domingo, 28 de fevereiro de 2016

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas "Trovia" - março de 2016)




Quis rasgar o teu retrato,
mas que tristeza, que sina...
Até no papel o ingrato
do teu olhar me domina!
Benny Silva
=
Hoje eu sei que foi loucura...
Mas, ao louco, que fui eu,
devo o pouco de ternura
que o bom senso não me deu.
Cesídio Ambrogi
=
Vemos tanta nulidade
galgar posições, vencer,
que até sentimos vontade
de tudo desaprender...
Delmar Barrão
=
Eu te quero às escondidas,
e, se essa espera durar,
te esperarei quantas vidas
for necessário esperar!
Eugênia Maria Rodrigues
=
Eu e tu, duas metades
que a vida vai separando...
Eu e tu, duas saudades
na saudade se encontrando...
Izo Goldman
=
Como é belo ver a planta
que abre flores nos caminhos,
nas horas em que Deus canta
pela voz dos passarinhos.
José Lucas de Barros
=
Ante as sandálias furadas
que entre cascalhos gastei,
não culpo o chão das estradas,
culpo os maus passos que dei.
José Maria M. de Araújo
=
Vão ficando tão distantes
os carinhos do passado,
que eu nem sei se o que era antes
foi vivido... ou foi sonhado...
Marina Bruna
=
Ao começar a descida,
desencantado e com medo,
percebo que em tua vida
fui apenas um brinquedo...
Milton Nunes Loureiro
=
O poeta é um pai fecundo,
que se encontra, e se compraz,
entregando um filho ao mundo
em cada verso que faz.
Newton Meyer

===============

 A pulga, em tom de bravata,
diz, esnobe, dessa vez,
que mudou do vira-lata
pra morar num pequinês...
Edmar Japiassú Maia – RJ
=
– Eu era um burro, doutor,
que pesadelo medonho!
E o médico, gozador:
– Tens certeza que era um sonho?...
Élbea Priscila – SP
=
Todo dia se comprova
este famoso ditado:
carro velho e mulher nova
exigem muito cuidado.
José Lira – PE
=
Sou cinquentona, e daí?
O que vier eu encaro... 
Como o mel de jataí,
não fico velha... açucaro.
Olga Agulhon – PR
=
Um eremita perfeito
eu encontrei certo dia...
Era tão chato o sujeito
que de si mesmo fugia.
Olympio Coutinho – MG
=
Mil calçados! Ser multípede
que até me dá cefaleia!
Casei-me com uma bípede...
Vivo com uma centopeia!!!
Roza de Oliveira – PR
=
Tive um trabalho danado
com a vaca hoje cedinho:
não deu leite empacotado
nem quis sentar no banquinho...
Ruth Farah – RJ
=
Na luta pela conquista
de um bom salário, valentes,
a manicure e o dentista
lutam “com unhas e dentes”...
Therezinha Brisolla – SP
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 Contra o gênio, com frequência,
joga pedras a vaidade.
– É que a luz da inteligência
machuca a mediocridade!
A. A. de Assis – PR
=
Meu pai, muito te agradeço
por tudo que me ensinaste;
não existe nenhum preço
pelo tanto que me amaste.
Agostinho Rodrigues – RJ
=
Não acredites em quem
te promete amor e paz
sem explicar de onde vem,
o que quer nem o que faz.
Amaryllis Schloenbach – SP
=
Tal e qual toda laranja
se dá repleta de gomos,
amigo bom sempre arranja
como exaltar o que somos!
Amilton Maciel Monteiro – SP
=
Majestoso sabiá,
no teu canto há realeza.
Canto cá, tu cantas lá
a canção da natureza.
André Ricardo Rogério – PR
=
A paixão é traiçoeira,
dizem que pode matar.
Eu digo que é só coceira
gostosa de se coçar...
Ari Santos de Campos – SC
=
O amor, para muita gente,
é diversão perigosa.
Quem não sabe ser prudente
transforma em espinho a rosa.
Arlene Lima – PR
=
Sempre acolho de mãos postas
e humilde tento aceitar
o silêncio das respostas
que a vida não sabe dar...
Carolina Ramos – SP
=
Não há guarda no portão,
nenhum trinco ou cadeado;
mas não me faça invasão,
só entre se for chamado.
Cida Vilhena – PB
=
Sou poeta e, em meus caminhos,
não temo estradas rochosas...
– Quando a vida planta espinhos,
tanto mais eu colho rosas!
Clenir Neves Ribeiro – RJ
=
Uma luz quase apagada...
um sonho chegado ao fim...
Eis o pedaço do nada
que tu fizeste de mim.
Conceição Assis – MG
=
Amigo, qual tenra planta,
tem de ser bem cultivado.
Se outro valor se levanta,
você pode ser trocado...
Cônego Telles – PR
=
La luz que me sostenía,
en las lides de la vida,
la apagó un amargo día
el soplo de tu partida.
Cristina O. Chávez – USA
=
Existe o beijo roubado,
de sabor especial.
Mas o beijo apaixonado,
não há no mundo outro igual.
Cristóvão Spalla – RJ
=
Enquanto me redesenho,
faço o esboço do passado:
quero ver o que eu mantenho
pra deixar como legado.
Dáguima Verônica – MG
=
Rosa vermelha, tu existes,
rubra e linda entre os espinhos,
para tornar menos tristes
os que caminham sozinhos!
Delcy Canalles – RS
=
Praia… Sentado na areia,
sem nuvens de tempestade...
Enquanto a mente vagueia,
alguém chora de saudade!
Diamantino Ferreira – RJ
=
A vovó não tem memória;
perde os óculos... na testa.
Mas jamais esquece a história
da varanda... e uma seresta!...
Domitilla Borges Beltrame – SP
=
Meus pobres sonhos, tão fracos
a vida em escombros fez,
mas, teimosa, eu junto os cacos...
e eis-me sonhando outra vez!
Dorothy Jansson Moretti – SP
=
Mau sentimento é prisão
e traz intranquilidade.
Só se encontra no perdão
a chave da liberdade.
Eulinda Barreto – SP
=
Pão, alimento completo,
foi por Deus abençoado
e, pelo Filho Dileto,
com seu corpo comparado.
Evandro Sarmento – RJ
=
Quando enfim, tu te ajoelhas,
e o teu perdão te refaz...
serás luz entre as centelhas
do fogo aceso da paz!
Francisco Garcia – RN
=
O meu amor é bonito,
é grande, imenso, sem fim...
É bem maior que o infinito,
mas cabe dentro de mim!
Gislaine Canalles – SC
=
Em nossas carícias quentes,
não pesa a idade, nem nada,
porque somos dois poentes
que explodem numa alvorada!
Héron Patrício – MG
=
A luz que emana da cruz
é amor, é libertação:
– o martírio de Jesus
pela nossa salvação.
Hulda Ramos – PR
=
Melhor ficasse eu silente
que cortejá-la cantando.
Há serenatas que a gente
faria melhor calando.
Jaime Pina da Silveira – SP
=
Na clausura da existência,
das prisões que nos impomos,
um devaneio é a essência
do que pensamos que somos.
JB Xavier – SP
=
No silêncio da varanda,
caramanchão ressequido.
Sinais de pés em ciranda
parecem não ter sumido.
J.B.X. Oliveira – SP
=
Uma coisinha de nada
sintetiza imensa dor:
a florzinha abandonada
saudosa de um beija-flor!
Jeanette De Cnop – PR
=
Nos meus momentos tristonhos,
quando a incerteza me alcança,
vou acalentando os sonhos
com a canção da esperança.
Jessé Nascimento – RJ
=
Na poeira espessa e fria,
meu olhar, triste, divaga...
Se a estrada levou-te um dia,
talvez em outro te traga!
Joaquim Carlos – RJ
=
Muito embora ser lesado
cause enorme desprazer,
antes ser injustiçado
que injustiça cometer.
Jorge Fregadolli – PR
=
Das lições mais proveitosas
que aprendi nos meus caminhos,
uma foi que, em “mar de rosas”,
há também “praia de espinhos”...
José Fabiano – MG
=
Tem meu amor duas vias,
me consome pouco a pouco.
Numa delas… duchas frias,
em outra…um amor louco.
José Feldman – PR
=
Quando a chuva no meu zinco
vem mansa tamborilar,
uma ausência puxa o trinco
e deixa a saudade entrar...
José Messias Braz – MG
=
O amor se afirma e se apura
naquele instante perfeito
em que o desejo e a ternura
dividem o mesmo leito.
José Ouverney – SP
=
Senhor, me deste um presente,
o meu berço nordestino:
– meu passado que é presente
tão presente em meu destino!
José Valdez – SP
=
O poeta, declamando,
revolvia o meu passado.
Com seus versos foi traçando
o meu retrato... falado!
Lucília Trindade Decarli – PR
=
Coração desconsolado,
não podeis esmorecer.
Se viver é complicado,
muito mais é não viver!
Luiz Antonio Cardoso – SP
=
O tempo passa depressa
e tão rápido ele flui
que nunca mais recomeça:
– sou a sombra do que fui.
Luiz Carlos Abritta – MG
=
Quem quiser cantar meu canto
vá chegando de mansinho.
Tenho voz de acalanto
e canto de passarinho.
Luiz Poeta – RJ
=
Nas mais árduas empreitadas,
sou feita de luz e raça,
porque à fúria das pedradas
não temo em ser a vidraça.
Mª Lúcia Daloce – PR
=
Nos caminhos que trilhei,
buscando a felicidade,
perdão e amor semeei,
colhi ternura e amizade.
Mª Luiza Walendowsky – SC
=
Sabia, desde o começo,
quando decidi te amar,
que esta saudade era o preço
que eu teria de pagar!
Mª Madalena Ferreira – RJ
=
Quem, gritando, impõe respeito
e se julga um grão senhor,
não vê que impõe, desse jeito,
não respeito, e sim temor...
Marta Mª Paes de Barros – SP
=
Toda trova sintetiza
o que pensa o seu autor;
e, nos versos, simboliza
seus sentimentos – de amor!
Maurício Friedrich – PR
=
Quem me dera alguém pudesse
entender meu sentimento;
seria a trova uma prece
para o fim do sofrimento.
Neiva Fernandes – RJ
=
Perdão é a esponja macia
que se passa numa ofensa
por se crer na luz do dia
contra a noite da descrença.
Nilton  Manoel – SP
=
Por que nadar separados
e viver em frustração?
Quero nadar a seu lado
nas águas do coração...
Renato Alves – RJ
=
Ao tempo que aflito avança,
levando tudo de mim,
só peço: deixa a esperança
até que chegue o meu fim!
Rita Mourão – SP
=
Meu coração – em pedaços –
reclama a ausência do seu...
E eu, amor, sem seus abraços,
sou qualquer um, menos eu.
Ronnaldo Andrade – SP
=
Se tens um sonho desfeito,
se a vida perdeu o encanto,
solta a angústia do teu peito,
desamarra o nó do pranto!
Selma Patti Spinelli – SP
=
Transformei meus descaminhos
em fortunas grandiosas...
Quem não navega entre espinhos
não encontra o Mar de Rosas!...
Sérgio Ferreira da Silva – SP
=
Entre saíras, sanhaço,
joões, chupins, sabiás,
e outros amigos eu traço
meu canto de vida e paz.
Sinclair Casemiro – PR
=
A história dá diretrizes
que norteiam as vertentes,
dá vida e forma raízes,
prende os galhos divergentes.
Talita Batista – RJ
=
Por dar crença ao teu sorriso,
que tantas paixões atiça,
construí um paraíso
sobre areia movediça.
Thalma Tavares – SP
=
Se existe um amor sublime
embalando o coração,
um deslize se redime
num pedido de perdão.
Vanda Alves – PR
=
Se noventa e nove damos
das cem coisas que nós temos,
por uma só que negamos...
quantos amigos perdemos!
Vanda Fagundes Queiroz – PR
=
Minha mãe, com maestria,
vibrou forte  de emoção,
quando em tarde de magia
fez pulsar meu coração!
Vânia Ennes – PR
=
Jamais guarde mágoa intensa
no arquivo do coração.
Delete qualquer ofensa
com o clique do perdão.
Wanda Mourthé – MG

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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (Asas)

Trabalho numa escola pública municipal, na secretaria. Hoje saí do trabalho um pouco mais cedo e fui ao centro da cidade, para, depois, ainda voltar à Escola e, de lá, partir para casa com a cesta básica do mês.

No caminho de volta para lá, um passarinho me chamou a atenção e, por uns momentos, parei e, de olho nele, que andava de um lado para o outro no chão, como se quisesse voar e não pudesse, pensei: Será que esse pobre passarinho sabe que é um pássaro e que tem o espaço todo a seus pés, digo, suas asas? Não sei, nunca parei muito para pensar nisso, nem sei se já chegaram a estudar o mundo das aves tão a fundo, ao ponto de descobrirem como realmente funciona sua consciência de si. Será que eles sabem que são pássaros? Eu, por exemplo, na fila dos que vêm à luz, lá no Céu, devo ter bobeado, me distraído com algum anjo serelepe e, por engano, tomado a fila dos homens, quando queria mesmo era ter pegado a de um sabiá cantor, de uma andorinha livre, de um bem-te-vi que fica o tempo todo no passado, dizendo que me viu. Logo eu, o sem-asas!

Nunca voei de avião e tenho medo de altura, vertigem que me dá subir numa escada! Mas queria ter asas, singrar os azuis dos olhos da Terra e pousar no fio quase nulo de uma existência que só faz ver o mundo cá de baixo lá de cima dos montes. Talvez, assim, tivesse um monte de histórias, um mundo de estrelas, um lote de amigos. Será?

As crianças da escola em que trabalho, quando em vias de entrar em sala, pouco antes de bater ou o sinal de entrada, ou o de saída, com suas vozes misturadas, camufladas, encobertando-se umas às outras, parecem um ruidoso bando de passarinhos que, coitado, também mal sabe que tem/temos asas!... De papel, de algodão, de isopor, duas asas nuas.

Tomando um "coffee", pensando em nada, em quase nada, recolho as asas da ação, e o pensamento voa. Nas asas da xícara, um biscoito se quebra. As asas são fortes, mas também se quebram. Sem elas, voamos baixo, ficamos térreos, caímos logo, pesados, de chumbo. Cantando, cantando mais, sinto que as tenho, que tenho asas!... E voo.
__________
Fontes:
O Autor
Imagem = http://dollsparablogs.blogspot.com

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Jorge Luis Borges (O labirinto)

Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Olivaldo Júnior (Unha-de-gato)

Ontem, ao entrar numa loja de produtos naturais na cidade onde moro, passou por mim uma menina de ou uns oito, ou nove anos, e disse ao avô:

- Vô, olha aqui! Unha de gato moída! Eles pegam a unha do gato e ralam! - O avô, sem lhe dar muita atenção, falou qualquer coisa como se concordasse e já se afastaram da prateleira.

Vejo que tem sido assim em muitos relacionamentos entre adultos e crianças. A pressa, que era inimiga da perfeição, tem sido inimiga também da comunicação. Amizades ou se desfazem, ou sequer começam, porque há muito trabalho a fazer, muito horário a cumprir, e a vida é que se desfaz sem nem ao menos ter sido vivida. As crianças, que são filhos e filhas, netos e netas, sobrinhos e sobrinhas, alunos e alunas, então, têm amargado a indiferença dos adultos, que, entre um zap e outro, se esquecem de que o tempo dos pequenos não segue o dos ponteiros do relógio e ignoram compromissos. Não sou criança, mas, muitas vezes, me sinto ignorado também. O tempo dos músicos, dos poetas e de outros artistas é o tempo das crianças. Disso, tenho certeza. E, igual a elas, ainda que fique calado, não diga nada, sinto toda essa indiferença.

Se o avô que vi ontem com aquela menina tivesse parado um pouco de correr, teria lhe explicado que a unha de gato em questão era uma erva, a unha-de-gato, originária da Amazônia, usada para tratar desde asma até câncer. Mas não. Era preciso ir embora, chegar logo ao destino. Mas a qual, se o mais importante era parar um pouco e se abaixar até a altura da criança e lhe explicar qualquer coisa sobre o que ela via? Acho que ele nunca ouviu aqueles versos perfeitos da dupla Palavra Cantada: "Criança não trabalha / Criança dá trabalho". Quem não quiser ter trabalho, que não tenha filhos, porque dão trabalho mesmo. Eu não os tenho, mas ajudei minha mãe a cuidar do irmão caçula. Deu trabalho.

Crianças querem um pouco de atenção e de carinho, tudo o que lhes têm faltado. Não é por acaso que acreditam em uma casa muito engraçada, que não tinha teto, não tinha nada; ou, ainda, na Chácara do Chico Bolacha, onde o que se procura nunca se acha e numa aquarela que, um dia, descolorirá, com unha-de-gato (erva) e unha de gato mesmo, moída, como se fosse ingrediente de um caldeirão mágico de bruxa má; crianças acreditam nisso porque a fantasia que o tempo permite quando nós o permitimos passar devagar é o que as move e o que nos move para a felicidade, que roda, roda, roda, pé, pé, pé, roda, roda, roda, falso adulto bobo é.
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Fontes:
O Autor
Imagem = http://www.formulaeacao.com.br

Contos Populares do Tibete (A Árvore-Sombrinha)

Havia uma vez um homem chamado Palden. Era um grande viajante. Percorrera o mundo inteiro e vira coisas magníficas e maravilhosas. Um dia, quando atravessava a sua terra natal — o Tibete —, encontrou um grande bosque, em cujo centro, numa clareira, se levantava uma árvore enorme. Era belíssima, de folhas verde-escuras e se estendia como uma sombrinha por sobre toda a terra à sua volta.

Sentindo-se cansado, Palden decidiu deitar-se sob a árvore-sombrinha.1 Acomodando-se entre as raízes salientes, logo adormeceu. De repente, despertou sobressaltado. Era noite fechada e havia um grande alvoroço. Sem fazer nenhum ruído, mudou de posição para poder observar melhor e ficou escondido detrás do enorme tronco da árvore-sombrinha. O que viu o assustou muito: ali, na escuridão da noite, como estrelas do firmamento, brilhavam centenas de olhinhos: os olhos de muitos animais, das mais variadas espécies.

Sigilosamente, Palden se levantou e, com muito cuidado, para não espantar os animais, subiu pelos galhos da árvore-sombrinha e, desde ali, ficou espiando o que se passava embaixo. Um enorme leão das neves emergiu da escuridão, e foi sentar-se sob a árvore, seguido logo de um lobo, um urso, um macaco, aves e muitos outros animais. Todos os animais que viviam nos arredores do grande bosque tinham enviado um representante à reunião.

O leão das neves, que era sem dúvida o chefe,2 passou os olhos pela vasta assembleia e disse:

— Boa-noite a todos!

E, como resposta, todos os animais saudaram o leão e se cumprimentaram uns aos outros, com suas vozes e gorjeios.

Palden ficou tão pasmo com o que viu, que quase caiu dos galhos da árvore quando o leão falou. Segurando-se firmemente num galho forte, foi contemplando — olhos desorbitados — a reunião dos animais.

— Digam-me — disse o leão —, que tal foi o dia de hoje para vocês?

— Eu sinto muita fome, respondeu um lobo.

Caminhei muitos quilômetros, hoje, e não consegui comida suficiente.

— Já eu tive sorte — disse a tartaruga —, passei um dia ótimo, nadando e brincando entre as ramagens.

Todos os animais contaram o seu dia e, enquanto o faziam, o leão acrescentava os seus comentários, confirmava com a cabeça ou a balançava em sinal de desgosto; de vez em quando, dava algum conselho ao animal que o precisava.

Passado algum tempo, já se ia fazendo silêncio e todos os animais se preparavam para voltar aos seus territórios, quando se escutou um surdo rouco:

— Perdão, disse uma voz baixa. Tratava-se de um macaco muito velho e enrugado, que se levantou e se dirigiu para o auditório:

— Tenho um relato triste para contar a vocês, hoje. Está relacionado com a estupidez dos humanos.

— Conte-nos, então — disse o leão. Que foi que fizeram, hoje, os humanos?

O macaco continuou:

— Bem, para falar a verdade, o que eu gostaria mesmo é de ser humano também — disse, pois, se o fosse, poderia fazer muito mais pela felicidade dos outros. Mas, sendo as coisas como são, eles, os humanos, jamais escutam os chios de um velho macaco.

— Vamos logo com essa história — disse o raposo com impaciência, e um rumor de descontentamento se levantou dentre a multidão.

O leão das neves levantou uma das garras para impor silêncio:

— Deixem que o macaco conte o seu relato, disse.

— Bem — disse o macaco —, há uma família que vive junto do rio. Eles têm uma filha, uma única filha, que está muito doente. Já faz três meses que ela sofreu um ferimento na perna, e seus pais não sabem como curá-lo. Pois bem, se eu fosse humano — continuou —, lhes diria como curar a perna da menina.

Todos os animais concordaram com a cabeça, pois todos conheciam muito bem a estupidez dos humanos. E o macaco prosseguiu:

— Diante da casa, há uma grande rocha sob a qual vive uma rã. A rã está muito doente e não pode se mover por falta de água. Pois bem, se os pais da menina recolhessem essa rã, a colocassem num pratinho de ouro do santuário doméstico e a levassem ao rio, a perna de sua filha sararia rapidamente.

— É certo, falou o leão das neves. O macaco conhece o meio de curar a perna ferida da menina.

Mas, das outras vezes que tentamos falar com os humanos, eles não nos quiseram escutar, aliás, nunca nos escutam. Por isso, agora, que se arranjem sozinhos!

Depois que todos os animais se foram, Palden desceu da árvore-sombrinha. Estava muito pensativo e se perguntava o que devia fazer.

— Os animais me ensinaram o caminho a seguir — pensou. Devo encontrar essa família e ajudá-los a curar a perna de sua filha.

Quando Palden chegou à casa, o sol já havia aparecido no céu e a manhã ia avançando. Foi até a porta e chamou. Seu chamado foi logo atendido pelo pai da menina, que o olhou intrigado e perguntou o que queria.

— Sou médico — disse Palden. — Vim ajudar à sua filha.

O pai se afastou para deixar Palden entrar na casa e o conduziu até o leito onde jazia a filha, pálida e enferma, à beira já da morte. Palden se ajoelhou junto ao leito e tomou a mão da menina entre as suas.

— Vou fazer com que você fique boa de novo, sussurrou-lhe. Mas a menina não o ouvia. Palden viu que tinha que se apressar se quisesse salvar-lhe a vida.

Dirigindo-se ao exterior da casa, Palden encontrou a pedra grande. Afastou-a, com jeito, uns centímetros, e ali estava a rã, desidratada e morrendo por falta de água. Palden pediu ao pai da menina que lhe trouxesse uma echarpe branca limpa sobre um pratinho de ouro do santuário doméstico. Então, com muito cuidado, apanhou a rã e a colocou no pratinho, tal como o macaco havia mencionado.

Passando o pratinho ao pai da menina, Palden lhe disse que levasse a rã ao rio e que a colocasse no fundo:

— Se o senhor assim o fizer e se a rã se recuperar, a sua filha se salvará.

O pai não compreendia a medicina que o estranho doutor lhe aconselhava, mas, como havia experimentado de tudo para curar a menina, e sem resultado, procedeu tal como aquele homem lhe pedia.

Ao voltar do rio, o pai não coube em si de contentamento, ao ver que sua filha tinha se levantado da cama e já ajudava à sua mãe na cozinha. Voltando-se para Palden, o pai disse:

— Tudo o que tenho de valor é seu, é só dizer o que quer, pois o senhor salvou da morte a nossa única filha, e todo o ouro do mundo não seria suficiente para pagar-lhe o bem que nos fez.

— Eu não quero nada, disse Palden, a não ser trazer felicidade às pessoas.

O pai insistiu para que Palden ficasse e que comesse com eles, pelo menos. Prepararam uma grande festa em sua honra. Todos os vizinhos vieram e, nessa tarde, houve grande alegria no bosque, pois todos acreditaram que se houvesse realizado um milagre.

Ao cair da noite, Palden se despediu da família e, levando consigo os presentes com que o haviam acumulado, dirigiu-se novamente ao centro do bosque, à clareira na qual se erguia a árvore-sombrinha. Quando chegou à árvore, a reunião já havia começado. Todos os animais estavam congregados e contavam ao leão das neves as suas histórias. Lentamente e sem fazer ruído, Palden se encarapitou na árvore e subiu pelos galhos até ficar escondido da vista de quem quer que fosse.

Dessa vez, foi um tigre que falou dos humanos, contando sobre uma família que vivia no outro lado do bosque, longe do rio.

— São tão ignorantes — disse o tigre —, que todos os dias percorrem quilômetros e quilômetros até o rio, para se abastecerem de água.

Uma vez mais, os animais concordaram com a cabeça e soltaram grunhidos de compreensão, enquanto o tigre continuava o seu relato:

— Pois bem, se eu estivesse em seu lugar, arrancaria o grande toco de árvore que há junto à casa deles, cavaria até um metro de profundidade, e dali tiraria toda a água que necessitasse.

Palden escutava. Quando os animais terminaram, desceu da árvore e adormeceu profundamente. Contudo, ao despertar, recordou perfeitamente o relato do tigre, na noite anterior. "Foi um sonho?", perguntava-se; mas, quando levantou os olhos na direção dos galhos da árvore-sombrinha, persuadiu-se de que o que havia ouvido era absolutamente real, e de que tinha de encontrar a família que necessitava de água tão desesperadamente.

Palden chegou à casa da família no mesmo momento em que o sol se escondia detrás do horizonte, mas ainda havia luz suficiente para ver o grande toco. Aproximou-se do mesmo para inspecioná-lo e viu que estava profundamente fincado ao solo. "Será preciso a força de uns cinquenta homens para arrancar este toco — pensou —, pois ele está com as raízes enterradas fundo no solo. Sentou-se junto ao toco, tirou um pouco de comida da sua chuba, comeu, e logo voltou a dormir.

Raiou a aurora. Os pássaros do bosque cantavam e alguns sinais de movimento dentro da casa indicavam que a família já se havia levantado e se preparava para a jornada. Palden foi até a porta de entrada da casa e chamou, pedindo aos de dentro que o deixassem entrar.

Quando a mulher da casa respondeu ao seu chamado, Palden lhe pediu um pouco de água, mas ela disse que a que tinham já não era suficiente sequer para eles mesmos; e, sendo assim, não podia dar nem uma gota a estranhos.

— Temos que andar muitos quilômetros todos os dias —disse —, pois vivemos longe do rio e não temos outra fonte perto de casa.

— Talvez eu possa ajudá-los — disse Palden —, pois sou perito nestas questões.

— E o que o senhor vai querer por isso? — perguntou a mulher. — Se nos ajudar a encontrar água, tudo o que temos será seu.

— Tudo o que eu quero — disse Palden — são vinte e cinco metros de corda e doze iaques. Com isso proporcionarei a vocês toda a água que possam necessitar.

A mulher chamou o resto da família e, juntos, pegaram os iaques e a corda. Palden tomou a corda, amarrou-a ao toco de árvore, e depois a prendeu aos doze iaques. Conduzindo os iaques, fez com que eles puxassem e puxassem, até que, finalmente, o toco foi arrancado do chão. Então, pediu à mulher que chamasse todos os vizinhos mais próximos e que lhes dissesse que trouxessem pás para cavar.

Todos se juntaram e se revezaram para cavar o buraco deixado pelo toco. Em pouco tempo, a água apareceu. Água de fonte, água de manancial, clara e fresca, que encheu o buraco e jorrou abundante pelo solo.

Todos gritavam, riam, saltavam de contentamento, abraçando-se uns aos outros, cheios de felicidade. De repente, uma voz gritou dentre a multidão: "Silêncio!"

Fez-se silêncio entre todos, pois o ancião que havia lançado a ordem era sábio e muito reverenciado por seu povo.

— Durante sessenta e cinco anos — disse, dirigindo-se a Palden —, tratei de ajudar a essa gente.

Vi crescerem seus filhos e os filhos de seus filhos.

Vi morrer muita gente. Entretanto, nem eu nem nenhum outro foi capaz de fazer o que você fez.

Você é alguém muito especial — continuou. Deve ser, então, o chefe do nosso povo, pois trouxe muita alegria a seus corações e, mesmo assim, não está pedindo nada para si mesmo.

Palden respondeu:

— Darei o melhor de mim para conduzir o povo do bosque e fazer a todos felizes. Agradeço-lhes por me pedirem isso. Na verdade, eu sou apenas um pobre homem.

Assim que disse isto, a multidão levantou Palden e o levou aos ombros por todo o bosque, proclamando-o seu novo chefe.

Passaram alguns anos. Palden vivia feliz entre o seu povo. Sucedeu, então, que um velho amigo seu, inteirado da sua sorte, decidiu fazer-lhe uma visita, no bosque, para investigar como Palden havia chegado a ser tão famoso e querido.

Palden deu boas-vindas ao amigo, recebendo-o de braços abertos.

— O que o trouxe aqui, Kunjo? — perguntou.

— Desejo saber — respondeu Kunjo — o que fez você para ter tanta sorte.

— Oh! foi tudo muito simples — disse Palden.

E contou ao amigo tudo sobre a história da árvore-sombrinha e as reuniões dos animais.

Kunjo escutou atentamente o relato de Palden e, considerando o quanto gostaria de ser, também, chefe de um povo, decidiu encontrar a árvore-som-brinha e escutar os animais em seu colóquio. "Isso vai me fazer muito rico e famoso — pensou Kunjo; — terei todo o ouro e a prata que desejar".

E assim, nessa mesma tarde, despedindo-se de Palden, dirigiu-se à clareira do centro do bosque e subiu aos galhos da árvore-sombrinha para esperar a chegada dos animais.

Pouco tempo depois, dentro da noite iluminada apenas pelos tênues raios de lua que se filtravam entre os galhos das árvores, chegaram os animais.

Bem no momento em que iam começar a reunião, ouviu-se um estalido nos galhos da árvore-sombrinha. O leão das neves olhou para cima justo no instante em que Kunjo caía aos pés de um urso enorme.

— Pois vejam só! — disse o urso. Com que então, temos alguém para escutar a nossa reunião!

E, estreitando o homem em seus poderosos braços, espremeu-o tanto e tanto, que o último alento escapou do corpo de Kunjo e este morreu.

As aves e todos os (outros) animais banquetearam-se, naquela noite. E, quando o sol saiu, tudo o que restava do pobre Kunjo eram uns poucos ossos, que as aves carniceiras, com seus bicos, se encarregaram de deixar limpinhos.
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Notas
1. Em inglês, conhece-se com o nome de "Umbrella Tree" ("árvore guarda-chuva" ou "árvore-sombrinha") uma árvore americana do gênero das magnólias (Magnolia tiipetala), bastante alta e de folhas muito grandes, que oferecem um magnífico abrigo contra a chuva. Mas esta classificação se estende, igualmente, a outras árvores de características parecidas. Assim, pois, e dado que em nosso conto não se podia tratar desta árvore, pois o refúgio que oferece ao seu protagonista não é tanto da chuva, mas do sol, preferimos traduzi-la como "Árvore-sombrinha".
2. Não existem leões no Tibete, e desde o ponto de vista zoológico, esta designação de "leão das neves" poderia ser aplicada, talvez, ao írbis, conhecido como "pantera das neves", que é própria desta região da Ásia Central. De qualquer maneira, no Tibete o leão ocupa um lugar destacado como animal simbólico, de acordo, quanto aos demais, com a significação especial que tem o leão no budismo. E a presença do leão como animal simbólico na tradição popular tibetana era muito ampla; em algumas festas, como a do Ano Novo, celebrava-se a "Dança do Leão". Pois bem, a figura realmente importante nessa tradição era a da "Leoa branca das neves", ou "dos geleiros", que era considerada a personificação destes últimos. E a água que escorria deles, reputada como medicinal, era conhecida como o "leite da leoa branca dos geleiros".

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).