Pareciam meus amigos
enquanto a sorte brilhou.
Quando chegaram perigos
quem é que não me deixou?
29
Passou por mim a beleza,
com um beijo me tocou,
trouxe de elogios riqueza,
mas não mudou o que sou.
30
Por favor não tenha inveja
do talento que o outro tem;
descubra o seu e então seja
tal qual é, como ninguém.
31
Quando desabrocha a flor
perfumada de beleza,
é da semente o valor
que oferece a natureza.
32
Quando escrevo minha trova
minha estrela me seduz,
me ilumina, me renova
e então sou apenas luz.
33
Quando o verde é a cortina
que abriga o bom animal,
se algum homem a elimina,
planta ali seu próprio mal.
34
Somos todos animais;
sê modesto, nunca esquece.
Somos só uma espécie a mais
que no universo envelhece.
35
Tenha uma alma transparente
como a límpida vidraça,
que seu coração e mente
mostrem caráter sem jaça.
36
Todos passam pela porta
da justiça e da clemência,
quando declarada morta
esta vida de aparência.
37
Trem da vida vai passando,
na fumaça do vapor,
pelos trilhos vai mostrando
do carvão todo valor.
38
Tu, soldado valoroso,
vens voltando das batalhas
de uniforme tão formoso
e o coração em migalhas.
39
Veja como se comporta
cada ser na natureza:
cada detalhe é uma porta
bem aberta à profundeza.
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POEMAS

COMO SEMPRE PRA SEMPRE

Meu adeus sobrevoa um canteiro de pássaros
e saio ternamente dos fachos dos faróis
de que se vale o céu pra indicar-me a chegada
junto aos meus exalando perfumes do nevoeiro.

Sinto a felicidade dos espíritos ébrios
festejando o apogeu dos momentos bizarros
onde as macias carnes da terra preparam
a doçura de um leito de nuvens ao acaso.

Minhas pombas, meus peixes, coelhos e canários
deslizam-me nas mãos úmidas dos serenos
misteriosos desta viagem sem mala.

Meus gatos meus cães, meus amores, meus pais
flutuando ao redor recebem-me contentes:
desde sempre estivemos juntos nesta paz.

O ACORDEÃO DAS NOITES

Fraco lampião clareia a avenida onde 
seres azuis e rosa tocam acordeão 
e outros bege claro resmungam canções 
tiradas de planetas longínquos, perdidos. 

Ninguém creria nesta paisagem tão louca. 
Cada estrela encantada porém diz : \"Cantemos ! 
pois se o acordeão toca o fundo da alma, 
vamos acompanhá-lo pelas ruas do céu.\" 

O lampião chora um suor bonito, luminoso 
e a Lua lá do alto do céu é quimera 
do universo das nostalgias de romance. 

As noites do acordeão não estarão perdidas: 
cada nuvem terá bebido gotas delas 
para os futuros copos da melancolia.

AMANHÃ

Hoje é o amanhã daquilo que era ontem :
realidade dos sonhos mais belos e santos,
a cor e o sabor do mais raro dos vinhos,
momento encantador de uma profunda prece !
Hoje é o amanhã daquilo que era ontem :
fracasso, sofrimento, a maior das saudades,
a desorientação com gosto e cor de sangue,
repentino mergulho na pior das misérias !

Amanhã será hoje dos sonhos presentes :
certamente da vida a mais preciosa tela
onde assobiaremos um claro refrão !

Reencontraremos a via dos tempos todos
na qual sempre estivemos sem portanto ver :
seremos afinal feliz cinza no ar !

SENSIBILIDADE

Eis-me aqui aborrecida questionando o infinito
em tudo, estando em casa sem minha família,
tendo ao ouvido só gritos da minha dor,
procurando no mundo ao menos um amigo.

Tendo perdido seres amados de minha vida:
meus pais, amigos e o poeta de um idílio,
sinto-me nesta terra apenas uma ilha
desejando partir para o bom paraíso !

Sumindo cada dia perdida no abandono,
só conservando dos momentos de alegria
uma gatinha preta que me lambe as lágrimas :

dos sonhos de um autor sendo a feliz senhora,
da existência eu espero mergulhada em silêncio
algo sensível, doce, à minh’alma poetisa.

Fontes:
http://paginas.terra.com.br/arte/reuse/
– União Brasileira de Trovadores de Porto Alegre. Milton S. De Souza (editor). Livro de Trovas de Alice Brandão e Lia Rosa. Coleção Terra e Céu vol. XCIX. Porto Alegre/RS: Textocerto, 2016.

Lia Rosa Reuse (1947 – 2011)

Lia-Rosa Reuse nasceu em Caxias do Sul/RS, em 1947, filha de José Albino Reuse, Agente e Tesoureiro dos Correios e Telégrafos durante muitos anos e Verginia Botini Reuse, Auxiliar de Tesouraria, pelo que morou grande parte da sua vida no respectivo prédio, sendo conhecida como "A Menina dos Correios". 
Aos dois anos aprendeu a ler sozinha e pouco mais tarde traçava suas páginas dedicadas a seus pais, suas bonecas, a um gatinho que lhe fora furtado.
Foi professora de Francês na Aliança Francesa, de várias matérias em escolas estaduais e particulares; responsável pelas provas vestibulares de Francês da Universidade de Caxias do Sul onde o lecionou no Curso de Letras e de Filosofia do Direito no Curso de Ciências Jurídicas. Conquistou os seguintes diplomas de estudos superiores : Língua e Literatura Francesas - Universidade de Nancy - França ; Letras-Francês, Ciências Jurídicas e Sociais, Filosofia, Psicologia. Fez estudos nas áreas de Música, Jornalismo, Especialização em Filosofia e Teologia. Foi redatora do espaço da Ordem dos Advogados do Brasil no jornal Pioneiro, produtora da revista bilíngue ( Francês/Português ) LeReLeR nos dois anos e meio em que circulou
Teve formação superior com estudos desenvolvidos no Brasil e na França; graduada em Letras (Português e Francês), Ciências Jurídicas e Sociais, Filosofia e Psicologia. Como Advogada Criminalista atuou no Tribunal do Júri de Caxias do Sul.
É autora da obra “A Estrela de Daniel”, lançada em 1997, dos romances “Princesinha da Casa Verde”, em 2006, e “A Menina dos Correios”; de “Ninho de Anjos”/ poesias, em 2008, e dos seguintes livros bilingues ( de sonetos em Francês traduzidos para o Português pela autora): Pétales de Lumière (Pétalas de Luz), Mon Corps – Une Pensée (Meu Corpo - Um Amor Perfeito) , Chant de Siréne au Bord du Fantastique (Canto de Sereia á Beira do Fantástico). Em 1997 estabeleceu o primeiro contato com a ACL participando de seu I Concurso Literário com a crônica "Os Girassóis de São Pelegrino" que se classificou em 1º lugar.
Participou de diversas antologias no Brasil e no exterior, em português e em francês. Tem obras individuais, em poesia e em prosa, publicadas em ambos idiomas. Foi membro de Academia Virtual Brasileira de Letras, da Academia Caxiense de Letras-RS e da União Brasileira de Trovadores Seção Caxias do Sul.
Faleceu em 2011, aos 64 anos de idade, na mesma cidade em que nasceu.

Fontes:
http://paginas.terra.com.br/arte/reuse/
– União Brasileira de Trovadores de Porto Alegre. Milton S. De Souza (editor). Livro de Trovas de Alice Brandão e Lia Rosa. Coleção Terra e Céu vol. XCIX. Porto Alegre/RS: Textocerto, 2016.

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 53 a 56


 53 — COXILHAS, LANCEIROS, ROMANCE E... PAZ!

Porto alegre caiu em poder dos legalistas. Fizemos o nosso quartel general perto de Viamão. O nosso chefe supremo era o Cel. Bento Gonçalves da Silva, uma figura impressionante. Lutei muitas vezes ao lado dele. 

Não me esqueço daquele dia... A nossa tropa ia atravessando o Rio Jacuí. Um pensamento me veio à cabeça: “Se os inimigos nos atacam agora, estamos perdidos...” Mal eu pensara isto, ouvimos um tiroteio. As balas caíram a meu redor, produzindo n’água um ruído líquido e mole. O pânico se apoderou de nossa gente. Bento Gonçalves gritava, procurando conter seus soldados. O combate se travou desigual para a Ilha do Fanfa. Bento Gonçalves foi aprisionado. Escapei por um triz. Horas depois me vi no campo aberto, molhado como um pinto, tiritando (era outubro e ainda fazia frio) e sentindo uma grande saudade de meu quarto de estudante.

Reuni-me de novo aos revolucionários. Fiquei sabendo que Bento Gonçalves seria levado prisioneiro para a Corte. Mas a guerra continuou. Havia um guerreiro que até hoje nem eu nem ninguém conseguiu compreender. Chamava-se o Cel. Bento Manuel Ribeiro. Ora estava de nosso lado; ora passava para o lado dos legalistas. Como era homem valente, astuto e conhecedor da arte da guerra, nenhum dos dois exércitos o recusava. Mas não vamos falar mais nele. O assunto é perigoso, como a Batalha de Ituzaingó e a traição de Calabar.

Obtivemos uma vitória em Caçapava, outra em Triunfo e cercamos Porto Alegre. Bento Gonçalves, bem como nos romances de Alexandre Dumas Pai (que naquele tempo tinha exatamente 35 anos de idade) fugiu do Forte do Mar, onde estava preso, e veio reunir-se à sua gente. Assumiu a Presidência da República Rio-Grandense e transferiu a capital para Caçapava.

Outro general importante era Davi Canabarro. Havia também Giuseppe Garibaldi, um italiano amigo de aventuras, que lutou ao lado dos revolucionários. Casou-se com uma brasileira, Anita, que o acompanhava nos combates, passando ambos para a História. (Só quem não passou fui eu... Em compensação, estou vivo.)

Lembro-me bem do seguinte quadro. Anoitecer. Nossa cavalaria corre. É a carga final. Os legalistas formam o quadrado. Esperam-nos de baioneta armada, pois suas balas já se acabaram. Vamos de lança estendida... O barulho das patas dos cavalos parece o pipocar dos tiroteios. Eu vou como num sonho maluco. Tonto, sentindo um frio esquisito na boca do estômago. O horizonte está vermelho, como se o sangue de todos os guerreiros mortos tivesse tingido o céu. Procotó-procotó-procotó... Os cavalos voam. Gritos. Urros. E o quadrado crescendo diante de nossos olhos, crescendo... O vento faz ondular furiosamente os nossos palas. As baionetas... E de repente o choque. Sinto uma dor aguda.

Perco os sentidos. Quando acordo estou num hospital de Caçapava. Convalescença. Deram-me notícias da Corte. O Barão de Caxias pacificara o Maranhão. Abafara uma revolta em São Paulo. Outra em Minas Gerais. Voltava o Imperador agora os olhos para o Sul. Era preciso dominar o Rio Grande.

Por esse tempo aconteceu outra coisa curiosa. A Inglaterra fazia o papel de “polícia dos mares” e votou uma lei, segundo a qual ficavam sujeitos ao julgamento dos tribunais ingleses os cidadãos brasileiros que negociassem com escravos. Recebi esta noticia com certa alegria. Era um sinal de que em breve poderíamos esperar uma lei brasileira proibindo a compra e a venda de negros. 

Saí do hospital curado. Tomei parte em alguns combates mais. O Barão de Caxias foi encarregado de pacificar o Rio Grande. Por esse tempo Bento Manuel voltava de seu exílio voluntário para lutar ao lado dos legalistas. Sofremos uma série de derrotas.

A 1.° de março de 1845 era assinada a paz. Já era tempo. Eu estava cansado. Tinha lutado durante quase dez anos. Esquecera os livros lidos, perdera o gosto pela poesia. Estava com o corpo cheio de cicatrizes e a alma amargurada. Aquela guerra entre irmãos só agora me aparecia com todo o seu pavor. Jurei a mim mesmo que não tomaria mais parte em revoluções. Uma noite Anchieta me apareceu em sonhos e pela expressão de seu rosto vi que ele não estava contente comigo.

54 — LEVAM-ME PARA O HOSPÍCIO

Fui morar em Porto Alegre, onde consegui emprego numa Soja. Às vezes eu contemplava o Guaíba e sentia saudades do mar. O tempo passava. Eu me lembrava do pajé. E me apalpava, me olhava aos espelhos e não podia compreender o mistério... A verdade era que eu estava vivo e me recordava de coisas passadas havia duzentos e muitos anos.

Uma noite encontrava-me eu em visita na casa de uma família amiga. Falava-se na última revolução. Alguém contou que rebentara em Pernambuco uma revolução (a dos Praieiros) que fora dominada depois de alguns meses. Um outro recordou episódios de nossa História, coisa aprendida em livros. Fui ficando entusiasmado de tal forma que dentro em breve tomei conta da palestra. Contei do meu encontro com Anchieta; da minha vida nas selvas; das bandeiras; da guerra contra os holandeses; da vida no quilombo dos Palmares; da fundação do Rio de Janeiro...

Todos me ouviram em silêncio. Quando terminei a narrativa vi olhos desconfiados a me fitarem. O dono da casa se ergueu, bateu no meu ombro e disse:

— Eu não sabia que o meu amigo tinha veia de romancista. A história está bem arranjada. Por que não escreve isso?

Fiquei indignado. Mas eu estava falando a verdade, a pura verdade! Estabeleceu-se discussão. Perdi a linha. Exaltei-me. As senhoras se retiraram da sala, temendo um conflito.

Sabem o resultado? Alguns homens me dominaram, me amarraram e me levaram à presença dum médico. Este me interrogou. De início pediu a data e o lugar do meu nascimento. Respondi:

— Nasci numa taba tupinambá antes do descobrimento do Brasil.

O médico olhou para mim, pensou um instante e depois disse para os homens que me cercavam:

— Está doido varrido. Podem levá-lo.

Fui internado num hospício. Parece impossível. Passei lá quase dois anos. Pedi tinta, pena e papel e comecei a escrever as minhas memórias. Se não fora esse entretimento eu não teria aguentado aquela prisão horrenda e a companhia perigosa dos loucos.

Narrei com todos os pormenores (muito melhor do que estou fazendo agora) a minha vida, desde a taba até aquela data. 0 manuscrito ia crescendo: era uma pilha de meio metro de altura.

Um dia um louco se aproximou dele e prendeu-lhe fogo com a chama duma vela. Quando eu vi o fogo havia consumido os meus papéis e passava para o lençol da cama. Dentro em pouco o incêndio se generalizava. Soaram os sinos de alarma. Os loucos começaram a cantar. Os guardas corriam dum lado para outro. Abriram as nossas celas e as portas do hospício. Aproveitei a confusão e fugi.

55 — VOLUNTÁRIO NO PRATA

Chamavam voluntários para o exército. Alistei-me. Fui aceito. Metido na farda me olhei um dia nas águas duma lagoa e disse para mim mesmo:

“Qual, Tibicuera! Tu não tens cura. O teu destino é andar às voltas com guerras.”

Mas a verdade era que como soldado eu me livrava do perigo de voltar para o hospício. Durante vários meses levei vida boa. Mas um dia tivemos ordem de marchar. O exército brasileiro ia invadir a República Oriental do Uruguai. Havia lá uma complicação tremenda. Oribe era o presidente. Mas Rivera fizera uma revolução, derrubara-o e tomara conta do governo. João Manuel de Rosas, ditador de Buenos Aires, arregalou o olho para a Banda Oriental. Podia tomar conta dela. Também não era impossível abocanhar o Rio Grande do Sul. Então ele seria o ditador de um país muito grande e poderoso. Para realizar seu sonho, apoiou Oribe, que cercou Montevidéu. Corriam perigo as fronteiras do Brasil. E por isso íamos nós para lá.

Confesso que foi bem desagradável aquela campanha. Passamos muito trabalho lutando em terra estrangeira. Mas obrigamos Oribe a levantar o cerco. Avançamos sobre Buenos Aires. Vencemos Rosas em Caseros sob o comando do gaúcho Marques de Sousa.

Voltei da campanha, estropiado. E fazendo projetos para mudar de vida. Estava resolvido a abandonar as guerras.

56 - ENTRE GALINHAS E PÉS DE MILHO...
Foi por isso que quando em 1864 se falou numa nova expedição à República Orientai, eu preferi ficar numa granja que tinha arrendado. Achei mais agradável plantar milho e criar galinhas do que ir matar gente na república vizinha. Entretanto fiquei curioso por saber o que se estava passando. Os jornais andavam cheios de notícias em torno do conflito. Os partidos que lutavam do outro lado da fronteira, repetidamente praticavam violências contra cidadãos brasileiros. Todas as reclamações diplomáticas tinham sido em vão. A anarquia continuava no Uruguai. Guerreavam-se os dois partidos rivais. Os blancos, que eram a gente de Oribe e os colorados, que eram os homens de D. Venâncio Flores. As forças brasileiras invadiram o Uruguai, uniram-se aos colorados, sitiaram Montevidéu e entraram nesta cidade, entregando o governo ao Gen. Flores (Não confundir com o Gen. Flores da Cunha.)

Acompanhei a guerra pelos jornais. O meu milharal crescia. As galinhas engordavam. Eu tinha comprado alguns livros e era de novo feliz com os meus poetas, os meus romancistas e os meus filósofos. Mas...

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937. 

terça-feira, 17 de abril de 2018

Trova 291 - Joaquim Carlos (Nova Friburgo/RJ)

Fonte: Facebook (Bonde Trova)

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) II


CONTRASTE

Tu és feliz, a vida é um paraíso,
onde há paz, ventura em profusão,
e a graça singular do teu sorriso,
– símbolo da Beleza e Perfeição!

Mas eu sou infeliz, pois já diviso
na luz do teu olhar, ingratidão,
e sem querer eu sinto que preciso
esquecer-te e viver na solidão.

Julgara que tu fosses, ó querida,
meu segredo, meu sonho, minha vida,
minha eviterna e santa inspiração…

Mas tu és assassina do meu sonho,
vives feliz e eu vivo tão tristonho,
sentindo que esta vida é uma ilusão!

SEM FRONTEIRAS 

Viajo com as nuvens. Sou poeta. 
Gosto de dar vazão ao pensamento. 
Sou capaz de chegar ao firmamento 
e voltar para a terra como atleta. 

Na terra, pego a minha bicicleta, 
vou pedalando mesmo contra o vento, 
enquanto os versos nascem no acalento 
de uma paixão suave e não secreta. 

Não há fronteiras, pois o amor é brando, 
poetas são assim, vivem sonhando 
com um mundo feliz e mais humano. 

Não importa se a vida é muito breve, 
o amor é intenso e o fardo fica leve 
quando o perdão se torna soberano.

PREDESTINADO

Passo a passo, vivendo solitário,
– predestinado para o sofrimento,
vou subindo o meu íngreme calvário
sob o peso da mágoa e do tormento.

R como um sonhador,  no mundo vário,
procuro paz, amor, contentamento,
mas no meu tortuoso itinerário
só encontro amargura e fingimento.

E a esperança da vida vai passando,
e eu descrente de tudo vou ficando,
na solidão que o mundo me ofertou;

mas a poesia, doce companheira,
está sempre comigo a vida inteira,
dando-me a paz que a sorte me negou!

GARIMPANDO A FELICIDADE

Vou garimpando pela vida afora
a lição de Humildade que conforta
e traz ao coração a Luz da aurora,
mesmo que a crença já pareça morta.

De solo em solo, busco sem demora
o cascalho do Amor que aduba a horta.
Busco a pedra da Fé, que revigora
e prepara o caminho abrindo a porta.

Não quero, meu amigo, andar a esmo,
minha sorte depende de mim mesmo,
que a vida pode ser melhor assim.

E se meus passos forem tão errantes,
buscando joias, pedras, diamantes,
- não haverá felicidade em mim!

MEU VERSO

Meu verso vem do Nordeste, 
vem do roçado, vem do Sertão, 
vem das veredas lá do agreste, 
vem das cacimbas e dos grotões. 

Meu verso vem dos garimpos, 
das catras dos garimpeiros, 
da coragem dos vaqueiros 
vestidos no seu gibão, 
vem do sereno da noite 
do perfume do Sertão. 

Meu verso simples, sem medo, 
vem do sítio, do rochedo, 
vem do povo do Sertão, 
que com a luz do arrebol 
trabalha de sol a sol 
para ganhar o seu pão. 

Vem da Serra do Carranca 
onde a beleza não manca, 
e a onça faz sentinela. 
Da Serra da Mangabeira 
onde a Lua vem brejeira 
tecer a renda mais bela. 

Meu verso vem da goiaba, 
do puçá e da mangaba, 
da seriguela e do mamão. 
Da pinha e da acerola, 
da atemóia e graviola 
plantadas no roçadão. 

Nasceu na bela Umbaúba, 
Boa Vista, Bela Sombra, 
na Lagoa de Prudente, 
na Chiquita e no Vanique, 
onde há muito xique-xique 
e o sol parece mais quente. 

Brejões, Lagoa do Barro, 
Santo Antonio, Traçadal, 
Olho D´Água, Rio Verde, 
Baixa dos Marques, Coxim, 
Ibipetum, depois Pintada, 
onde passa a velha estrada, 
Zequinha e Lamarca morreram. 

Sodrelândia, Deus me Livre, 
Pé de Serra, Poço da Areia, 
Riacho das Telhas também. 
Poço do Cavalo, Matinha, 
Mata do Evaristo e Veríssimo, 
Olhodaguinha e Ipupiara. 

Meu verso nasceu no mato, 
não tem brilho, nem ornato, 
vem do Morro do Mocó, 
da Serra do Sincorá, 
vem do morro do Araçá, 
nasceu pobre e vive só...

Fontes: 
- Aparício Fernandes (organizador). Poetas do Brasil. 
Anuário de 1980. 3o volume. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1980.
- Filemon F. Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011