quinta-feira, 17 de maio de 2018

Nilto Maciel (O Egoísmo de Newton Appletree)

Não sei se nasci de outro ser, se surgi do nada, se me autocriei. Porque não tenho nenhuma história, porque sou único. Já vivi entre homens, macacos, pássaros, peixes, insetos e a nenhuma dessas espécies pertenço, apesar da aparência física com os primeiros. Repenso sempre a hipótese de ter sido o homem o meu criador. Mas com ele não me entendi.

Minha primeira amarga lembrança é a de uma prisão e, preso, eu só pensava em quem me poderia ter colocado ali. Revoltava-me viver cercado por quatro paredes, sozinho e sem qualquer comunicação com outros seres. Quem seriam meus carcereiros, os construtores da prisão? Onde estariam? Por que não me apareciam, até para zombarem de mim?

De tanto questionar minha situação, acabei discutindo minha origem. Eu deveria ter um criador. Não poderia subitamente ter surgido dentro de uma sala. Quem edificara aquelas paredes? Antes de minha existência já elas haviam sido inventadas. E seus inventores me seriam também anteriores. Possivelmente semelhantes a mim. E eu imaginei o homem. Para mais uma vez rebelar-me. Por que manterem-me preso? Arrombei uma porta e fugi. Nada ao redor me indicava a existência do tal homem. Nem de outro qualquer ser. E caminhei feito um desesperado. Queria encontrar vida, seres como eu ou mesmo diferentes de mim. 

De repente meu primeiro grande susto. Uma cidade se estendia diante de meus olhos e nas ruas seres semelhantes a mim iam e vinham. Seriam aqueles os meus criadores e inimigos? Aproximei-me devagar, com medo de ser posto novamente na prisão. Recostei-me a uma parede, todo olhos e ouvidos. Pronto a correr à primeira ameaça, reagir, enfrentar meus tiranos, matá-los, se preciso. No entanto, o primeiro que por mim passou sorriu-me, e era bela. Só podia ser a mulher de minha idealização primitiva. E eu me senti homem, por instantes. Porque um minuto depois passou por mim um homem e eu senti não ser ele meu semelhante. Alguma coisa me dizia ser ele diferente de mim, porque tudo nele semelhava o ser imaginado na prisão. E aquele ser era apenas meu criador e nunca meu semelhante.

Apesar disso, tranquilizei-me. Se eles me quisessem mal, já teriam me agarrado e conduzido de volta à prisão. E todos me tratavam com cordialidade ou indiferença.

Decidi aventurar-me a andar entre eles, olhá-los de frente, ouvi-los, aprender-lhes os hábitos, conhecê-los de perto, enfim. Fiz curtas amizades e nenhum deles suspeitou de nada. Trataram-me como se homem eu fosse. Alguns me contaram pedaços de suas vidas, falaram-me de seus parentes e amigos, de suas atividades e eu concluí quase definitivamente que entre nós havia um grande fosso.

Todos tinham um passado, um nascimento, um pai e uma mãe, parentes, amigos, colegas, todo um complemento de si mesmos. Eu não tinha nada disso. Era só, único. A menos que sofresse de amnésia. Procurei um médico. Ele se estarreceu e eu tirei a conclusão definitiva de não ser homem.

Vivi dias de profunda tensão. Não entendia nada ou entendia tudo. Imaginava coisas que via logo a seguir. Nasci poliglota, o que me permitiu poder me comunicar facilmente com quaisquer homens. Quando perguntaram qual o meu estado civil, respondi: solteiro de nascença e para sempre. Meu interlocutor gargalhou, achou espirituosa a resposta. Eu senti tédio.

Sofri vexames quando me perguntaram nome, data de nascimento, nacionalidade, grau de instrução, profissão, simpatias políticas, etc. “Chamo-me Newton Appletree, nasci em 30 de janeiro de 1945, em New York, formei-me em engenharia e adoro democracia.”

Eu tinha medo de ser julgado um bandido foragido da prisão. Ou um espião russo.

Quando li os livros de Daniken, temi ser um deus, um extraterreno enviado à Terra em missão especial e que dela me houvesse esquecido. Temi sobretudo ser visto e tratado como tal.

Assustou-me depois ser uma espécie de deus, um ser eterno.

Deve ser horrível a eternidade. A intemporalidade. Uma das primeiras coisas que me preocuparam foi o tempo. Contar meu tempo de existência. Com isso passei a temer o fim, a desintegração, a morte, o não-ser mais.

Pelo aspecto físico, terei uns trinta anos de idade, mas, como não nasci, talvez tenha apenas um ano, se contar minha existência a partir do momento em que me conscientizei de mim. Certamente já me gastei alguma coisa, algumas partículas já se foram de mim. Meu funcionamento, meu mecanismo (a alma, o espírito, a psique dos homens ou dos outros seres animados da natureza terrena) já devem andar defeituosos.

Os homens, meus criadores, são meu deus, segundo sua linguagem, que foi a que me deram. Mas de mim não nascerá nada físico, material, orgânico. Não deixarei descendentes, nem trago ascendentes. Sou simplesmente uma criatura humana. Não disponho de meios para descobrir por quem e como fui criado. Para quê? Certamente para servir aos meus criadores, como escravo. Mas eles estão enganados – não serei escravo. Não aceito a finalidade para que fui criado. Viverei só e para mim mesmo somente…

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). 
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 2


Olivaldo Junior (Buquê de Trovas Temáticas)


POETA

No jardim da bela infância,
um poeta encontra o verso
e, sem raiva nem ganância,
faz da história um universo!...

- Entre flores, sob espinhos,
com silêncios na garganta,
um poeta enfeita os ninhos
do pardal que se agiganta.

Um poeta é muito triste,
não importa quanto cante...
Mas, no fundo, só existe
se a tristeza é sua amante.

- Cada verso que se doma
no sem-fim da escuridão,
faz da forma uma redoma
em que vibra um coração...

Sou poeta, não me canso
desse 'ofício' de compor!...
Umas vezes, todo manso;
outras, fera, mas em flor...

- Ser poeta me faz pleno,
primavera em seu verão!...
Mesmo ínfimo, pequeno,
sou maior que a solidão.

Escrever é minha forma
de falar de humanidade;
da Poesia, sigo a norma;
da paixão, a eternidade...

MÉDICO

Do minuto em que chegamos
ao segundo em que partimos,
ao Doutor nos entregamos
toda vez que "sucumbimos"...

Abra a boca e diga: Ah!
Depois diga trinta e três...
Assim, "livre" logo está
do checkup, seu freguês...

Da brancura do jaleco,
da doçura do sorriso,
o bom médico faz eco
à saúde que preciso.

Salvar vidas sem pensar,
consultar sem distinção...
Se um doente não pagar,
ser humilde na "missão".

Na Capela do Rosário,
a mulher, em orações,
roga ao médico diário
que Ele cure os corações...

Fonte: Trovas enviadas pelo Autor

terça-feira, 15 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 1


Trovadores de Ontem e de Hoje n.1


Uma Trova de Curitiba/PR
Nei Garcez

Sinto Deus em toda escala...
Na vida, nos pensamentos,
no cheiro que a terra exala
entre a chuva e o próprio vento!

Uma Trova Hispânica da Venezuela
Carlos Rodriguez Sanchez

Una sonrisa sincera
siembra en tu bello vergel
y estará, por donde quiera,
multiplicándose en él.

Uma Trova do Rio de Janeiro/RJ
Sônia Sobreira

De estrelas toda bordada,
porta aberta para a rua,
a tapera abandonada
abriga os raios da lua.

Trovadores que deixaram Saudades
Anis Murad Lamar
Rio de Janeiro (1904 – 1962)

A minha alma não se cansa,
- embora desiludida,
de acalentar a esperança,
que é o acalanto da vida.

Maria Calil Zambon
Novo Horizonte/SP (1935 – 2012) Bandeirantes/PR

Em toda Mulher se vê:
o charme, o encanto, a alegria
e em todas elas há um quê
da doçura de Maria!

Uma Trova Humorística de Maringá/PR
A. A. de Assis

Melhor idade?… Bobagem…
lorota antiga… falácia…
– Velhice só traz vantagem
para o dono da farmácia!

Uma Trova de São José dos Campos/SP
Amilton Maciel Monteiro

A noiva diz que "ele aceita"
e vai se casar feliz,
porque está bem satisfeita:
achou o noivo que quis!

Uma Trova de Porto Alegre/RS
Delcy Canalles

Sobre um fio, numa  rua,
brincavam gato e criança,
sob  a  luz do Sol  ou  Lua,
fantasiados de esperança!

Uma Trova de Fortaleza/CE
Francisco José Pessoa

Quem faz da vida um disfarce
e finge viver a esmo,
de tudo pode safar-se,
mas não engana a si mesmo.

Uma Trova Saudosa de Natal/RN
José Lucas de Barros

Buscar a verdade, perto,
olho a olho, frente a frente,
parece o jeito mais certo
de se falar com quem mente.

Uma Trova de Caicó/RN
Prof. Garcia

Aos  ritos do amor se entrega
um casal apaixonado,
que até nos olhos carrega
o silêncio do pecado!

Uma Trova de Bandeirantes/PR
Lucília A. Trindade Decarli

Não sei se todos ponderam
a troca que o livro traz…
Grandes homens o fizeram,
grandes homens ele faz!

Uma Trova de São Paulo/SP
Therezinha Dieguez Brisolla

Felicidade?… É a que eu tenho
quando na vida ajo assim:
– Quero alguém feliz… me empenho…
e esqueço um pouco de mim.

Uma Trova Hispânica da Argentina
Maria Cristina Fervier

Palabras aún en distancia
son vida para quien ama,
pueden saciarnos el ansia
amándonos con su llama.

Uma Trova de Magé/RJ
Maria Madalena Ferreira

Felicidade! – Eu te estudo
e não decifro a “charada”:
– Uns – infelizes com tudo…
– Outros – felizes sem nada!!!

Uma Trova de Pitangui/MG
José Antonio de Freitas

Para ter felicidade
e ser, de fato, feliz,
aprenda a simplicidade
de São Francisco de Assis!

Uma Trova Estudantil, de Bandeirantes/PR
Jennifer Caroline Correia

Em busca do meu futuro,
descobri o seu coração.
Este amor, tão prematuro,
tirou-me da solidão.

Uma Trova de Santa Juliana/MG
Dáguima Verônica de Oliveira

Não se compra, tendo em vista
que não se vende alegria;
felicidade é conquista
que se faz no dia a dia.
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Cascata de Trovas de Mogi-Guaçu/SP
Olivaldo Junior

TROVAS PARA OS "ANTIGOS"
Nas "histórias da vovó",
o netinho embala os sonhos,
embalando, sem ter dó,
seus enredos mais risonhos.

Cada estrela na calçada,
logo após a noite fria,
se disfarça de alvorada
no clarão do novo dia.

As meninas contam flores
no jardim de nunca mais;
cada flor tem muitas cores,
mas a roxa tinge os "ais".

Solidão ficou velhinha,
nunca mais saiu de casa;
certa noite, na cozinha,
pôs-se em pé e criou asa.

Entre as faces que já tive,
uma delas me entristece:
a que finge que inda vive
neste rosto que envelhece.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Augusto Gil (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.3) II


CARTA A UM RAPAZ SENTIMENTAL

<Um mover d'olhos brando e piedoso
Sem ver de quê; um riso brando e honesto
Quase forçado; um doce e humilde gesto
De qualquer alegria duvidoso
( )
Um encolhido ousar; uma brandura,
Um medo sem ter culpa; um ar sereno,
Um longo e obediente sofrimento.>
Camões

Num quente e perturbante fim de tarde,
Cujo magnético e profundo enlevo
Ainda agora em mim crepita e arde,
Como se fosse a tarde em que te escrevo,

Ergui os olhos distraidamente,
A ver se já brilhava alguma estrela
No concavo do céu opalescente
--E vi, numa varanda, os olhos dela...

Do episodio que acabo de contar-te
Tão simples, tão banal, que dá vontade,
Para lhe pôr um bocadinho d'arte,
De lhe roubar um pouco de verdade,

Foi que este amor espiritual nasceu,
Nasceu, cresceu e se tornou eterno...
Repara, amigo, como olhando o céu
A gente, ás vezes, pode achar o inferno.

Mas quem podia então adivinha-lo?
O olhar dessa mulher era tão lindo
Que deslumbrado me fiquei a olhal-o.
Descera a noite. A lua ia subindo...

Era lua cheia e, para mais, d'agosto;
Dava em toda a varanda. Assim, eu via
As formas portuguesas do seu rosto
Nitidamente, como á luz do dia.

E cá dentro de mim senti nascer
A dúvida, a incerteza, a hesitação
Sobre o que mais desejaria ser:
Se o noivo dela, se o primeiro irmão...

Uma estrela cadente reluziu
Por sobre as torres da vizinha igreja,
Pensei comigo: Deus o decidiu:
É minha noiva que Ele quer que seja.

Não dizia ventura, mas desgraça,
A claridade do sinal aéreo.
(Na mesma direção da igreja, passa
A rua que vai dar ao cemitério...)

Porém, como querendo agradecer-me
A decisão que atribuira a Deus,
Inclinou-se de leve para ver-me
E os doces olhos demorou nos meus.

Sob a caricia desse olhar cinzento,
Que ao abaixar-se parecia negro,
O coração que me batia lento,
Mudou o andamento para alegro.

Uma hora decorreu. Outras passaram.
Passaram, foram-se; e naquele enleio
Que tempo os nossos olhos conversaram!...
Estava a noite já em mais de meio.

Vinha dos montes uma brisa ardente.
O céu ganhara tons d'azul cobalto.
O luar caia silenciosamente.
Na sombra, os rouxinóis cantavam alto.

Arrependidos, ou então, cansados
De se fitarem com demora em mim,
Os seus olhos piedosos e sagrados
Ao dialogo d'amor puseram fim.

Desviara-os; e entre as pálpebras discretas,
Pousara-os nas mãos claras e pequenas,
Como se foram duas borboletas
Voando para duas açucenas.

Ergueu-se. O busto delicado e fino
Tinha os suaves, religiosos traços
Da Virgem num altar. Só o Menino
Faltava na doçura dos seus braços...

Num olhar impregnado de candura,
Disse-me adeus e recolheu. Depois...
A luminosa noite fez-se escura.
Calaram-se na sombra os rouxinóis.

Entrei em casa e quis dormir. Raiara
A madrugada sem que o conseguisse.
Quem um sonho tão límpido sonhara,
Inútil se tornava que dormisse...

Anos felizes neste amor gastei.
Vieram em seguida as horas más.
O que nelas sofri, o que passei,
Um dia, noutra carta, o saberás.

MÃOS FRIAS CORAÇÃO QUENTE

Dez da manhã. Vento da
serra. Trés graus negativos.


“Mãos frias, coração quente”!
Quanta vez isto dizias
Com o teu ar sorridente,
Apertando-me as mãos frias...

Agora decerto o tenho
Num braseiro, num vulcão.
O frio é tanto, é tamanho
Que a pena cai-me da mão...

Q'ria dizer-te o que penso
E o que faço e premedito,
Mas posso lá ser extenso
Com este frio maldito!

Tu perdoas certamente,
Tu não te zangas, pois não?
“Mãos frias, coração quente”
– Lá diz o velho rifão...

JOANINHA
A Mayer Garção

Descanse de quando em quando...
Passar assim toda a tarde
Sempre bordando, bordando,
Sem que um momento desista,
Até faz pena! Não lhe arde
Nem se lhe perturba a vista?...

Descanse de quando em quando...
Erga os olhos do bordado
E veja quem vai passando.
O trabalho alegra a gente,
Mas assim, tão aturado,
– Não lhe faz bem certamente.

Erga a carinha tranquila,
Erga esse rosto tão lindo
E veja os moços da vila
A passarem por aqui,
Uns descendo, outros subindo,
– E todos d'olhos em si...

Descanse de quando em quando
E veja se escolhe algum;
Já é tempo d'ir pensando
Em casar. Não é assim?...
Se não lhe agrada nenhum,
– Diga se gosta de mim.

Desde os começos do outono
Que eu a trago no sentido,
Não como, não tenho sono,
Tudo me dá ralação?
Quer-me para seu marido?
– Diga que sim ou que não...

Fonte:
Augusto Gil. Luar de Janeiro. Lisboa/Portugal: A Lanterna, 1909

Aparecido Raimundo de Souza (Havia Uma Ponte Lá Na Fronteira)

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Aparecido escreveu a Mini Série em 12 capítulos 
exibida na Rede Globo, "Ligações Perigosas"
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De calças curtas e pezinhos no chão, o nariz escorrendo um catarro amarelo e intermitente, o menino tentava voos ambiciosos com seu pequeno aviãozinho de matéria plástica. E conseguia. Em meio a um enorme jardim, se erguia imponente, um típico casarão provincial de paredes largas, com cerâmicas dispostas em simetria irrepreensível. Várias janelas e portas se destacavam pintadas de um amarelo muito vivo. Circundando a enorme construção, um muro alto feito de lajotas sem reboco, parecia absorver o tom mormacento da primavera.

Nesse paraíso, o garoto corria incessantemente de um extremo ao outro, puxando, quase aos trambolhões, o brinquedo preso ao barbante sujo e malcheiroso, desenhando, no ar, proezas cadenciadas como se participasse de uma dança repleta de ritmos alucinantes. Acima dele persistia um abafadiço queimoso e radiante, espalhando e derramando, sobre a cabecinha loira, um brilho majestosamente invulgar, cujo encantamento somente era percebido pela solidão mansa dos olhos sequiosos de Deus.

A alguns metros da porta da cozinha, uma puxada coberta por telhas coloniais acolhia os tanques de roupas, e a garagem, onde os empregados guardavam os carros, os caminhões e os tratores que vieram modernizar o cotidiano da fazenda. Um diminuto córrego ordenadamente cimentado empurrava, para adiante, as lavaduras do almoço, fazendo toda a água utilizada escorrer para um regueiro maior. Frontispício à entrada principal, um abacateiro enorme não ascendia a ímpetos genealógicos, embora suas galheiras, cobertas por pálida claridade, carregassem memórias centenárias de um pedaço de chão incrustado por uma cadeia de montanhas verdes salpicadas por espessas nuvens brancas. O grupo mais barulhento no comportamento do lugar vinha enfileirado por quatro cachorros que dominavam todos os arredores com seus aspectos espavoridos. Os vira-latas, na verdade, pareciam estranhas figuras se debatendo e se consumindo em coceiras, saltitando de um lado para outro, como almas penadas esmagando as folhas secas espalhadas por todo o terreiro. O silêncio também se quebrava em seu enfeitiçamento, quando as locomotivas, resfolegando furiosamente, sobressaiam cruzando, indo ou vindo, da capital, puxando uns cem fins de vagões carregados de minério de ferro.

No mais, predominava a natureza em seu melhor toque de realeza, resvalada por contornos harmoniosos e sutis. A se perder no horizonte, fora dos muros que protegiam o casarão, o cafezal em flor se misturava, num amplexo, às folhas verdes dos canaviais. Em grau paralelo, aformoseando a quinta, laranjais em flor concebiam um quadro à parte, incrivelmente belo e majestoso. 

E o guri, impertinente e fogoso, continuava rodopiando e saltando sem parar. De vez em quando passava o dedo pelo nariz melecado e cheio de sujeira e terra. Parecia não conhecer o cansaço. Em suas mãozinhas frágeis, a miniatura de um BOEING 737 se arrebentava feio em pancadas insistentes aqui e acolá. O barbante que o detinha, incrivelmente não enroscava nos ramos da vegetação espontânea. Parecia protegido por uma fada madrinha e sua varinha de condão encantada. O tempo, em paralelo, prosseguia numa lentidão estonteante. As horas, morosas e melancólicas, arrastavam os ponteiros, obstruindo a chegada da tarde. De repente, vindo lá de dentro, surgia em cena um ancião. Vértice superior e base de tudo, o senhorzinho pintava no umbral da varanda tateando as paredes com pronunciada lentidão. Nessa pachorra, assomava, quase sem fôlego, o alpendre. Dali espichava os olhos compridos e atentos para o noviço.

Esse homem possuía, no físico, a rudeza dos valentes, a força de mil leões e a coragem de um exército. No entanto, agora, só uma casquinha leve mesclava a aparência de superioridade bailando no rosto carcomido. Andar cansado, os cabelos brancos e os ombros curvados, essa criatura se tornou inconfundível e única pela raridade dos predicados que acumulou durante toda a existência. Contudo, hoje, não passava de um ser desprotegido e débil, pego pela insensatez dos anos vividos. João Tomé, proprietário de tudo, gritava o neto. Sempre que chegava naquela parte da varanda, gritava o neto. Seu grito, porém, saia débil e fraco, quase inaudível. Parecia, entretanto, acontecer um milagre. O pequeno captava a voz arrastada do avô. Ao fazê-lo, estancava atônito. A aeronave abortava a rota e aterrissava, de barriga. As asas soltavam turbinas e flapes, enquanto outras partes minúsculas da fuselagem desmantelavam assentos e janelas. Bonecos imitando passageiros e tripulação, a um só tempo, viravam uma confusão única, perdidos entre bananeiras e jaqueiras.

Derramando em choro convulso, o infante corria ligeiro, as mãos estendidas, para o aconchego dos braços que se punham em sua direção. Acariciando o moleque, com movimentos vagarosos, o velhinho sussurrava palavras carinhosas em seu ouvido. Prometia solenemente “amanhã bem cedinho” logo ao acordar, consertar o aviãozinho e “arranjar” um jeito de colar as asas e as rodinhas que afrouxaram. 

Nessa hora, o astro rei, mais baixo, começava a se recolher para um descanso merecido. Com a ponta dos dedos, seu João sinalizava à Maria Preta que aprontasse a bacia de água quente e as roupas de dormir. E o mais importante: que servisse o jantar. Enquanto esperava, conduzia o neto até outro extremo da sacada, onde duas redes armadas convidavam a um repouso merecido.

— Hoje uma surpresa lhe espera.

— Qual, vovô?

— Não posso dizer.

A criança colocava o polegar na boca e assumia uma expressão travessa na carinha redonda:

— Eu sei vovô, eu sei. Papai vai chegar de carrão com a mamãe lá daquela cidade bem longe que o senhor me falou...

— Você passou longe.

— Me dá uma chance!

— Não teria graça se abrisse o bico.

O coração do sapeca exultava de contentamento.

— O Senhor vai me levar pra ver o “trem bonito?”.

                                     ***
Quando o piá se referia ao “trem bonito” aludia ao noturno de luxo que conduzia passageiros para o interior de São Paulo. Esse comboio geralmente cruzava muito tarde, normalmente quando todos dormiam a sono solto. Entretanto, uns pares de vezes, seu João Tomé aguentava o rojão pacientemente lutando contra o relógio e o esgotamento da lavoura a enfrentar dia seguinte. Ao ouvir o apito, ainda distante, acorria com o neto para a beira da via. O mocinho adorava essas aventuras. Explodia a alma em emoções descomedidas, vendo a luz forte surgindo longínqua, se aproximando velozmente e clareando os trilhos compridos sobre os dormentes justapostos em fileira constante. À noite como que se rasgava em quase dia por mágicos minutos. A composição passava ruidosa e veloz, com a maior parte das janelas acesas, até que perdia o brilho da pompa numa curva que desfigurava completamente a visão. Todo o desvario da emoção murchava, dava um retrocesso infeliz. Sem saída, o menino sufocava os soluços pungentes na garganta, para que o pranto não rolasse e aparecesse a tristeza indiscreta lhe deformando a forma primitiva da sensação de regozijo. Um tédio estático caia pesadamente sobre o lugar e distendia uma solidão enfadonha que vagava quilômetros.
                                           ***

Algum tempo depois, de banho tomado e encadernado no pijama novo, Maria Preta servia o jantar. Lá fora, a escuridão insistia. Esparramava sua presença pesada, fria, densa e pegajosa. No infinito, estrelas sacudidas do manto do Criador brilhavam e resplandeciam como um bando de vaga-lumes irrequietos. Em volta da sede, os cachorros faziam a roda e se acomodavam enleados. De vez em quando ladravam com estridência colossal. Sapos coaxavam num brejo próximo ao paiol de milho. Morcegos voavam. O tempo, inexorável, se deixava ser consumido e, com eles, as horas construindo um abismo gigantesco em torno do nada.

De barriguinha cheia, o pequerrucho acomodava a estafa do dia no colo do avô.

Maria Preta, sentada na cadeira de balanço diante da televisão, roncava atrapalhando o sossego. De boca aberta, babava sonhos irrealizáveis. Os braços caídos, pendidos para o vácuo, pareciam sem vida, à mercê de um vazio de proporções entediosas.

— Então se não é o trem bonito, qual a surpresa?

— Se você ficar quietinho...

—... Meus olhinhos estão cansados! — murmurava a uma vozinha fraca — Conta uma historinha?

— Qual você quer? — dizia o avô, acorrendo com a sua solicitude.

— Aquela do menino que ia atravessar uma... Uma... Uma ponte... E...

— Era uma vez...!!!

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. 
São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.